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janeiro 04, 2010

Ressaca

_E aí, sobrou alguma coisa do seu quarto?
 
O Fer perguntou, achando graça, ao me ver entrando na sala. Ele estava no sofá, sem camiseta e com o cabelo recém-raspado, como se tivesse passado a máquina naquela manhã, arrumando uns discos de vinil. Fazia um calor do cão em São Paulo. Uma latinha de cerveja já formava um círculo de água na nossa mesa de centro, parada ali provavelmente há uns bons minutos. Ao que tudo indicava, eu era a última a acordar naquela casa.
 
_Nossa, mano, ontem foi... – suspirei, sem completar a frase, estragada de ressaca e com um sorriso imprestável no rosto.
_É. Eu sei... – ele riu – Deu pra ouvir.
_Eita, desculpa.
_“Desculpa”, sei. Tá muito arrependida você...
 
Argumentou com ironia, rindo, e eu fui obrigada a concordar. Sentei ao lado dele e apoiei a cabeça no encosto do sofá, me sentindo cansada. A Clara tinha ido embora algumas horas antes e eu mal lembrava de tê-la acompanhado até a porta, capotando em seguida na cama. Agora o meu corpo inteiro doía. Por que eu fui encher a cara? Puta merda.
 
O Fer olhava para os discos, distraído, separando-os em pilhas diferentes. Ele tinha mais vinil do que tatuagem – o que não era pouca coisa. Uns de metal antigos e uma cacetada de rocksteady, ska e punk. Tinha até um disco de uma banda de queercore, Limp Wrist, que ele colocou para eu escutar uma vez. Hardcore de viado, mano. Não sei onde o Fer acha essas paradas.
 
Entre um LP e outro, ele olhou rapidamente para mim ali e riu.
 
_Cês pegaram pesado ontem, mano...
_Ah, meu... – fechei de novo os olhos, com a cabeça ainda apoiada no encosto do sofá – ...essa mina aí era da hora, a Clara.
_Era, né – riu – E vocês conversaram mais alguma coisa? Ou cê só sabe o nome dela?
_Olha, pra sua informação, a gente conversou pra caralho...
_Aham.
_É sério, meu, ela é massa – elogiei – Tava me contando aí, ontem, que já viajou pra tudo quanto é canto, fez mochilão na América Latina. Puta mina da hora. Trocamos mó ideia! Falamos de Anzaldúa, de Whitman. Ela quer tatuar um trecho daquele livro lá, o “Folhas de sei-lá-o-quê”, sabe?
_Sei. Folhas de relva.
_“Relva”?!
_Isso – o Fer achou graça, tomando mais um gole da sua cerveja.
_Não, meu, não é possível que seja “relva”.
_É, mano. Eu tenho o livro, caralho, tô te falando!
_Tá. Que seja.
_Mas, pô, firmeza a mina então...
_Nossa, demais. A gente conversou a madrugada toda, foi massa...
_É. Deu pra ver que cê gostou mesmo da “conversa”... – me zombou.
_Ah! Vai cagar, Fernando.
 
Chutei ele de leve sob o sofá e trocamos olhares, rindo.
 
_Gostei das duas coisas, tá?
_Bom, vocês pareciam estar se divertindo... – deu mais um gole e me olhou como se eu fosse uma adolescente, balançando a cabeça – A Mia ficou puta da cara, velho... A gente não conseguia dormir...
_Ah, nem vem! – me revoltei – Sou sempre eu que fico escutando vocês, porra, toda maldita noite. Desagradável pra caralho!
_É. Acho que a gente precisa dumas paredes melhores... – o Fer riu.
_E a Mia, afinal, tá aí?
 
Perguntei, exausta, com os olhos fechados. Sentia a minha cabeça martelar de dor.
 
_Não, foi embora hoje de manhã. E-ela... – o Fer hesitou – ...me perguntou de você.
_De mim? Hoje?
_Não... ontem.
_Ontem?
_É... Enquanto você se agarrava com essa mina aí no Inferno... – ele riu, coçando a parte de trás da cabeça – ...acho que não tava acostumada.
_Como assim? Mas perguntou o quê?
_Ah, meu, n-não sei... Essas coisas... – deu de ombros, sem elaborar muito, mas eu insistia em olhá-lo à espera de uma resposta melhor – ...cê sabe, sobre você e a menina, meu.
 
Ele riu. A verdade é que o Fer não dava a mínima pros meus exageros, os meus apaixonamentos efusivos de balada – cresceu me vendo fazer merda, sofrendo e tropeçando em drama sapatão pelas madrugadas de Santo Amaro, onde passamos a adolescência juntos. Era o meu melhor amigo desde a quinta série. Como resultado disso e dos anos em que já dividia aquele apartamento comigo, no meio da meca gay de São Paulo, o Fer era um caso raro de cara hétero totalmente indiferente a demonstrações públicas de afeto entre minas. Ou viados – o que era mais raro ainda. Ele simplesmente não tava nem aí.
 
_Depois eu fiquei pensando e... tipo, n-não é como se, sei lá... – argumentou – ...a Mia é do rolê... ela tem um monte de amiga que se pega, meu, num entendo por que ficou tão chocada.
_Ah, até parece, né? Essas minas que ela anda do Mackenzie ficam dando selinho na balada para fazer graça pra marmanjo, nenhuma delas se pega ali, não...
_É. Talvez – ele riu.
_Hum... – me espreguicei ao seu lado no sofá, esticando as pernas adiante, e joguei um verde – ...mas eu achava que a Mia já sabia de mim faz tempo. Não?
_Ah, ela sabe... – ele riu e me ofereceu a sua cerveja, que eu aceitei contra todo bom senso latejando na minha cabeça – Ou cê realmente acha que eu não ia avisar a minha própria namorada?
_Credo, mano, cê fala como se eu fosse pior que o Lobo Mau...
_Quê? – zombou, me provocando – Cê num sossega, mano!
_Vai se foder! – resmunguei e comecei a argumentar, indignada – Sabe, eu tenho 23 anos, tô fazendo exatamente o que eu deveria estar fazendo... Cê que tá aí, idoso, nessa vida de casado!
_Fala mal, mas bem que queria... – ele riu e eu o empurrei para o lado.
 
Argh. Cê não imagina quanto.

4 comentários:

giovanna disse...

ADOOOOORO !!

Luh disse...

Estou adorando , você escreve muito bem ...

Larissa disse...

Não consigo parar de ler *-*

Anônimo disse...

Na 18ª linha de baixo pra cima tem "tantos" no lugar de "tanto"... Tô relendo o blog e achei que devia comentar. Beijos Mel ;D