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agosto 31, 2010

Pupilas dilatadas

Foi como ficar sóbria, instantaneamente. Às vezes, mergulhos muito profundos em si são perigosos. O consumo exagerado de entorpecentes também. O problema é que quando sua brisa te tira tanto de si mesma, sua mente às vezes é obrigada a te puxar de volta – à força. É como quando você recebe a pior notícia da sua vida em meio a uma bebedeira: o mundo automaticamente para de girar e você recupera a razão. Mas aí vem a dor de cabeça, claro. Porque trancos mentais tão bruscos assim não devem ser tão simples, eu imagino, anatomicamente falando. A sua percepção da realidade entra em colapso de repente, o que não deve ser nada saudável.
 
A culpa, no entanto, foi das cores.
 
E não se deixem enganar pela pressuposta inocência das mesmas. Não quando se tem drogas demais na cabeça e álcool em excesso no sangue – aí as cores adquirem malícia, entendem, perdem a sua passividade. Foram elas que provocaram a tal submersão perigosa. Começou com os pés descalços da Mia. Os seus pés e a sua pele pálida, de anos sem tomar sol em São Paulo. E tá, eu sei, sei que branco não constitui exatamente uma cor só, mas que se dane. Foi assim que começou. Com a pele dela, esvaziada de cor pelo cinza dos céus paulistanos, contra o azul-marinho do sofá da nossa sala. E continuou, descendo pelas suas pernas. Encostadas suavemente entre si, até os tons castanhos da madeira no piso, que estava frio pra caralho, contrastando ironicamente com o calor que emanava do seu corpo. Espalhava pelas suas coxas. Ia desviando dos desenhos tatuados e descendo. Até a sua calcinha preta, intensamente preta, e as cerejinhas vermelhas desenhadas em toda a parte da frente. Observei deslumbrada – estava chapada demais. Era como caminhar numa madrugada tranquila, dessas de verão, no interior de São Paulo, quando pequenos pontos de luz iluminam as ruas e as árvores escuras à noite. Era bonito de ver, realmente bonito. Me encantava.
 
E aí os meus olhos continuaram subindo, lentamente, admirando em seguida o trechinho descoberto da sua nova tatuagem. As linhas pretas e o amarelo dos narcisos na lateral do seu corpo. E então vinha o cinza desbotado do seu moletom velho. Pois é, sem graça. No entanto, poucos palmos acima, ressurgia a sua pele, iluminada pela luz quente e amarela da sala, cada poro novamente, diante dos meus olhos apaixonados atentos, misturando-se com o castanho dos fios de cabelo que caíam ao longo do seu pescoço e o castanho envernizado do chão da sala, onde se esparramavam.
 
Me deu uma vontade incoerente de mergulhar ali, de correr meus dedos pelos fios, de tocar sua pele. Encostar nela, sabe? É que estava assim tão perto, tão bonito. Que me vinha aquela paz, aquela lentidão, num impulso de olhá-la por horas e não sair mais dali. Apenas contemplar cada centímetro, cada fio, acompanhar os menores dos seus gestos, se movendo desatenta ao meu lado, nuns tons serenos e num respirar lento, chapado, absolutamente magnífica.
 
Levantei a mão até o meu rosto, em um movimento igualmente lento, e corri a ponta dos meus dedos pelos meus lábios. Sem pressa. Eu – também – me movia pausadamente; pouco a pouco, junto com o mundo, que demorava a passar. 420 horas por minuto, é. Sentir o calor das minhas mãos na minha boca me acalmava, de certa forma, mas não resolvia o problema. Não era a sensação que meu corpo buscava, ali, às cegas. Era apenas um reflexo automático. O calor que eu queria, pelo qual eu de fato ansiava, estava a alguns centímetros de castanho, de piso gelado, de mim – encostada sinuosamente nas linhas da madeira. A sua boca me tentava por acidente, sem qualquer intenção.
 
Foi quando, então, o escuro dos meus olhos encontrou o amendoado dos dela, permeados por raios finíssimos de um preto lindo, tão lindo. E eles estavam ali, me olhando de volta. Me olhando atentamente. Desde quando? Não sei. A sua mão se moveu cuidadosamente na direção do meu rosto, tirando a franja bagunçada de cima dele, e eu senti a sua respiração pesar dentre a ínfima distância entre nós duas. Aos poucos, meu coração acelerou. O sangue corria intensamente pelas minhas veias, eu podia sentir, como se o mundo inteiro formigasse ao meu redor e a vontade não fosse mais mera emoção – era real. Tão palpável quanto a garota na minha frente.
 
Aí a mistura de tonalidades e sensações, sensações vivas e deslumbrantes, coloridas, ou o excesso delas, me arrancaram todo o resto de consciência que eu possuía. Me sacaram de mim, me roubaram a razão. E impulsionaram, sem qualquer pensamento coerente, a mim na sua direção. A meio centímetro, quase lá. Ela me olhava de volta, completamente envolta nas minhas intenções, hipnotizada pelo mesmo tipo de sentimento que me dominava.
 
Era aquilo. E aquilo era quase um beijo, envolto em castanhos ondulados e vermelhos cintilantes, azuis macios, rosas lentos e pretos amendoados. E por pouco não foi. O beijo. Realmente pouco – a ponto de eu sentir o movimento oscilante do seu colo empurrar as partículas de ar contra o meu, conforme ela respirava, ansiosa. Ambas à mercê de toda aquela iminência. Involuntariamente minha boca se enchia de gosto, de vontade dela.
 
De repente, porém, os meus olhos recuperaram a velocidade normal.
 
O pequeno círculo, ao centro, se estreitou por um instante e toda a realidade entrou de uma só vez na minha cabeça. Quase brutal de tão súbito. Eu estava tomada por uma inércia entorpecente, desavisada de qualquer perigo e inconsciente dos meus próprios atos. A meio centímetro da Mia e a menos de um metro do Fer.
 
Para, porra. Para.
 
O que diabos eu estava fazendo?

agosto 27, 2010

Fritando, fritando

“You’ve been cheated, you’ve been messed around”, uma rádio qualquer gritava na nossa sala. Eu já havia perdido a noção do tempo há... há... Quantas horas mesmo?! Há... Ah, que se dane. Enquanto isso os meus pés brincavam descalços com os da Mia, lado a lado, e nós ríamos entretidas. Ambos os pares apoiados sobre o sofá, enquanto nós três encarávamos o teto. Deitados no chão em fileira – eu e ela e depois o Fer – no tapete da sala. “You’ve been looking for heaven, but hell is all…”.
 
_...that yooooou foooooound! – cantei junto com a música, empolgada, e os dois começaram a rir imediatamente de mim; eu estava chapada demais para me importar.
 
Ah, até que não é tão ruim assim... Viu só... Estamos aqui... de boa... Todo mundo de boa... Ouvindo Mitch... Mitch, ahm... Mitch Malfoy... Não, mano. Não, não, não...“Malfoy” é o bruxo, sua idiota... Mal... M-mal... Malloy! Mitch Malloy!... É isso... É... Aquele do clipe cafona... Muito cafona... E aquela mina dançando... Cruzes... Não... Não dá, não dá... Não, espera, o que eu estava pensando antes?... De boa, é. Isso. Todo mundo de boa. Porra, o pé da Mia é bonitinho, né?... Vem cáá... Ai, não, faz cócegas, sai pra lá... Saiii... Sai!... Pronto... Mano, essa luz é amarela demais... Demais... A gente devia trocar, meu, dói o olho... Se bem que... Nem ando ficando aqui... Tipo... Pra quê trocar?... Não, né, sacanagem... Tem o Fer... Regras de convivência... É necessário... Um pouquinho de compaixão nesse coração... Hum, compaixão... Com... pai... xão... Espera, “compaixão”?... O que diabos eu estou falando, porra?... Nada a ver, mano... “Compaixão” não é a palavra certa... “Compaixão” quer dizer... Cara, “compaixão” é uma palavra?!... Com... pai... xão... “Compaixão”... Estranho... Aff... Eu tô chapada demais... Eu preciso parar de... Eita, aquilo é uma formiga na almofada?... Uma formiga, mano?! Aqui??... Enfim, eu preciso... Eu preciso parar de fumar... Preciso parar de fumar, porra... Não, o problema foi que... É, eu não devia ter misturado... Foi o rum... O rum não me caiu bem... Foi a terceira dose... Ahh, é, aquilo é uma formiga... Mano, não... A culpa é do velho do boteco... Foi ele, certeza... Tava amargo o cara... Foi mau olhado, meu... Filho da puta... Espera, onde a formiga vai?... Não, aí não... Formiga... Formiiiga... Cê vai cair, mano, volta... Pro outro lado, pro outro lado... Não... Nããão... Aff, cala a boca, mano, ela não te escuta... É um bicho... Eu tô chapada, puta merda... Chega... Vou ficar sóbria... Ai, mas... Aí não... Nãão... Formiga... Formiiiiga... Formiguiiinha... Aí não... Aí não... Me escuta, porra!... Espera, eu disse isso em voz alta?!... Hum, não... Acho que não... E lá vai a formiga... Ô, caralho, volta pra cá!... Aí não... Não!... A almofada... vai acabar... Formiga... Formiiiiiga... Espera... Não, que que eu tô pensando?... Formigas não caem... Ou caem?
 
_Gente... f-formigas caem?
_Quê?! – ouvi o Fer perguntar, deitado do outro lado da Mia.
_Tipo, se uma formiga está andando em cima de uma coisa e aí ela vira de ponta cabeça... ela cai?
_O que vira de ponta cabeça? – a Mia indagou – A coisa ou a formiga? Porque acho que depende.
_Não, a formiga. A coisa fica igual, mas... tipo, por baixo.
_Não cai – o Fer concluiu.
_Não cai?! Como não cai? – perguntei, com um enorme interesse repentino no assunto – Não rola, sei lá, tipo, a força da... d-da gravidade?
_Não cai, meu... Nunca viu formiga descendo na parede?
_Não, mas isso é na vertical... Ela tá falando se ficar completamente de ponta cabeça... – a Mia interrompeu – ...eu acho que cai, meu.
_Que cai, amor?! Nada a ver! Elas têm, tipo, super patas!
_“Super patas”?! – a Mia olhou para o Fer e os dois começaram a rir.
_Não...
_É, porra. Tô falando! Tipo os sapos, meu... – ele explicava, fazendo mímicas com a mão, e nós duas observávamos atentas – Tem aquele, aquele negócio redondo na ponta e elas ficam grudadas... Que nem uma colinha.
_Sapos não têm isso, só as rãs... – eu me meti a inteligente.
_Claro que os sapos têm!
_Sapo não anda no teto, mano. Só na parede!
_Mas é o mesmo princípio!
_Cala a boca, meu, claro que não... – a Mia contestou – Formigas têm patas finas!
_Ah! E como cê sabe, ô esperta?! Já viu uma num telescópio, por acaso?
_Não! – retrucou – Cê já viu?!
_Microscópio, gente... – eu participei, modestamente.
_Não vi, porra, mas eu sei que é assim...
_Você “sabe”? Como você sabe? Hein?! – a Mia o provocava – Há quanto tempo cê sequer vê uma formiga, meu?!
_Ah, não tanto tempo... É que tá frio, né, aí elas somem!
_É... – concordei, mais ou menos, sem entender direito.
_Nossa! Como era aquela história, meu?! – a Mia gritou, do nada, me chamando pela mão – Lembra? Da formiga e a... a...
_Cigarra! – quase gritei junto e a olhei, deitada ao meu lado – A cigarra, não era?
_Era! – a Mia se animou e começou a rir comigo, achando uma graça imensurável na situação – É. A formiga e a cigarra, isso.
_Pode crer... – o Fer disse, do outro lado – ...a cigarra cantava, não era, e a formiga fazia todo o trampo e aí a outra vinha pedir comida pra ela no final, puta moral fascistinha.
_É, é...
_Nossa, cara, eu acho que nunca vi uma cigarra real.
_Nem eu.
_Espera, espera. Tô confusa. O que eu tinha perguntado antes?

Chapada

...pra caralho.

Por que diabos “unzinhos” nunca são, de fato, um só?!

agosto 26, 2010

Ralo abaixo

Mais uma, pensei ao enxergar o fundo do copo recém colocado sobre a bancada e fiz um gesto para o atendente, sem pensar suficientemente a respeito. Aquela era a minha segunda dose e o tempo insistia em passar devagar. Cruelmente devagar. Não queria dar bandeira junto com a Mia, mas chegar bêbada em casa naquelas circunstâncias também não era a melhor das ideias. Infelizmente, eu não tinha outra estratégia para passar a porra do tempo. Olha a que ponto você chegou, me indignava comigo mesma.
 
Observava em pé o movimento deprimente do boteco, com metade do corpo apoiado contra o balcão. Argh. Levantei o olhar e o relógio na parede marcava cinco para a meia noite. Mais uma e eu caio fora, planejei. Um velho rabugento com a barba por fazer enchia o meu copo com o que seria a saideira de rum da noite – já com certa má vontade. A Mia estava no apartamento com o Fer há mais de meia hora. Eu sabia que ia precisar me controlar uma vez que chegasse lá em cima e, ciente de que aquela confusão frequentemente me tirava a racionalidade, sabia também que precisava parar de beber.
 
Virei a dose. Aquela seria, de fato, a última. Paguei o cara no caixa com as notas amassadas que tirei do meu jeans e me dirigi à saída com o maço de cigarros na mão, pretendendo enrolar mais alguns minutos na frente do prédio. Quando finalmente virei a chave na porta de casa, o meu celular já marcava quase meia-noite e quinze.
 
A primeira fresta aberta entre a porta e o batente, revelou um som alto vindo da sala. Milésima multa, previ, conforme terminava de empurrar a porta apartamento adentro. O Fer estava sentado no sofá, debruçado para a frente, como se mexesse em algo na mesinha de centro. Ele me viu assim que entrei e acenou, sem me dar muita importância. A Mia, ao seu lado, me olhou rapidamente e logo tornou a encarar o chão. Até aqui tudo bem, reforcei positivamente, como um mantra anti-vexame, enquanto me punha a atravessar a sala, esperando não ser muito notada.
 
_Falou parabéns? – o Fer me chamou, poucos passos antes de eu chegar no corredor.
 
Droga. Olhei para trás como se não tivesse entendido e ele sorriu para mim, colocando a mão na coxa da Mia – que estava só de calcinha e moletom no sofá.
 
_É aniversário dela, pô...
 
Pois é. Eu sei.
 
_Parabéns – respondi fingida, andando até o sofá, e a Mia se levantou brevemente para um abraço automático, ambas despistando o melhor que podíamos.
_Fuma um aí com a gente... – o Fer sugeriu.
 
Só então reparei o baseado na mão dele. Era isso que estava fazendo na mesinha.
 
_Não... – murmurei, querendo sair o quanto antes dali – Tô de boa.
_É aniversário da Mia, meu... Sério que cê vai dormir?! – ele riu – Fica aí um pouquinho, mano... Bolei agora, é só acender.
_Não, valeu... – resmunguei, me virando para retomar o caminho.
_Ela tá cansada, amor... – a Mia cochichou do lado dele – ...deixa pra lá, num precisa.
_É, e eu não tô muito afim... sei lá... Já bebi hoje também, vai me zoar.
_Ah, meu... qual é?! Cê anda muito chata! – ele reclamou e riu, de novo – Nunca fez mais nada com a gente! Pô, fuma aí... Só um, vai... pra comemorar!
 
O argumento até que não era ruim. Aliás, era melhor que o meu – se não considerarmos a verdadeira justificativa por trás do meu sono incomum às 0h da “madrugada”. Eu odiava mentir para o Fer. Olhei nos olhos do meu melhor amigo, ali, sendo todo simpático comigo e me detestei por andar tão cretina com ele nos últimos dias. Por um instante, a sua sugestão não me pareceu tão má ideia – e isso certamente envolve motivos maiores, digo, de teor alcoólico. Mas, ah... que mal poderia fazer? É só um.
 
Observei-o novamente e suspirei, dando-me por vencida.
 
_Tá.

agosto 22, 2010

Bonnie & Clyde

Era isso. Aquilo me bastava. Aqueles dois minutos mal articulados eram suficientes para que eu soubesse que ela gostava de mim. E imediatamente me sentisse melhor – é. Ela gosta de mim. E mesmo que não tivesse beijado a Mia o dia todo, de repente me sentia mais próxima dela do que em muito tempo. Todas as horas passadas olhando para a tela do telefone nos últimos dias, à espera de uma mensagem sua, já não me importavam. Meu coração se agarrava a cada palavra que tinha tropeçado desajeitada para fora da sua boca. De algum jeito, eu significava algo para ela – e isso me fazia feliz.
 
O restaurante todo já tinha esvaziado. Éramos as últimas pessoas que restavam ali. Àquela altura, o atendente já nos olhava com cara de vocês-duas-não-vão-sair-da-porra-dessa-mesa-nunca, então decidi pedir a conta. Pagamos e saímos para a rua para fumar – o frio havia piorado exponencialmente naquele meio tempo. Mal acendemos nossos cigarros e a Mia começou a pular na minha frente, reclamando sobre como o vento machucava a sua tatuagem nova. E eu ria, entre uma tragada e outra.
 
_ESSA PORRA CORTA, CARALHO!
_Coitada de você, né... – disse, irônica, e fiz uma careta para ela.
_Cala a boca... Arde muito, meu! – ela ria e choramingava ao mesmo tempo, exagerando – É SÉRIO!
_Sei... – eu ria também e colocava o cigarro na boca, olhando para ela.
_Vaiiiii! Termina logo aí e vamos embora!
_Mano, é pior andar contra o vento... Relaxa, a gente já vai! – a observei saltitar na minha frente, no meio da calçada – Cê também não acabou aí ainda...
_É, mas são sei lá quantas quadras até a casa de vocês, né, caralho... Já que vamos sofrer de qualquer jeito, a gente podia ir de uma vez!
_Espera – me surpreendi – Cê vai pro apê hoje?!
 
Mano, não. É de foder.
 
_É, eu... e-eu... – a Mia me olhou, constrangida pela minha reação, conforme as palavras saíam sem muita confiança da sua boca – ...é q-que eu tinha... dito p-pro Fer que ia... passar lá à noite... ele... e-ele queria comemorar comigo e... aí c-como o estúdio... era... e-era perto, eu...
 
Vi ela se atrapalhar para explicar, palavra atrás de palavra, nitidamente afetada pela minha cara. Forcei um meio-sorriso, fazendo um sinal discreto com a cabeça, como se indicasse que estava tudo bem, que não tinha problema. Mentira. Tinha problema pra caralho. Abaixei o olhar até as pedras da calçada, tentando disfarçar como podia, sentindo um aperto horrível no peito. Depois de passar o dia inteiro comigo, porra, pensei, você vai me fazer andar com você até o apartamento, como se nada fosse? Até o Fernando?!
 
Respirei fundo, engolindo o incômodo que sentia, e coloquei o cigarro de volta na boca. Merda. Nenhuma de nós disse mais nada por um tempo – a Mia no meio da calçada e eu encostada contra a parede do restaurante, a poucos metros da porta. Sem nos mover um passo sequer. O vento continuava impiedoso, se esforçando para piorar ainda mais a situação. Mas o frio já havia perdido a sua importância ali, como se perdesse lugar para o desconforto que surgiu entre nós. Dois segundos de conversa do lado de fora e todo o clima foi por água abaixo – mas que droga.
 
O pior é que nem eu entendia a minha surpresa. O que diabos eu achava que ia acontecer? Que ela ia me convidar para dormir na casa dela? É aniversário dela, caralho, é claro que ela vai ver ele. É claro que vai dormir com ele! Não comigo. O que eu tava pensando, porra?! A minha vontade naquele segundo era de subir no primeiro ônibus que passasse, independentemente do destino, e ir para o mais longe que eu conseguisse do maldito quarto que ficava ao lado do meu. O mais longe possível dela e do Fernando. E por pouco, realmente pouco, não ergui o queixo e o fiz.
 
Todavia, repetidas vezes, as palavras da Marina mais cedo ecoaram na minha cabeça. E a expressão no rosto da Mia, naquele momento, não era de alguém que achava aquilo fácil. Pelo contrário. Estava encolhida no seu moletom, com as mãos protegendo os braços do frio como podiam. Tinha os olhos e a mente perdidos em seus pensamentos, igualmente em silêncio. E aquilo me desarmou. A observei ali parada, por um tempo, até que seus olhos angustiados encontraram os meus.
 
E aí, enfim, eu entendi.
 
Segurei o zíper da minha jaqueta com a mão e o deslizei para baixo, a abrindo. Então alcancei a Mia – sem me desencostar da parede. E ela se moveu relutante na minha direção. Toquei o seu rosto e a olhei por um instante, correndo meus dedos pela sua pele cortada pelo frio. Nossos gestos e o tempo se desenrolavam devagar. Sorri e ela sorriu de volta, como que por mero reflexo. Então a segurei com as duas mãos, trazendo-a para ainda mais perto, e, de um jeito quase sem querer, nós nos beijamos.
 
O vento nos castigava naquela travessa escura da Augusta. Com a boca ainda na sua, envolvi cada um dos lados da minha jaqueta sobre seus braços, a protegendo. Senti suas mãos geladas me abraçando e percorrendo a lateral do meu corpo, procurando conforto entre a minha jaqueta e a camiseta. O beijo logo terminou e os nossos lábios se separaram. A Mia afastou o seu rosto, a dois mínimos centímetros do meu, me olhando ali de perto, e suspirou.
 
É. A Marina estava certa.

agosto 21, 2010

Uma pergunta só

Por que você me pergunta o que já sabe, garota? Não é óbvio?! Porra, faz meses. Meses! Que tudo o que eu quero é você, cacete, meses que a minha cabeça e toda a porra da minha vida giram em torno de você. E só você. Você e cada segundo que consigo ao seu lado, você e os nossos beijos escondidos, você e essa merda desse rolo. E agora você, v-você fica aí, me olhando como se não soubesse, como se fosse novidade. Sério mesmo, Mia?! Você precisa que eu fale? Você vai mesmo me fazer sentar aqui, olhar para a sua cara e dizer, de novo, o que você já percebeu? Narcisos, não é? Narcisos, caralho.
 
_Sim – respondi, a contragosto, e a encarei de volta – Conheci.
 
Sentia o meu coração sair pela minha boca. Inferno. Eu odiava ter que admitir meus sentimentos – ainda mais sóbria e vestida. Aí é pior ainda. Tão na lata. Sentada assim na sua frente, inquieta, numa cadeira dobrável dum restaurante sujo e apertado das redondezas da Augusta, com o prato vazio e um resto de cerveja na minha frente, o cabelo bagunçado pelo vento e a olhando ali, sem conseguir esconder o quão ridiculamente apaixonada por ela eu estava. Para piorar, assim que aquelas duas palavras deixaram a minha boca, os lábios da Mia se entreabriram, num impulso, como se fosse dizer algo, mas imediatamente se conteve. Argh. Ficamos em silêncio então, por alguns segundos, até que finalmente criei coragem:
 
_E você, conheceu?
 
Encarava o prato como se fugisse de mim.
 
_Não me faz pergunta difícil, meu... – murmurou.
 
Era como andar sobre cascas de ovos, o tempo todo – um movimento em falso e eu podia colocar tudo a perder. Qualquer pergunta ou confissão mais sincera, qualquer sentimento mais real, e ela podia escapar entre os meus dedos. Como eu odeio isso. Me pegava, então, calculando cada palavra que dizia. Com medo de arruinar o que quer que era aquilo que nós tínhamos. Me censurando. E entre os nossos silêncios e incertezas e meias-palavras, cochichadas pelos cantos, o meu amor por ela não encontrava passagem. Ficava preso dentro de mim, irrealizado, latejando, arranhando as paredes do coração. Sempre abafado. Impedido de sair, espremido num conta-gotas – e é, era exaustivo.
 
Inferno.
 
_Posso perguntar só uma coisa? – arrisquei, a observando.
 
A Mia subiu os olhos de novo e me encarou, hesitante. Aí deslizei a minha mão sobre a mesa, encostando sutilmente a ponta dos meus dedos nos seus – respirei fundo. Caralho. Tentava me lembrar da última vez em que gostara assim de alguém e fracassava. Como eu queria poder te dizer a verdade, o quanto te amo, garota.
 
_Por que v-você... – pausei, me sentindo uma tonta, ali – Por que você foi no meu quarto aquele dia?
_Que dia?
_Que cê bateu na minha porta de madrugada... – respondi e os seus olhos tornaram a fugir para a mesa – ...a primeira vez que a gente se beijou.
_E-eu não...
 
Ela interrompeu a frase no meio, sem concluir.
 
_Você...? – retomei.
_E-eu, eu não sei...
_Não sabe?
_O que cê quer que eu responda, meu?! – se inquietou com a minha insistência.
_O que você achar que tem que responder, Mia...– continuei – Eu só queria entender o que tava se passando na sua cabeça.
_E-eu... eu... – a Mia abaixou o olhar, de novo, falando pausadamente enquanto encarava a sua mão ali, tocando um milímetro da minha – ...não sei, eu... e-eu não conseguia dormir... fiquei acordada na cama do lado do Fê s-sem... sem... – tirou a mão da mesa, de repente, e a esfregou no rosto – ...isso não é fácil.
 
Eu sei.
 
_E-eu... – suspirou, angustiada – ...sei lá, porra, eu só não conseguia dormir, tá bom?!
_Tá. Mas por quê?!
_Porque não. Porque, sei lá, porque a g-gente... meio que discutiu e... e... – ela se irritou – ...e cê também passou o dia com a droga da Clara no... no apartamento e...
_...e?
_E nada, e-eu só... – cruzou os braços, se afundando na cadeira – ...não sei, porra.
_Mia...
_É que você... sabe, você é... é assim tão... – se frustrou – ...não sei, eu... e-eu, eu sempre meio que... q-que gostei de, de você... e...– ela encarava a mesa, se enrolando nas próprias palavras – ...e... e quer dizer, eu... eu nunca conheci uma menina que nem você... sabe... que me fizesse... s-sentir vontade de... não sei, você... você é tão segura de quem cê é e... e aí cê começou com essas coisas, essas brincadeiras... quando a gente ficava sozinha, sabe, e... e toda vez que eu ia lá, eu n-não via a hora de você... da gente... da gente ficar juntas... eu, e-eu gostava de ficar perto de você, eu não sei por quê, eu... e-eu só gostava. E aí veio a, a... a Clara... e eu... não sei... é só que... ver vocês juntas foi... estranho... eu... e-eu via como, como você era c-com ela... e... e... acho que... que foi quando eu percebi que eu me importava mais do que... do que eu achava... – respirou fundo, com o olhar consternado – ...aí quando a... a gente acabou discutindo lá na cozinha... não sei... e-eu fui dormir e tava... tava incomodada... não conseguia ficar ali... eu não... n-não conseguia tirar você da cabeça... e... e... e parecia que n-não, não tinha ar suficiente, sabe? No meu peito, eu... – podia ouvir a sua voz carregada – ...e-eu não conseguia dormir... não conseguia parar de... de pensar que... que cê tava no quarto do lado e... não sei... teve... teve uma hora que eu simplesmente levantei e... e sei lá, eu... e-eu não pensei direito na hora, eu só... eu... – suspirou – ...e-eu, eu sei que é meio idiota.
_Não é nem um pouco idiota – sorri para ela.

agosto 17, 2010

Índole

“Tão eu”. É. Era isso. Era sempre isso que todo mundo, toda vez, ia pensar de mim. E talvez tivessem razão – eu estava solteira há tempo suficiente para todos meus amigos agirem como se eu nunca tivesse levado nada a sério na vida –, mas não era exatamente o que eu queria que passasse pela cabeça da Mia quando pensasse em mim. Merda. Por que fui fazer esse comentário idiota? Olhei para ela na minha frente, imediatamente arrependida, e então desviei o olhar para baixo. Aquilo me frustrava. Não queria tirar ainda mais a sua segurança comigo, afinal de contas, o vento já não soprava muito a meu favor.
 
Faz alguma coisa, caralho.
 
_...é. Mas a-acho que... – respirei fundo, tentando pensar no que dizer – ...sei lá. Olha, não tô dizendo que não, eu já fiz muita besteira. Mas... m-mas também não é como se todos meus namoros tivessem terminado assim.
_Não? – a Mia riu, descrente.
_Não. Foi só uma brincadeira...
_Sei... – ela se divertia, em seu moletom velho, segurando o lanche em frente ao seu rosto – Então cê tá dizendo que não traiu suas namoradas?
 
Olha quem fala.
 
_Não... – hesitei, tentando ser sincera – ...não foi isso que eu disse. Eu... e-eu traí, sim, traí duas das minhas namoradas... – senti que me enrolava mais ainda – ...mas não foram todas e eu, e-eu era nova quando aconteceu. Tinha outra cabeça na época, meu, já faz tempo...
_Faz? – a Mia achou graça, dando mais uma mordida no seu lanche e me provocando deliberadamente – Hum, então me beijar enquanto tava com a Clara não conta?
_Eu não namorava a Clara.
_Ah, não?! – ela riu, levemente indignada.
_Não.
_Olha, num foi o que pareceu aquele dia lá que cê viu ela com outra...
_Filha da puta... – balancei a cabeça para a Mia, rindo.
_O quê? – ela se fez de ingênua, me olhando do outro lado da mesa, entre uma mastigada e outra – Só tô checando os fatos aqui...
_Ah! E você é uma santa, então, é isso?!
_Nós estamos falando de você agora...
_Ah, é? – comecei a rir, de novo – Que conveniente...
_Ué. Preciso saber com quem tô me metendo, não?
_Olha, para a sua informação, eu sou uma ótima namorada.
 
Com certa relutância, a Mia me observava, como se estivesse decidindo no quanto acreditava naquilo ou não. Você se surpreenderia, garota, eu a encarava de volta, sem abaixar a cabeça. Ela sorriu e então ergueu as mãos até o cabelo castanho, deslizando os fios entre os dedos e os segurando num rabo meio frouxo. Puxou um elástico velho do pulso, dando duas ou três voltas e prendendo o cabelo no alto da cabeça, como fez quando tomamos café-da-manhã na sua casa uns dias antes. Cacete. Aquilo me deixava muito sem jeito.
 
_Não sei... – ela disse baixinho, como se confessasse, sorrindo – ...acho que tenho dificuldade de te imaginar namorando.
_Por quê?
_Sei lá. Cê tá sempre saindo com essas minas aí e... Ao mesmo tempo que tá com todo mundo, parece que não tá com ninguém, sabe?
_Ah, meu, não é assim...
_Não? – arqueou a sobrancelha, achando graça – Então, cê tá querendo me dizer que não passa esse rodo todo...
_Eu não passo rodo nenhum, Mia. E outra... – argumentei – ...o que eu faço solteira e o que eu faço quando tô namorando são coisas diferentes.
_Hum, sei. Me conta mais, então, o que cê faz solteira...
 
Por quê?, achei graça e dei um gole na minha cerveja, tá com ciúme agora?
 
_Olha, não é tudo isso aí que cê tá achando, não... – eu ri.
_Não?!
_Ah... É e não é. Sei lá, acho que... às vezes as pessoas fazem uma imagem da gente por tanto tempo que começamos a agir como se fosse verdade, sabe?
_Como assim?
_Ah, cê sabe, o povo vê umas minas que nem eu e...
_“Que nem você”?! – a Mia repetiu, me interrompendo, sem entender.
_É... sei lá, mais caminhão.
_Mas o que isso tem a ver?
_Ah, meu, tem que todo mundo acha que eu pego geral. As pessoas olham para mim e pensam que eu não me apaixono, que eu não levo nada a sério... que só quero comer umas minas em banheiro de balada, só quero baixaria.
_E não quer?
_Ah, às vezes eu quero mesmo, mas não o tempo todo. E é só isso que as pessoas veem. Ficam me tratando como se eu fosse “um dos caras”, sei lá. É zoado – resmunguei – Até meus amigos, mano, num importa se eu passei a maior parte dos últimos anos entre um namoro e outro... as pessoas parece que esquecem disso.
_É. Mas cê mesma tava até agora aí falando que “tropeçou e caiu na cama” de sei lá quem...
_Eu sei, foi um comentário idiota. Sei lá, às vezes, eu entro na piada também... Por muito tempo achei que era isso que eu tinha que fazer, sabe? Que esse era meu “papel”, sei lá. E não tô dizendo que é de todo ruim, que não aproveitei, mas... – balancei a cabeça – ...m-mas é foda também. As próprias minas me tratam assim, às vezes, mano.
_Assim como?
_Ah, como se eu tivesse lá só pra comer elas... Como se eu não sentisse as paradas, como se tivesse que tá sempre afim, nunca fosse dizer não. Como se não pudesse recusar sexo. E não é assim, mano...
_É. Eu sei como é isso.
_Sabe?
_Ah, meu, desde adolescente, eu sempre fui a mina que dormia com todo mundo no rolê – a Mia comentou e pegou minha cerveja, roubando um gole – E eu não ligava, real, sempre fiz o que eu queria, mas... sei lá, tinha cara que achava que podia me tratar de qualquer jeito por isso. E era escroto demais.
_Que merda, né, meu...
_É...
_Olha, se eu te contasse todas as vezes que me senti uma bosta depois de transar, cê não ia acreditar... – eu ri, pegando a garrafa de volta, com o prato já vazio na minha frente – Por culpa da mina ou minha, que fosse. Já fiz muita merda.
_Bom, não sei se você sabe... – ela fez graça – ...mas, assim, não tem ninguém com uma arma na sua cabeça te obrigando a continuar fazendo.
_Vai se foder – eu ri – É s-só que...
 
Baixei o olhar por um instante, segurando a cerveja mais adiante sobre a mesa e deslizando o dedo nervosamente pelo suor da garrafa. Meu coração disparou, prestes a cometer o maior sincericídio da noite.
 
_Não sei... s-sabe quando não é suficiente? – continuei, mais séria – Mano, eu fico tão de saco cheio às vezes que, sei lá... me bate um desespero para sentir qualquer coisa. Qualquer outra coisa. E aí faço a primeira merda que vem na cabeça, só que... e-eu não... – suspirei – ...n-não quero mais isso, saca? E-eu, sei lá... acho que... q-que só não tinha conhecido ninguém que eu realmente queria antes.
_Mas, e agora?
_Agora, o quê?
_Conheceu?

_Pede esse aí ó, o de baixo... – me estiquei por cima da mesa de canto, até onde a Mia estava, apontando o número no cardápio – É muito bom.
_Hum, não... – ela fez uma careta.
_Mano, olha o desperdício de oportunidade... Sério, vai por mim! É o melhor sanduíche de São Paulo!
_Mas eu não quero, porra... – ela riu e me reprovou com os olhos, pondo fim à discussão; em seguida ergueu a cabeça e encarou com um sorriso o pobre do atendente, que mantivemos plantado em pé ao lado da nossa mesa – ...eu vou querer o 8, obrigada.
_E eu, o 11 – me dei por vencida e fechei o cardápio, olhando emburrada para ela.
 
O cara, de uns 30 e poucos anos, pegou das nossas mãos os papéis amassados onde estava o menu e saiu em direção à cozinha com uma expressão descontente. A Mia riu e colocou o antebraço na beirada da mesa, absolutamente maravilhosa naquele moletom cinza. As mangas arregaçadas deixavam escapar suas tatuagens mais antigas – uma cobra old school, um trecho do livro do Thoreau que ela gostava, umas plantas e uma adaga que ela fez de handpoke. A essa altura, eu já estava largada para trás na cadeira de novo, a admirando de longe. Seus olhos cruzaram com os meus e ela arqueou as sobrancelhas, em desaforo.
 
_Cê é muito cabeça dura, mano... – comentei, rindo.
_Eu não tava afim do sanduíche, meu...
_Mas é a especialidade dos caras, caralho!
_Nossa, desculpa aí a falta de respeito. Cê acha que eu preciso ir na cozinha me desculpar com o chef também?
_Como cê é besta... – eu sorri, olhando para ela.
 
A Mia achou graça e sorriu de volta, ambas tomadas por uma felicidade boba de estarmos juntas ali. O barulho no fundo pareceu crescer lentamente.
 
_E então... Vai me contar a história ou não?
_Que história?!
_Da sua ex-namorada – a Mia riu – ...a da tatuagem.
_Ah, é... – ajeitei o corpo na cadeira, achando graça – ...a dona do Infinito.
_Essa mesma... – a Mia balançou a cabeça – Meu, acho que eu nunca imaginei você como alguém que faz tatuagem pra mina...
_É, nem eu acredito nas merdas que eu faço às vezes... – ri, num arrependimento conformado – Mas, sei lá, acho que na época fazia sentido, sabe?
_Sentido como?
_Não sei... Eu era nova pra caralho e a gente era um daqueles casais que vão e voltam o tempo todo, saca? Não era um namoro bom, era ruim, ruim mesmo, mas eu era completamente babaca por ela. A Nana me ajudou muito quando eu saí do armário pros meus pais, ela tinha uma importância muito grande pra mim. E aí mesmo que a gente brigasse, sei lá, eu achava que ia ficar naquele rolo para sempre, que a pessoa para quem eu sempre voltava era a minha constante na vida ou algo do tipo... e acabei tatuando um infinito no pulso – revirei os olhos – Foi cagada, eu sei que foi, mas na época era isso, meu. Não sei, parecia que ia ser pra sempre ela.
_Cês ficaram juntas muito tempo?
_Quase dois anos... Mas sempre naquelas, sabe? Indo e vindo.
_Dois anos? – ela puxou a minha mão delicadamente para perto dela, cruzando-a por cima da mesa, e pôs-se a observar novamente a tatuagem, deslizando a ponta do dedo na minha pele – E por que não deu certo?
_Ah... Por um monte de motivos – eu suspirei e tirei o cabelo bagunçado do rosto – Era complicado. Não era uma relação saudável... Chegou uma hora que a gente já não queria mais tá junta, só que não conseguíamos realmente nos desvincular uma da outra, a gente já tava muito acostumada.
_É, meu primeiro namoro foi assim... – a Mia riu, revirando os olhos.
_Né? É muito coisa de adolescente – ri também – E aí virou aquilo... ela se enchia, resolvia que não queria mais e a gente brigava, ela ia para a balada, pegava meio mundo, depois se arrependia, ficava mal, vinha correndo pra mim e eu, e-eu acabava deixando, aí duas horas depois ela me contava o que tinha feito, eu ficava puta, mandava a Nana ir embora, dizia que nunca mais queria ver ela... Aquele drama todo.
_Nossa – murmurou, enquanto o atendente nos servia a comida e uma cerveja que eu pedira antes – E todos seus namoros foram assim?
_Não, meu, só com ela. Acho que eu aprendi “demais” a lição – ri – Depois disso, sempre terminei antes de chegar nesse ponto.
_Ou fez alguma merda, né...
_Que absurdo! – me indignei, dando uma mordida no sanduíche, falando de boca cheia – Claro que não!
_Sei. Quero ouvir o que as suas exs têm a dizer a respeito...
_Ah, meu... – eu baixei a bola, achando a graça, numa confissão discreta – Mas, cara, independente de qualquer coisa, a maioria dos meus namoros foi ótima. Realmente ótima. É sério!
_“Até...”
_Até eu tropeçar e cair, sem querer, na cama de outra – eu brinquei, forçando uma voz ingênua e bem-intencionada.
 
A Mia começou a rir e balançou a cabeça, inconformada.
 
_Nossa, isso é tão “você”...

agosto 15, 2010

Nas entrelinhas

_Então... – eu murmurei com o cigarro ocupando minha boca, enquanto vestia desajeitadamente a jaqueta para sair na rua, naquele frio desgraçado – Vai me contar o que são essas flores aí?
_São narcisos... – a Mia respondeu, enquanto acendia o seu próprio cigarro.
 
Então me parou na calçada, momentaneamente, para acender o meu também. “Narcisos?” – arqueei a sobrancelha e a olhei, ainda com o filtro entre os lábios, enquanto sua mão tentava bloquear o vento ao redor da chama.
 
_É. Para de falar, senão mexe aqui – ela riu, com o isqueiro na outra mão, sem levantar o olhar na minha direção.
 
Esperei ela terminar e, quando finalmente a brasa pegou, ela se afastou. Dei uma tragada, caminhando rua abaixo. A Mia andava ao meu lado com os braços cruzados num moletom e apenas uma das mãos levemente para cima, segurando o seu cigarro. O frio havia espantado boa parte dos pedestres da Augusta – já eram mais de nove e meia quando saímos do estúdio.
 
_Mas narcisos não soa meio “eu me amo” demais?
_Não sei, talvez... – ela achou graça e encarou o chão, como se estivesse interessada no cimento sob seus pés – Tem gente que fala que é justamente a perda do amor. Do outro ou pelo outro. É a flor do egoísmo.
_E por que cê quis tatuar isso?
_Sei lá. Acho a flor bonita e do outro lado já tem as de cerejeira... – ela levantou o olhar na minha direção por um instante, tragando o seu cigarro – ...que, né, muita gente tatua por ser o oposto, o símbolo do amor.
_Hum. Então você queria as duas coisas?
_Ah... – ela riu e se espreguiçou, erguendo os braços no frio por um instante – ...libriana, né?
 
Não faço a menor ideia do que isso significa, pensei e a Mia me olhou como se fosse uma associação óbvia. Apenas acenei, fingindo entender o conceito. Pois é. Talvez eu fosse uma das únicas lésbicas de São Paulo que tinha fracassado na prova de astrologia – aquela que nos obrigam a fazer antes de sair do armário, sabe? A Marina nunca me perdoava por não acreditar naquilo e eu já tinha perdido a conta de quantas amigas tentaram me explicar o que era o quê na mesa do bar – até a Mia era mais sapatão do que eu nesse sentido.
 
_Eu gosto, achei que ficou bonito.
_É? – ela sorriu – Não é muito cafona?
_Não. São bonitas.
 
Eu a olhei de novo e rimos, aí traguei mais uma vez. Paramos numa esquina e, sem dizer nada, procurei ao meu redor rapidamente até achar a lanchonete onde eu queria ir. Um pico animal que ficava escondido naquela quadra. A entrada era por uma portinha minúscula – fácil de perder de vista –, mas que dava numa cozinha bagunçada com meia dúzia de mesas apertadas e que servia um dos melhores lanches vegetarianos da região. Fiz um sinal com a cabeça e a Mia atravessou junto comigo para o outro lado da rua, me seguindo até um ou dois metros antes da porta. O vento continuava cruel.
 
_Cê tem alguma favorita? – ela me perguntou, terminando seu cigarro antes de entrar – Das suas?
_Ah, meu. Sei lá... – dei de ombros, jogando a minha bituca no chão e pisando na brasa – Eu gosto de todas. Talvez a do braço, mas só porque é a maior...
_Hmm... – a Mia me olhou, como se discordasse, e pegou uma das minhas mãos – Eu gosto dessa.
_Dessa?! – eu achei graça, assistindo seus dedos percorrerem o pequeno símbolo no meu pulso direito, com a manga da jaqueta levemente arregaçada – Por quê?!
_Não sei, eu gosto dela.
_Essa eu fiz por causa duma ex-namorada quando tinha dezoito. Quer dizer “infinito” – eu ri, ironicamente, e passei a mão no rosto – Tá mais pra “oito motivos pra te esquecer”.
_Sei... – a Mia riu e percorreu com a ponta do indicador a linha, já bastante desbotada pelos anos – Cê sabe que agora cê vai ter que me contar a história, né?
_Sei... – me diverti – Vamos entrar, vem... Eu te conto enquanto a gente espera a comida!

agosto 10, 2010

A la Marquês de Sade

Sabe aqueles testes bem ruins no estilo “Descubra qual o seu tipo de homem”? Pois bem. Vez ou outra, movida pelo absoluto tédio numa sala de espera, eu pegava umas revistas femininas e me divertia respondendo qualquer quiz idiota desses só para discordar do resultado ao final. Não. O meu tipo de homem não é loiro e musculoso, credo.
 
O meu tipo de homem era o que não falava comigo – e de preferência, que me deixava em paz na rua. No melhor dos casos, o meu tipo de homem eram as bichas afrontosas da Augusta ou o Fer. E ainda assim, bem longe da minha cama.
 
A revista nunca acertava. E o erro não era só por presumir que todas as mulheres gostam de homens – ou pelas respostas incrivelmente superficiais. A verdade é que, mesmo se existisse uma versão sapatona, provavelmente o teste fracassaria. Eu não tinha um “tipo”. Nenhum. Zero. Sempre achei meio babaca esse lance de ter “tipo”.
 
O mais específica que eu podia ser sobre o que me atraía fisicamente em garotas era, por exemplo, um joelho ralado – isto é, de tanto tropeçar bêbada na Augusta. Eu gostava de mina sem noção. Qualquer mina. Sabe aquelas porraloucas que saem pela rua fazendo amizade às 5 da manhã, equilibrando a cerveja numa mão e a dignidade na outra? Pois esse era o meu tipo. E até isso era relativo, né, bastava olhar para a Marina. A minha regra geral era não ter regras.
 
Mas p u t a q u e p a r i u como eu perdia a cabeça com mina tatuada.
 
E não estou me referindo àquelas três estrelinhas escondidas atrás da orelha, nem àqueles erros em forma de golfinho – resultado lamentável de um devaneio pós-insolação num feriado prolongado no Guarujá. Não. Para mim e toda a água na minha boca, existia uma grande diferença entre “ter” uma tatuagem e “ser” tatuada. E lá estava a Mia, sentada na minha frente, com o corpo inteiro rabiscado e seminua, sem a menor inibição. Puta tesão.
 
Juro – eu podia passar duas, três, dez horas que fosse ali, apenas observando enquanto a Mia era dolorosamente desenhada por aquela maquininha. Os minutos se desdobravam lenta e deliciosamente. Era quase melhor do que sexo. Quase. De tempos em tempos, eu e a Mia engatávamos uma conversa qualquer descontraída com a tatuadora gente boa. Isso me animava consideravelmente. Aquela intimidade que fluía bem, aqueles momentos espontâneos de proximidade, tudo isso me fazia sorrir mais do que o normal. Ainda assim, sempre havia aqueles instantes de silêncio, em que só se ouvia o barulho do motorzinho e ninguém falava nada por minutos a fio.
 
E esses, sim, eram complicados.
 
Conforme a máquina percorria o corpo da Mia, pouco a pouco as flores iam se colorindo de tons amarelados, então a tatuadora limpava a sua pele e ia descendo pela sua costela. E eu me obrigava a sentar ali, perto dela, assistindo-a morder os lábios, milímetro por milímetro, ao passo que a agulha preenchia o contorno, franzindo a sobrancelha e se mexendo sutilmente; reposicionando o quadril para frente e para trás na cadeira; movendo a cintura, com metade do corpo descoberto bem na minha frente, assim que a máquina pausava. E a cada recomeço, os olhos da Mia apertavam. Já os meus não desviavam dela – observando-a esmagar a camiseta com suas mãos, afundando os dedos no tecido, para depois ir soltando o ar lentamente pela boca.
 
Pelo amor de Deus, me dava uma saudade desgraçada de beijá-la, não faz assim, mulher.
 
Eu a observava ininterruptamente, numa fissura tão absurda que logo começou a me dar calor. Uma quentura, sabe? Aquela febre interna filha-da-puta. E aí ficar parada naquela cadeira começou a se tornar uma tarefa realmente difícil. Bastava olhar para a Mia ali e a minha mente ia sendo tomada por todo tipo de pensamento sujo. E eu me torturava – já estava cozinhando debaixo daquela roupa toda e, ainda assim, não tirava os olhos dela.
 
Respirei fundo e arranquei o lenço do pescoço. A Mia continuava lá, maravilhosa, se concentrando na dor, com a tatuadora já na parte de baixo da sua costela. E toda a minha atenção continuava na sua pele. Merda. O calor não tinha ido embora. O jeito foi tirar a jaqueta também. Daqui a pouco eu fico pelada aqui, pensei e quis rir. Mas a intensidade daquele metro e pouco entre a Mia e eu, inebriadas pela porra daquele zunido da maquininha, não me permitiram. A única coisa que eu conseguia fazer era me inquietar naquela cadeira, morrendo de tanto tesão calor.
 
_Que aconteceu? – a Mia me olhou e perguntou, de repente.
_O quê? – reagi, assustada, imediatamente arrependida de toda a bandeira que eu estava dando ali – Como assim?
_Aí... – ela riu, me encarando.
_Onde?! – repeti, dando uma de desentendida.
_Na sua blusa – ela sinalizou rapidamente com os olhos e riu, de novo – Tá toda suja, meu.
 
Ah, isso.
 
_E-eu... derramei café, lá no trampo – respirei aliviada, puxando a minha camiseta com as mãos para ver melhor a mancha – Que merda, esqueci que isso tava aí...
_Tá bonito, hein...
_É. Faz parte do meu estilo funcionária-do-mês.
_Toma, veste essa! – a Mia jogou a blusa que estava na sua mão na minha direção – Eu trouxe um moletom largo para usar depois que terminar aqui.
_Mas cê não...?
_Não, pode usar – sorriu.
 
Então tá. Levantei, empurrando a cadeira levemente para trás, e tirei a camiseta num só movimento. Depois a dobrei, tomando o meu tempo para ficar só de top na frente da Mia, e abaixei para colocá-la junto da minha jaqueta e do lenço no chão. A tatuadora sequer olhou na minha direção. A Mia me encarava com os seus olhos castanhos e, por algum motivo, eu me senti vingada por toda a sessão de tortura que tinha aguentado até então. Puxei a sua blusa do meu ombro e comecei a vestir. O seu olhar parou numa palavra que eu tinha tatuada no canto da cintura, depois subiu até os meus braços descobertos.
 
_E aí? Ficou bom? – perguntei, ainda de pé, terminando de pôr sua camiseta.
 
E a Mia sorriu, deixando escapar uma malícia discreta com o canto da boca. Aí, sim.

agosto 09, 2010

Dia de folga

O lado bom de se apresentar à labuta quase diariamente com cara de merda e olheiras descomunais é justamente essa facilidade que eu tinha de mentir sobre o meu estado de saúde. Digo, quando metade do trabalho já está feito e estampado na sua cara não é necessário muito esforço para soar realmente convincente.
 
_Não estou me sentindo bem – eu forcei uma voz pesada, levemente ofegante, apoiada no batente da sala dele antes de sequer terminar de entrar.
 
Meu chefe levantou os olhos e observou a minha expressão arrasada de quem não tinha dormido a noite inteira por causa de uma porra de um SMS e depois passado o dia todo numa agonia interna por causa de uma garota, sem saber realmente que era disso que se tratava. E aí... simpatizou comigo. Beleza! Contive um sorriso e abaixei a cabeça para não dar bandeira, a fim de consolidar a minha patifaria.
 
O relógio do meu celular mal marcava 16:30 e eu já era uma mulher livre, a caminho do metrô. Vinte minutos depois e eu dava as caras na estação Consolação, vestida com a minha jaqueta preta e um lenço palestino colocado de qualquer jeito em volta do pescoço – não me sentindo nem um pouco doente. A tarde estava linda, ensolarada e fria pra caralho. Êê São Paulo, pensei com carinho, enquanto descia contra o vento gelado da Augusta, enfiando as mãos no calor confortável do bolso da frente do meu jeans.
 
O estúdio ficava umas quadras para baixo, dentro duma galeriazinha, e tinha vista para a rua através de uma janela imensa no segundo andar. Subi as escadas, cantarolando “Gimme Danger” na minha cabeça, realmente feliz por ter decidido ir. A cadeira onde a Mia estava ficava de lado para a escada. Entrei e dei de cara com ela só de calça, sentada ali, segurando a blusa nas mãos. Com os peitos e todas as outras tatuagens assim, descobertos. Puta merda. Assim que pisei para fora da escada, ela me olhou e sorriu – enquanto eu babava ao ver ela assim em plena luz do dia. Daquele jeito.
 
Uau.
 
Me aproximei e a cumprimentei, num impulso imprestável, segurando atrás da sua cabeça com os dedos entrelaçados em seu cabelo, e dando-lhe um beijo cheio de vontade a dois milímetros da sua boca. Aí puxei uma cadeira e sentei de frente para ela, me acomodando ali para desfrutar do que possivelmente seriam as melhores horas da minha vida, acenando um “alô” desinteressado com a cabeça para a tatuadora.
 
_Sofrendo muito aí? – eu sorri para ela.
_Não, tá de boa... Por enquanto tá dando pra levar – ela respondeu, indiferente à dor, e me sorriu de volta – Só quando chegar na costela, aí vai ser osso.
_E o que é?
_Cê não viu? – ela estranhou, rindo.
_Não... Deixa eu ver... – levantei e caminhei para trás da cadeira dela, do lado oposto da tatuadora, que rabiscava qualquer coisa na lateral das suas costas.
 
De um lado, estavam as flores de cerejeira, que começavam no ombro e desciam pela sua pele até um pouco depois de onde supunha-se estar a lateral da sua calcinha – e que me torturavam toda maldita vez que a Mia aparecia de shorts no apartamento. Agora, do outro lado, embaixo de toda aquela sujeira de sangue misturado com a sobra de tinta preta, a tatuadora traçava uma série semelhante de flores, quase espelhadas e que também deslizavam do seu ombro até o alto da sua coxa.
 
_Não é a mesma, é? – eu perguntei, observando as pétalas diferentes.
_Que a de cá? Não, não, é outra – riu – Tá ficando bonita?
_Tá – fiz uma pausa, como se analisasse – Só essa parte aqui em cima que... não sei, tá estranha.
_O quê?! – ela se agitou, preocupada, e a tatuadora foi obrigada a interromper o processo – Que parte?!
_Essa aí em cima, meu, o contorno tá meio torto... parece grosso... – me sentei, de novo, na sua frente e não me aguentei ao ver sua expressão de desespero; aí comecei a rir – ...tô brincando, trouxa. Relaxa.
_PORRA, MANO, QUE SUSTO!
 
Ela gritou comigo e a tatuadora lançou um olhar de reprovação na minha direção. Apoiei meus pés num banquinho que estava sobrando ao lado, cruzando as pernas e ainda achando graça.
 
_Deus – eu ri – Não acredito que cê caiu nessa, é a piada mais velha do planeta!
_Vai se foder – a Mia riu também e me bateu com a blusa que estava em sua mão – Não, sério agora... O que cê achou?
_Vai ficar linda, meu... – pisquei para ela, sincera.
_É? – a Mia sorriu de volta – Cê é a primeira a ver...
 
Ela me olhou, satisfeita. E eu me senti especial. É tão mais fácil assim, garota, só eu e você. De repente, tudo era descomplicado, tudo estava bem. Não importava mais se eu era ou não a primeira opção para acompanhá-la. Só importava que fosse eu quem estivesse lá.

agosto 06, 2010

S2

“Q hrs vai rolar?”, escrevi curta e grossa, a contragosto.
 
Aquelas quatro palavras me tomaram minutos a fio para serem, enfim, digitadas. Engolir meu orgulho não era algo que eu fazia com frequência. E agora que eu já havia me calado por quase um dia inteiro, beirando o fim da tarde, a possibilidade da Mia resolver me ignorar de volta me assombrava.
 
Não que aquelas quatro palavras bastante sucintas e pouco simpáticas ajudassem muito a situação. Então, adicionei um “;)” ao final do SMS, a fim de amenizar a minha incapacidade de ser legal com a Mia naquele momento. Aí olhei para a tela e fiz uma careta involuntária. Não. Que sorrisinho mais idiota, resmunguei mentalmente, enquanto o apagava. E pronto, de volta à grosseria inicial. Que se foda, pensei, vou mandar assim mesmo.
 
Apertei a tecla de envio e larguei o celular na mesa. Então retomei o que estava fazendo, determinada a me afundar em trabalho pelas poucas horas restantes. Mas não durou muito – a resposta da Mia seguiu-se à minha pergunta com uma rapidez espantosa. O celular vibrou num dos cantos da mesa. Espiei a tela com o canto do olho, com medo de encontrar a segunda bronca do dia ou qualquer questionamento que me tirasse do sério, justo quando eu começava a lentamente engolir minha estupidez.  
 
“Acabei de chegar aqui, eh naquele que te falei uma vez... lado bom da augusta. vem pra ca! ;)”. É. Não só ela continuava toda irritantemente fofa comigo, ignorando a minha economia de palavras, como também havia resolvido fazer uso da porra do sorrisinho que há 30 segundos eu tinha me recusado de colocar. Desgraçada. De qualquer forma, toda aquela dança do mando-ou-não-mando, que torturou minha cabeça pelas três horas seguintes à minha conversa com a Marina, havia sido inútil:
 
“Tô no trampo agora, meu, ñ posso...”.
 
Enviei. E ela não respondeu. Nem nos dois minutos seguintes... quatro... cinco... sete... argh. Nada. Passei a mão pela minha nuca, nervosa, tentando relaxar. Olhei mais uma vez para o celular e já haviam se passado oito minutos inteiros. Inferno. Me convenci, então, de que ela não ia me escrever de volta. E num movimento brusco, peguei o aparelho e o meti no bolso de trás da calça, me dirigindo à cozinha. Quer dizer, à máquina de café, que a essa altura já estava exausta e acabada de tanto trabalhar – assim como nós naquele estúdio.
 
A cozinha era como o meu segundo lar, praticamente. Uma porcentagem considerável das minhas horas de trabalho era gasta procrastinando, sentada naquela pia, me entupindo de uma quantidade não-saudável de cafeína. Puxei a cafeteira na minha direção, com uma avidez digna de viciados, e enchi um dos copos plásticos com aquele líquido preto.
 
_AH! PUTA MERDA!
 
Eu xinguei, parada no meio da cozinha, ao realizar a proeza de derramar metade do conteúdo do copinho na minha camiseta. Branca. Da Cavalera. Claro, porque preta não poderia ser. E nem barata. Caralho, viu, como se eu precisasse de mais uma bosta dessas. Logo hoje, eu reclamava para mim mesma, enquanto tentava inutilmente me secar com um bando de guardanapos. Na mesma hora, óbvio, meu celular resolveu tocar. É a Mia. Deixei todos os papéis sujos em cima da pia num ato quase involuntário e tirei o telefone do bolso, rapidamente.
 
“:(”
 
É... só isso, isso, dez minutos depois.
 
Encostei a lateral da perna na superfície de granito e olhei mais uma vez para a mensagem, suspirando. Por mais babaca que soe – e isso vai soar realmente babaca – as diferentes combinações de pontos duplos, ponto-virgulas e parênteses são capazes de afetar o estado emocional inteiro de uma geração viciada em celular. Ou seja, a minha. E te comover de um jeito ridículo.
 
Olhei para a minha blusa com aquela mancha super atraente de café, argh, aí olhei para o relógio pendurado na parede – 16:12 – e para a porta que levava à saída. Tá cedo demais, calculei, tirando os fios de cabelo bagunçados da cara. E é, estava mesmo. Minha outra mão, no entanto, segurava o desejo por escrito da garota que eu amava, querendo que eu estivesse lá com ela. E às vezes, isso simplesmente fala mais alto do que todo seu orgulho de merda. Ou um chefe prestes a ficar realmente puto com a sua falta completa de comprometimento. Ah, que se dane.
 
“Olha, vc vai me meter em encrenca aqui... to indo ;)”

agosto 04, 2010

A bronca

_Não, vão vocês. Eu tô sem fome – respondi para dois dos meus colegas de trabalho, conforme eles saíam para o mesmo restaurante de sempre.
 
A hora do almoço já tinha chegado e a terceira mensagem da Mia não saía da minha cabeça. Permaneci sentada na porta do estúdio, fumando, enquanto olhava meus colegas se afastarem na calçada. Lá pelo quarto ou quinto cigarro do expediente, o meu mau humor já havia se diluído em nicotina e eu estava relativamente mais calma. Bem relativamente. A minha cabeça continuava a mil e eu olhava para a tela do celular, de tempos em tempos, suspirando.
 
Nenhuma mensagem nova.
 
Os meus pés se mexiam no chão, ansiosos. Sequer sabia se queria receber mais uma mensagem dela, mas a sua insistência em me escrever três vezes depois de me ignorar por dias me inquietava. Apoiei os cotovelos nos joelhos e coloquei a cabeça entre as mãos para focar melhor. Numa tentativa de limpar a minha mente. Isso é ridículo, pensei. Qual é a grande dificuldade de simplesmente ignorar a porra da Mia? Respirei fundo. E no segundo seguinte, fui tomada por um desejo desesperado de escrever para ela. Não. Isso não.
 
_Você pode falar? – perguntei ao celular, aflita.
_Não exatamente... – a Marina respondeu, do outro lado da linha.
_É rápido, eu juro.
_O que foi? – ela continuou, falando baixinho.
_A Mia. É aniversário dela.
_E...?
_E ela quer que eu vá com ela num estúdio hoje... – tentei explicar, sem conseguir realmente expressar o tamanho do problema – Tipo, ela vai tatuar e me chamou para ir junto. Só que a gente não se fala desde sábado, então não respondi nenhuma das mensagens ainda. Não sei o que falar!
_Por que diabos vocês não se falam desde sábado?! – a Marina se indignou, sem entender o que estava acontecendo – Eu achei que tava tudo bem!
_E-eu... eu disse que queria ver ela, meu, e aí ela me respondeu que não era uma boa ideia, por causa do Fer.
_E...?
_Como “e...”?! – eu me revoltei – Ela me deu um puta fora!
_Espera... vou sair no corredor – ouvi o celular mexendo-se na sua mão e pouco segundos depois uma porta se fechando, aí ela continuou – Como foi isso? Por telefone?
_Não, ela me mandou uma mensagem curta no sábado depois de, tipo, várias minhas.
_Mas cê tentou ligar para ela? Conversar?
_Não, eu... – aí o pouco de vergonha da cara que eu tinha segurou as palavras na minha boca, por um instante – ...e-eu tava na casa duma mina aí.
_Como assim? Que menina?
_A Thaís, amiga da Lê, cê não vai lembrar dela...
_Fazendo o que na casa dela?!
_O QUE CÊ ACHA, MEU?? – me irritei.
_AI, MAS EU NÃO ACREDITO NISSO!
_QUÊ, PORRA?? A MIA TAVA ME IGNORANDO DESDE QUE A GENTE SAIU, NÃO MANDOU UMA MERDA DE MENSAGEM... TIVE QUE PASSAR A NOITE DE SEXTA TODA SOZINHA EM CASA, ME TORTURANDO COM A MERDA DA CERTEZA DE QUE ELA ESTAVA COM O FER, MANO! CÊ TEM NOÇÃO DO QUE É ISSO?? E AÍ ELA VAI E ME DISPENSA NO DIA SEGUINTE, MEU, DEPOIS DAQUELA PUTA NOITE FANTÁSTICA NA QUINTA, COMO SE NÃO TIVESSE... NÃO TIVESSE... SIGNIFICADO NADA, PORRA!
_Você tá se ouvindo falar? – ela riu.
_Quê??
_Meu deus... Essa garota fode mesmo com a sua cabeça, hein?!
_QUE FOI, MARINA?? – eu indaguei, de novo, mais irritada ainda – FALA!
_“Eu tive que passar a noite de sexta sozinha em casa”, meu, cê tá escutando o que cê está dizendo? O drama que cê tá fazendo? – ela riu mais uma vez – Meu bem, se você acha que a coisa complicou pro seu lado, que é solteira e sapatão, imagina ela que é hétero e passou uma noite inteira com a melhor amiga do namorado, que nunca tinha dormido com mina antes, que nunca passou por nada disso, que sequer saiu do armário... Fofa, você acha que é fácil ir lá depois e encontrar o bonitão, recebendo mensagem sua e tendo que lidar com tudo ao mesmo tempo?!
_Ela... – eu murmurei, já com a bola bem mais baixa – ...e-ela, ela não precisava ir encontrar com ele.
_Ahh, não precisava? E você acha que ela ia fazer o quê? Largar toda a vida dela depois de uma noite com você?? Dispensar o Fer, meu, do nada? – ela riu – Você não pode realmente achar que é tão boa assim de cama...
_Vai se foder.
_Olha, ia ser lindo se a Mia te assumisse, gata. Mas cê achou mesmo que ia ser tão fácil?
_Não, eu... – senti uma vontade idiota de chorar, sem nem saber por quê, e engoli seco – ...mas, Má, a gente se divertiu tanto juntas. Foi tão bom. Tão, tão bom, porra! Não é possível que ela não esteja, no mínimo, sei lá... Pensando em mim, sabe?
_Mas não tá? Ela não te chamou para ir lá hoje, meu?
_Chamou... mas só porque o Fer não vai poder ir! Aí ela lembra que eu existo! – assim que as palavras saíram da minha boca, senti um nó na garganta.
_E você preferia que ela te chamasse quando o Fer pudesse ir?
_Não, lógico que não!
_Então, o quê? Ela tinha que chamar você primeiro ao invés do namorado? E depois aparecer tatuada, com você do lado, e dizer “oi, amor, olha a tatuagem que eu fiz”?!
_Não! Claro que não! Mas tem vários jeitos de fazer dar certo... Porra, por que cê tá defendendo ela?! Cê não tá vendo que eu tô mal, caralho??
_Porque você tá agindo que nem uma criança de 3 anos de idade, meu. O que eu venho te falando esse tempo todo? Cê precisa voltar para a realidade, gata: ela namora o Fer. Ela sempre namorou o Fer. Eu também acho que tem outros jeitos de resolver as coisas, também acho que ela não devia ter te ignorado. Mas não vai ser fácil... Aliás, não é fácil! Muito menos para ela, que tá muito menos resolvida nessa vida do que você.
_Tá, m-mas... – eu interrompi, reclamando.
_Quer me escutar?! – ela continuou, me dando bronca – Se você realmente quer que isso dê certo para vocês, cê vai ter que parar com esses chiliques.
_Não é chilique! EU TÔ APAIXONADA, PORRA, DÓI PRA CARALHO!
_Eu sei. Eu sei, linda. Mas ela não vai sair dessa sozinha e você sabe disso. Ninguém é tão seguro assim! Você vai ter que segurar a mão dela e ter muita, muita paciência. É diferente pra ela. A Mia não vai largar tudo assim, flor... Não vai. A situação de vocês é mil vezes mais complicada do que qualquer outra, cê tem que enfiar isso na sua cabeça, meu – a voz dela diminuiu o ritmo, indicando uma conclusão – E por favor, para de comer a lista telefônica inteira.
_Eu não... – pus a me defender, ofendida.
_Olha, eu preciso ir – ela me interrompeu, de novo – Me manda mensagem depois falando no que deu. Preciso mesmo ir, tô cheia de trabalho... Um beijo!
_Tá... – suspirei, me sentindo derrotada.
 
Ouvi a linha desligando, enfiei o celular no bolso da jaqueta e afundei o rosto na mão. Eu odiava como a Marina estava sempre coberta de razão.
 
Inferno.