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janeiro 27, 2011

Flashbacks urbanos

Os semáforos já haviam parado de funcionar, piscando inertes em meio à madrugada. Aquela luz amarela se acendia, toda cheia, num contorno redondo, e depois se apagava. Aí piscava de novo, forte. De repente, sabe. Diante dos meus olhos, incansável, a observava indo e vindo. Fechava as pálpebras, sentada confortável no banco de trás, e sentia que o mundo cintilava ali de fora para dentro de mim. Encostada na porta, o rosto no vidro frio, sonhando acordada com os detalhes daquela noite com a Mia. Um segundo, e eu estava de novo contra a parede do banheiro; os ladrilhos de um lado e ela do outro. O meu corpo latejava junto com o sinal; as luzes amarelas, piscando. Numa memória sensorial.

O carro andou, mas meu pensamento não se movia. Sempre que saía da casa da Mia parecia que a minha mente não queria deixá-la – e ficava voltando. Podia vê-la, maravilhosa, descendo na minha frente, no fundo da minha imaginação. Viramos a esquina e os lábios dela encostaram na minha barriga. Senti um arrepio. Abri os olhos e vi a cidade se mover do outro lado do vidro; aí de repente, mais um beijo.

Meu deus

Podia senti-la como se estivesse ali, comigo, mas continuava sozinha. O táxi seguia pelas ruas escuras de São Paulo, nenhum ruído lá fora ou aqui; os nossos sons contra as paredes do banheiro enchiam os meus ouvidos, a minha cabeça. E eu divagava. Mais uma esquina, mais um beijo; a língua dela corria do meu umbigo até mais... mais embaixo. Suspirei, com a ponta do dedo entre os lábios. E me ajeitei no banco, desconsertada. Os olhos da Mia me observavam da altura das minhas pernas... me abaixei e a beijei; o seu gosto voltou à minha boca. Mais uma esquina, mais uma.

As suas mãos seguravam o meu rosto, perto do seu; sentia os meus joelhos contra o piso frio, abri os olhos. Reconheci a Augusta. Estamos chegando. Os meus dedos escorregavam por entre as coxas dela; ainda estávamos quarteirões demais para baixo. Passei a mão numa mancha que se escondia na lateral do meu pescoço e, a tocando, quase podia sentir a Mia me machucando. Mais um semáforo e minhas pernas se apertavam entre si, com saudade da sua boca.

A rua continuava cinza, desabitada. E eu sorri. Lembrava de cada palavra, cada movimento, por mais mínimo que fosse; cada segundo. E queria mais. Desesperadamente, queria mais – daquilo, de tudo. Dela. Era sempre, sempre ela. Na minha cabeça, me invadindo daquele jeito. Logo, no entanto, se acabaram as esquinas – e se acabaram, também, os beijos.
  
_Pode encostar aqui, vou descer ali perto do... – pedi ao taxista, apontando um bar cujo nome não me recordava, desistindo de dizê-lo.

Contei os reais no meu bolso e enfiei o troco atrás da calça ao sair. Entrei no boteco sujo e pedi um maço de cigarros para o dia seguinte – tinha esvaziado o meu com a Mia, horas antes. Por que sexo é diretamente proporcional à nicotina? Saí novamente na calçada, puxando um dos cigarros para fora do maço, e esperei para atravessar a rua. Coloquei o filtro na boca, conforme passava pela linha desenhada no asfalto, entre as duas faixas. Um carro vinha, bem ao longe, sem riscos.

Cheguei ao outro lado já acendendo o cigarro e guardei o isqueiro mais uma vez no bolso, enquanto caminhava em direção à Frei Caneca. A noite estava nublada, mas agradável, de um jeito bem paulistano. Um bêbado qualquer mexeu comigo – com uma cantada cretina – e eu o ignorei. Segui andando. Virei a esquina em direção ao meu prédio, sem vontade alguma de que aquela noite acabasse, ainda que já estivesse caindo de sono.
 
Quando entrei no apartamento já eram mais de quatro da manhã. E assim que me enfiei na cama,  exausta, senti vontade de falar com a Mia. Antes que percebesse, os toques sucessivos da chamada ao telefone começaram a cortar o silêncio do meu quarto – ecoando como vibrações indiferentes na minha mente vazia, que sequer se deu conta do que estava fazendo. Acompanhava lentamente a borda da cama com a ponta do dedo, sentindo a textura do lençol. E não percebi, em momento algum, que a Mia poderia, de fato, atender.

_Alô?! – ouvi sua voz sonolenta do outro lado da linha.
_... – arregalei os olhos, caindo atrapalhadamente na real, tentando entender o que se passava.
_Alô?! Você... – insistiu, baixinho – ...tá aí?
_Ahm. Oi?
_Hum... – ela pareceu respirar fundo, como se já estivesse quase dormindo – ...oi.
_Oi – repeti e apertei os olhos imediatamente, arrependida, assim que percebi que aquele era o terceiro “oi” de uma conversa de cinco segundos.
_Tá tudo bem? – perguntou, lenta e feliz  – Aconteceu alguma coisa?
_Tá... não... e-eu só... – me enrolei para me justificar – e-eu... não sei, na verdade. Desculpa, não pensei direito... – ri, brevemente – ...não sei porque liguei.
_Ahm... – ouvia ela rir do outro lado – ...sei.
_Muito ridículo dizer que eu já tava pensando em você?
_Um pouco... – ela riu, de novo.

Sorri, sem lhe dizer nada.

_Onde cê tá?
_Em casa já... – continuei, com a cabeça apoiada no travesseiro e falando tranquila – ...sabe, você me deve um maço.
_Devo? – ela achou graça.
_Sim. Com juros.
_Hmm... – a ouvia, como se ela fosse adormecer a qualquer momento – ...p-pode deixar que vou pagar.
_Oi? – perguntei, sem entender a última parte.
_Oi...
_Oi – eu ri.

janeiro 20, 2011

Tatus

_Não olha!
_Não tô olhando!
_Vamos juntas… – a Mia riu, segurando a minha mão, descalças e em pé no seu quarto às três da manhã passadas – 1... 2 e... já!
 
Abaixamos a cabeça, olhando para os nossos joelhos recentemente tatuados. Minha coxa tinha manchas de tinta preta espalhadas para todo lado e, num canto, um pequeno raiozinho torto. Igual ao da Patti Smith. Sorri na mesma hora – me sentindo estranhamente, intimamente contemplada. E então, a Mia começou a rir, me xingando.
 
_Mano, eu não acredito que fiz um desenho legal em você e cê me fez... – balançou a cabeça – ...um homem-palito, porra.
_Quê?! Eu avisei que só sabia desenhar isso!
_Tá – a Mia esfregou a mão no rosto, ainda rindo – Mas não achei que cê fosse mesmo tatuar um!
_Ah, sei lá, achei que ia ficar bonitinho e sem sentido... – me desculpei – ...pode cobrir se quiser.
_Não – bagunçou o meu cabelo com a mão e sorriu – ...eu meio que gostei, me lembra você.

janeiro 16, 2011

She says I'm crazy

I said: “Oh, really?”
...
I’m losing my mind
But I’m winning you

(The Butchies)

janeiro 15, 2011

A estrela dourada

Minha mão tremia mais do que volante de carro velho. Puta que pariu. Com aquela agulha a dois centímetros da pele da Mia e um medo desgraçado de fazer besteira, de machucá-la, enquanto ela me explicava como inclinar meus dedos. Tá. Primeiro furo. Fui tentando pegar o jeito, aos poucos. E a Mia ria do meu nervosismo – o piorando consideravelmente com comentários como “não vai cagar na minha perna, hein”, que ela fazia de tempos em tempos para me provocar.
 
O processo todo de handpoke ia bem mais devagar do que seria com a maquininha. E os ponteiros do relógio do seu quarto rodavam madrugada adentro, enquanto nos tatuávamos – sentadas de frente no chão e sem as calças, uma com a perna em cima da coxa da outra. Quase numa tesoura. Sentia a agulha entrar na minha pele, pouco acima do meu joelho, sem a menor ideia do que ela estava fazendo em mim, conforme a tatuava do outro lado. Combinamos de não mostrar até terminar – nos marcando ali sem desenho e, no meu caso, sem experiência também.
 
Entre nossas pernas e papéis sujos de tinta, nuns papos à toa, a Mia me perguntou quem era a melhor garota com quem eu já tinha dormido.
 
_Por quê? – fiz graça – Cê quer o telefone dela?
_Não, né, só quero saber... – me olhou, curiosa.
_Você.
_Para! Tô falando sério, meu.
_Eu também.
_Mano, claro que não, eu não sei nem o que tô fazendo metade do tempo... – apertou os olhos na minha direção, como se eu estivesse mentindo – Vai, meu. Fala a verdade.
_Mas eu tô falando... – insisti e ela balançou a cabeça, indignada comigo – ...o quê? Cê quer saber quem tinha mais “habilidade”, é isso? – ri, mais uma vez, enquanto riscava mais uma sequência na sua pele – Gata, eu posso te dizer um milhão delas, a minha resposta ainda ia ser a mesma.
_Eu não quero o nome de um milhão delas, só um.
_Que diferença faz?
_Só escolhe uma, porra.
_Você.
_Meu deus, como cê é! – revirou os olhos, irritada – Por que cê não pode me dizer? Foi a Clara?
_A Clara?!
_Sei lá, meu. A Dani, a tal da Marina...
_Mia... – ri – ...você foi a melhor da minha vida.
_Cê sabe o que eu quero dizer!
_Sei... – insisti, mergulhando a agulha na tinta – ...é você que não tá me entendendo.
 
A encarei por um instante, incerta se aquele papo era curiosidade mesmo ou insegurança – e achei certa graça no quanto a Mia parecia não saber o estrago que causava em mim. O que eu quero dizer, garota, é que tem umas minas que entram na sua cabeça tão violentamente que estouram todos os limites do seu cérebro, do seu coração. Destroem toda a sua razão. É outro lance – você não sabe nem o que está fazendo, não pensa em porra nenhuma, não calcula, só faz e vocês vão se movendo, juntas. Como se pudessem sentir exatamente o que a outra está sentindo. Como se o seu corpo inteiro soubesse. É disso que eu estou falando, porra, entende?
 
E é – é sobre você.

janeiro 13, 2011

Se mostrar a sua, mostro a minha

_22... 23... 24... Para de se mexer! – ela ria – ...e 25. Espera, essa já foi?
_Não.
_Tá. 26!
_Sua vez!
 
Nós duas rimos e eu me virei no chão, ficando por cima dela. Ainda nua, coloquei uma perna de cada lado do seu corpo e me pus a contar todas as tatuagens que ela tinha – caminhando com os dedos de uma a outra. O cabelo da Mia se espalhava pelo piso daquele chuveiro abandonado e seco, que provavelmente nunca tinha sido usado. Ela também se esparramava. Esticava os braços e me esperava contar todos os desenhos antes de girar, para que eu pudesse ver também os de trás. Flores. Besouros. Libélulas. Adagas. Palavras. Plantas. Mariposas. Caveiras. Círculos. Panteras. Luas pretas. E toda uma infinidade de rabiscos espalhados pelo seu corpo.  
 
_7... 8... 9... – deslizei a mão entre os seus seios, a admirando – 10... – e então não me aguentei, me curvando para beijar o seu peito, a sua barriga, a mordendo e lambendo até chegar numa pequena tatuagem na sua costela – ...11.
_Cê não tá nem prestando atenção... – a Mia sorria.
_Tô, sim... – murmurei, com a boca ocupada, descendo até as suas coxas – 12... 13...
_Tão dedicada você...
_14... – continuei – 15... 16...
_Hum...
_17... – segurei os seus pés carinhosamente, por fim, beijando os seus tornozelos – ...e é isso?
_Não... – sorriu, imprestável – ...cê tá esquecendo umas aí.
_É?
_Tá, sim...
_Hum... – a olhei, na sacanagem – Vira aí então. Deixa eu ver essa bunda...
 
E ela se virou, na mesma hora. Empinando a bunda como quem só quer fazer maldade – é. Bem na minha frente. Jogou o cabelo pro lado e ficou de quatro, me esperando contar. Puta que pariu, cê quer me matar, né, desgraça? “18...”, respirei fundo, “...19”. Fui passando a mão pelas suas costas, subindo até a sua nuca e entrelaçando meus dedos no seu cabelo, a segurando, “20”, sussurrei, já me faltando o ar, as suas costas se dobravam e desdobravam em dezenas de flores tatuadas, beijei a sua pele, pressionando o meu corpo contra o seu, a sentindo se contorcer debaixo de mim, numa vontade compartilhada, com a mão encaixada no alto da sua coxa. “21”, perdi de vez o fôlego, com a boca já no seu pescoço.
 
E entre um beijo e outro, por pura malandragem, me aproximei do seu ouvido – “hum, já sabemos quem perdeu”. “Vai...”, ela riu e fechou os olhos, com tesão, se enroscando ainda mais no meu corpo, “...se foder”. Desci a mão pela sua coxa e a Mia a segurou no pulso, me guiando, colocando meus dedos entre as suas pernas. Cacete.
 
Fodemos mais uma vez, como se não conseguíssemos evitar.
 
E assim que terminamos, exaustas e suadas, sorrindo à toa, a Mia me olhou com desaforo – “...e a propósito, você não ganhou”. Encostou contra a parede, sentada, continuando a discussão como se não tivéssemos sequer a interrompido para transar por minutos fio com os joelhos ralando contra os ladrilhos. Achei graça, recuperando o fôlego.
 
_Mia... – retruquei, ainda ofegante – ...admite, você perdeu.
_Mano, não vale isso!
_Como não vale, porra?!
_Não vale. As minhas são bem maiores que as suas... – argumentou, toda suada, prendendo o cabelo bagunçado no topo da cabeça – ...fica fácil ganhar com meia dúzia de tatuagem pequena a mais.
_Nem vem, meu, cê também tem umas minúsculas aí... – a provoquei de volta – ...que, né, se juntar cinco dessas não dá uma minha!
_Tá, mas a maioria dessas fui eu que fiz. Só por isso já vale o dobro!
_Claro que não!
_Claro que sim!
_Ok – ri – Essa discussão não vai a lugar nenhum...  
_Não mesmo... – ela riu também.
 
Engatinhei até onde ela estava e segurei o seu rosto, a beijando brevemente. Nós duas rimos. Encostei na mesma parede que a Mia e observei os seus pés descalços, as pernas largadas no piso frio. Ela tinha um pequeno triângulo com um risco atravessado logo abaixo do joelho.
 
_E essa... – apontei – ...foi você que fez?
_Foi.
_Mó bonita, meu – observei as linhas, atenta – É muito difícil fazer?
_Não – ela se espreguiçou, ao meu lado – Até tenho as agulhas aí, se quiser te mostro...
_O quê, agora?!
_Uai – sorriu – Pode ser. Se cê num tiver medo de me tatuar...
_Olha, não tenho, mas se fosse você, eu teria... – ri – Porque, né, eu não sei desenhar porra nenhuma, só homem-palito.
_Eu não ligo – me olhou, dando de ombros.
_Cê tá falando sério?!
 
A encarei, encantada pela completa falta de limites. E ela se levantou, pegando nossas roupas. Nos vestimos sem pensar muito, rindo, e ajeitamos nossos cabelos como deu no escuro do banheirinho. Então ela sorriu para mim, antes de destrancar a porta, como quem está prestes a aprontar – “vem”.

janeiro 12, 2011

Os graus

Com os pés descalços, caminhei devagar pelo piso do banheiro, um pé atrás do outro. De um jeito estranho, notei, o chão não parecia tão frio contra os meus dedos. Estamos aqui há tempo demais. Talvez a minha pele já tivesse absorvido todo o frio dos ladrilhos brancos, se tornando igualmente desprovida de calor. Ou seria o contrário? Teriam os nossos corpos expostos, em movimento, esquentado cada canto daquele banheiro pequeno? As paredes, o vidro, o chão, a madeira da porta, tudo – a cada orgasmo juntas.
 
Sorri com a lembrança das últimas horas. E me apoiei na janelinha alta que ficava dentro do chuveiro. A minha cabeça divagava, passeando pelas luzes dos prédios vizinhos. Todo o resto do meu corpo estava descoberto, encostado na parede de ladrilhos, dividindo com eles a mesma temperatura da minha pele. Continuávamos escondidas ali, com a luz apagada. Ainda assim, podia ver tudo ao redor. Talvez foram os meus olhos que se acostumaram, pensei, com o passar do tempo aqui dentro. Sei lá.
 
Me virei e encarei a Mia, deitada sem roupa alguma a poucos metros de mim. Com o corpo todo desenhado, entre as linhas das tatuagens e as curvas da sua pele. Magnífica. Traguei mais uma vez o cigarro. Ela encarava o teto, sem pressa e distraída, com as costas nuas apoiadas contra o piso. Andei de volta até ela, com o cigarro ainda aceso, e me abaixei, deitando novamente ao seu lado. Apoiei a cabeça no seu ombro e a abracei – cara, isso é fácil demais. Eu gostava de sentir o seu calor na minha pele. De passar o tempo assim com ela.
 
A Mia deslizou a mão pelo meu cabelo, meio à toa, e eu levantei os olhos por um instante, vendo-a observar o teto sobre nós. Fica, pedi em silêncio, por favor, fica comigo. Sentia um amor incontrolável por ela, ali, vulnerável, com o corpo colado no seu.

_Ei... – ela sussurrou, de repente – ...cê não pode fumar pra cá.
_Eu sei. Já vou, já vou...
_Vai acabar denunciando a gente... – ela riu.
_Eu sei, linda. Desculpa, já tô indo...

Me levantei e coloquei o cigarro na boca, andando de volta até a janelinha. Droga. Soltei a fumaça para o lado de fora e a observei se perder no céu paulistano. A cidade parecia tranquila – que horas será que são? Já era tarde demais, com certeza. Como diabos eu volto pra casa agora?, pensei aleatoriamente, dando mais um trago, enquanto olhava as luzes de São Paulo ali do alto.

janeiro 11, 2011

Artimanha

_O que ela queria?
_Reclamar que fumamos na sacada... – a Mia riu, entrando na cozinha.
_Mano, mas a gente tomou puta cuidado, recolhemos tudo lá, como que...
_A porta tava “meio” aberta e agora, diz ela, a sala tá “cheirando a cinzeiro”.
_Nossa, mas...
_Pois é – se apoiou na pia e me olhou, com um sorriso sacana – ...aí eu disse que o cigarro era seu.
_Ah! Pronto... – sacudi a cabeça, indignada – Valeu, hein. Melhora mesmo a minha fama pra sua mãe!
_Olha, tecnicamente... – fez graça – ...o cigarro era seu mesmo.
_... – a encarei no melhor estilo você-só-pode-estar-brincando-né e ela riu.
_O quê?! Não tô mentindo...
_Aham, Mia...
 
Cruzei os braços, revoltada, e comecei a rir da sua cara de pau. Então, ela deu uma olhada pro lado, por cima do ombro, como se checasse que não tinha ninguém mesmo na cozinha. E aí me pegou pela mão:

_Vem cá... – sussurrou, dando uns passos para trás.

Andamos até o outro lado da cozinha e eu a segui, curiosa, passando por um desses acessos sem porta que ligava o cômodo a uma área de serviço comprida. Quilos e quilos de roupa se amontoavam sobre uma mesa, colocados de qualquer jeito em dois cestos vazados, provavelmente esperando para serem lavados. Atravessamos poucos centímetros abaixo de um varal completamente vazio e notei uma máquina de lavar adiante – com um número considerável a mais de botões que a lá de casa. Cacete, esse lugar é enorme, me impressionei com os bens imobiliários da família.

Ao passarmos ao lado do tanque, já quase no fim do corredor, perguntei o que diabos nós estávamos fazendo ali. “Nos escondendo”, a Mia respondeu e riu. E com uma das mãos ainda na minha, seguiu um pouco mais a frente e abriu uma porta que parecia nunca ter sido notada de tão abandonada que ficava ali no canto. Era um pequeno banheiro – isto é, “pequeno” em comparação com o resto daquele apartamento, porque devia ter o mesmo tamanho que o meu na Frei Caneca. Entramos à surdina, sem acender a luz.

_E a sua mãe?! – cochichei, enquanto ela trancava a porta.
_Eu disse... – se virou e me encostou na parede – ...que a gente ia dar uma saída.
_Tá esperta você, hein...
 
Arqueei a sobrancelha, achando graça, já a segurando de volta pela cintura. Então a Mia me beijou contra a parede, subindo as mãos pelas minhas pernas. E começou a desabotoar a minha calça, descendo o zíper, entre um beijo e outro. Aí se aproximou do meu ouvido – “onde que a gente tava?”.

janeiro 05, 2011

Pois é, a tal fome

Ô inferno, me apoiei de braços abertos na pia e soltei o ar lentamente. Sozinha na cozinha, por um instante, sem saber o que fazer com aquele calor do caralho. Abaixei a cabeça, ofegante, tentando esfriar os ânimos. A gente precisa se controlar, porra, a mãe dela tá em casa. Suspirei, respirando fundo mais uma vez, e reergui o rosto. Incapaz – cada centímetro da minha pele e da minha boca e das minhas mãos já sentia uma falta desgraçada da Mia. Puta merda. Encarei a parede à minha frente, sem a mínima vontade de realmente me controlar, sentindo o meu corpo todo latejar. Eu vou perder a cabeça aqui.

Muita, muita fome

Me arrependi na mesma hora. Por que diabos começo essas coisas? Um milésimo de segundo mal-intencionado logo se tornou insuportável. Parada ali, na frente dela, e de repente morrendo de vontade de... porra. Respirei fundo, a encarando. Cê não me deu um beijo sequer, garota, desde que chegamos. Quase podia sentir o seu gosto em mim.
 
Ah, bem que eu queria ser menos irresponsável... assim, no meio da cozinha da casa dela, né, caralho. Mas acontece que eu tenho um limite, um ponto a partir do qual eu não consigo mais voltar atrás – chamem de inconsequência, de hormônios, de falta de amor à vida, do que quiserem... não me interessa. Não com aquela garota, assim, na minha cara.

Chega uma hora que não dá. O fogo do rabo me sobe à cabeça e é impossível impor qualquer razão. Dois segundos de brincadeira, a olhando – foi tudo o que eu precisei. Dois segundos parada em pé na sua frente, ali, e eu estava disposta a pagar qualquer pena só para apertar a sua boca contra a minha. Entregue ao magnetismo filho-da-puta que a Mia detinha sobre mim, sentindo meu coração pular para fora do peito e vendo ela me olhar de volta, implorando para a gente se descomportar só um pouquinho.

Ah, que se foda, a puxei para mim, num impulso.
 
Colidimos num beijo de foder a cabeça. A empurrei contra a pia, colocando o meu peso inteiro contra seu corpo. A pressão ia esmagando o meu próprio braço contra a quina do balcão de madeira atrás dela, quase a ponto de me machucar. Que se dane, eu me movia mais ainda na direção da Mia. E ela subia em cima de mim, me agarrando. Garota, não faz isso, eu perdia o fôlego, sentindo-a oscilar o seu corpo contra o meu, num vai-e-vem, e cada “hmm” que ela soltava contra os meus lábios, a minha língua, respirando comigo, em meio àquela intensidade, ia me tirando do sério.
 
Desci minhas mãos até a parte de trás das suas coxas para colocá-la em cima daquela porra daquele balcão. A Mia me empurrava, rindo, e depois me puxava de volta, estragando a minha camiseta, sem tirar a boca da minha. Caralho.

_Mia... – sua mãe chamou de repente, de outro cômodo – ...você pode vir aqui?

Ignoramos. A gente precisa... seguimos nos beijando... responder... desgraçadamente... senão sua mãe... entrelacei os dedos no seu cabelo, a segurando... vai vir aqui... e mordi sua boca, lentamente... e vai dar merda... a Mia enfiou a mão na minha calça... caralho. Fechei os olhos e ela continuou, fingindo não ouvir a mãe na sala ao lado. Muita merda, porra.

_Mia! – a mãe insistiu, ao longe.
_Quê?! – gritou de volta, em meio segundo, me beijando imediatamente depois, com a mão apertada entre a minha boxer e o jeans.
_Você quer vir aqui, por favor?!

Contra os meus esforços, a Mia rodou o corpo junto com o meu, invertendo a nossa posição e ficando estrategicamente mais próxima da porta. Contudo, ainda me beijava. Era como se não conseguíssemos nos largar. Porra, mano, não vai, eu a segurava e segurava a sua mão nas minhas calças, é muita sacanagem, caralho. E a Mia apertava o seu quadril na minha direção, com a boca grudada na minha. Relutávamos, numa dança perigosa, que seja, naquela imprudência de sermos pegas a qualquer momento.

Prendeu a minha boca, o meu lábio, entre os seus dentes. E deslizou devagar, me chupando, até se afastar de mim, tirando a mão do meu jeans. Deu um passo para trás, como se fosse em direção à porta. Nem a pau. Subi minhas mãos até o seu rosto, a segurando, e a beijei novamente. Agora é que cê não vai mesmo. E ela me beijou com vontade de volta, mas logo se desvencilhou. Aí me deu um selinho, bem demorado. Então, mais um… aí outro... e saiu.

A fome

Só mencionar comida e meu estômago já estava roncando como se eu não me alimentasse há dias. Em dez minutos de certo caos na cozinha, montamos dois sanduíches dignos da BR 116 – a Mia tinha umas caminhoneirices que eu adorava. Era terrível cozinhando, mas excepcional em empilhar uma quantidade excessiva e quase obscena de recheio entre dois pães. Fomos metendo tudo de gostoso e superfaturado que encontramos na geladeira dos pais dela nos nossos lanches, rindo, como se tivéssemos fumado um. Ou dois. E comemos com a mesma delicadeza, digamos, sentadas sobre a pia da cozinha com metade dos nossos molhos escorrendo pelos nossos queixos ou "enxugados" na parte de trás das nossas mãos.
 
De repente, quando já estávamos prestes a acabar, escutamos uma porta se fechando ao longe.
 
_Ixi... – a Mia me olhou, assustada – ...acho que minha mãe chegou.
_E essa cara aí é por quê? – eu ri, ouvindo alguém de salto dar passos pelo apartamento.
_Ah, meu, acho que minha mãe não gosta muito de você...
_Nossa, mano, mas por quê?!
_Hum... – arqueou as sobrancelhas, imprestável – Por que será, né?
_Sei. I wear my jeans too tight… – cantei baixinho, brincando – …and I stay out all night.
_Porra, mano. Essa música é demais!
_Num é? – desci para o chão, esticando as pernas, largando o meu sanduíche na bancada – So don’t take me home, baby... – pisquei para a Mia, fazendo graça – ...’cause your mama won’t like me.
 
Ela se divertia comigo, ali, dando uma de Suzi Quatro no meio da sua cozinha, sem noção. Estiquei o braço até onde ela estava sentada, pegando o último pedaço do meu sanduíche e o coloquei inteiro na boca. “Agora sim, hein, ficou sexy...”, ela me disse, rindo, assistindo a cada gesto meu em pé. E eu me esforcei para terminar de mastigar logo, me segurando para não rir também – ou engasgar.
 
_Oi, meninas... – de repente, a mãe dela apareceu na cozinha – ...ah, olha você aqui de novo.
_E aí... – respondi, ainda rindo, com um pedaço imenso de pão na boca – ...tudo certo?
_E o que vocês tão fazendo? – ela nos olhou ali, com certa reprovação.
_Comendo, mãe...
_Hum. E seu pai, não chegou? Ele ligou?
_Não.
_Tá bem – senti seu olhar demorar em mim, me analisando de cima a baixo – Bom, então eu vou tomar um banho... Vocês lavam aí, né, Mia? Não vai largar tudo de qualquer jeito...
_Tá, tá... – a interrompeu – Tchau, mãe!
 
Antes de sair da cozinha, nos encarou mais uma vez e, então, se virou para ir em direção aos quartos. Àquela altura, eu já tinha mastigado e engolido a porcaria do sanduíche. A Mia desceu da pia, ficando em pé ao meu lado e nos olhamos, ao mesmo tempo, rindo da situação.
 
_Ok – admiti – Cê tava certa. Sua mãe realmente não gosta de mim.
_É. Acho que cê é um pouco “demais” pra ela...
_Ah, é? – ri.
_Com certeza.
_Hum – me divertia – Me conta por quê.
 
Me aproximei da Mia, sem tirar os olhos dos seus, a provocando pela resposta que eu já sabia qual era. "Besta" – ela deu um passo para trás, encostando na esquina onde o balcão encontrava com a pia, apoiada com ambas as mãos atrás de si e me encarando de volta. "Diz. O que tem eu, hun?!". Olhei naqueles seus olhos castanhos e vi um sorriso surgir sem querer no canto daquela sua boca, aos poucos. E é, era para ser só brincadeira – mas claro, acabou sendo uma péssima ideia.

janeiro 02, 2011

Contemplação

Conforme se inclinava, as mechas do seu cabelo deslizavam pela jaqueta, caindo no espaço vazio frente ao seu colo, suspensas no ar. O vento soprava frio, estávamos alto o bastante. Os seus olhos vagavam pelo céu nublado de São Paulo, imersos no breu, castanhos e amendoados. Ah, como eu gostava de olhar pra ela. E talvez tenha me acostumado com essa condição – essa passividade perto da Mia, desde que nos conhecemos, sempre a admirando em silêncio. Eram nossas eternas preliminares, deliciosamente insuportáveis.
 
Hum.

Depois de me ver no estúdio mais cedo, ela aproveitou para ir visitar o irmão na Lapa. E aí, na volta, passou com o táxi pela Vila Madalena, me buscando pouco depois das 18h no trabalho. Agora dividíamos a companhia uma da outra na varanda do seu apartamento – eu sentada no chão, encostada em uma das paredes, e ela em pé apoiada na grade, a menos de um metro de mim. Não tinha ninguém em casa além de nós e os únicos sons que chegavam até a altura que estávamos eram as falas de uma novela qualquer, que o vizinho de baixo estava assistindo.
 
Segundo ela, cinco minutos mal aproveitados “não contavam como me ver” – então pediu mais. E no caminho até lá, sentadas no banco de trás do táxi, eu lhe contei todo o rolo da Marina dos últimos dias. Isso porque a Mia viu o nome dela piscando no meu celular durante o trajeto e requentou a piadinha infeliz iniciada pelo fernando-maria-do-bairro. Com os dedos entrelaçados nos meus, ouviu intrigada, enquanto eu falava sobre o meu namoro com a Marina e ia perguntando mais a respeito, apesar das minhas tentativas de voltar o foco para o relacionamento dela com a Bia.

Desde que chegamos lá na varanda, no entanto, ela parecia pensar mais do que realmente querer falar. E eu não achava ruim, gostava de vê-la assim – de perto. Acendi um cigarro e traguei duas ou três vezes, colocando o maço e o isqueiro empilhados no chão ao meu lado. Ainda com os cotovelos apoiados sobre a beirada, a Mia retirou um elástico preto preso no seu pulso e começou a rodá-lo entre dois dedos opostos, distraída. De repente, pouco tempo depois, começou a falar:

_Falei com o Fê hoje, depois que te vi... – ela seguiu, sem me olhar, observando o elástico nos seus dedos – ...acho que, no fim das contas, cê tava certa.
_Sobre o quê?
_Sobre tudo. Que ele tinha razão e a gente, não, que ele gosta de verdade de mim. Sei lá. A gente conversou um pouco e eu, e-eu gosto dele também, gosto mesmo. Não sei... – ela fechou os olhos por um instante, depois os reabriu e continuou observando o elástico nas suas mãos – ...a gente vai se ver amanhã, conversar direito, sei lá.
_Hum... – traguei o cigarro mais uma vez, incomodada, fingindo não me importar.

Caralho. Senti meu estômago revirar todo de novo. Ficamos em silêncio pelos minutos seguintes, assim como antes – todavia, eu já não a olhava mais. A minha mente se esvaziou por um instante e eu observava, agora, a fumaça que saía da brasa vermelha, queimando diante dos meus olhos. Então a Mia colocou o elástico novamente ao redor do pulso e virou-se de costas para a beirada – o suficiente para atrair minha atenção. Aí deu um passo e se sentou ao meu lado, apoiando as costas na parede, sem me dizer nada. Roubou o cigarro da minha mão e deu um trago, enquanto eu a olhava.

_Mia...
 
Eu a chamei, quase sem querer. E ela ficou quieta, numa pausa de segundos que pareceu durar uma eternidade. Depois deslizou inesperadamente a mão pela minha e a segurou. O que cê tá pensando aí, hein? Ela observava nossos dedos entrelaçados, enquanto acariciava as costas da minha mão com o polegar. Mas não me respondia, compenetrada. Por um breve instante, não sei, pareceu se entristecer. Ei, garota... relaxa, vai dar tudo certo. E então piscou, como se acordasse de si mesma, me passando o cigarro de volta enquanto soltava a fumaça para cima.

_Cê tá com fome? – perguntou, de repente, me olhando.
_Sempre, né...