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janeiro 21, 2012

Exílio

Se eu tinha uma certeza – depois de uma noite mal dormida e de um encontro indesejado com a Mia logo pela manhã, que me fez dar meia volta na porra da cozinha – era a de que eu não queria trombar com ela de novo tão cedo. Então, pelos dias seguintes, me dividi entre a cama da Clara e o sofá da Thaís, devidamente compartilhado com o Bruce, voltando para casa de vez em nunca e fazendo valer a minha fama no trabalho. Que se dane.

janeiro 20, 2012

O efeito Casimir

Entrei no apartamento. E me forcei a dar um sorriso amarelo para o Fer, para despistar, logo abaixando a cabeça, enquanto atravessava a sala. Sentia o meu coração acelerado e, a contragosto, doloridas, as lágrimas continuavam engasgadas na minha garganta – mas eu as segurava. Em silêncio. Abri a porta do quarto e a fechei atrás de mim, num só movimento, indo direto para a cômoda onde estava o meu maço. As luzes estavam apagadas e a Clara ergueu o corpo, me olhando, sentada no colchão.
 
Sem pensar direito, peguei um dos cigarros, o acendendo. Aí traguei, nervosa. Isso não é certo. Não é. Minha respiração parecia competir com o meu pulso acelerado, me dificultando encher direito os pulmões. De raiva. Desgraçada. O que diabos foi aquilo? E de um momento ao outro, a minha cabeça parecia se esmagar com a confusão na escada, com a hipocrisia da Mia. Com as suas palavras, as minhas; com o seu desespero. E eu me deixava torturar pelas possibilidades, de repente. O que diabos...?
 
Em meio ao breu, com as pernas ainda descobertas, a Clara me chamou. Por que cê não me deixa em paz?, eu me angustiava, pensando na Mia, por que diabos você tem que me cutucar? Mas que inferno. Argh. Sentia uma raiva como nunca antes dela. A minha cabeça ia a mil, entre uma tragada e outra, obcecada por uma a uma das suas palavras, tentando em vão processar a discussão. Não queria lidar com aquilo, não agora. Caralho.
 
Mais uma vez, a Clara me chamou da cama – mas eu, conturbada, não conseguia prestar atenção nela. “Nunca disse”, a minha respiração pesava, contendo as minhas lágrimas com certo esforço, nunca disse, não é? E não era justo. Não era justo. Maldita. Esfreguei a mão no rosto e balancei a cabeça, frustrada, soltando a fumaça pro lado. O erro foi seu, garota. Não meu.
 
Coloquei o cigarro de novo entre os lábios, angustiada, você podia ter me dito meses atrás. Meses. Dei mais um trago. Vai se foder, mano. Agora você vem, né? As lágrimas deixaram os meus olhos e eu as enxuguei, na mesma hora, sem paciência. A Clara notou e perguntou se estava tudo bem, sentindo a tensão no ar, mas eu a ignorei, completamente voltada aos pensamentos. Agora, porra?!
 
Depois de me forçar tanto a esquecê-la – a não querer, a não ir atrás, a não pensar na gente, me sentindo um lixo, inferno, rejeitada –, depois do tanto que eu sofri por ela. Depois de todas as noites não dormidas. Nem a pau. Me recusava a passar por aquela merda de novo. Cacete. Passei ambas as mãos no rosto, mais uma vez, inquieta. Aí dei mais uma tragada.
 
O choro me causava dor de cabeça. “Eu nunca disse isso”, lembrei da Mia dizendo, contrariada. Respirava com pesar e tentava, num esforço desproporcional, reter as lágrimas – mas elas vinham, indesejadas. As mãos da Clara tocaram as minhas costas, suavemente, ficando em pé ao meu lado de repente. Senti a minha cabeça confusa. E então ela colocou os braços ao redor de mim. Sem dizer nada. Ah, você é tão, tão covarde, Mia...
 
Amassei o cigarro contra a parede, num impulso. E o joguei pela janela, me forçando a contrariar dentro de mim a mera sugestão do que ela “nunca” dissera. Meu coração encolheu no meu peito. Não. Você, enxuguei as minhas lágrimas do rosto, com rancor, você nunca me amou, Mia. E você não me ama agora. Já chega.

janeiro 18, 2012

Take what you need

“…and be on your way.” 
(Oasis)
 
_FODA-SE! – gritei com ela, de volta, perdendo de vez o controle na discussão – FODA-SE, MIA! QUE DIFERENÇA FAZ?? O QUE IMPORTA AGORA, CARALHO?? – passei as mãos no rosto, revoltada – COM QUE DIREITO VOCÊ VEM AGORA, MESES DEPOIS, ME FALAR ESSAS MERDAS? O QUE IMPORTA É O QUE VOCÊ FEZ, MIA, PORRA, NÃO O QUE VOCÊ FALOU OU DEIXOU DE FALAR! E VOCÊ NÃO FEZ NADA! VOCÊ NÃO FEZ BOSTA NENHUMA! – me indignei, vomitando o que segurei sufocado dentro de mim por todo aquele tempo – AGORA VOCÊ VEM ACHAR RUIM QUE EU TÔ COM ALGUÉM?? VEM ME DIZER O QUE FAZER COM A PORRA DA MINHA VIDA?!??
_EU... E-EU SEI! SÓ... – ela lamentou, atravessada e com os olhos inchados, aí me olhou com pesar, quase implorando – ...SÓ NÃO... N-NÃO ISSO. POR FAVOR. NÃO COM ELA!
 
Vai se foder. Engoli a minha raiva, sentindo o ódio tomar conta de todo meu corpo. Sem acreditar que me pedia aquilo, de novo. Desgraçada. Fala merda e depois vai lá dar pra porcaria do Fer, não é? Hipócrita do caralho. Esfreguei as mãos no rosto, mais uma vez. E a Mia ensaiou alcançar minha mão com a sua, encostar em mim, mas hesitou. As lágrimas molhavam suas bochechas. Então, por um instante, me olhou como quem se arrepende do que vai dizer antes mesmo de pronunciar as palavras. Argh. Covarde.
 
_Olha, e-eu... eu sei que, q-que eu não tenho... – se enrolou para dizer, se atropelando involuntariamente na sua respiração pesada, soando magoada – ...que eu não tenho nenhum... d-direito de...
_É – a interrompi – Você não tem, mesmo.
 
Aí dei as costas para ela e saí pela porta, voltando ao apartamento. Não ia ouvir mais uma palavra daquilo.

Desencadeamento

As palavras saíram da sua boca quase por acidente.

_O quê?! – eu ri, parando por um segundo, como se não tivesse entendido direito.
_Eu não... n-não quero que você... – hesitou, repetindo – ...que v-você fique com ela.
_Você não qu...?! – levantei a voz sem perceber, passando a mão no rosto, um tanto indignada com o pedido – Eu?! Você não quer que eu fique com a Clara?! É ISSO?!
_Fala baixo, meu. Por favor.
_Não acredito que cê veio até aqui pra me dizer o que eu tenho que fazer com a minha vida. Olha, na boa, Mia... – me revoltei – ...me explica, então. Me explica POR QUE DIABOS eu não ficaria?! Hein?! O que me impede?
 
Não me respondeu, contrariada. Claro. E o meu coração acelerou no meu peito, parada ali com ela, naquela escada de prédio. Ainda me segurando pelo braço, ela me olhava, a muito custo retendo as lágrimas em seus olhos – mas o silêncio a denunciava. Não tinha argumentos. Não tinha nada que justificasse um pedido daqueles. Argh. E eu já estava de saco cheio daquilo, daquelas ceninhas dela, da forma como vinha agindo nos últimos tempos. Numa falta de consideração comigo, com a porra da sua responsabilidade na nossa história. Sem nunca se implicar com qualquer merda que fosse. Preciso dar o fora daqui. Agora.
 
Respirei fundo e me soltei das suas mãos, grosseiramente, determinada a voltar para o apartamento. A deixar aquilo passar – no quarto, nas mãos da Clara. Em qualquer lugar que fosse longe da Mia. Que se dane. Me virei para sair, abrindo a porta que dava para o corredor do prédio. Entretanto, num momento de descontrole, dei dois passos de volta, tomada por um rancor repentino, e a encarei de novo.
 
_Não foi você?! – questionei, num tom agressivo – Não foi, porra?! Não foi você, Mia, que disse que queria tentar? Que queria ficar com ele?!?
_Não faz isso... – ela murmurou, magoada – ...por favor.
_O que você quer de mim, cara?! O quê?!? – continuei, a ignorando, sentindo todas as emoções me subirem pela garganta – Me fala, caralho. Não foi você, Mia?! – meu coração parecia prestes a sair pela minha boca – Que não quis ficar comigo?!? Que não me quis?!
 
Abaixou a cabeça, apertando as mãos na lateral do braço, cruzado em frente ao seu corpo. Angustiada. Eu a encarava, fixamente, com um pesar horrível no peito – a sua falta de coragem, de palavras me doía.
 
_E-eu... – ela hesitou.
 
E eu me revoltei mais ainda.
 
_Fala. O que você quer de mim, Mia? – senti minha voz embargar – O que você QUER QUE EU FAÇA, PORRA?!? – me segurei para não gritar com ela, em meio às escadas vazias – O QUÊ?! Você quer eu fique te esperando?!? É isso?? Até quando? Pra sempre, cacete?? Presa a você, à... – suspirei – ...à merda que a gente teve e que sequer significou qualquer coisa na porra da sua vida! É isso que você quer, caralho?! Que eu fique sozinha?!? Que eu fique sem você e sem ninguém... – continuei, com raiva, sentindo as lágrimas me subirem aos olhos; merda – ...rasgando meu coração por você, MANO, TE ASSISTINDO LÁ COM ELE?! HEIN?!? É ISSO QUE VOCÊ QUER??
_NÃO! CLARO QUE NÃO!
_ENTÃO O QUÊ, PORRA?! – me irritei ainda mais, me deixando tomar pelo calor da discussão – O QUE DIABOS CÊ ESPERA QUE EU FAÇA?!? – me aproximei dela, a olhando ali, prestes a desmoronar, subitamente vulnerável – POR MESES, CARA... por meses, Mia, caralho. Foi só você. SÓ VOCÊ! Mas... – ri de nervoso, desnorteada – ...mas aí eu fui na sua casa, cê se lembra? E tive que praticamente IMPLORAR pra você descer, caralho, pra cê sequer falar comigo! E pra quê?!? – subi mais uma vez a voz, revoltada – Pra você olhar na porra da minha cara e me dar um puta fora?! Pra você dizer que escolhia ele?? Que não me amava?!?!
_EU NUNCA DISSE ISSO! – ela me interrompeu, de repente, deixando as lágrimas rolarem pelo seu rosto.
 
E foi aí que eu perdi a cabeça.

janeiro 17, 2012

A audácia

Tecnicamente eu não estava mentindo. O caminhão, de fato, passava de madrugada e era minha responsabilidade levar o lixo para fora... só que às terças. Omiti esse pequeno detalhe e dei um selinho rápido nela, a deixando lá no quarto por um instante. Aí apressei o passo até a cozinha e peguei o saco meio vazio que estava no nosso latão, atravessando pela sala e saindo pela porta da frente – numa movimentação que gerou certo estranhamento ao Fer. Afinal, , ainda era quinta.
 
Todo o lixo do nosso andar tinha que ser depositado numa espécie de cesto na área da escada, que além de estar a uns bons trinta metros do nosso apartamento, ainda ficava atrás de uma porta corta-fogo. Era o lugar perfeito para não ser ouvida. Larguei o saco no tal cesto e tirei o celular do bolso, apoiando o corpo contra a parede para terminar de digitar a mensagem para um dos fornecedores.
 
Segundos depois, do nada, alguém abriu a porta.
 
Olhei para o lado e a Mia passou com as sacolas do delivery, agora vazias. Naquele seu moletom preto, umas cinco vezes maior do que o seu tamanho, que ela usava como vestido. Com as mangas erguidas nos antebraços e as pernas descobertas nuns coturnos velhos. Jogou as sacolas no cesto e então se virou, me encarando por um instante. Parecia angustiada. E eu sabia que ela não tinha ido até lá para jogar a porra do delivery fora. Mas abaixei o olhar para a tela, mais uma vez, procurando não me envolver.  
 
Um silêncio constrangedor cresceu entre nós. Inferno. Chequei por cima do meu ombro, meio de relance, e ela continuava ali, a alguns metros de mim. Então terminei a mensagem rapidamente, enfiando o celular meio de qualquer jeito no bolso e me virei também, a encarando de volta. 

Por algum motivo, a Mia tinha os olhos marejados, como se alguma verdade estivesse engasgada na garganta – mas não era capaz de dizer. Não disse nada. Por longos segundos. Que se dane. Balancei a cabeça, sem paciência para aquilo. E aí, quando fui passar pela porta, ela me segurou pelo braço, de repente. Me obrigando a virar de novo na sua direção.
 
_Não quero que você fique com ela – pediu, baixinho.

Linhas inimigas

Quando chegou a noite de quinta, a Clara já estava roubando coisa pior. Tipo o meu celular. Merda. O arrancou da minha mão, depois da terceira ou quarta vez que eu disse que estava acabando, sem nunca acabar, e aí saiu correndo para a sala – esquecendo as calças no meu quarto. Inferno. Corri atrás dela e ela riu, fugindo, dando voltas no sofá, onde o Fer e a Mia comiam um delivery qualquer.
 
_Clara, devolve!
_Vem pegar... – piscou e segurou o telefone atrás das costas, me desafiando.
_Mano... – achei graça – ...não vou correr atrás de você. Só me dá!
_Nem a pau! São dez pras onze e cê tá trabalhando, mano!
 
Pois é. Um dia antes, a minha chefe tinha me colocado como responsável por uma série de ações duma campanha publicitária, no que parecia mais um teste do que qualquer outra coisa, e eu estava surtando. Ligando para cliente e fornecedor e coordenando a porra toda, tentando garantir que tudo estivesse certo – numa tentativa de me provar. Não queria foder as coisas logo na primeira semana. E agora a Clara subia no sofá, com suas pernas magníficas de fora e numa regata, me zombando – do mesmo jeito que me zombou todos aqueles dias.
 
_Olha, não dá... – ela se divertia, escalando o encosto – ...como é que cê vai ser mãe dos meus filhos se cê não sai do celular, sabe?
_Que mané mãe dos seus filhos, meu?! – eu ria – Cala a boca, tonta.
 
Puxei ela para baixo e nós duas caímos no chão, rolando uma em cima da outra. Eu tentava pegar o celular da sua mão e ela o segurava com toda a força, com os dedos agarrados ao redor do aparelho, me impedindo de todas as maneiras. A uns metros de nós, no sofá, o desconforto da Mia crescia.
 
_Escuta... – a Clara me provocava, subindo em mim – ...não vim aqui pra ficar largada, viu?
_Não, né?
_Não.
_Hum... – achei graça, com os meus braços já na sua cintura, esquecendo o celular um pouquinho – ...e veio pra quê?
_Vamos lá no quarto... – sussurrou – ...que eu te conto.
 
E como um erro consciente, ergui o corpo e a beijei. Com a sua boca na minha e olhos da Mia ali, nos encarando de cima do sofá – perdendo, aos poucos, a noção de limite. Odiando me ver acompanhada. E o Fer sequer notava, ao seu lado, gargalhando da nossa ceninha no chão.
 
_AH, MANO! –  ele resmungou – A GENTE TÁ COMENDO, PORRA!
 
Levantei o dedo do meio na sua direção, sem tirar a boca da Clara. Aí ela veio beijando a lateral do meu pescoço, montada em cima de mim, no meio da porra da sala, tornando a minha situação ali realmente difícil. Isso não vai dar certo, senti o calor me subir por dentro das calças. Cacete.
 
_VELHO... – o Fer tacou uma almofada na gente – ...VÃO PRO QUARTO, CÊS DUAS!
_VAI TOMAR NO CU, FERNANDO! – eu ri, jogando a almofada de volta na direção dele – NUM POSSO NEM DAR UNS BEIJOS?
_UNS “BEIJOS”?!
 
Ah, pronto. Falou o que estava comendo a porra da Mia no sofá semana passada, revirei os olhos. E me levantei junto com a Clara, rindo. "Vamos pro quarto, sim", declarei, "que seja". Ela abraçou a lateral do meu corpo e os meus olhos cruzaram com os da Mia, sem querer. Ali, me encarando fixamente, com os coturnos surrados sobre o sofá e um dos joelhos em frente ao corpo. A pequena tatuagem que eu fiz em linhas tortas, meses antes, aparecia um pouco abaixo na sua coxa.
 
Desavisada, a Clara me beijou a bochecha e me puxou em direção ao corredor. E a poucos passos do quarto, me entregou de volta o celular. Finalmente. Com o telefone em mãos, todavia, senti uma vontadezinha ingrata de terminar a mensagem que ela não me deixou enviar 20 minutos antes. Talvez até fazer uma ligação, assim, bem curtinha, quem sabe. Mas – argh. Não dá, pensei, a Clara vai me matar. Observei ela entrar no quarto, com os cabelos bagunçados depois de rolar comigo no chão, e aí parei na porta.
 
_Merda! – suspirei, falando a primeira desculpa que me veio à cabeça – Me dá um minuto? Esqueci que preciso tirar o lixo.
_O lixo?!
_É, meu. Dois segundos, já volto!

janeiro 16, 2012

Eleuteromania

Na manhã seguinte, entrei na produtora com a mesma roupa do dia anterior. Depois de ter passado trinta minutos revirando a porra do armário inteiro da Clara, não tinha conseguido encontrar uma roupa que me sentisse confortável em usar. Eram todas justas demais ou “pijama” demais. Argh. Aí aconteceu bem o que eu não precisava no meu segundo dia de trabalho – alguém reparou e eu ganhei a mesma fama que carreguei no meu emprego anterior.
 
Pois é, a de quem nunca dorme na própria cama.
 
Então quando a Clara me mandou aquelas baixarias no meio da tarde – numas mensagens que puta merda –, eu sabia que tinha que pelo menos passar em casa antes de encontrar com ela. E foi o que eu fiz, assim que o relógio da produtora marcou seis da tarde na parede. Dei um pulo rápido no meu apartamento para tomar banho e para trocar a porcaria da roupa, depois a encontrei na loja de instrumentos onde ela trabalhava. E de lá, é, caímos na sua cama.
 
Nos esgotando. De alguma forma, a Clara me lembrava a relação que sustentei por anos com a Dani – nessas de ir e vir na vida uma da outra e de nos engolir, toda vez, numas obsessões que eu não conseguia evitar. Fascinadas. Atraídas pela promessa da ausência de regras. Cruas, soltas, nos engolindo à exaustão e absorvendo cada segundo, cada conversa, cada falta de limite, nos divertindo. Eram meus relacionamentos mais sinceros.
 
E né, o sexo era fenomenal. Cacete.
 
Nós não nos precisávamos, apenas nos queríamos – e há diferença aí. Nos entendíamos, de um jeito nosso. Numas manias de liberdade. O que não quer dizer, claro, que fosse um mar de rosas. Nunca é. Obviamente nos trombávamos por aí.... ou pelo menos, era assim com a Dani. Todos aqueles anos, não sei, nos metendo numas discussões irracionais de madrugada, nuns excessos, nuns ciúmes, nuns sumiços, nos provocando e nos traindo, perdendo a noção do limite até não aguentar mais. E inevitavelmente, no final, alguém sempre saía machucada. Mas nunca o suficiente para impedir a próxima vez – e é aí que mora o perigo.
 
Agora, todavia, num quartinho mal iluminado, deitada ali com a Clara há horas – lhe fazendo carinhos despreocupados –, me questionava se a comparação com a Dani sequer era justa. Ou se era receio meu. Como quando sua cabeça te convence que tudo o que é tão bom assim só pode ser cilada. A observava fumar um baseado, tranquila, enquanto as pontas dos meus dedos davam voltas a esmo pela superfície do seu corpo. E sentia medo da intensidade daqueles dias. De gostar, de realmente gostar. Um gostar de verdade, não como eu tinha gostado da Patti. Com a cabeça no seu ombro, passeando a mão pelos seus contornos, numa brisa boa.
 
Como se não existisse nada além do quarto – e não existia.
 
Deitada de barriga para baixo e um tanto fora da realidade, depois de tantas horas enfurnada ali, com ela. Me sentindo bem. Ia assistindo a fumaça espessa deixar seus lábios e permitindo, sem desviar o olhar, que me roubasse o fôlego.

janeiro 15, 2012

Alvo fácil

Desci em frente ao predinho baixo em que a Clara morava, nas redondezas do Viga na Capote Valente, com a orelha já quente de tanto ser azucrinada pela Marina – aquela pentelha foi o trajeto todo me zombando por ir ver a Clara pela terceira noite seguida. E daí, mano? Não tem nada demais, porra. Corri do carro até o portão, tocando o interfone debaixo duma chuva fria. E a Marina saiu em direção à Heitor Penteado, provavelmente ainda rindo.
 
Subi as escadas do predinho, parcialmente molhada e aliviada só por não ter mais que lidar com aquela encheção de saco toda. Todavia, assim que a Clara abriu a porta do seu apartamento e se colocou no caminho, bloqueando a minha entrada com uma mão em cada batente, me dei conta de que tinha cantado vitória antes do tempo. Argh. Lá vem.
 
_Então quer dizer... – ela sorriu, sem valer um centavo – ...que cê não aguentou de saudade?
_Cala a boca... – eu ri.
_Admite, vai, que não durou nem 24 horas longe de mim...
_Olha, cê não começa, hein?
 
Tentei passar e ela me impediu, com a mão na minha barriga, se divertindo com aquilo. Estava com cara de quem ia dormir – com as pernas de fora num shortinho de algodão e uma blusa de alcinha, descalça, com o cabelo preso num rabo alto. Realmente linda. E me barrando no meio do corredor do seu prédio, às 23:51.
 
_Diz, vai? – me puxou para perto dela, miando no meu ouvido – Diz que precisaaaava me ver, que toooda aquela amargura na sua casa era só fachada... num era? – eu balancei a cabeça e ri, indignada, a ouvindo fazer chacota de mim – Diz que, na verdade, você me aaaama e não consegue mais dormiiiir sem mim...
_Escuta, cê vai me deixar entrar ou não?
_Primeiro diz. Diz que quer ser a mãe dos meus filhos... – continuou – ...e que vai molhar minhas plantas sempre que eu for viajar?
_Deixa eu entrar, vai, Clara.
_Deeeixo... – sorriu, piscando na minha direção, com as mãos agarradas na minha camiseta molhada – ...só fala rapidinho que quer casar e ficar velhinha comigo.
_Tá, chega. Eu vou embora.
 
Me virei, fazendo graça, e ela me segurou pela mão na mesma hora.
 
_Não! – riu, me puxando para si e me abraçando – Vem... Vamos entrar!
_Ah, então agora eu posso entrar?
 
Comecei a rir também, num beijo meio desajeitado, conforme nossos pés deslizavam para dentro do seu apartamento, intuitivamente. Sua tonta.

janeiro 14, 2012

Mordendo a língua

Sentamos num bistrôzinho de esquina lá pro outro lado da Augusta – o lado “bom”. Eu com as mangas duma camiseta preta enroladas sobre os ombros, ela numa camisa de linho branco que geralmente usava quando tinha que entrevistar alguém importante. É. Mas sequer chegamos a falar sobre isso. Passamos o jantar inteiro ocupadas com um único assunto – a Bia e a Patti. Nos provocando por estarmos certas sobre a vida uma da outra.
 
A Marina adorava ter razão. E se gabava dez vezes mais quando estava com uma taça de vinho na mão – o que era o caso ali.
 
_Olha, eu sei bem o que aconteceu...
_Hum... – eu ri, largada contra a cadeira, sem nem tentar impedi-la mais – ...me conta.
_Sabe o que é, meu, acho que cê anda com saudade dum amorzinho...
_Ando, é?
_É. Cê tá muito solta, flor, desde aquele rolo todo com a Mia. E isso não é bom... Cê pode até achar que engana com esse seu jeito... – deu mais um gole na taça, fazendo graça – ...mas eu te conheço. Eu sei que cê gosta de amarrar o seu burro por aí.
_Ai, Marina... – revirei os olhos, rindo – ...nada a ver!
_Quê?! É, sim! Por isso que cê se envolveu tão rápido com a Patti... – me contrariou – ...às vezes, tem mais a ver com a vontade do que com a pessoa.
_Mano, se eu tava querendo me apaixonar, então por que larguei ela lá e fui ver a Clara, meu?!
_Primeiramente, porque você é uma idiota, né? Não dá pra acreditar nas merdas que cê faz, às vezes... – me condenou com os olhos, detrás dos óculos pretinhos – Mas também porque... não sei. Acho que a Clara tem mais a ver com você, sabe? Talvez cê tenha se deixado levar um pouco pelo lance com a Patti...
_Sei – a olhei, irônica, me divertindo com as suas teorias.
 
Tinha uma certa calma na forma como a Marina me olhava, uma serenidade cheia de si, como quem tem sempre razão. Às vezes eu queria saber o que se passa nessa sua cabeça, achei graça. E sabia que ela me falaria, num instante, caso eu pedisse. Eu só não insistia muito por medo da resposta. Das suas teorias infindáveis sobre a minha pessoa. Medo de não concordar ou, pior, de que ela acertasse contra a minha vontade.
 
_Você tá rindo aí, mas é verdade... – ela continuou – Me diz se cê num tá com saudade de acordar junto, de ter alguém, hein? Cê passou tempo demais sofrendo, flor... – argumentou, segurando a minha mão por cima da mesa – Merece ficar tranquila um pouquinho, ter alguém que te quer de volta.
_Menos, vai. Cê tá exagerando, Marina... – resmunguei – Ninguém tá apaixonada aqui! – matei o último gole da minha água e devolvi a garrafa sobre a mesa – Já podemos voltar a falar de você e da Bia, né? E de como eu tava certa?!
 
A Marina começou a rir, balançando a cabeça para mim, e também bebeu o pouco de vinho que restava em sua taça. Nossos pratos já estavam devidamente esvaziados. A enchi por mais alguns minutos sobre o quão errada a Bia era desde o começo e ela pediu logo a conta para encerrar o assunto. A verdade é que parecia muito melhor sem ela – mais leve. E isso me deixava feliz.
 
Pagamos. Aí ela me acompanhou até o lado de fora para eu fumar. Estava chovendo de novo, então nos esprememos debaixo de um toldo, em frente ao restaurante. A Marina aproveitou para checar suas mensagens no celular, enquanto eu acendia o cigarro e dava o primeiro trago. Hum. Podia sentir o meu braço arrepiar com o vento, descoberto naquela camiseta. Soltei a fumaça no ar, observando-a se desfazer em meio às gotas que acumulavam sobre o toldo e caíam à nossa frente.
 
_Ei – me ocorreu, do nada – Acabei não te mostrando a tatuagem que a Thaís fez, né?
_Não!
 
Ergui a lateral da blusa para mostrar. E a Marina largou o celular um pouco, dando uma olhada e sorrindo. Aí o frio pareceu aumentar – mesmo que fosse só um pouco a mais de pele descoberta. Abaixei a camiseta e cruzei os braços em frente ao corpo, levando o cigarro mais uma vez à boca. Numa tentativa de acelerar o processo para entrarmos no carro logo. Mas parada ali, sob a chuva gelada, de repente, não senti vontade de voltar para casa. Vontade nenhuma – o que será que a Clara tá fazendo?
 
E aí, à surdina, tirei o celular do bolso e digitei um SMS escondido para ela. A Marina começou a reclamar que os seus pés estavam molhando, me acelerando para fumar logo. Coloquei o cigarro entre os lábios e senti o celular vibrar, dei uma olhada discreta no visor. “Vem”. Tão logo a vontade de ir me ocorreu, a reprimi. Sabia que não podia comentar com a Marina. Nem a pau. Ela não vai mais me deixar em paz com suas teorias românticas furadas. Meti o telefone de volta no bolso, tirando o filtro da boca e assoprando a fumaça pro lado. E então apaguei o cigarro, ainda inacabado.
 
_Vamos – falei.
 
A Marina pegou a chave e nós corremos até o carro, estacionado na quadra de baixo, numa travessa da Augusta. Fechamos as portas com os braços e parte da roupa molhados, num frio desgraçado. Cacete. Enquanto recuperava o fôlego e me secava como dava, a Marina já foi dando partida. Aí saiu com o carro, iniciando a volta no quarteirão para voltar em direção ao meu apartamento. Droga.
 
A vontade de dormir com a Clara cresceu. Mas não queria pedir carona para a Marina. Olhei as ruas passarem, inquieta no banco do passageiro, conforme a gente se aproximava da Paulista – argh. Também não estava com a menor disposição para pegar transporte público naquela chuva e a pior parte é que o prédio da Clara ficava bem no meio da porra do caminho para a casa da Marina. Inferno. Paramos no semáforo ao lado do Conjunto Nacional e eu respirei fundo, prestes a me arrepender.
 
_Má... – disse, não me aguentando – ...cê m-me leva perto lá na Sumaré?
_Cê não vai mais pra sua casa?!
_Não...
_Hum... – ela abriu um sorriso imprestável, na mesma hora – ...e o que tem na Sumaré?
 
Desgraçada.

janeiro 13, 2012

Uns recomeços

As pontas do cabelo da Clara pingavam sobre a camiseta que emprestei para ela ir trabalhar. Uma camiseta cinza, um top preto e o único jeans que a serviu – todos muito mais largos do que ela costumava usar, sim, mas por algum motivo ver ela nas minhas roupas caminhoneiras me fazia sorrir. Estava bonita. Seus longos fios castanhos molhavam o tecido e ela sorria de volta para mim, enquanto a gente tagarelava e tomava café.
 
Tínhamos acordado quase duas horas antes, naquela segunda de manhã, com a chuva que caía do lado de fora. Os seus pés se aninharam inconscientemente nos meus e as minhas mãos procuraram a sua cintura sob o lençol, nos encaixando uma na outra. Entre o esbarrar dos nossos corpos e o barulho do lado de fora da janela, acabamos despertando. Logo depois das seis. “Vamos ficar mais um pouco...”, a Clara sussurrou. “Não dá”, respondi baixinho, escorregando as costas da minha mão lentamente pelo seu braço, “preciso levantar, meu”. 
 
Ela afundou o rosto no travesseiro, com preguiça, e eu achei graça. Sem a ressaca e o azedume do dia anterior, estar com ela assim era gostoso. O problema é que, quando cai a primeira gota de chuva em São Paulo, a cidade inteira para – seja o trânsito ou o metrô. E aquele era o meu primeiro dia no novo emprego. Não podia voltar a dormir e arriscar chegar atrasada, de jeito nenhum. Então nos forçamos a levantar e fomos tomar um banho rápido juntas.
 
Quer dizer, talvez não tão rápido... mas bem juntas.
 
Agora comíamos pão com manteiga, sentadas à mesa com nossos cabelos molhados. E a Clara tentava me convencer que “But I’m a cheerleader” era o melhor romance adolescente sapatão dos anos 90. Eu ria, discordando – por favor, né, todo mundo sabe que é “The incredibly true adventure of two girls in love. Dividimos um guarda-chuva até a entrada do metrô Consolação – ela ia em direção a Clínicas e eu, a Brigadeiro. O meu trem chegou primeiro. A beijei antes de entrar e a vi ir para o outro lado, assim que a porta fechou. Nas minhas roupas largas e com a barra da calça molhada depois de subir todos aqueles quarteirões na Frei Caneca.
 
O resto do dia correu descomplicado, da mesma forma que aquela manhã. As pessoas na produtora eram interessantes, novas; eram outras – e isso por si só já me empolgava. Fui conhecendo a equipe, fazendo pouco e observando muito, enquanto o dia passava rápido. Lá pelo meio da tarde, respondi uma mensagem da Marina dizendo que precisava me ver e combinamos de ir jantar. Assim que saí da produtora, lá estava ela, me esperando apoiada contra o seu carro, com seus óculos pretinhos. Sorri ao vê-la parada ali.
 
_E aí? – me perguntou, conforme entramos no carro – Como tão as coisas?
_Bom... – me acomodei no banco do passageiro e bati a porta – ...fodi de vez as coisas com a Patti lá. E tô com a Clara agora, e você?
_Terminei com a Bia – ela riu.

janeiro 12, 2012

Pele

Bati a porta do quarto atrás de mim, irritada com a atitude da Mia. Qual o problema? Agora vai achar ruim o que eu faço com a porra da minha vida? Não entendia como diabos a Mia se achava no direito de ir e fazer o que bem entendia, assim, na frente de quem fosse, só para provar um ponto que sequer era válido. Foi você que não quis ficar comigo, balancei a cabeça, não lembra?
 
Respirei fundo, deixando o ar escapar dos pulmões conforme caminhava de volta para a cama. Aquilo me tirou do sério. A Clara estava sentada no colchão, acordada pela barulheira toda, me olhando. Ainda num camisetão velho, me sentei ao seu lado e alcancei um cigarro na cômoda.

_Tá tudo bem? – ela perguntou, falando baixinho.
_Tá – menti, acendendo o cigarro – Não foi nada.
_Hum... – colocou uma perna de cada lado do meu corpo, me abraçando por trás, e deslizou as mãos por debaixo da minha camiseta, pela minha pele – ...não quer me contar?
_Não.
 
Me levantei e busquei o cinzeiro ao lado do computador, um tanto grosseira. Talvez fossem as brincadeiras do Fer na cozinha ou a birra da Mia fora de hora; ou talvez fosse a porra da mensagem da Patti, não sei – de repente, me sentia sobrecarregada. E sem cabeça para lidar, além de tudo, com o fato de que a Clara estava na porcaria da minha cama e que tudo o que precisou para eu ir correndo encontrar com ela foi uma droga de mensagem, meses depois de ter pegado ela com outra no Vegas. Inferno.
 
_Ei...
 
A Clara subiu uma das pernas de volta no colchão, dobrando-a em frente ao seu corpo, e me encarou, como se esperasse uma resposta.
 
_Escuta, isso aqui... – fiz um sinal com a cabeça, indicando a cama – ...eu e você, não muda nada. Não é como se agora, de repente, a gente fosse melhor amiga, porque não somos. Os meus problemas não são da sua conta.
_Uau, hein... – forçou um tom irônico, surpresa – E como tá funcionando isso pra você? Essa estupidez toda?!
 
Retirei o cigarro dos lábios e deixei com que a fumaça saísse lentamente. Merda. Eu sou uma idiota. Bati um princípio de cinza no cinzeiro e olhei pela janela, o dia estava nublado. Aí encarei mais uma vez a Clara, sentada na minha cama, agora com as costas apoiadas na parede – completamente nua. O que eu tô fazendo, caralho? O lençol lhe cobria parte das pernas, tocando a sua pele bem de leve. E as pintinhas que se espalhavam pelas suas coxas. Estava bonita ali. Ela me olhava de volta, observando eu me afundar naquela confusão que eu mesma estava criando.
 
_Olha... – abaixei a cabeça, sentando de costas para ela na cama – ...se cê veio procurando romantismo...
 
Deixei o restante da frase solto no ar. Nem eu estava com paciência para mim mesma. Então senti a Clara se mover no colchão, deslizando as mãos e as pernas descobertas pelo lençol. Encarei o chão com o cigarro entre os dedos, me sentindo um lixo. Os seus joelhos se encaixaram na lateral do meu corpo, mais uma vez, e as pontas dos seus dedos percorreram-me os braços. Então ergueu a minha camiseta, num gesto contínuo, até o alto das minhas costas. E senti o seu corpo morno encostar contra o meu, na parte despida.
 
Traguei mais uma vez, sem a olhar. E ela me deu um beijo suave sobre a coluna. Os seus lábios deixaram a minha pele. E então, veio mais um. E aí outro, subindo aos poucos. Depois outro. Me veio pelo pescoço, enroscando os braços sobre meus peitos. Meio descobertos. Podia sentir a sua língua tocar a minha pele, numas brechas entre um beijo e outro. Mais um. Outro. E eu fechei os olhos, me deixando levar. Aí ela encostou o rosto no meu ouvido:
 
_Não vim... – sussurrou.
 
 

janeiro 08, 2012

Qual é, porra?

Fiquei olhando para a porta, sem entender a forma como a Mia vinha agindo nos últimos tempos. Deu pra fazer ceninha agora, garota?!

janeiro 06, 2012

Os invernos

“Well, you can get out of this party dress
But you can’t get out of this... skin”
(Boy)
 
Na manhã seguinte, deixei a Clara ainda deitada na cama, adormecida, e fui até o armário à procura de alguma roupa. Peguei o celular na cômoda e uma camiseta velha com a gola toda arrebentada, intencionalmente alargada. Coloquei-a com certa preguiça. E saí para o corredor, fechando a porta cuidadosamente atrás de mim. Apenas quando estava ali, já do lado de fora, que tive coragem de abrir a minha caixa de mensagens. Vamos lá, passei a mão no rosto, apreensiva. Não queria lidar com a consequência dos meus atos, sentia o meu estômago revirar por antecipação.
 
E lá estava ela – 1 mensagem não lida.
 
Tinha, sim, respondido à Patti. Aconteceu depois de algumas tentativas dela de me ligar e uns SMS perguntando onde eu estava. Em algum momento da madrugada, já fora de mim na Hot Hot, em meio a uma descarada falta de comedimento com a Clara, eu a respondi. Sequer lembrava direito o que tinha digitado, bêbada, e talvez fosse isso o que eu tanto temia. Argh. Abri a resposta dela, em pé no corredor, naquela tarde de domingo. Podia ouvir o Fer e a Mia na cozinha, provavelmente almoçando. Olhei para a tela do telefone, segurando a respiração por um instante – sabia que tinha dito merda.
 
E aí elas vieram, uma a uma, as suas palavras rancorosas. Outras garotas já me detestaram por muito menos – e por muito mais, também. Mas dessa vez, de alguma forma, eu me sentia pior do que em todas elas. “Interesse efusivo, ñ era?”, a Patti me escreveu, às 2:49, “espero q algum dia alguem seja capaz de se interessar por vc de volta, por esse seu jeito errado, e q vc ñ acabe sozinha... espero de vdd. Pq ñ vale a pena, mesmo”.
 
Encostei a cabeça contra a madeira, pressionando a testa no batente da porta. E suspirei, demoradamente. Frustrada. Aquilo me machucava por dentro. A verdade é que, sim, eu tinha me interessado pela Patti de alguma forma. Mas agora, dali em diante, a realidade seria aquela. Só me restava encarar aquela merda, como quem não a tivesse desejado nos últimos dias. Como se não a tivesse querido o tanto que quis. Eu fodi tudo, puta merda. Não adiantava nem me questionar se tinha tomado a decisão certa ou não, porque já estava tomada. Não posso mais voltar atrás.  
 
Fechei o celular e respirei fundo. Saber que a Clara estava do outro lado daquela porta, depois da noite que passamos juntas, aquela porra daquela noite, também me bagunçava a cabeça. E os sentimentos. Caralho. Sentia como se estivesse prestes a entrar num mar revolto, a dar mais um passo adiante sem enxergar direito onde estava indo. Não sei por que me sentia tão suscetível a aquela garota – mas me sentia. Puta merda, como me sentia. Era como encarar de frente o maremoto e querer que ele te engula. Deliberadamente.
 
De repente, senti a minha garganta seca. Estava numa ressaca desgraçada. E então, só com a camiseta velha no corpo, sem cueca e com os pés descalços contra o piso, fui até a cozinha para pegar um copo d’água. Entrei e dei de cara com a Mia, sentada na mesa, com o prato terminado à sua frente. Me olhou como se já soubesse – inferno. A encarei de volta por um segundo, antes de ir em direção à geladeira. O Fernando deve ter aberto aquela boca grande. Abri a porta para pegar uma Coca e o Fer, que estava lavando a leiteira para passar um café, se virou.
 
_Pra quem não resiste a um pé na bunda, hein... – ele comentou, rindo, e apoiou o corpo na pia – ...até que cê esperou bastante.
_Não enche, Fernando! – resmunguei, me irritando com o comentário – Não falei com você, porra.
_Ah, vai, demorou o quê? – ele se divertia – Cinco? Seis horas desde quando cê saiu pra encontrar sua namoradinha até você passar pela porta com a Clara?!
 
A Mia se levantou, bruscamente, e saiu da cozinha.

janeiro 05, 2012

Entreatos

(...)

O seu rosto escorregou pelo meu ombro descoberto. Minha regata já estava completamente puxada fora de lugar, suja e amarrotada contra a porta de ferro de uma loja fechada. Não era mais branca – não desde aquela madrugada, rolando na sujeira do centro de São Paulo. Amassou o rosto contra o pouco de tecido que havia no alto das minhas costas e eu comecei a rir de novo, junto com ela, a Clara. Me abraçava por trás. Traguei mais uma vez o meu cigarro, roubado, tossindo logo em seguida, numa respiração atropelada pelo riso. Os olhos dela me acompanhavam, com uns ares argentinos, me vendo dali de baixo. Apoiada no meu ombro. Balancei a cabeça, tentando manter certa sobriedade – ou o que me restava dela.
 
Dignidade zero. Sequer lembrava onde estava tamanha graça. Meu deus, continuei rindo. Estávamos sentadas na porta de um comércio qualquer nas redondezas da Hot Hot, já meio perdidas naquelas ruas imundas. O céu ainda estava escuro e a noite se seguia, irreal e agradável. Com uma brisa meio morna – o chão apenas que estava frio, era um cimento áspero, ainda que a rispidez da calçada não parecesse ter impacto algum em nossas pernas. Revirávamos sobre o concreto, nos ajeitando, incessantes, inquietas e animadas, com as pernas cruzadas, uma sobre a outra, bêbadas – a Clara me abraçava e caíamos. Aí ríamos, muito. Completamente idiotas.
 
E eu a beijava, com vontade.
 
Numa ausência de lucidez, de tempo e espaço, nuns instantes espontâneos. A todo momento. Ela tentava tirar os meus tênis, à força, dizendo que os adorava e pedindo para que eu os desse pra ela. De jeito nenhum, eu brigava fisicamente com a Clara e nos pegávamos loucamente, como se não pudéssemos evitar. E como se precisássemos de algo além das nossas respectivas comandas estourando de tão cheias, que pagamos uns vinte minutos antes, decidimos investir o restante das nossas muito mal-gastas economias numa garrafa inteira de sabe-se-lá-o-quê que aquele cara estava vendendo na porta. Tomei posse da tal garrafa, que a Clara estava segurando com certo apego, e dei mais um gole, olhando-a sujar suas pernas naquele chão tenebroso, pouco se importando. Então a admirei, genuinamente. Mas puta merda, como a minha cabeça rodava.
 
(...)
 
Cercando o meu corpo, suas coxas forçavam o shortinhos verde-musgo cada vez mais para cima. Arregaçando a borda rasgada e a fazendo enrolar. Até bem perto do meio das suas pernas. No seu ouvido, eu dizia as mais baixas obscenidades. O taxista tentava nos ignorar – ou não. E eu tentava me controlar, manter a porra da calma. Com vontade de comer ela ali mesmo. A Clara metia a mão entre a minha calça e os seus shorts, sentada em cima de mim. Ela ficava realmente, realmente linda com os fios bagunçados assim. Mordia a minha boca, eu subia as mãos por baixo da sua regata sem nada por baixo. Cacete. Observava-a ali, me olhando de volta. E sentia me apertar os pulmões, numa ausência filha-da-puta de paciência, de fôlego.
 
(...)
 
Entramos barulhentas no apartamento, nos anunciando. Eram quase cinco da manhã. Nos pegamos pelas paredes, quase caindo entre um beijo e outro, rindo. Bêbadas. A quietude da sala escura era interrompida apenas pela TV ligada – e agora, por nós. O Fer assistia qualquer programa, com o volume quase no mínimo, enquanto a Mia dormia com a cabeça apoiada no seu colo, apenas de blusão sobre o sofá. Não notei se nos ouviu entrar. Mantive as minhas mãos ocupadas com a regata preta da Clara, que tirei e larguei no meio do corredor, a despeito da possível plateia que tínhamos.
 
Então a joguei na minha cama. E subi por cima, entre suas pernas, a beijando inteira. Numa fome que só a saudade podia causar. Movíamos num ritmo semialucinado – fora de nós mesmas. Perdi também a minha regata, num ato justo, e perdemos todo o resto em seguida. Sentia as suas mãos me puxarem, me machucando, insensíveis, apertando minhas costelas tatuadas. O peso do seu corpo deslizava contra o meu. E eu a machucava de volta – com os dentes, com a boca. Com toda a vontade que eu tinha dela. Na sua cintura, nos quadris, nas costas. Metia os dedos entre suas pernas e os escorregava para cima. Perturbando o silêncio do quarto e, tão logo, de todos os cômodos do apartamento e da porcaria do prédio. Que se dane.
 
(...)
 
Sem escrúpulos, por duas, três vezes seguidas. Um baseado aceso e, depois, mais uma. Pode vir, maldita. 

janeiro 04, 2012

A maré

Passei pelas cortinas na entrada da Hot Hot, uma balada cara em pleno centro sujo paulistano, e caminhei entre as pessoas super-produzidas, que se distraíam escandalosamente. Aquele caos bem viado na porra da cidade que nunca dorme. Tinha fumado meio maço no banco de trás do táxi, no caminho, para ver se me acalmava – ou pelo menos foi o que pareceu. Durante o breve percurso, pensei na Patti. Sozinha, me esperando. Todavia, fui incapaz de lhe enviar uma mensagem sequer. E estava me detestando. Por isso, por tudo. Pelas possibilidades estragadas.
 
Inferno.

Desci do táxi sem saber direito por quê estava ali, impulsionada por uma curiosidade idiota e certo rancor da Clara, de mim mesma – sei lá. Tudo o que eu não precisava na minha vida era de outra garota que me tirasse a razão, que me influenciasse assim. Não nesse nível. Já me bastava o tempo que perdi correndo atrás da Mia. E convenhamos, a minha história com a Clara não era das melhores. Entrei na balada, incomodada com a impossibilidade de voltar atrás, mas entrei. Abracei a minha própria decisão de merda, que se dane.

Não passei nem cinco minutos a procurando. E a Clara estava lá, absolutamente linda. Com os cabelos morenos soltos e a mesma regata preta, sem sutiã por baixo, de horas antes. Mas agora com as pernas de fora – e magníficas – num shorts verde-musgo, curto e rasgado, que parecia feito pra me desgraçar a cabeça, usando uma botinha marrom, que se misturava com o tom da sua pele. Tinha uma cerveja na mão e estava conversando com um amigo, distraída, ainda sem me notar. A três metros de onde eu estava, no máximo. Por um instante, agora que a via parada ali, me arrependi de ter ido – me dando conta da merda que eu estava fazendo.

Essa mina. Caralho.
 
Aquilo era uma péssima – ainda que inegavelmente tentadora – ideia. E eu sabia. Ela sorriu ao ver eu me aproximar. Uma curvinha se formava na sua pele quando ela sorria, bem no cantinho da boca. Argh. Maldita. O tal amigo me cumprimentou com a cabeça, assim que me reparou ali. “Não acredito que cê veio”, a Clara sorriu, surpresa. Nem eu. Cumprimentei os dois de volta, com um meio-sorriso nada empolgado, e fui pro bar logo em seguida. Não sentia vontade alguma de socializar. Que porra eu tô fazendo aqui?, a pergunta não saía da minha cabeça.

Encarei o cara do outro lado como se estivesse prestes a cometer um erro muito grande. Respirei fundo e apoiei as mãos no balcão. Então pedi uma dose de whisky – que se foda, é uma emergência. Depois me explico com a Marina. Alguns segundos depois, a Clara encostou ao meu lado, esbarrando o corpo no meu como quem não percebe. Mas percebia. Não lhe disse nada, sequer a olhei. Pediu algo também para si, uma cuba libre, acho, e então me encarou. É tarde demais para voltar agora. Cacete, dei o primeiro gole. Parecia genuinamente contente por eu estar ali. E eu ainda tentava entender, na minha cabeça bagunçada, o que diabos me fez subir naquele táxi.

_Cê estragou tudo entre a gente... – eu disse, quebrando o silêncio, e a encarei com calma – ...sabia?!
_Eu... – ela me olhou, constrangida, apagando imediatamente o sorriso da cara – ...e-eu sei.
_Eu num devia tá aqui, meu... – suspirei, colocando o copo no balcão, frustrada – ...mas eu tô. E agora eu é que vou foder tudo com outra pessoa.

É. Essa era a verdade. Dei mais um gole e ficamos em silêncio. Agora que eu já estava lá, parada ao lado da porra da Clara, me sentia irritada comigo mesma. Enfiada numa merda de uma balada lotada e escura, mal ouvindo a minha própria voz. Puta merda. Eu tenho umas também, viu – como diria a minha mãe – que às vezes pareciam duas. Era uma capacidade fora do normal de me arranjar problema para a cabeça. E não era culpa da Clara... era minha.
 
_Eu não sabia que cê tava com alguém...
_N-não tô, a gente só... – respirei fundo, inquieta – ...não importa.
 
Hum”. Ela apoiou então o braço no bar e levou a mão perto da boca, mordendo a pontinha do polegar com os lábios entreabertos. Enquanto me encarava. Desgraçada. A Clara tinha um jeito de me observar, assim, sem rodeios, que me prendia. E eu não conseguia mais desviar o olhar dela. Tomei outro gole, a encarando de volta, sem me intimidar. Parte de mim não podia acreditar que eu havia, de fato, largado a Patti sozinha a sete ou oito quarteirões da minha própria casa. Passei a mão no rosto, na nuca, revoltada comigo mesma – aquilo era demais, até mesmo para mim.
 
Mas senti a curiosidade voltar, droga.
 
_E então... – a Clara segurou um sorriso, me olhando fixamente – ...por que você veio?

O meu peito pesava, numa respiração acelerada. E num impulso contínuo, a empurrei contra a parede da Hot Hot, num dos beijos mais rancorosos que já dei numa garota. E mais intensos. Em meio às estampas cool psicodélicas e contra todas as boas razões para eu não estar lá, a apertei contra o meu corpo, com as mãos na sua cintura, e senti ela me morder a boca. Lentamente.
 
Ah, foda-se também.