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fevereiro 28, 2012

"Típico"

Cheguei em casa às 5:37 naquela manhã de quarta e não dormi porra nenhuma. Ao invés disso, tomei um banho para acordar, bebi meio litro de café e saí para trabalhar virada. Que se dane. O dia se arrastou, então, dum jeito insuportável. Passei cada minuto com dor de cabeça e irritada. Inferno. Estava num humor de merda. Fui incapaz de trocar mais do que duas mensagens com a Clara – não tava no clima. E depois das horas extras usuais, exausta, voltei para casa e fiz um jantar com o que achei na geladeira.
 
Assim que sentei para comer, no entanto, o Fer entrou na cozinha. Argh.
 
_Ah, aí tá você... – ele disse, indo vagarosamente até o fogão para espiar o que havia dentro da panela.
 
Com a tampa na mão, pegou um ou dois pedaços de batata cozida e colocou na boca, sem se dar ao trabalho de se servir. Então veio na minha direção, como quem não tem nada melhor para fazer numa noite infeliz de quarta-feira, e se sentou na cadeira em frente à minha.
 
_Cê sumiu ontem, mano... – comentou, do outro lado da mesa, se ajeitando na cadeira – ...achei que cê ia embora com a gente.
_Ficou tarde – resmunguei, meio de boca cheia – Precisava trampar.
_Cê tava lá quando baixou a polícia?
_Não...
_Acho que era umas sete. Nossa, fiquei mó cara te procurando, meu... – pôs os braços sobre a mesa e aí sorriu – ...pô, mas foi do caralho a festa.
_Hum... – murmurei, sem paciência.
_Mano, rolou uma parada da hora... – começou a contar, animado – ...sério, cê num faz ideia.
 
Infelizmente faço.
 
_A Mia pegou uma mina lá, velho, do nada... – continuou – ...aí me puxou e me meteu no banheiro junto com elas, mano, foi uma baixaria...
 
Senti o meu estômago embrulhar, tudo de novo. Droga.
 
_...porra, sério, foi do caralho.
_Hum.
_Foda só que a Mia quis parar, meu.
_Como assim? – perguntei, desconfortável – Do, do nada?!
_Não. Não sei, a gente tava lá q-quase... – hesitou – ...quase fodendo, no banheiro, e e-ela... – pareceu escolher as palavras, tentando não expor demais a Mia – ...ela, tipo, desceu lá n-na mina, enquanto eu tava beijando ela e...
 
Espera. Como é?!, larguei o garfo no prato e encarei o Fernando ali, pega de surpresa. Repete. A Mia fez o quê?!? A minha respiração começou a acelerar e o meu coração disparou. Não, não, mano. Não repete essa merda nunca mais, me arrependi na mesma hora. Nunca mais. Puta que pariu.
 
_...então não vi bem, só vi quando a Mia já tava de pé de novo. Parou no meio do bagulho e me puxou, quis ir embora. Mas porra... tava animal. Animal!
 
Cacete. Forcei a comida que restara na minha boca garganta abaixo, sem ouvir direito o restante da história – a muito contragosto. O meu estômago se embrulhava numa ansiedade repentina. Sem saber o que pensar ou, pior, o que sentir. Inferno.
 
_Nunca achei que fosse rolar qualquer coisa assim, mano... – ele continuou, empolgado, praticamente num monólogo – ...cê já imaginou, meu?
_Quê?
_A Mia dando a louca aí, beijando mina – riu – Cê imaginaria?
 
Engoli seco, doído. E respirei fundo.
 
_Não.
_Hum. Cê... cê acha que... – já não queria mais ouvir aquela merda toda, perdera todo o apetite e ele agora enrolava, puta que pariu, irritantemente – ...q-que ela toparia dormir comigo e outra mina?
 
Não, porra. Tá louco?!?
 
_Fer... não... – o desencorajei, na maior cara de pau, me desesperando sem poder demonstrar, cacete – ...nada, n-nada a ver, meu. Cê tá viajando, a... – me sentia traída por ela – ...a Mia não é dessas, e-ela...
_Como não?! Ela que começou! – não me deixou terminar e seguiu, um tanto exaltado – Quando vi já tava metendo a mão na...
_Sei – o cortei, grosseira, impaciente com os detalhes desnecessários.
_Olha... – ele sorriu – Acho que, se pá, rola, sim.
 
Mano, eu juro, eu juro por tudo que tem de mais sagrado na porra do universo, juro, Fernando, que se cê enfiar a Mia numa cama com outra garota, seu babaca, eu juro, pensei, já perdendo a cabeça, que eu te mato, uma, duas, vinte vezes, puta merda. Apenas a ideia já me fazia contorcer involuntariamente, cada vez mais amarga. Não conseguia controlar aquele ciúme, indesejado, meio fora de lugar dentro de mim. Argh.
 
_Sei lá. Cê acha que não mesmo?
_Meu, por que cê tá me perguntando isso?! – disse por impulso, já rancorosa, e revirei os olhos sem perceber – Sei lá, mano! Tal... t-talvez... – comecei a vasculhar a porra da minha cabeça atrás de algo para disfarçar, qualquer resposta que não fosse o “qual o nome da filha-da-puta dessa garota?” que era a única maldita coisa que me ocorria, latejando insuportavelmente na minha cabeça – ...eu, e-eu não sei, Fer. Ela tava bêbada, quis parar no meio, meu, não acho que, q-que ela sabia o que tava fazendo...
_Tá, mas...
_E outra, meu... – o interrompi, insistindo – ...a Mia é sua namorada, porra. É furada... – falei, fazendo um esforço desgraçado para apagar a merda daquela imagem da minha cabeça, a da, d-da Mia com, c-com outra garota, caralho – ...Fer, na boa, vai por mim. Isso vai dar maior rolo depois... se... se ela... – me enrolei para contra-argumentar, enquanto olhava o meu amigo ali, ô carma dos infernos, e rezava para que desistisse da ideia – ...se ela já ficou mal só de ter pegado a mina com você, imagina se... se cê for lá comer outra na frente dela, meu, a, a Mia vai surtar, cara... – suspirei, angustiada – ...sério, não faz isso. Vai ser puta bad pra vocês...
 
Pelo amor de Deus, pensei, sentindo o nervosismo tomar conta da minha respiração. Esquece isso.
 
_Hum... – ele pareceu refletir, não muito convencido – ...cê num falaria com ela, né?
_Eu?? Falar o quê?!
_Ah, mano... não sei... – riu – ...tenta sacar qual é que é, o que ela achou da parada. Dá uma sondada...
_Não... – me indignei – ...não, meu! Fora que nem sei quando vou trombar com a Mia de novo... Não rola!
 
Nem fodendo.
 
_Como assim?! – ele estranhou – Cês não vão amanhã?
_Amanhã?!
_É, pô! No lance lá do Gui!
 
Merda. Tinha me esquecido. Duas semanas antes, enchi o saco do Fernando para que comprasse ingressos para a nova peça do Gui – era um dos primeiros papeis principais que ele pegava e estava com medo de que ninguém fosse ver. Não era nada demais, uma peça pequena no circuito alternativo paulistano, mas eu azucrinei o Fer para que fosse comigo. E obviamente, porque eu era a rainha de me meter em situações como aquela, já sabendo que meu amigo levaria a Mia, eu convidei a Clara. É. Para não ir sozinha com os dois.
 
Ótimo. Vai ser a porra da festa do caqui, mas que inferno.

fevereiro 27, 2012

Não

Meu coração parou – puta merda.
 
E o meu estômago se embrulhou, na mesma hora. Ainda que eu não quisesse, argh, ainda que não quisesse dar a mínima. Senti o ar me faltar. Preciso sair daqui. Mas não conseguia tirar os olhos da Mia ali, em cima daquela escrota, beijo atrás de beijo, enquanto o estúpido do Fernando não fazia porra nenhuma, sentado ao lado delas e assistindo, provavelmente com tesão. Filho-da-puta. Estava chapado pra caralho.
 
Encarei as duas se atracando, em meio a toda aquela gente, em choque. Puta que pariu. A Mia subia em cima da, da d-desgraçada da garota, no sofá, bêbada, mordendo a sua boca, e – caralho. As mãos dela puxavam a cintura da, d-da Mia, agarrando a sua meia-arrastão, deslizando sobre seu sutiã e aproximando seu corpo do dela. E eu me sentia, m-me sentia, não sei. O meu coração começou a acelerar. E com muita dificuldade, forcei o ar goela abaixo, sem conseguir respirar direito.
 
Não, me senti desnorteada, isso não.
 
Tentei me controlar, com uma vontade desesperada de sair logo dali, daquela porra daquela festa, inferno, sem querer saber de mais nada. Sequer sabia por que me importava com a Mia ali – e ainda assim, importava. Importava, porra! A boca dela na de outra garota, os seus beijos, as suas mãos correndo pelo seu corpo, cacete. Importava! Puta merda, como importava. Contra todo o bom senso, é, talvez. Mas o fato é que importava.
 
Respirei fundo, merda. E senti o ciúme crescer em mim, incômodo, como um câncer. Me revirando as entranhas, de repente. Me invadindo os órgãos, contaminando tudo. A cada beijo dela com, c-com... argh. Não. Não, mano, me irritei, tacando a latinha ainda cheia para o lado. Que se foda. Que se foda todo mundo nessa merda. Saí trombando nas pessoas, num surto, tentando apagar aquela imagem da minha cabeça. Senti uma raiva como nunca antes, filha-da-mãe. Sua desgraçada.
 
Desci na rua e peguei o primeiro táxi que passou, abrindo a janela para fumar. No rádio, estava tocando baixinho “Dancing on my own” da Robyn, numa ironia cruel. Acendi um cigarro atrás do outro, nervosa – mas não conseguia pensar em outra coisa, conforme o carro atravessava o centro da cidade, angustiada com a ideia de a Mia estar lá na festa, se amassando com, c-com outra garota que não era eu. Como se, como se agora não fosse uma porra dum problema.
 
Vai tomar no cu.

fevereiro 26, 2012

Noutros cantos

Em algum momento, o meu “fico só um pouco” virou quatro da manhã. Pois é. E lá pelas tantas, já de saco cheio de reclamar do barulho, um dos vizinhos ameaçou chamar a polícia. A resposta óbvia para isso foi colocar “Mucha policía, poca diversión” para tocar e aumentar a porra do volume no máximo – claro. Completamente chapado, o Benatti gritava a letra de cima de uma mesa, pulando e girando a própria camiseta sobre a cabeça, encorajando os amigos a cantar junto. E todo mundo o fazia, aos berros.
 
Era tanta gente se espremendo naquele apartamento que o chão parecia tremer. Eu observava a cena, sentada no chão ao lado duns amigos, gargalhando. Cacete. É hoje que a gente vai preso. A cada minuto que se passava, a festa parecia mais lotada. E fora de controle. Me levantei e tentei passar pelo corredor abarrotado de gente, num esforço para chegar até o banheiro. Aí trombei sem querer com a Mia, mais uma vez. Parecia que todas as vezes que a via, o seu copo estava sempre mais cheio – nunca mais vazio.
 
Entrei no banheiro e uma das ex-namoradas do Benatti, a Cá, entrou logo atrás. Estava com um vestido preto curto e tinha toda a cabeça raspada, exceto as costeletas, que eram tingidas de laranja. Os dois ainda eram amigos. Fazia uns anos que tinham terminado e agora, segundo começou a tagarelar, ela já não saía mais com caras. “Foi uma decisão política mesmo”, argumentou, passando lápis no olho em frente ao espelho, enquanto eu mijava, “de me relacionar só com mulheres, sabe?”.
 
Não.
 
Mas dei descarga e sorri para ela, sapatona de nascença, achando certa graça no papo todo. Assim que abrimos a porta, no entanto, demos de cara com o Fer pelado e louco correndo com outros dois amigos nossos também sem roupa – e aí, milagrosamente, dei toda razão para a Cá. Certa ela. O corredor estava com um cheiro enjoado de loló, misturado com maconha. Fui até o último quarto, que ficava bem no fundo, e trombei com o Fer de novo. Agora vestindo a bermuda, meio de qualquer jeito. Assim que me viu, ele me abraçou, quase caindo de bêbado.
 
_C-cê viu a Mia? – perguntou, falando arrastado.
_Não sei. Foi pro lado da sala, acho...
 
Entrei no quarto e ele voltou pelo corredor. O cômodo inteiro estava numa marofa desgraçada. Tinha talvez dez, quinze pessoas ali. Fui caminhando no escuro, quase pisando em quem estava sentado no chão, até achar um outro amigo nosso, o Vini – que estava fumando uma ponta com a namorada na cama. Sentei do lado deles e pedi um trago, mas já estava quase queimando os dedos de tão pequena. Então comecei a bolar outro baseado. Como chama essa mina mesmo?, pensei, enquanto apertava a seda e olhava o Vini beijar a garota. Não conseguia lembrar o nome dela. Acendi, dando um trago demorado.  
 
E aí o quarto me engoliu.
 
Quando terminei, já com a cabeça tonta, a tal namorada estava sentada no colo do Vini, ao meu lado, nuns amassos que eu nem vi quando começaram. Não sabia se tinham passado 15 ou 40 minutos. Como diabos eu vou trabalhar amanhã? Puta que pariu, passei a mão no rosto e dei uma olhada para o lado, vendo o meu amigo agarrar as coxas da garota e subir as mãos por debaixo da sua saia – e foi quando me dei conta de que ela estava sem calcinha. Ah, não. Nem a pau. Não ia dar para ficar ali de plateia.
 
Me levantei e pisoteei uns três ou quatro até chegar na porta, já consideravelmente chapada. Aí me espremi entre as pessoas no corredor. Entrei brevemente na cozinha para pegar mais uma latinha de cerveja e logo voltei para a sala, onde o rádio gritava Exploited no último volume. Virei o primeiro gole e, quando olhei para frente, vi a Mia no sofá, aos beijos.
 
Com outra garota.

fevereiro 25, 2012

E o capeta

_Relaxa... – balancei a cabeça e aí olhei para o que quer que fosse que a Mia estava tomando, achando certa graça – ...mas cê num acha que devia pegar leve, não?
_Isso?
_É.
_Ah, meu... – riu – ...tá tranquilo.
_Sei. O que tem aí nesse copo, afinal?
_Num faço ideia.
_Jesus... – passei a mão no rosto e comecei a rir também – ...puta merda, Mia.
_Quê?!
_Nada...
_Hum. E você, não tá bebendo por quê? – achou graça – Agora só te vejo aí tomando água, cervejinha...
_Ah, sei lá. Eu tava fazendo muita merda. Aí prometi para a Marina que ia dar uma trégua...
_Hum, sei.
 
A Mia arqueou as sobrancelhas na menor menção à sua arqui-inimiga, e nós rimos. Como uma piada antiga. Era gostoso estar ali com ela, assim, sem drama. Me fazia sentir que havia alguma forma de deixar tudo aquilo para trás, algum dia – que o tempo ia passar e que algumas coisas inevitavelmente deixariam de ser importantes. Sei lá. A Mia deu mais um trago e me ofereceu, enquanto as caixas de som estouravam qualquer banda punk latino-americana. Peguei o cigarro da sua mão e levei à minha boca por um momento, numa tragada rápida, o devolvendo logo depois.
 
_Bom... – ela segurou o filtro entre os dedos e me olhou, se divertindo, numa referência mais a si mesma que a mim – ...pelo menos, cê não dá vexame por aí, né.
_Que vexame, meu? – a provoquei – Adoro que vomitem na minha mão.
_Argh... – riu, colocando a mão no rosto rapidamente – D-desculpa.
_Tranquila. Já tô acostumada... – achei graça – Já cuidei de tanto bêbado que, puta merda.
_Dei muito trabalho?
_Não. Só a hora que te coloquei no chuveiro que, mano, jurei que cê ia cair. Cê num tava conseguindo ficar em pé, meu. Foi foda. E assim, né, depois de trabalhar o dia inteiro, não é como se eu tivesse muito animada para tomar banho gelado... Mas acontece, né?
_Hum... – ela tragou mais uma vez, com um sorriso de canto de boca, encarando meus olhos – ...é.
_Quê?
_Nada. Só que... sei lá, e-essa parte eu queria lembrar mais.
_Ah, queria?! – ri – Foi bom pra você, então?
 
Falei brincando. Todavia, a Mia ergueu o queixo, me observando de volta. E soltou a fumaça para cima, enquanto a minha pergunta pairava no ar sobre nós duas, solta. Sem resposta. E eu juro – juro – que se não tivéssemos cercadas por tantos amigos do Fer naquela porra daquele inferninho, ela tinha vindo. Tinha colado o corpo no meu, tinha me beijado como se o tempo não tivesse passado um só dia. Cacete. Mas aí alguém passou entre nós, entrando na cozinha. E ela se controlou, por mero contexto. Observando a minha boca, com a sua entreaberta.
 
E depois de encarar o perigo de frente por um instante, nos seus olhos, abaixei os meus – encerrando o que quer que fosse aquilo antes que começasse.
 
_Acho que... – desconversei – ...v-vou achar o Benatti, ainda não falei com ele. Vamos ver, né... – forcei uma piadinha, me virando para ir para a sala – ...se ele já largou do saco do seu namorado.

fevereiro 24, 2012

O inferninho

Aquilo me fez, de certo, algum bem. Estar com a Clara me fazia bem. Assim que cheguei na loja em que trabalhava, ela deu uma desculpa para o chefe e vazou comigo. Aí fomos caminhando até o seu prédio. E chegando lá, como a sua roomie também trabalhava de sábado, transamos em todos os cômodos do apartamento. Um por um. Por mera diversão, só porque podíamos. Sem ninguém ali para nos julgar, exceto a gatinha preta da Clara, a Luna, que nos observou com certo desprezo do alto de uma prateleira da cozinha, enquanto nós duas ríamos e nos comíamos contra a pia. 

E eu não voltei para casa até terça de manhã. É.
 
Dei uma passada rápida antes do trabalho só para pegar uma troca de roupa, já que naquela noite ia ter festa na casa do Rafa Benatti. Ele fazia aniversário quatro dias depois de mim – o que, quando o Fer conseguia organizar festas forçadas pra a minha pessoa, significava uma semana inteira de bebedeira entre os nossos amigos. O próprio Fer fazia aniversário quase um mês depois da gente e, às vezes, a comemoração se estendia até lá. Tudo era desculpa para encher a cara e se ver. E vejam bem, o meu problema com aniversários é só com o meu próprio. O dos outros eu gostava.
 
Passei o dia inteiro animada, atazanando a Clara para que fosse comigo, sem muito sucesso. “Cansou de mim?”, brinquei, enviando SMS para ela no meio de uma gravação. “Ñ! Tonta!”, ela me respondeu em seguida, “hj ñ da, dsclp! :3”.
 
Argh.
 
Fiz hora extra até tarde naquela noite e quando finalmente cheguei no prédio do Benatti, numa ruazinha perto da praça Tiradentes, já era quase hora de eu voltar para casa. Isto é, caso quisesse dormir antes de ir trabalhar de novo. Fico só um pouco, pensei, é terça, né, meus amigos vão pegar leve. Mas assim que abri a porta e dei de cara com o Rafa lambendo as bolas do Fer, ali, de calça arriada no meio da sala, trêbados e rindo, enquanto eram cercados por uma multidão aos gritos – logo percebi que não. Tá. Vai ser esse tipo de festa.
 
O Rafa era um dos melhores amigos do Fernando, estava em todas. O conhecemos por acaso nos rolês punks do ABC que a gente ia na adolescência. Era um pivete magrelo com um moicano verde, normalmente desbotado. Estava fazendo 22. Morava numa república com três outros caras e ocasionais namoradas, num apartamento caindo aos pedaços em que eles pixaram todo tipo de merda e uns símbolos anarquistas pelas paredes. Era um inferninho.
 
Atravessei toda a marofa e a gritaria, já rindo daquele caos, e fui até a cozinha ver se descolava alguma coisa para beber. A situação era deplorável. Tinha tanta latinha e garrafa vazia espalhada pelo chão, pela mesa, pela pia que parecia que a festa tinha começado uns três dias antes. Caralho. O rádio tocava Discharge no último volume. Numa área de serviço apertada, achei o tanque transbordando de gelo – aí enfiei a mão e peguei uma cerveja dali.
 
Abri a latinha e me virei para voltar, desviando de duas ou três pessoas na cozinha, quando vi a Mia. Estava acendendo um cigarro no corredor, encostada na parede e, por algum motivo, só de sutiã preto. Com uns shorts rasgados e uma meia-arrastão que começava na metade da sua barriga e terminava nos seus coturnos surrados. Puta merda. Deu um primeiro trago, soprando a fumaça para o lado, depois subiu à boca um copo plástico com conteúdo duvidoso. E foi quando os seus olhos cruzaram comigo ali, saindo da porta da cozinha. Tirou o copo da boca e veio até onde eu estava, caminhando como se já tivesse tomado alguns daqueles.
 
_E aí...
_E aí... – ri.
 
A Mia encostou no batente oposto, sorrindo para mim. Era um tanto desconcertante vê-la tão bonita assim, tão confiante – fazia alguns meses que não a notava desse jeito. Qual o meu problema? Masoquismo, porra?! A encarei ali. E ela respirou fundo, aí abaixou os olhos por um milésimo de segundo, quase como se tentasse não se constranger.
 
_Obrigada... – me encarou logo em seguida, envergonhada, e sorriu – ...pelo outro dia.

fevereiro 23, 2012

Despertando, de novo

Minha cabeça doía. Meus olhos se forçavam a ficar fechados, mas a luz do sol invadia violentamente o cômodo todo. Desgraça. Não tinha dormido nem cinco horas e o meu corpo sentia o estrago em cada músculo. Ouvi uns passos arrastados no fim do corredor, depois atrás do sofá. E abri os olhos com certo custo, colocando o antebraço sobre a testa para tentar bloquear a luz. Argh. O Fer estava parado ali, destruído, com umas olheiras fundas e a pior cara de ressaca que já vi.
 
_Mano... – murmurou, confuso – ...cê viu se a Mia passou aí, mais cedo?
 
Devia estar indo atrás dela depois de acordar sozinho, desavisado, horas depois de toda a comoção.
 
_Ela tá no meu quarto, Fer.
_Tá? – esfregou os olhos, com uma aparência horrível.
_Tá. Eu encontrei ela caída no banheiro de madrugada, te chamei várias vezes, meu – resmunguei – Ela tava mal pra caralho – senti minha cabeça doer ainda mais e o olhei parado ali, em pé atrás do sofá – Tomar no cu você também, hein, cê não me ouviu?!?
_Não, meu. Não ouvi nada! Ela tá bem???
_Tá. Tava bêbada só – me sentei, desconfortável – Vomitou umas vezes, troquei a roupa dela e ela capotou na minha cama.
_Eita. Vou ver se ela t...
_Não... – o interrompi – ...deixa ela dormir, meu.
_A, a gente encheu a cara ontem, mano...
 
Ah, cê jura.
 
_...mas num sabia que, que tinha sido tão, sei lá... – ele passou a mão na nuca, preocupado – ...e-ela, ela parecia bem quando a gente foi dormir, mano, mas que... q-que merda! Caralho.
_Tá tudo bem, Fer.
_E cê dormiu aí, meu? – lamentou – Porra, muito zoado. Desculpa... Temos que ir almoçar em algum lugar da hora hoje pra compensar!
_Não, meu. Deixa.
_Mas a gente não vai comemorar seu aniversário, pô?
_Acho que vou lá pra Clara...
_Hum. Aí fica complicado, né...
_Como assim?
_De competir... – ele riu, fazendo graça – ...com essa comemoração sua aí.
_Cala a boca!
 
Me levantei e passei por cima do encosto do sofá, rindo, dando um tapa atrás da cabeça do Fer. E então nos separamos – ele foi para a cozinha e eu fui até o meu quarto. Entrei tentando não fazer barulho. A Mia continuava dormindo na cama, apagada. Caminhei até o armário e abri uma das gavetas cuidadosamente, pegando uma cueca e a vestindo em silêncio. Daí troquei de camiseta e coloquei uma bermuda. Depois alcancei um moletom na prateleira de cima.
 
Assim que o vesti, passei a mão pelo meu cabelo bagunçado e observei a Mia, por um instante. Era estranho vê-la ali. Na minha cama. Dormia afundada no meu travesseiro, sequer conseguia ver o seu rosto, e estava com a minha camiseta dos Stooges. Meti as mãos nos bolsos do moletom, a olhando dormir. Tinha as pernas tatuadas meio descobertas pelo lençol. Respirei fundo. Me sentindo estranha, por um segundo.
 
E aí saí.

fevereiro 21, 2012

[ CONTEÚDO EXCLUSIVO ]

AVISO: Os próximos 2 posts foram escrito exclusivamente para o livro do Fucking Mia e não estão disponíveis aqui. Os títulos são "Perdendo o sono" e "No sofá".
 
O livro do Fucking Mia está sendo preparado com muito carinho, em comemoração aos 10 anos de blog. O novo conteúdo está sendo escrito desde meados da pandemia e a ideia é lançar em breve! ♥
 
Se você quer ser avisada(o) sobre o lançamento do livro, deixe seu e-mail aqui:
 


fevereiro 20, 2012

2:40

“To indo dormir, bo... vms se ver amanha? qro te dar parabens, sua azeda :)”. A Clara era a única capaz de me fazer sorrir no estado de exaustão que eu me encontrava, em plena madrugada, largada no banco de trás de um táxi. O carro já se aproximava da Frei Caneca. Na tentativa de ultrapassar todos os bêbados que se aglomeravam em frente aos bares da Augusta, o motorista se via forçado a ir lentamente e o trajeto parecia não acabar nunca.
 
Assim que chegou no meu prédio, paguei o cara e arrastei os pés até o elevador. Subi até meu andar, meio escorada no espelho, lendo as mensagens de amigos e ligações que perdi durante o dia. Meus olhos já estavam embaçados de tanto cansaço. Sentia como se tivesse sido atropelada por um trem – e o pior é que não podia ir direto para a cama. Preciso comer, senão vou dobrar de fome, puta merda. Estava faminta. E como já eram quase três da manhã, as opções de delivery eram consideravelmente limitadas. Decidi checar na geladeira primeiro, rezando para ter qualquer merda que desse para esquentar ali.
 
Arroz velho e meio pedaço de pizza, argh.
 
Tirei os dois dali e os coloquei num prato, metendo-o no microondas por quarenta segundos. Que se dane, como isso mesmo. Não tinha condições de esperar uma entrega de sabe-se-lá onde, já estava caindo de sono. Então sentei na mesa da cozinha e comecei a mandar pra dentro a refeição mais deplorável da minha vida. Olhava para aquele arroz seco no prato, escorregando pelos dentes do garfo, sem nem um feijãozinho para ajudar e me dava pena de mim mesma. Lamentável.
 
Engoli tudo como deu. A coisa toda não demorou mais do que uns minutos, desde a porta até a última garfada. Larguei o prato sobre a pia e fui até o banheiro, caminhando pelo corredor com os olhos já quase se fechando. Assim que abri a porta, todavia, a luz já estava acesa. E foi quando vi a Mia num camisetão cinza, sentada de qualquer jeito contra a parede, meio caída no chão, desacordada.
 
_Mia? – a olhei ali, confusa – Mia!

fevereiro 19, 2012

24

Na sexta daquela semana, por outro lado, veio a má notícia: era o meu aniversário.
 
Argh. Chamem de inferno astral, de azar sazonal, digam que é azedume, me acusem de ser rabugenta, que seja – mas eu sempre me fodia nos meus aniversários. E esse ano não parecia que ia ser diferente. Trabalhei como uma condenada a semana toda numa série de ações publicitárias. E de todos os dias em que podia cair a maior gravação da porra da campanha toda, é claro que tinha que ser na sexta. Odeio aniversários.
 
Meu despertador tocou às 5 da manhã para que eu chegasse a tempo no set, que ficava pra lá de Interlagos. Amanheci tão sapatão quanto todos os outros dias da minha vida – com a diferença de que, agora, eu podia me dizer oficialmente viada. Aquela era a minha 24ª volta ao redor do Sol. E começou sem nem uma droga de luz, pisando para fora de casa enquanto ainda estava escuro para ir pegar a primeira de três conduções.
 
Inferno.
 
Meu azar em aniversários era tanto que, com o tempo, parei de comemorar. Não falava para ninguém, não fazia festa – sequer colocava nas redes sociais. Então, naquela manhã, quando finalmente cheguei no estúdio onde seria a gravação, quase duas horas de trânsito depois, tratei de ficar bem quieta para que nenhum colega meu descobrisse. Deus me livre ser vítima duma festinha de firma, pensei, toda amarga, enquanto colava o cronograma na parede do set.
 
As únicas pessoas que sabiam da infeliz data eram as já que me conheciam há tempo suficiente – como a Marina, com quem eu tinha um acordo de “comemorar” fora de época. Ainda assim, ela foi a primeira a me enviar um SMS de manhã, me desejando um “feliz não-aniversário”. Ha-ha, engraçadinha. Passei o resto do dia de um lado para o outro, resolvendo pepino atrás de pepino. Absolutamente tudo o que podia dar de errado naquela merda de gravação, deu – é óbvio. Desde ator atrasado a objeto de cena faltando e iluminação quebrada bem no meio da tarde.
 
Para piorar, o buffet esqueceu de mandar uma porra de opção vegetariana, apesar dos meus insistentes pedidos duas semanas antes, então fui obrigada a sobreviver o dia todo a base de amendoim e de cigarro. Vai tomar no cu. Lá pelas 6 da tarde, numa das minhas pausas para fumar, senti o meu celular vibrando. Era uma mensagem da Clara, escrita inteira em caps lock“ENTÃO C Ñ IA ME CONTAR Q EH SEU NIVER, EH ASSIM??! PORRA KKKK”. Era só o que me faltava. Respirei fundo e meti o telefone de volta no bolso, frustrada, desejando que aquele dia acabasse logo. Mas espera, estranhei, como diabos ela sabe?
 
Peguei o celular de novo e disquei, já furiosa:
 
_PODE PARAR! – ordenei.
_Parar o quê, mano?!
_Fernando, eu não quero festa!
_Mas do que cê tá falando? – ele riu do outro lado da linha, nitidamente culpado – Que festa, meu? Eu, hein... Hoje é algum dia especial por acaso?
_PODE PARAR! NEM VEM!
 
Todo ano, mano. Todo maldito ano, eu pedia a mesma coisa. E todo ano, um atrás do outro, o Fer me ignorava e organizava uma noite de bebedeira com os nossos amigos. Cacete. Mais cedo naquela semana praticamente implorei para que ele não fizesse nada e expliquei que estaria ocupada. Mas o fato de a Clara ter sido informada no meio da tarde sobre a data só poderia ter o dedinho fofoqueiro do Fernando envolvido. Ah, desgraçado.
 
_Fer, é sério, eu vou trabalhar até tarde, mano – resmunguei – Já são seis e a gente num tá nem perto de acabar aqui...
_Deixa de ser cuzona. Vem logo pra casa e a gente vai tomar umas, vai.
_Não posso! Tô numa puta gravação importante, meu. Não dá, real!
_Foda-se. A gente espera cê sair...
_Fer, não dá. Não sei nem que horas vou chegar em casa, porra... Provavelmente só de madrugada!
_Velho, é seu aniversário! – ele argumentou, indignado – Fala pra sua chefe aí que é uma emergência e vem tomar umas com a gente, meu. Vai! Comprei um whisky pro cê... Pode ser só nós, a Mia já tá vindo aí...
 
Ah, pronto. Agora é que eu não quero mesmo.
 
_Não vai rolar, Fer. Desculpa. Eu nem tô bebendo direito, meu... – o desencorajei – Deixa quieto, sai só vocês. Hoje não rola mesmo...
 
Contrariado e meio brincando, entre um xingo e outro, o Fer me desejou feliz aniversário e então desligou. Ufa.  

fevereiro 18, 2012

E outras verdades

_E naquele dia, não sei... a gente discutiu, feio. Acho que... sei lá, na hora, todos os sentimentos meio que voltaram, tudo de uma vez, sabe? E não é como se a gente... digo, a gente não tá juntas, nem nada. Foi completamente do nada.
_Mas o seu amigo sabe? – me perguntou, roubando o cigarro da minha mão.
_Não. Não sabe de nada. Ninguém sabe.
 
Por favor, engoli seco, a observando tragar, não me expulsa da cama. Não me mandar sair e não voltar mais. Por favor. Era estranho contar aquilo assim para ela, tão abertamente. Olhava para a Clara ali, com certo receio, como se a qualquer momento ela pudesse se dar conta do que eu acabara de lhe dizer e surtar.
 
_Vocês... – ela soprou a fumaça e prosseguiu, tranquila – ...vocês tavam juntas quando a gente saía?
_Não. A gente se beijou, uma vez. Quer dizer... E-eu que beijei ela, uma vez, sem muito sucesso. Mas eu já gostava dela. E era pesado para mim, tudo aquilo, naquela época. Por isso nunca te disse nada, nunca disse pra ninguém. Só começamos o que quer que fosse depois que eu já não tava mais com você, nos meses seguintes...
_Hum. E você acha q-que... que ela ainda gosta de você?
_Não – peguei o cigarro de volta – Nunca achei, só que agora... e-eu... – hesitei – ...eu não tenho tanta certeza.
 
A Clara abaixou os olhos, por uns segundos. E eu torci para que não absorvesse muito daquilo, do que eu estava dizendo. Não ia me perdoar se fodesse as coisas com ela por um lance com a Mia que sequer existia mais. Diz alguma coisa, a encarei, angustiada, qualquer coisa. Ela não disse nada, todavia.
 
_Mas, Bi... – tentei remediar o estrago – ...agora isso é uma grande besteira, meu. Não tem nada entre a gente.
_Hum... Não sei... É? – me olhou ali, com o rosto ainda apoiado em sua barriga – ...e eu? O que eu era?
_Como assim?
_Cê disse que não... n-não falou o que sentia por mim, na época. Bom, sei lá... – questionou – ...fala agora, ué. Eu era o quê pra você?
_Você... – sorri – ...você era real. Eu queria ficar com você, sabe? No dia que a gente se conheceu, eu lembro de te beijar naquele canto escuro do Inferno e, meu, não sei, eu não queria que acabasse. Era estranho. Mas foi assim desde sempre. Não queria. Não queria que as conversas acabassem, que a noite acabasse, que o sexo acabasse, que os beijos acabassem. Queria continuar e continuar. Acho que teria virado seis dias inteiros acordada com você, se pudesse. A gente sempre se deu tão bem, meu. Que desde o começo, porra, eu queria tá com você. Ainda quero. Você, v-você era descomplicada. Era boa notícia, sabe, uma vez na minha vida...
_Isso é... – ela riu – ...até o Vegas.
_É... – ri também – ...até o Vegas.
 
E a olhei, erguendo o corpo e subindo até ela, num beijo demorado. Numa vontade sincera, minha e dela, de que aquela madrugada também não acabasse.
 
_Mas quem sabe, né? – sussurrei – Talvez cê seja boa notícia de novo...

fevereiro 17, 2012

Sincericídio

_Hum... – murmurei – …para.
_Hum...
_Paaara... – reclamei mais uma vez, rindo – ...tá me arrepiando, meu.
_Hum, m-mas... – a Clara retrucou, com o rosto afundado na curva entre o meu pescoço e ombro, deslizando a ponta dos dedos pela minha coluna – ...é gostoso.
 
Dane-se. Me fazia arrepiar inteira – e não de um jeito bom. Reajeitei o corpo a uns cinco centímetros mais para lá no colchão, a fim de cessar a sessão-tortura. A gente estava naquele estado preguiçoso, meio aglomeradas uma na outra e submersas na cama, depois de quase cinco ou seis horas de sacanagem. Era tanta endorfina que nossos corpos estavam moles. Com os lençóis bagunçados ao nosso redor, ambas numa preguiça sem fim e os olhos uma na outra.
 
_Posso te perguntar uma coisa? – a Clara murmurou, acomodando a cabeça no meu braço.
_Pode.
_Por que... – hesitou – ...v-você chorou no outro dia?
_Que dia?
_Na sua casa, aquele dia que cê saiu pra levar o lixo...
 
Ah, esse dia.
 
Desconfortavelmente, a minha mente retornou à escada do meu prédio e à discussão com a Mia. E o meu primeiro impulso foi não responder. Ela sabe, pensei. Talvez não soubesse quem, mas sabia que havia uma garota – porque ninguém chora assim, tão do nada, a não ser que tenha um motivo. E qualquer outro, que não uma garota, eu não teria evitado com tanta persistência. Cacete. Não queria trazer a Mia para dentro daquelas quatro paredes. Estava agradável ali sem ela.
 
O clima andava estranho entre nós, digo, eu e a Mia – ela melancólica, eu a ignorando. Cruzei poucas vezes com ela naquelas semanas. Sentia que algo estava prestes a acontecer e eu não sabia bem o quê. Olhei para o lado e a Clara continuava ali, atenta, à espera de uma resposta minha. Argh. Suspirei. E ergui o corpo para alcançar o meu maço, largado ao lado da cama. A Clara poderia ter insistido, mas não o fez. Não perguntou mais nada. E eu acendi um dos cigarros, me levantando para fumar na janela.
 
Me sentia mal de arrastá-la assim para os meus dramas. Mas não tinha certeza de como lhe contar aquilo. Traguei mais uma vez, olhando pela janela. Em todo edifício ao lado, apenas uma luz estava acesa. Numa sala de estar branca, alguém assistia TV. Já era madrugada em São Paulo e a cidade inteira dormia. Não sabia bem que horas eram – meio perdida no vórtex daquele quarto bagunçado que me roubava da realidade. Sabia, porém, que em breve teria de ir trabalhar. E a Clara também. Íamos dormir umas duas horas, com sorte.
 
Respirei fundo e me virei para ela, deitada ali na cama, ainda me observando por de trás das suas pernas descobertas.
 
_Desculpa eu ser... – passei a mão no rosto e dei um meio sorriso, envergonhada – ...t-tão fodida a-assim.
_Não, meu... – ela soou arrependida – ...tá tudo bem, Bo. Eu é que tô sendo cretina, te fazendo pergunta a essa hora, me metendo...
_Olha... – voltei para a cama e deitei ao seu lado, com o cigarro aceso na mão – ...acho bem mais cretino esse tipo de comentário aí, sem pé nem cabeça... – ri e apoiei o queixo na sua barriga, a olhando com carinho – ...cê num fez nada de errado, Bi. Pode me perguntar o que cê quiser, meu.
_Hum... – ela insistiu, rindo – ...fui um pouquinho cretina, sim.
_Não foi, não... – sussurrei para ela.
_Nem um tiquinho?!
_Bom, um tiquinho cê sempre vai ser... – fiz graça, tragando rapidamente – ...mas não por isso. Cê sabe.
 
Subiu os pés no colchão e ergueu-se um pouco, apoiada nos cotovelos, me encarando, indignada.
 
_Ah, é assim, então? – me empurrou de leve pelo ombro – Fala sério, foi tão imperdoável? Vou ficar pagando pra sempre?!
_Óbvio – ri.
 
Ela balançou a cabeça e deitou mais uma vez para trás no colchão, mandando eu ir me foder. E eu sorri, achando graça. Admirava a Clara por ser quem era – crua e nunca óbvia. Me sentia mal por não ser sincera com ela, por não estar “pagando” pela minha parte naquela história. Na nossa história. Os meus olhos se perderam no ar por alguns instantes, reflexivos. E então, se voltaram para ela.
 
_N-não... – emendei, respirando fundo, num impulso sincero – ...a, a verdade é que não foi imperdoável. Não devia nem ter sido tão dramático assim, eu é que... q-que levei mal o lance todo. Não sei... – continuei, falando quase que para mim mesma – ...fiquei com o ego ferido, sabe? Sei lá, eu, eu gostava mesmo de você e acho que fui pega de surpresa com o lance todo do, do Vegas... – a Clara me observava, com seus olhos quíchua, castanhos, bonitos, deslizando as mãos no meu cabelo – ...a verdade é que eu... e-eu também não tava sendo completamente transparente, não sei. Foi tudo muito confuso.
_Como assim?
_Sei lá, meu. Eu devia ter dito que me importava, devia ter falado o que você era para mim, o que eu sentia por você e... – suspirei – ...e o que sentia por outra pessoa. Mas e-eu não disse.
 
Os seus olhos estranharam, surpresos. E eu respirei fundo. Tá, agora vai...
 
_Sabe, quando... – fechei os olhos por um instante e os reabri, hesitante – ...v-você me perguntou por que eu tava chorando aquele dia, lá na minha casa...
_Hum...
_A real é que eu fui... – confessei – ...por muito tempo, apaixonada pela Mia.

fevereiro 11, 2012

Ella

Trocou o CD que tocava no rádio, caminhando de volta para a cama sem roupa, desinibida. Cómo decir que me parte en mil…, a cantora sussurrou e a Clara se deitou diante de mim no colchão, com os braços largados sobre a cabeça, ...las esquinitas de mis huesos. Os contornos e desníveis em sua cintura, sua barriga, suas pernas enlaçadas formavam sombras sutis no decorrer da sua pele. E a desenhavam no escuro daquele quarto pequeno e constantemente bagunçado nos arredores da Sumaré.  
 
As horas passavam despercebidas ali. Suas paredes eram repletas de fotos e recortes e tachinhas e fitas e uns panos improvisados, pendurados como decoração. Numa prateleira, no canto, tinha todo tipo de tralha e umas pedras que a Clara pegou de diferentes lugares em suas viagens por aí. O frio incomodava toda vez que eu me mexia para fora dos lençóis sobrepostos, meio amassados, e parecia me impedir de sair dali. Quatro paredes e meio arapuca, entende?
 
Então eu ficava.
 
E as horas passavam. Enquanto nós dançávamos nuas, fumávamos baseados e conversávamos, à toa. Eu procurava por ela, minuto atrás de minuto, na ponta dos meus dedos, os deslizando pelo seu corpo. Nunca, nunca assim. Sexo nunca fora assim. Tão fácil, tão instintivo. O rádio continuou – …que han caído los esquemas de mi vida. E era um perigo que fôssemos eu e ela ali, naquela cama, em nossas ausências compulsivas de limite. Mas nos arriscávamos com gosto, nos insinuando, brincando de chefe uma com a outra. E eu, que interpretava a mim mesma, ia junto com ela sem resistência, encantada, a observando assumir as mais lindas formas a minha frente.
 
…ahora que todo era perfecto.
 
A música me lembrava o seu jeito, os seus caminhos. Nunca tinha escutado antes. A Clara a cantarolava para si mesma, movendo os lábios em silêncio, esparramada sobre colchão. E eu tinha vontade de estar perto dela, de novo – numa saudade dessas que não dão trégua, de encostar a minha pele na sua. Deslizei o pé até onde seus braços estavam, tocando-a de relance. E ela, afundada nos lençóis, me olhou por detrás deles. Eu sorri. E a Clara entendeu – ela costumava dizer que eu tinha cara de pilantra. Mas num é pilantragem, garota, é vontade de você.
 
Virou o corpo e se levantou, num movimento fluido. Me olhou de volta, enquanto a música continuava ao fundo. “Me cuesta abrir los ojos...”, ela pronunciou então, acompanhando a letra, e sorriu. Quem tem cara de pilantra agora?, a observei a certa distância, sentada contra a cabeceira da cama. Escorregou as mãos nos lençóis e foi se aproximando, engatinhando pelo colchão na minha direção. Sem pressa, lentamente. Enquanto as palavras saíam da sua boca – “y lo hago poco a poco, no sea que aún te encuentre cerca”. E eu sorri, admirada pela forma como as dizia, ainda que não entendesse tudo, sem conseguir tirar os olhos dela.
 
Me desconcertava vê-la cantar assim, para mim, com os fios de cabelo deslizando pelos seus braços, sem roupa alguma. Cacete. Sentia o meio das minhas pernas molhar só pelos centímetros de antecipação entre nós. O quarto era iluminado somente por um abajur, largado ao lado da cama e coberto de qualquer jeito por um lenço vermelho. Me guardo tu recuerdo...”, ela continuou, “...como el mejor secreto”. Meio fazendo graça, meio me fodendo a cabeça. Sentia uma estranheza presa dentro de mim. Como se, de repente, o errado me parecesse certo demais.
 
E a Clara veio. Como vinha vindo. Subiu no meu colo e escorregou as pernas nas minhas – com uma de cada lado e as minhas mãos invariavelmente nela, a segurando, como se fosse parte da nossa natureza. Esbarrou a lateral do rosto no meu, de leve, quase que dançando ali comigo. Com os meus sentidos, as minhas intenções. Pouco a pouco. Me provocando em cada movimento do seu quadril. Até dizer baixinho no meu ouvido: “...que dulce fue tenerte dentro”.
 
Estremeci.
 
Puta merda. Senti um calor tomar o meu corpo todo e respirei fundo, fechando os olhos. Num tesão na sua voz, na maneira que pronunciava aquelas palavras. Na sua língua enrolando pelas letras. Tudo. Tudo nela. Tudo naquela porra de garota ia me inebriando. Filha-da-mãe. A sua boca se demorou pela minha orelha, até a pontinha, e foi indo, vindo pelo meu queixo. E descendo. Mais. Sentia a sua pele quente contra a minha. Os seus dedos agarravam as laterais da minha cueca e as escorregavam pelas minhas pernas.
 
En esta oscuridad...”, cantou, indecente. E foi me tirando tudo, a roupa, o fôlego, o sério, aos poucos. A cada segundo mais do que o anterior. Sua boca percorria a minha barriga, me lambendo, sussurrando para cada poro – “...para prestarme calma”. Suspirei. E me soltei. Ela foi. Foi. Descendo. Me arrancando da porra da realidade. Com os olhos fechados, mas a cabeça e cada sentido abertos. El tiempo todo calma. Senti a sua língua, os seus dedos em mim. La tempestad y la calma. Continuou. Cada vez mais. La tempestad y la calma. Aumentando a intensidade e me fazendo interromper o silêncio da madrugada.
 
(...)
 
Y mojará..., perdi o ar por um segundo, la flor que cresce en mi.

fevereiro 09, 2012

Meia hora depois

Mano”, digitei pra Clara assim que pisei na calçada, já do lado de fora da produtora, “qse fiz uma cagada mto grande agora!!”. Segurava o celular desajeitadamente, enquanto acendia um cigarro com a outra mão. “Ai... diz q ce ñ deu em cima da sua chefe pfvr kkkk”, ela respondeu. Tirei o cigarro da boca, depois de uma tragada curta, caminhando pela calçada da Brigadeiro – “ñ foi minha culpa, meu, ela deu mta brecha!!”. “Como assim??”. “Ficou falando q ja tinha pegado mina, perguntou do q eu gostava”, equilibrei o filtro entre os lábios, me divertindo com a situação, “pra q ela foi falar isso pra mim, velho?? Pra mim?? Qse dez da noite, a gnt sozinha la... pqp!”.
 
Parei na esquina com a Santos, esperando o farol fechar para atravessar. Aí não me aguentei e liguei para a Clara:
 
_Meu... – ri, assim que ela atendeu.
_Então quer dizer que foi intensa essa hora extra aí? – ela fez graça.
_Nossa... Cê não tem noção, tô passando mal aqui!
_É, né – ironizou, do outro lado da linha – Muito calor por aí?
_Puta merda, Bi... – esfreguei a mão na cara – ...na boa.
 
Nós rimos. E ah, é, quase esqueci: em algum momento da semana anterior, eu e a Clara começamos a nos chamar por apelidos, numa brincadeira tonta que fazia referência a uma das primeiras vezes que saímos. O “Bi” vinha, de alguma forma, de “Björk” e o “Bo”, que ela passou a usar para mim, era uma versão encurtada de “Bowie” – ambos ressurgidos duma vez que disputamos quem ia usar a camiseta de qual artista, em frente ao meu armário.
 
É. Duas bobas. Mas, por algum motivo, tudo o que vinha da Clara não me assustava –simplesmente não incomodava. Não sei. Talvez porque o nosso comportamento e principalmente a nossa falta de vergonha na cara fossem parecidos demais. Sentia que podia ser eu mesma do lado dela.
 
_Hum... – a Clara riu, mais uma vez, no telefone – E cê não quer passar aqui, não?! Dar uma acalmada esse fogo aí?
_É, então... – atravessei a rua, já indo em direção ao metrô – ...te liguei pra isso.
 
 

fevereiro 08, 2012

Certa flexibilidade

As semanas se passaram. E àquela altura, eu já estava trabalhando na produtora há quase um mês. Mais do que jamais tinha trabalhado na vida – o que quase me fazia sentir saudades do meu emprego anterior. Quase. Não conseguia decidir se era pior morrer de tanto tédio num cargo fácil ou me acabar em um que eu realmente gostava.
 
As horas extras eram quase diárias. E foi numa dessas que eu me vi, às nove e quarenta da noite, sozinha com a minha chefe. Trancafiadas numa sala terminando, no caso dela, uma pilha de orçamentos para autorizar e, no meu, um checklist infindável para a gravação da manhã seguinte. Não trocávamos muitas palavras além do necessário. Mas o meu celular vibrava o tempo todo sobre a mesa. Aí eu o checava, fazendo uma expressão séria, como se fosse de trabalho – enquanto lia as mensagens da Clara secretamente, perguntando o que a minha chefe estava usando.
 
É.
 
Nos divertíamos com a crush platônica que eu mantinha por aquela mulher foda, que nunca em um milhão de anos me daria bola, sentada a menos de dois metros de mim. Ali, no seu terninho descolado, com cara de poucas ideias e gata, pra caralho. Eu a olhava de relance. Então descrevia o que estava fazendo por SMS e inventava cenários em que eu a interrompia, em que chegava nela. Aí a Clara me sugeria outras estratégias, me encantando naquela sem vergonhice compartilhada. “Vou ser demitida, mano”, a respondi, segurando o riso, “por justa causa”. E o meu celular vibrou de novo, assim que o coloquei sobre a mesa – “mas vai valer a pena? eh isso q importa rss”.  
 
_Então... – a minha chefe comentou, de repente, e me observou de trás de alguns papéis empilhados – ...qual é a sua, afinal?
_Hum?! – ergui a cabeça, sem ter escutado direito.
_“Qual é a sua”... – repetiu calmamente e ergueu os olhos por um instante, me encarando mais uma vez, antes de voltar a rubricar o documento que tinha em mãos.
_A “minha”?
_É... – riu, focada no papel que lia, com uns anéis prateados nos dedos – ...tá rolando uma aposta entre todo mundo na produtora.
_Uma aposta?!
_Se você gosta de meninos ou meninas...
 
Comecei a rir na mesma hora, na minha, e ela me observou achar graça. Hum. Chuta. Me ajeitei na cadeira – onde estava largada trabalhando – e passei um dos braços por cima do encosto, a encarando de volta. Ainda que talvez não devesse. Notei umas manchas sutis no seu braço, quase como umas sardas, dessas que vêm com anos de sol.
 
_Não se preocupa... – ela continuou, enquanto assinava a parte inferior de uma das páginas – ...esse tipo de comentário é comum por aqui.
_Não tô preocupada, só... – sorri e minha chefe subiu os olhos novamente na minha direção – ...curiosa. Para saber em qual dos dois você apostou.
_Eu?!
 
Ela riu e eu a arqueei as sobrancelhas, como se a desafiasse a me dizer. Sentia-me como se dividisse um cômodo com a Catherine Keener em “Your Friends & Neighbors”, do Neil LaBute. Que era como metade das minhas fantasias começavam, de toda forma. Cacete. Aquela mulher era maravilhosa.
 
_Bom... – ela fez pouco caso – ...eu acho que você gosta das meninas.
 
Deslizei um pouco na cadeira, a observando com naturalidade.
 
_E você? – achei graça e comecei a brincar com um isqueiro que estava sobre a mesa, passando-o entre os meus dedos, sem deixar de prestar atenção nela – Gosta?
_De meninas?
_É.
_Hum. Sou casada com o meu sócio... – ela me respondeu, sem parecer se incomodar com a pergunta – ...há quase quatro anos. Mas fui “heteroflexível” por uns anos, por assim dizer, quando era um pouco mais velha que você... – brincou – ...acho mulheres muito complicadas, não é pra mim.
_Olha... – a encarei na pilantragem – ...se cê quiser, dá pra descomplicar facinho, viu.
 
Não consegui evitar um meio sorriso impensado, imprestável. Numa confiança que transparecia sutilmente nos meus gestos. Ela riu.
 
_Você parece dar trabalho às suas meninas... – comentou e arqueou as sobrancelhas, brevemente, voltando os olhos aos documentos que segurava em mãos.
_Eu? – achei graça – Não.
 
Nem um pouco...

fevereiro 06, 2012

[ 500.000 ]


Há dois anos, começava o que se tornaria uma verdadeira saga de garotas e mais garotas e esquinas sujas e camas alheias e noites bêbadas e sexo e mais sexo e mais e mais sexo e muito drama e brigas intermináveis e caos e pensamentos imprestáveis e arrependimentos e amor, muito amor, do tipo mais gay e inevitável. Em cada canto de São Paulo, a realidade (a minha e a de muita gente) virava ficção. Atualmente, o blog Fucking Mia pode ser considerado o maior do gênero lésbico no Brasil e chegou à incrível marca de MEIO MILHÃO DE ACESSOS!

Graças às leitoras e leitores mais incríveis, lindos e fiéis. Vocês são sensacionais, meu. Demais mesmo!


OBRIGADA POR TUDO!


Um beijo,
Mel M.


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