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agosto 30, 2012

Inquietude

Mas aí perdi o foco. Foi estranho. Digo, não estranho, estranho – eu continuei, só a minha cabeça que parecia fora de lugar. Desconectada dos meus movimentos. O que não costumava acontecer com a Clara. Com a gente era sempre muito intenso, muito simbiótico. Talvez a ligação me tivesse tirado o foco, não sei, toda a história com o Fer e o rolo do apê. Argh, não. O que tá acontecendo?  
 
Sentia como se uma parte da minha mente não conseguisse focar, perturbada por uns ruídos de fundo, indistinguíveis em si, enquanto os meus olhos admiravam a Clara na minha frente. Ela se movia sobre mim, as grossas coxas entrepassadas nas minhas – maravilhosa. Se curvava para trás, montada no meu colo, num vai-e-vém gostoso, e o meu inconsciente lá, inquieto. Como se tivesse algo sempre ali, na visão periférica.
 
Fiz um movimento para cima, levantando as costas do chão e as arqueando na sua direção, com vontade de fazer aquilo dar certo. Quando a Mia surgiu rapidamente na minha cabeça. Do nada. Cerrei os olhos, conforme os meus dedos seguravam as pernas da Clara, com força. E ela me beijou. Senti a sua menina molhar a minha – deslizando e me fazendo subir um calor por dentro. Todavia, algo em mim não se desligava. Puxei-a mais para perto, num esbarrar dos nossos corpos suados. Ela já tinha gozado duas vezes e eu não cheguei nem perto.
 
Inferno.
 
Agora, me esforçava. Mas, ainda assim, parte de mim não se desconectava do que quer que fosse que me perturbava. Desci a boca pelo seu corpo, a mordendo. A segurava colada contra mim. E como se me houvessem pedido, dez segundos antes, para não pensar na porra do elefante rosa – tudo o que me vinha à cabeça agora, de repente, era o próprio. Isto é, a Mia. E os seus olhos. A textura da sua pele. O seu cheiro. A forma como se movia quando estava sozinha comigo. Sua boca, as malditas palavras que saíam dela. “As melhores”, é. Puta merda. Dei um suspiro carregado e cerrei mais uma vez os olhos, franzindo as sobrancelhas, tentando me concentrar. Como odiava perder o foco nessas horas – mas, não, não dá.

_Cara, me dá só um segundo... – pedi, interrompendo tudo, e abaixei a cabeça, frustrada – ...eu tô, t-tô fora de mim, não sei.

Deslizei para o lado, no chão, me afastando da Clara.

_Aconteceu alguma coisa?!
_Não... e-eu só... sei lá. Tô, tô em outro lugar.

Em algum mês do ano passado, provavelmente.

_Mas... n-não foi nada que... – a Clara estranhou – ...que eu fiz de errado, foi?
_Não, meu. Não mesmo! – me apressei em garantir, me sentindo mal por aquilo – Cê não fez nada, linda! Pelo contrário, cê fez tudo certo... – sorri, a beijando na mesma hora – ...eu que tô fora de órbita, sei lá. Mas já, já passa...

“Tá bem”, ela murmurou, se deitando no chão do apartamento. Aí se espreguiçou, nua, esticando as mãos sobre a cabeça. E eu a olhei ali, a meio metro de distância de mim, sem conseguir entender o que se passava comigo. Esfreguei a mão no rosto, tentando me desfazer daquela confusão, e alcancei um cigarro no maço que estava largado ao nosso lado, o acendendo. Que merda eu tenho hoje?, me frustrei.

agosto 08, 2012

2 pais e 1 amigo gay

No dia seguinte, o meu pai me ligou. No exato momento em que eu me desdobrava, descoordenadamente, entre enviar um SMS para a Clara e a desajeitada tarefa de segurar a mochila para frente ao sair pela catraca do metrô. Coloquei o celular entre o ombro e o ouvido, apoiando-o enquanto usava as mãos para desvirar mochila e vestir as alças novamente nas costas.

_Como tá indo a mudanç... – ele interrompeu a fala, me ouvindo em meio ao caos – ...onde você tá?
_Saindo do metrô. Só um segundo.

Subi as escadas num impulso e acendi um cigarro já do lado de fora, na frente da estação Sumaré. Com o filtro na boca, tornei a colocar o telefone no ouvido e o incentivei a continuar – “fala”. A saída do metrô estava movimentada e a noite agradável.

_Olha, a sua mãe tá preocupada com quem você vai enfiar nesse apartamento para morar com você. Ela disse qu...
_Claro que ela tá, meu. Ela odeia a Augusta!
_É, mas talvez seja uma oportunidade para você repensar isso, minha filha. Achar alguma coisa mais bem localizada, fora da muvuca, alugar uma kitnet.
_Não quero, já falei para vocês. Eu gosto de morar lá – argumentei, conforme olhava para o lado antes de atravessar a rua – E outra, o Fernando vai voltar. Eu só preciso de um tempo, vai ser suave... é só por uns meses até ele conseguir um emprego. Depois do Ano Novo, capaz de aparecer mais coisa...
_Ainda assim, não sei se é boa ideia você deixar qualquer um ir morar assim com você. Depois a pessoa é estranha, mexe nas suas coisas, pode levar gente perigosa pro apartamento. Você sabe como essas coisas são... – ele resmungou, contrariado, e eu ouvi a minha mãe gritar algo ao fundo – ...a sua mãe quer falar, peraí.

Lá vem, suspirei e revirei os olhos, já me aproximando do prédio da Clara. Um baixinho de poucos andares e com varandas minúsculas, a dois quarteirões dali. Quanto antes chegasse, antes me livraria dos palpites da minha mãe.

_Você ligou para a sua prima, como eu te pedi?
_Não.
_E por que não?!
_Mãe, pela milésima vez, eu não vou morar com a Nádia. Ela fica na porra do Morumbi! Que merda eu vou fazer lá, me diz?! – me estressei com a insistência; fazia dias que ela me enchia com aquilo – Fora que, né, a gente não tem nada a ver uma com a outra.
_Como não? Vocês duas eram tão grudadas...
_Quando eu tinha 8 anos, né... – revirei os olhos, tentando entender o que a minha mãe enxergava em comum entre a filha caminhão e a sobrinha hétera-top que fazia aula de Zumba – Não, não dá, mãe. Imagina agora eu aparecendo lá no flat da menina com meus amigos viados, levando a Clara para dormir lá, que maravilha ia ser.
_Você também não precisa agir desse jeito.
_Hum, fala... – me incomodei com o comentário – ...de que jeito?!
_Não foi o que eu quis dizer e você sabe.
_Tá, tá. Olha, mãe, preciso desligar... – a cortei – ...tô chegando no prédio da Clá já, depois a gente se fala!

Desliguei às pressas, antes mesmo de terminar o primeiro quarteirão. Aí desci os metros que faltavam e toquei a campainha ao chegar, terminando o cigarro o mais rápido que deu e subindo depois pelas escadas. Tão logo a Clara abriu a porta, arranquei a camiseta que eu estava usando e a larguei no chão. Ela sorriu, me beijando, enquanto desabotoava a minha calça e descia o meu zíper – o seu SMS, uns quarenta minutos antes, tinha sido bastante específico quanto ao que ela queria fazer naquela noite. É. E ia acontecer ali mesmo, no meio da sala.
 
Sorri, imprestável, com uma saudade desgraçada dela. E em menos de dois minutos, o meu rosto já estava metido entre as suas pernas, deitadas no chão, com a sua calcinha amassada na minha mão direita e o vestido erguido até a cintura pela esquerda. Mas aí o meu telefone começou a tocar de novo. Inferno. Depois parou. E então começou mais uma vez. “Você quer atender?”. “Não”, murmurei, tirando a boca dela por um segundo, “são meus pais, deixa quieto”. Voltei ao que estava fazendo. E senti o seu corpo inclinar, logo em seguida, droga.
 
_Hum. Aqui tá dizendo ‘Gui’... – a Clara riu, com o celular já em mãos.
 
Por que não deixou no chão, porra?
 
Me sentei no vão entre as suas pernas, inconformada, a olhando de volta. E ela me esticou o telefone, o qual atendi emburrada. “Temos tempo”, a Clara gesticulou com a boca em silêncio, e eu a beijei com vontade – conforme o Gui tagarelava, afetado, do outro lado.

_Amiga! Revolvi seu problema!
 
Duvido, pensei, irritada.
 
_Eu tô aqui na Fradique, numa mesa de bar... – quase gritava no meu ouvido, rindo – ...com três bichas maravilhosas e um boy que nunca comeu uma bunda e só por isso não sab... – céus, isso vai levar uma eternidade – ...ai, não me belisca! Para! – ele se distraiu, por um instante, e eu podia ouvir o restante da mesa rindo, entre comentários e xingamentos trocados longe do telefone – ...e enfim, um deles tem um amigo... que sempre vai na Society com a gente, o Du, e ele tá super precisando de lugar para ficar... –  o Gui pausou para chamar o garçom, aos berros – ...mas então, ele é ator também... e ele quer fugir de uma pensão uó que ele fica, na casa de uma família lá no Santa Cecília, péssima... mas é só até arranjar outra coisa melhor, sabe? Seria temporário mesmo... e aí eu vi seu recado e já mandei mensagem para ele, ele disse que pode passar aí amanhã! – anunciou, convicto da boa ideia que tivera – Fala sério... me diz, você me ama ou não?

Não. Argh, não sei. Passei a mão no rosto, suspirando, confusa. A verdade é que eu não sabia se era mesmo aquilo que eu queria. Nem se estava pronta para, de fato, achar alguém para colocar no lugar do Fer. Todavia, o Gui aguardava, empolgado, do outro lado da linha.

_Amo, amo – respondi, me dando por vencida, e ri – Escuta, passa o telefone dele pra mim por mensagem e eu vejo, depois a gente se fala. Tô no meio de uma parada aqui e é importante... tá?

agosto 06, 2012

O pó do armário

_Claro que já... – a Marina tagarelava agora, por qualquer motivo, sobre suas experiências com homens – ...eu namorava um cara antes dela.
_Na faculdade isso? – o Fernando perguntou, com a Mia já ao seu lado.
_É – me intrometi – Um babaca!

Passei por cima do encosto do sofá, enquanto resmungava, deitando meio de qualquer jeito ao lado da Marina. Só de lembrar do imbecil já me dava revertério. Argh. Eu odiava o sujeito – sempre odiei. Revirei os olhos em desgosto pelo rumo que a conversa tinha tomado. “Para com isso!”, a Marina me deu um tapa de leve no ombro e eu ri, em teimosia.
 
Aquela era uma briga antiga nossa, desde anos antes, quando a gente namorava. “Não é assim, ela não conheceu ele direito...”, justificou para os dois, sentados na poltrona. Não interessa, porra. Me irritava como ela ainda o defendia.
 
_Não sei por que cê é tão apegada a esse cara, mano... – balancei a cabeça, amarga, ainda afundada no sofá – Só porque foi seu último namorado? Porra, que importa?! Não tem mais nada a ver com você, caralho. Cê é sapatão!
_Ainda assim, ele é parte do meu passado, foi uma pessoa que eu amei. Não deixa de ser importante.
_Ah! Corta essa, Marina!!
_Ihh... – o Fer me zombou, rindo – ...tá ficando nervosinha, hein?!
_O cara era um idiota, mano, o único mérito dele é ter sido o último homem na vida da Marina, como se fosse uma porra dum marco social – argumentei – Me irrita. Me irrita mesmo! Puta lógica machista, velho. Cês não ficaram nem cinco meses juntos!
_Bom. Então, cê tá me dizendo... – a Marina insistiu, sem aceitar a minha posição – ...que os caras com quem você ficou, a sua vida toda, foram automaticamente menos do que as mina?
_Foram. Lógico que foram! – respondi, na mesma hora – É exatamente isso que eu tô dizendo! Nenhum deles importa, mano!
_Não é verdade. Não pode ser.
_Claro que é, Má. Eu não lembro nem o nome dos caras que peguei!
_Ah, quer que eu te lembre alguns? – o Fernando logo se voluntariou, rindo, e a Mia arregalou os olhos, dando-se conta de que estávamos falando sério.
_Você?! – nos interrompeu – Você pegou caras?

Gente, essa gaveta tá muito, muito lá no fundo do armário, me incomodei com toda a atenção. Vamos deixar lá, né?

_”Pegar”?! Ela já namorou um! – o Fer soltou a fumaça, rindo, ainda com o baseado em mãos – Um pobre coitado, como ele chamava?
_VOCÊ NAMOROU UM?!? – a Mia tentava não se exaltar, sem muito sucesso – UM CARA?!?!
_Era Lucas. Mas, ai, mano, isso faz, tipo... sei lá, muito tempo. Mais de dez anos! Eu tava na sétima série, porra... Foi namoro de criança. E no ano seguinte, eu já estava andando pela escola de mãos dadas com a minha primeira namoradinha...
_Meu, não. Não dá – a Mia balançou a cabeça, inconformada – Não consigo te imaginar com um cara, não dá, é muito estranho!
 
Dei risada. Aí estiquei a mão e alcancei o maço na mesinha de centro, tirando um cigarro. Larguei o pacote sobre as pernas e dobrei uma delas em frente ao corpo, com os pés em cima do sofá. Acendi com um fósforo e calculei para não deixar a volta desigual. Aí senti os braços da Marina me rodeando, num abraço meio desajeitado.

_Não se preocupa... – ela fez graça pra Mia, me apertando com um beijo no rosto – ...mais sapatão que essa aqui não dá pra ficar.
_Nossa, sim. Credo! – dei um trago – O dia que eu gostar de macho, cês me internam!

A Marina riu, revirando os olhos, com os braços ainda ao meu redor.

_Sutil você.

agosto 05, 2012

Destinada a repetir

“I could never pretend that I don’t love you
You could never pretend that I’m your man 
...
I could never place the stars at night above you
Got my hands in the ground 
And you know I’m right

(Trampled by Turtles)

agosto 02, 2012

Uns desenterros

O Fernando observava a Marina gesticular, à beira do sofá, cada vez mais indignada. E ele sorria – “então cê não vai admitir?”. “Não é a mesma coisa, você não tá me escutando”. Ele tinha o baseado aceso na ponta dos dedos e se curvava na sua direção, se divertindo. Agora estava só eu e a Marina na sala, sentadas à sua frente – a Mia tinha levantado da lateral da poltrona e ido até a cozinha. Enquanto isso, a minha ex pressionava os olhos, levemente inconformada, e se deixava irritar. Falhava em perceber que o Fernando a estava provocando, sem interesse real em suas respostas sobre se eu era ruim de cama ou não.
 
“Má, tudo bem”, ele insistia, “pode dizer”. E ela balançava a cabeça – “para, chega!”.

Eu ri da determinação de ambos e me levantei, os deixando discutir sozinhos. Fui até a cozinha também. E o som do rádio se afastou, contido na sala – “the way you stick out your lips and keep your hands on the hips and I’m supposed to know and I’m supposed to know”. Entrei pela porta do corredor. E por um segundo, pensei em Ortega. Eu sou eu e as minhas circunstâncias.
 
A Mia se inclinava em frente à geladeira aberta, com uma das mãos apoiadas na porta. Estava num moletom da Vice Squad, uma banda punk inglesa que eu mesma ouvi pouco, e com uns shortinhos jeans quase imperceptíveis por baixo. Uns fios despenteados caíam do rabo improvisado sobre sua cabeça – e ver a Mia descabelada assim me fazia estranhamente feliz. A observei de longe, encostada no batente, com a minha cerveja em mãos. Estava vazia. Não notou a minha presença ali, em busca de algo na prateleira abaixo do freezer.

Andei até a pia e deixei a latinha perto do lixo, apanhando uma garrafa de rum que a própria Mia devia ter colocado na mesa. Abri a tampa. E pus uns dois dedos num copo. Só então ela me reparou ali, levantando brevemente os olhos sobre a porta da geladeira. Perguntou se eu tinha desistido da cerveja, já com a cabeça novamente abaixada. Eu ri. “É só um pouquinho”, respondi. Aí fechei a garrafa de novo, a deixando de lado. E dei dois passos na sua direção, encostando no balcão à sua direita.
 
Tomei um gole. Podia ouvir a Mia se mexer do outro lado da porta da geladeira. Tinha metade de um limão velho na mão esquerda. E os olhos ocupados, com a boca levemente entreaberta, como fazia quando estava concentrada. Agachou-se frente à gaveta de frutas e vegetais. E eu dei mais um passo para perto, cruzando os braços sobre a porta da geladeira para espiá-la, com o copo em mãos. Achei graça nela ali – “o que diabos cê tá fazendo?”.

_Queria... f-fazer uma... – explicou, espaçadamente, conforme vasculhava pelos legumes – ...caipirinha. Mas não acho outro limão, mano!
_Porque não tá aí! eu ri.
 
E aí indiquei para que os pegasse numa cesta, que estava dentro do armário. Não era um bom lugar para limões – admito –, mas foi onde os jogamos na última compra. Pegou mais um na mão e eu a observei em silêncio, enquanto o cortava na metade. Encostei de volta no balcão, em pé, dando outro gole no meu rum. De costas para mim e em frente à mesa, também parada em pé, a Mia espremeu os limões num copo e completou com açúcar. Depois virou por cima o mesmo rum gelado que eu tinha assaltado instantes antes. E aí mergulhou o indicador no copo, mexendo tudo meio de qualquer jeito.
 
Se virou para mim, apoiada contra a beira da mesa. E lambeu rapidamente a pontinha do dedo, antes de tomar um gole, cruzando os pés em frente ao corpo. Podia ouvir o Fer e a Marina ainda discutindo sobre sexo ao longe. Virei o que restava do meu rum no copo e nos encaramos. Lá estavam de novo, as suas sobrancelhas arqueadas. Ri por um instante e ela sorriu de volta, desviando o olhar.

_Nós tivemos algumas boas, não? – lhe perguntei.

Ela sorriu e as arqueou novamente.
 
_As melhores – respondeu.
 
Fiz um gesto com a cabeça, concordando. Meio rindo. Tinha certa naturalidade, não sei, uma tranquilidade entre nós. A Mia descruzou os pés, retomando seu caminho de volta à sala, e eu cruzei os meus, ficando mais um pouco ali. A observei sair, com os braços também cruzados. Hum. Meu pensamento se demorou um pouco na forma como aquelas duas palavras tinham deixado a sua boca. E eu sorri, meio à toa.
 
Depois segui para a sala, sem refletir muito, nuns passos desacelerados.