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janeiro 27, 2013

Outras mortes

Acordei na tarde seguinte com o sol atravessando a janela aberta, vindo direto na minha cara e já queimando de tão quente. E a primeira coisa que avistei foi o cinzeiro sobre a mesinha de cabeceira, as incontáveis bitucas apagadas pela metade no surto da noite anterior. Não sei quanto tempo se passou naquele quarto vazio depois que desligamos, um cigarro atrás do outro, até que eu conseguisse fechar os meus olhos.
 
Levantei com certa dificuldade – a minha cabeça e o meu corpo doíam ao menor movimento, como dobradiças enferrujadas. Argh. Meti nas pernas a primeira cueca que achei na gaveta e fui, descabelada, até a cozinha. Com umas olheiras tremendas. O Fer estava sentado frente à mesa, sem camisa, como se nunca tivesse deixado aquele apartamento. E me bateu uma puta nostalgia ao vê-lo ali.

_Bom dia, ressaca! – ele riu, ao me ver passar pela porta, destruída.
_Argh. Bom dia.
_Ô, não sabia se você ou o maluco aí tinham comprado... – comentou, comendo uma tigela de sucrilhos com leite – ...mas peguei, tem problema?
_Não. De boa. O Du mal come aí, velho, só fuma um o dia inteiro.
_Nossa, mas isso... – hesitou – ...não faz sentido.

Estranhou e eu ri da sua lógica, concordando.
 
_É. Não mesmo.
 
Me juntei a ele, puxando uma cadeira. E comemos o café-da-manhã, conversando como se ele ainda morasse ali. O Fer fazia sentido naquela cozinha, senti saudades de passar tempo com ele assim. E por mais contraditório que fosse, a sua presença fazia com que eu não pensasse na Mia. Pelo resto da tarde, nos sentamos no sofá e assistimos qualquer merda na TV juntos, bolando um baseado e fumando até escurecer do lado de fora. Repetiu algumas vezes que não queria ir embora – evitando ao máximo voltar para a casa dos seus pais naquele fim de domingo.
 
Quando, enfim, deixou o apartamento, fiquei sentada na sala, cercada de latas vazias de cerveja, vendo a reprise de algum reality show muito ruim na MTV. O Du chegou cerca de meia hora depois. Só tinha mais dois pedaços da pizza que pedi com o Fer mais cedo e um resto de baseado sobre a mesa de centro. Sentou no sofá, ao meu lado, igualmente de ressaca, e passou o olhar pelas evidências de que mais alguém estivera ali.

_A Clara veio aí?
_Não. Tava com o Fer... – resmunguei, afundada contra o encosto – Cê já comeu? Se quiser, pode pegar aí!
 
O Du se esticou sobre a mesa, alcançando um dos pedaços com a mão.
 
_E você, tava onde?
_Dormi na casa dum boy. Nada sério.
_Hum...
_Escuta, q-qual... – se virou então pra mim, curioso, enquanto mastigava – ...qual o seu lance com a Clara e a Mia?
_Ah, mano... – retruquei, indisposta – ...hoje não é um bom dia pro cê me fazer essa pergunta, meu.
_Desculpa – o Du riu – É que sempre vejo elas aí e fico na dúvida, elas sabem uma da outra?
_Cê tá querendo me foder, né? – o empurrei pro lado, rabugenta, já meio chapada, e ele achou graça – Vindo com essas perguntas cretinas, porra, a essa hora dum domingo.
_Então “não”?
_Só a Mia sabe.   
_Hum. Cê namora a Clara, é isso?
_É. E a... – hesitei – ...a Mia namora o, o Fer.
 
O Du balançou a cabeça, se divertindo com a minha falta de vergonha na cara – "puta merda". E aí afundou no sofá, que parecia nos engolir, num cansaço misturado com marofa e a noite abafada, assistindo reality na TV. Estava com uma bermuda jeans, mais curta do que outros caras normalmente usariam, e tinha uma chave-de-fenda acima do joelho – suas tatuagens aleatórias me faziam sorrir.
 
_Cê acredita que alguém pode realmente... – perguntei, olhando meio distraída para a TV, sem saber ao certo se falava de mim ou da Mia – ...amar duas pessoas ao mesmo tempo?
_Não sei. Depende do que você considera “amar”...
_Acho que é se sentir esmagado o tempo todo, seu coração... – respondi e agora, sim, falava de mim – ...seu corpo. De cima para baixo, sabe, como se o céu te empurrasse pra dentro de você.
_Olha, não acho que dá para amar duas pessoas assim, com essa intensidade – disse e me observou, ao seu lado – Por quê? Cê tá nessas?
_Eu não sei, e-eu... – passei a mão no rosto, respirando fundo – ...só sei q-que tô prometendo uma coisa pra uma, pedindo o contrário pra outra, tá me fodendo a cabeça e eu, não sei, e-eu não tô mais aguentando.

janeiro 25, 2013

I'm not afraid to die


Now that I've seen your face I'm haunted by the letters of your name
Now that I've seen your face I'm haunted by the letters of your name
Now that I've seen your face I'm haunted by the letters of your name
Now that I've seen your face I'm haunted by the letters of your name

(Lord Huron)

janeiro 24, 2013

Of all the strangers

Foi que eu precisava. Suas más intenções, suas palavras desmedidas junto aos meus pensamentos sujos, soltos pela cama. A voz da Mia tinha um efeito incendiário em mim, sussurrando baixarias, desgraçada. Perdia o fôlego. Os seus lábios, o seu corpo todo pareciam contornar as letras que saíam da sua boca. Me tirando do sério. Por que você, meu deus, entre todas as garotas?, me perguntava, agora ofegante, com o rosto amassado contra o travesseiro e sozinha. À mercê dela. E assim que terminamos a que se dava a ligação, veio um silêncio sorrateiro. Ouvi-a respirar do outro lado da linha. O meu corpo todo ainda pulsava, inebriado, bêbado e cansado, recuperando a sanidade.
 
Aí sorri. Por um breve momento, achando certa graça. Caralho, suspirei, isso foi bom. Logo, porém, o escuro do quarto pareceu crescer. Para cima de mim. E senti os meus braços e pernas se espalharem, sem dificuldade, no colchão vazio – tomada por uma densidade alcóolica, de endorfina. Com o telefone ainda no ouvido e a presença sóbria da Mia do outro lado. Não sei por que porra não desliguei.
 
Aqueles. Aqueles segundos que se seguiam era quando ficava perigoso. Ali, me dando conta de que ela, ela não estava lá. Aqueles segundos depois de um orgasmo que gritavam pelo seu corpo no meu; que, em outras realidades, seriam seguidos pelas pontas dos seus dedos deslizando pela minha pele descoberta, nuns abraços, nuns carinhos despreocupados. Sabe, como deveria ser. Depois de uma puta foda. Eram os segundos em que, inevitavelmente, nos sentíamos sozinhos.
 
_N-não é... – a minha boca soltou, sem pensar direito – ...s-suficiente.
_O quê?!
 
A voz da Mia pareceu confusa, como se não tivesse ouvido.
 
_E-eu...
 
Pausei então. Minha linha de pensamento se engasgava em si, bêbada. E então suspirei, afundando o rosto no travesseiro. Merda. Deixei o celular de lado por um instante – a parte sã que me restava sabia que eu não queria ter aquela conversa. Tinham agravantes demais. Não conseguia, todavia, evitar senão me sentir incompleta. Deitada, ali. A minha cabeça rodando, o formigamento silencioso nas extremidades. As minhas veias ainda latejavam. E me veio à cabeça algo que alguma garota, acho que a Dani, me disse anos antes – de que existia uma expressão para orgasmos, em francês, la petite mort.
 
Era como eu me sentia. Depois de uma pequena morte. Daquele breve momento em que você perde o ar, a consciência, se perde inteira. E eu, e-eu não, puta merda, sabe, n-não queria mais me sentir sozinha assim quando voltava à vida.
 
_Você... – murmurei, frustrada – ...v-você devia tá aqui, Mia.
 
Os meus pulmões sentiam todo peso da bebida, sabia que o Fer ainda estava capotado na sala. Mas havia seriedade na minha voz. E a Mia notou, respirando fundo do outro lado da linha. Tinha meus olhos apertados em consternação, o coração complicado. Me escuta, garota. Porque não quero mais foder, entende, te ver ou te escutar, sempre pela metade, eu quero estar com você por inteiro. Eu te quero aqui, eu. Você. E pela primeira vez, em muito tempo, me permiti pensar tão apaixonadamente dela – embriagada até os ossos, exausta. Sabia o que queria, mas não sabia como.
 
_E-eu... – ela respondeu, baixinho, e eu soube imediatamente que os seus olhos também estavam fechados – ...também queria tá aí.
_Não. Você, v-você não tá entendendo... – hesitei.
_Estou, sim.

janeiro 14, 2013

Mono

_Aguenta aí, velho... – o Fer me pediu, se curvando sobre um canteiro – ...vou gorfar.

E não demorou dois segundos para que vomitasse, ruidosamente. Bem em frente ao prédio. Comecei a rir dos seus modos e o porteiro nos encarou como se o nosso legado ali fosse o pior de todos os moradores. De todos os tempos. Não sei nem como aconteceu, mas em algum momento perdemos a noção das horas e da quantidade de garrafas de cerveja. Ao ponto que nossas vitórias deixaram de sequer ser computadas. Seguimos jogando até ficar de noite e o bar ser invadido pelo movimento caótico de sábado na Augusta.
 
E foi aí que a minha carteira se esvaziou desenfreadamente.
 
Uma garrafa levou à outra e todo o dinheiro se foi. Os nossos cigarros também – primeiro o meu maço, depois o dele. E então decidimos ir para outro boteco, mais abaixo na Augusta, largando nossas companhias de mesa para comprar maços novos. Chegando lá, onde a princípio nem íamos “ficar muito”, decidimos mudar de cerveja para rum. O que é sempre um mau sinal quando se trata de mim e do Fernando.
 
Para piorar, estávamos enchendo a cara desde as duas da tarde. E o problema de beber por horas espaçadas assim, é que ficamos com aquela impressão de que estamos distribuindo o álcool com certa moderação. E é claro que a gente não estava. Eu menos ainda, numa ressaca acumulada da noite anterior. Aí, algumas doses depois, sem saber bem quantas, voltamos cambaleando para o apê. Escorados um no outro, numa demonstração bêbada de afeto. Como eu te amo, moleque – pensei, trançando as pernas Frei Caneca acima. E o Fer segurou meu braço, enquanto vomitava no jardim de frente do nosso prédio.
 
É. Muita classe.
 
Subimos e ele capotou de qualquer jeito no sofá. Segui até o meu quarto no maior silêncio que conseguia. E descoordenadamente tirei minhas calças, me livrando daquele jeans todo. Argh. Entre tropeços, fui até o banheiro com uma camiseta velha e o celular em mãos. E só quando larguei tudo na pia é que notei mais uma mensagem da Mia. Não tinha checado o telefone desde que a respondi dizendo que não podia. “Hum, q pena...”, ela mandou de volta, inconclusiva, horas antes. Sorri e tirei a blusa, depois a boxer, num lapso de consciência, sem nem perceber direito o que estava fazendo. Aí me meti no chuveiro para curar a embriaguez.

Sem sucesso. Conforme a água descia pela minha nuca, deslizando pelo meu cabelo e as minhas costas molhadas, a minha cabeça foi tomada pela Mia. Meio bêbada, irracional. A imaginando naquela noite. Como me esperava, como movia os lábios ao me escrever. Sentada sobre a sua cama, no quarto. Ou na sala? Não sei. Tinha ambas as minhas mãos na parede, inclinada sob o chuveiro, sentindo uma saudade imensa dela no meu corpo. Assim, de repente. Por que diabos não fui?, me arrependi, já fechando a torneira. Desliguei a água e saí do box, ainda consideravelmente bêbada.
 
Aí peguei o celular, antes mesmo de me enxugar, e a respondi – “qpena pq?”.
 
Então me sequei meio de qualquer jeito com a toalha e vesti a camiseta velha, chutando minhas roupas sujas para debaixo da pia. Sentia certa dificuldade em me mover com precisão. Voltei para o quarto tateando no breu. E me esparramei na cama, ainda fresca, num conforto de deitar sem roupa nenhuma me apertando. Nisso, o meu celular se acendeu na mesa de cabeceira. Ela tá acordada, pensei na mesma hora. Estiquei a mão e alcancei o telefone, o seu nome estava lá.
 
“Ta bebada? Kk ;)”. Podia senti-la sorrir em todas as ramificações nervosas da minha pele, nos meus pelos. Como uma brisa. Sentada em seu quarto em Higienópolis, enquanto eu encarava a tela deitada no meu. No escuro, ali, sentindo sua falta do meu lado. “Ñ inteerssa”, respondi, numa dislexia alcóolica. “Ta, sim kkkk” – o meu celular vibrou novamente. Ri ao ler, breve. E digitei de volta – “oq cv t áa fzendo ai?”. Acomodei as costas num travesseiro meio atravessado, erguido contra a cabeceira da cama.
 
Fala que tá pensando em mim, vai, garota.
 
Mas a resposta não veio de imediato. O silêncio no apartamento tornava os arredores ainda mais lentos. E eu observava fixamente o celular nas minhas mãos. Até que a tela se acendeu – “eu? nada, so imaginando...”, disse. Ah, é? Imaginando o quê?, li, conforme a minha mente disparava. Eu, ah, eu, sim, pensava nela. Nas formas como a sua cintura se encaixava nos meus dedos. Sabe? O jeito como sua barriga se dobrava sobre mim. Imaginando-a de todas as formas mais magníficas, e sujas. Imaginava. O seu contorcer, o seu gosto. Cacete. Numa vontade desgraçada de que viesse dormir comigo naquela noite. E me torturava sem conseguir parar de pensar na sua boca, no seu cheiro. Inebriada pelo álcool e um tanto confusa nas sensações, misturando a realidade com as memórias dela. Os seus movimentos, os lençóis bagunçados. O som dela respirando no meu pescoço, subindo no meu ouvido. E também o som dela quando ia perdendo o fôlego, se descontrolando, puta merda. Os sons de quando gozava na minha boca. Nos meus dedos, nas minhas pernas. Quase podia sentir a tensão das suas coxas contra as minhas. Me arranhando as costas, me mordendo inteira. Os meus pensamentos começaram a se sobrepor. Os toques, seus beijos na minha mão antes de dormir, num carinho quase adormecido, a sonolência, o estar juntas, os recomeços lentos, os orgasmos, nossas manhãs no apartamento, os cigarros divididos e baseados bolados, os seus olhos vermelhos, pequenininhos, quando ela ria, chapadas a tarde inteira, à toa, numas conversas gostosas, numas não-conversas também, as nossas línguas uma na outra, suas pernas sobre a pia da cozinha e o seu olhar quando a Marina veio – “as melhores”, ela repetia na minha mente, arqueando as sobrancelhas para mim. E aí vinha o piso frio contra nossos corpos, o seu apartamento e as luzes da Sarajevo, o frio na calçada da Augusta, ao seu lado; o calor e os meus dedos dentro dela, meus lábios nos seus – a umidade, o sal que lambia da sua pele, nosso suor se misturando, nuns movimentos lentos. Ou nem tanto. A minha pulsação começou a aumentar, já me contorcendo naquela porra daquela cama. Imaginando-a, perdendo a cabeça, me pedindo para que fosse mais forte. Nos comendo contra o sofá. Contra a parede, contra o seu colchão. À exaustão, vez atrás de outra. Sem conseguir nos largar, desgraça. E imaginava a sua mão onde estava a minha, naquele quarto escuro. Entre as minhas coxas.

E como se eu tivesse levado tempo demais para responder, chegou mais uma mensagem da Mia. Tirei a mão do meio das minhas pernas e a abri, já sem fôlego – “...oq vc podia ta fazendo, se tivesse aqui”, continuou. Ah, pra puta que pariu. Quis morder o travesseiro com suas reticências, agora completas. Subindo pelas paredes de vontade dela. A sentia em mim e me retorcia com o respirar quente dela entre as minhas pernas, afundando em cada uma das sensações irreais que me sucediam. E demorava-me, solta na cama, extasiada e bêbada; com a porta do quarto fechada. Em todo o meu corpo, o sangue parecia correr bruto. Peguei o celular de novo, num impulso, e disquei o seu número, os meus dedos ininterruptos; pouco me fodendo para o quão baixo era aquilo. Até que ouvi a Mia atender, do outro lado da linha.
 
_M-me conta... – me adiantei e disse, um tanto ofegante, prestes a explodir com o mero som da sua voz – ...me conta, porra... o que eu podia tá fazendo.

janeiro 10, 2013

Deslizes

Saí na calçada da Augusta, acendendo um dos últimos cigarros do meu maço. Conforme soltei a fumaça pro lado, checando o celular, me dei conta de uma mensagem da Mia que não tinha visto – “vai ta sozinha hj? :3”. O ar na rua estava abafado. Dei mais um trago e digitei de volta, “ñ, desci com o fer pra augusta.. acho q vms pro apto dps”. Aí pausei por um instante, com os olhos na mensagem, apoiada contra a parede imunda do lado de fora do boteco.
 
Me sentia estranha falando com a Mia depois da madrugada com a Clara. Pois é. Entre isso e o fato de que o Fer provavelmente ia dormir em casa, recusar devia ter sido fácil – mas não foi. Nunca era. Não aprendera a lidar com o interesse da Mia. E a verdade é que eu gostava, gostava de cada palavra sua que encontrava caminho até a minha caixa de entrada, me convidando para ir ficar com ela, aparecendo de surpresa na porta do meu trabalho, me beijando entre um pega e outro dum baseado, num vai-dar-merda impagável. Podia me enganar o quanto quisesse, e não só a mim, mas bastava seu nome aparecer na tela que meu coração acelerava.
 
Argh
 
Mas enviei a mensagem. Dane-se. Não tinha como encontrá-la, pelo menos não naquela noite. A última coisa que me passava pela cabeça era dispensar o Fer por uma trepada com a sua namorada – ainda que o canalha do meu amigo estivesse levantando do seu banco para ir dar uma volta com a nossa companheira de mesa em um canto do bar. Isto é, fora da minha visão. Cê nunca superou, hein, dei mais um trago, achando certa graça na cena, a bronca que tomou quando te peguei com a Júlia em casa.
 
Me divertia a discrição do Fer de quem come quieto, observando de longe, fora do bar. E não me importava se ele dava uns beijos em qualquer garota, de tempos em tempos. Ainda mais agora, depois de tanto tempo e águas passadas, quem era eu para achar ruim? Não conseguia sequer dar conta ou entender a complexidade dos meus relacionamentos, dos meus sentimentos, que dirá os dos outros. Mas me divertia.
 
Soltei a fumaça para baixo, num último trago, e apaguei o cigarro na parede do bar. Aí entrei de novo. As mesas de sinuca ficavam ao fundo, numa espécie de porãozinho aberto a uns 5 degraus do piso de entrada. Desci as escadas e peguei meu copo, que já estava formando uma poça na lateral da mesa. E fiquei trocando ideia com o tal do Max – enquanto o Fernando beijava a amiga dele contra a parede, segurando a lateral do pescoço dela com as mãos tatuadas, no corredor escuro que ia pros banheiros.
 
Dei uma olhada e virei de costas para eles, começando outra partida com o cara. Fingindo que não tinha visto.
 
_Vamos lá, mais uma...

janeiro 08, 2013

Os ratos de boteco

_Ô, arrasa-coração! – cantei no ouvido do Fer, o zombando.
 
Ele riu do comentário e me contrariou com a cabeça, antes de eu encaçapar a próxima ímpar. Só mais três na mesa contra seis pares. E nem cinco da tarde no relógio. Me debrucei sobre a beirada da mesa de sinuca, escada abaixo num boteco da Augusta. Nem uma hora antes, fizemos amizade com um viado barbudo e sua amiga hétero – estavam esperando ao lado da nossa mesa para revezar partidas e, em algum momento, os convidamos para se juntar a nós.
 
Agora, tinham ido buscar mais cerveja no bar e nós ficamos.
 
_Nada a ver, mano – o Fer cruzou os braços, achando graça nos meus comentários, e se curvou para checar as pernas da garota escada acima na fila.
_Meu, vai por mim...
_Nem.
_Escuta o que eu tô te dizendo, cara... – o alertei e ele se divertiu, me ouvindo falar, depois de uns bons copos de cerveja – ...essa aí tá querendo.
_Não tá, meu.
_Tá bom, então. Fica vendo...
 
Dei de ombros, com o taco ainda em mãos e me afastei da mesa. Ele bem sabia. Deu mais uma olhada nas pernas da garota escada acima. Usava uns shorts curtos e uma dessas rasteirinhas, como se tivesse na praia, mas tinha os dois braços fechados de tatuagem old school. Ela e o amigo já perdiam pela segunda vez para nós, naquele clima bom de sábado à tarde na Augusta, tagarelando sem parar e se embebedando de cerveja com a gente.
 
_Uai. Cadê?! – o boy se espantou ao voltar do balcão, com mais uma garrafa na mão – Cês acertaram mais uma?
_Três a seis – o Fer respondeu.
_Ahm. Mas, assim... – a menina chegou logo atrás, fazendo graça e encarando o meu amigo – Três mesmo ou cês encaçaparam uma com a mão aí, na malandragem, enquanto a gente tava fora?
_Três, porra – riu – Vou mentir?
_Hum, sei não, acho melhor a gente mudar essas duplas aí. Num confio em vocês dois juntos...
_Ah, é? E vamos mudar pra o quê?
_Eu e você... – ela piscou pro Fer, na maior cara de pau – ...contra eles.
_Não. Não ia dar certo isso aí, não.
 
O Fer riu. E se virou para a mesa, matando mais duas logo em seguida. Aí o outro cara se revoltou, resmungando um “cês tão de brincadeira” sonoro e largando o taco de lado, irritado, como se desistisse. Comecei a rir do outro lado da mesa. O Fer sentou numa cadeira de boteco, com as pernas abertas. E a morena se aproximou, meio se metendo entre os joelhos dele, esbarrando as coxas descobertas no seu jeans enquanto conversavam. Virei mais da cerveja gelada no meu copo, observando ela dar em cima do meu amigo e achando graça.
 
_Pô... – tentava o convencer – ...vamos jogar uma eu e você, vai.
_Não – ele riu, meio deixando ela fazer graça pra cima dele, e a provocou – Se quer mudar as duplas, vai ser minas contra caras. Melhor, né?
_Hum. Mas não quero jogar com a sua amiga...
_Epa. Tem alguma coisa contra? – fingi estar ofendida, me intrometendo de longe – Homofobia isso aí, hein?
_Nossa, até você?! – a garota me olhou, assustada – Caralho, meu, não existe mais hétero na Augusta!
_Na Augusta?! – o Fer deu um gole na cerveja, se divertindo – Mano, nunca existiu...
_Vamos dominar o mundo...
_Vixi. Tô vendo que vai sobrar pra gente, hein, repovoar a Terra... – ela brincou, cutucando o Fernando, e ele ficou imediatamente sem graça, erguendo os olhos na minha direção atrás de ajuda, enquanto eu me divertia.
 
Vai, eu ri, quem é que tava certa agora.
 
_Não, meu – ele riu, sentindo apertar toda a corda que deu – Acho que a minha namorada não ia gostar, não.
 
Tinha lá o seu charme cafajeste, o Fer. Com as tatuagens à mostra e aqueles ares de cachorro dele. De quem tá negando, mas não muito. A garota se abaixou e cochichou algo em seu ouvido, colocando uma das mãos sobre a sua perna. E o Fernando ouviu, quieto, como quem não tem nada a perder, mas logo balançou a cabeça para ela e sorriu, declinando. Não escutei o que era. E nem me importava, àquela altura, cogitando ir até o lado de fora para fumar.

janeiro 03, 2013

Luto breve

_E aí, meu? – o Fer riu, assim que me viu chegar – Resolvi dar uma passada aí pra ver a cara do panaca que tá morando com você...
_Cala a boca.
 
Puxei-o pela mão e nos abraçamos forte, sorrindo. Fazia umas semanas que a gente não se via – a última vez foi numa sexta, quando o sequestrei em Santo Amaro para fumar um na rua de trás. Fiquei feliz de trombar com ele ali. Filho da mãe, que saudade. Sugeri então que a gente subisse, falando para ele se comportar perto o Du. O Fer riu e acenou com a cabeça, me oferecendo um trago antes de jogar a bituca fora. Aceitei e ele pegou a mochila que estava no chão, encostada contra a grade do prédio. Dei um trago e apaguei o resto do cigarro num poste, soltando a fumaça para o lado.

Aí subimos no elevador do prédio. Abri a porta do nosso apartamento, indo adiante do Fer, e ele largou a mochila de qualquer jeito na sala, perto da entrada. Seguimos até a cozinha e logo esbarramos no meu novo roomie ali. Sentado sobre a mesa, o Du dividia um baseado com outro cara, ambos sem camisa. Apresentei o Fer e ele cumprimentou o Du com um breve aperto de mão.
 
_Esse é o meu amigo que morava aqui e esse é o Du – os introduzi, aí olhei para o date dele – E você, sei lá, não sei quem você é...
 
O cara riu e me falou seu nome, que eu esqueci nos três segundos seguintes. Peguei uma garrafa de água na geladeira, ainda cansada da caminhada, e tratei de tirar logo o Fernando dali – antes que fizesse algum comentário engraçadinho pro Du. Nos largamos sentados no sofá da sala. E o Fer deu uma olhada ao redor, estranhando o vazio deixado pelos seus vinis e a sua vitrola, que antes ocupavam uma parede inteira.
 
_Mas e aí, que cê tá fazendo por esses lados? – perguntei, enquanto descalçava os tênis.
_Vim numa entrevista aí na Haddock.
_Nossa, mas num sábado?
_Ah, o velho que arranjou... É um conhecido dele. Fui encontrar ele numa padaria, cedo pra caralho, e o cara me aparece com roupa de correr no Ibira, com um daqueles relógio que mede batimento cardíaco no pulso, saca...
_Credo.
_É. Esse tipo de mano – riu, afundado contra o encosto – Deve ser um puta trampo de engravatado. Mas paga, né. Sei lá, vamos ver... Falei com a Má também, ela disse que vai passar meu currículo pro chefe na segunda.
_Vai dar certo, Fer. Algum vai rolar!
_Tomara. Num vejo a hora de sair daquela casa, mano – esfregou a mão na cara – E você, tava onde agora de manhã?
_Dormi lá na Clá, a gente foi numa festa em Pinheiros ontem...
_Boa?

Ô, arqueei as sobrancelhas, sendo irônica.

_Quê?! Tava zoado?
_Não, a festa foi boa. Eu é que... q-que fiz merda.
_Ê, pilantra! – deu um tapa atrás da minha cabeça, fazendo graça – Fala aí, que cê fez?
_Ah. Nem foi uma merda tão grande, é só que... – murmurei, sem muito orgulho do meu comportamento na noite anterior – ...eu meio que... dei em cima de, de outra mina lá. E a Clara não gostou muito.
_“Não gostou muito”? – se divertiu com o eufemismo.
_Ah, velho... nem me dei conta do que tava fazendo! A gente tinha bebido pra caralho e ela quis brigar na saída, meu, aí acabei discutindo de volta. Foi uma bosta. Ela foi embora, eu fui atrás... daí não queria me deixar subir no prédio. Na boa, puta rolo!
_Mas cê também, hein?!
_Eu? Foi culpa sua! – zombei, resmungando – Fica aí me mandando mensagem boiola, porra! Nem ia falar com a mina lá ontem, ela que puxou assunto quando viu seu nome no meu celular...
_Ah, é. Foi “culpa minha”, sim – ele riu ainda mais, passando a mão na nuca – Nossa, meu, ontem também tive mó noite de merda. Cheguei em casa louco pra falar com você, mano. É estranho demais morar com os velhos, não ter com quem trocar ideia...
_Mas, espera... Noite de merda, por quê?
_Ah, sei lá. A Mia começou com aquelas paradas de novo. Já faz um tempo já. Tá chata, acha tudo o que eu faço ruim, não sei explicar – talvez eu saiba – Ficou implicando com cada coisa que saía da minha boca ontem, mano. Aí não queria ir dormir lá em casa... sei lá, meu. Não ando com paciência pra essas merdas dela.

Fiquei quieta. É. Sabia que tinha participação naquilo. Mas desviei o olhar do Fer e não disse nada, alcançando o meu maço na mesa. O pior é que aquele desinteresse todo da Mia por ele, numa filha-da-putice sem tamanho do meu coração, balançava as promessas que fiz para a Clara na madrugada anterior. Qual é o meu problema?, me frustrei com meus próprios sentimentos confusos.
 
_Mas, e aí... – ele se reajeitou no sofá, ao meu lado, mudando de assunto – E o aniversário, já sabe o que vai fazer?
_Não... – abaixei a cabeça, colocando um cigarro na boca.
_Ah, pode parar! Se cê não fizer nada esse ano, eu vou organizar e cê não vai poder dar um piu! Te obrigo a aparecer, mano. Cê nunca quer fazer nada, porra...
_Por um motivo...
_Ou motivo nenhum.
_Fernando, todo ano essa discussão? Eu não gosto de aniversário, só me fodo – insisti – Nem vem com ideia.
_Qual é! Cê vai fazer vinte e cinco, cacete!
_E daí?!
_Cara, você não tem escolha... – ele riu.
 
Ah, pronto.

janeiro 01, 2013

Trégua

_Volta pra cama... – pedi, amassando o rosto na cintura da Clara – ...vem.
_Tenho que sair em quinze minutos, Bo... – ela riu e afundou as mãos no meu cabelo, num carinho distraído.
_Mas cê já foi sábado passado, meu. Ninguém pode ir pro cê hoje, não?

Ela sorriu, balançando a cabeça. A luminosidade no quarto machucava os meus olhos, numa ressaca desgraçada. Desci a boca, aos pouquinhos, pela sua pele macia. Touch me, yeah. Até meus lábios esbarrarem na linha da sua calcinha, retorcida na lateral do seu corpo. Make me feel like I am breathing, feel like I am human. O seu quadril, as suas coxas. Estiquei o meu corpo na beirada do colchão, beijando suas pernas descobertas, logo atrás do joelho, enquanto ela se olhava no espelho – em pé ao lado da cama, arrumando o cabelo.
 
Meu amor por aquela garota matava um pedacinho de mim. A parte que amava a Mia, é. Me desviava de quem eu era. Quem era mesmo? Mas quando estava com a Clara, nada disso me importava; só ela. Caminhou até seu armário, saindo do alcance das minhas mãos – que agora pendiam no ar, abandonadas. Afundei no cheiro dela no travesseiro, a escutando se mover pelo cômodo enquanto se preparava para sair.
 
E apesar dos meus esforços minutos depois, segurando a Luna no ar e fingindo que falava, convencendo sua dona a faltar no trabalho, a Clara não ficou. E aí eu também tive que ir, não é mesmo? O problema é que eu não tinha um puto na carteira e só me lembrei disso quando cheguei na porta do metrô, contando moedinha na frente da cobradora como se os vinte centavos que faltavam para a passagem fossem aparecer milagrosamente no balcão. Inferno.
 
Subi as escadas de novo e resolvi encarar a caminhada de meia hora até a Augusta – uma tarefa ingrata sob aquele sol, de ressaca. Argh. Cada passo era um arrependimento pelos erros da noite anterior. Mas assim que cheguei no meu quarteirão, depois de andar mais de três quilômetros, avistei um rosto conhecido do outro lado da rua. E abri um sorriso na mesma hora.
 
Sentado em frente ao prédio, fumando um cigarro, estava o traste do Fer.