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abril 23, 2013

As sardas e os ladrilhos

E ela ficou. Durante as horas seguintes, pelo menos – com os pés entrelaçados nos meus, o seu braço ao redor da minha cintura. Acordei, às plenas cinco da tarde, sentindo a sua pele morna contra a minha, enquanto a chuva ainda caía fininha do lado de fora, mas, não, não sei, algo. Algo ficou junto. Como um sussurro no fundo da minha cabeça, sabe, uma inquietude, me repetindo que já não era suficiente. Não mais. O meu corpo estava pesado, dolorido. Esfreguei as mãos no rosto, forçando o meu despertar, e sentei com os pés para fora do colchão. Cuidadosamente. Num esforço sincero para não a perturbar. Seu braço tatuado pendeu suavemente no colchão, a poucos centímetros das minhas pernas.
 
Senti minha cabeça dando sinais de enxaqueca. Argh. Me levantei e fui até o armário, vestindo a primeira boxer que achei na gaveta. Aí saí no corredor, silenciosamente. E assim que entrei na cozinha, para a minha surpresa, dei de cara com uma garota seminua. Mas que diabos? Uma ruiva com sardas no rosto, numa regata larga e só de calcinha, passando café. Nada simpática. Me viu passar pela porta com os peitos de fora, em toda minha glória caminhoneira, e fechou a cara na mesma hora. Estranhei a situação. O que tá acontecendo nessa casa?
 
O Du estava sentado do outro lado da mesa, sem camiseta. A garota pegou seu café e puxou uma cadeira, cruzando as pernas sobre o colo dele. Sem se apresentar ou sequer me olhar direito. Que seja. Me dirigi à geladeira e abaixei para alcançar a última lata de Coca, bem no fundo da prateleira. As horas pareciam se arrastar naquela tarde de sábado.
 
_E aí, sobreviveu ao PT? – o Du se aproximou de mim, apoiando os braços sobre a porta da geladeira e largando a mina sozinha – Não achei que cê fosse acordar do jeito que cê tava ontem, meu. A Mia veio aí?
_Veio. E... – me ergui para fofocar, falando baixo – ...quem é essa aí?
_É a Sté. Ela é da companhia – ele riu – Ela tava do seu lado no carro, mano, na volta, cê não lembra?
_Não...
_Ela tá de mau humor – resmungou, cochichando comigo por cima da porta da geladeira.
_Mau humor, por quê?
_Ah, ela... m-meio que gosta de mim. E tipo, ela sabe... – o Du fez aquela cara que todos nós fazemos quando queremos dizer “gay” sem ter que pronunciar a palavra em si – ...daí fica assim depois.
_Mas, espera... – sussurrei de volta, pasma – ...cê come ela?
_Não, meu. Só às vezes.
 
Olhei para ele e aí olhei para ela, surpresa. E então olhei para ele, de novo, e comecei a rir. Caralho, hein, cê consegue ser pior do que eu. Fechei a porta da geladeira e abri a latinha, ainda o observando, estarrecida. A garota fingia não nos ouvir. Na maior cara de pau, então, o Du se aproximou ainda mais de mim e perguntou se, “a propósito”, eu não podia inventar algo, como se tivéssemos programado qualquer coisa à noite. “Cê tá me zoando, né?”, cochichei, “não vou dar perdido nela por você”. “Por favor!”. Revirei os olhos, sem acreditar que estava sendo arrastada para o meio daquela situação, mas acenei com a cabeça. E ele voltou para a mesa.
 
_E ô, cê vai hoje, né? – perguntei alto, casualmente, enquanto me erguia na ponta dos pés para pegar uma bolacha no armário.
_Porra, claro!
_“Vai” onde? – a tal Sté se dirigiu a ele, não a mim.
_Hoje tem mais uma comemoração... – me intrometi, mentindo descaradamente – ...do meu aniversário. Mas mais família assim, sabe, jantar e bolo, essas coisas, lá em Santo Amaro na casa dos meus pais.
_Hum...
 
Ela cruzou os braços e murchou na cadeira, irritada. Você me deve uma, olhei mais uma vez para o Du, antes de os deixar a sós na cozinha. Aquela interação me lembrava desconfortavelmente de mim mesma. De dias demais como aquele, desculpas demais como aquela. Do que eu não queria mais na minha vida. Arrastei os pés de volta para o meu quarto, tentando ignorar o sentimento, mas quando entrei, o cômodo estava vazio. Dei quatro passos de volta no corredor, então, e a achei no banheiro – ah, aí tá você. Estava usando uma blusa velha minha e com as pernas descobertas, descalça, em frente à pia. Encostei no batente da porta e observei a Mia por um instante, molhando o rosto. Como se tivesse acabado de acordar. Logo que notou a minha presença, sorriu para mim, através do reflexo no espelho. E eu sorri de volta – numa espécie de não-sorrir, sem muita intenção.
 
Vê-la ali, tão confortável nas minhas roupas, no meu apartamento, me incomodava. Tinha algo de intimidade no seu jeito, algo de relacionamento na forma como nos portávamos naquele fim de tarde. Argh. O peso de horas antes continuava no meu peito. Dei um gole da Coca que peguei na geladeira e desapoiei as costas do batente, inquieta. Me sentia cansada, numa exaustão emocional que parecia perdurar nas minhas veias. Era uma ressaca das boas, das péssimas. Pois sabia que não podíamos estar, nunca, de fato, juntas. Eu e ela. E isso me matava lentamente, puta merda.
 
Suspirei, afastando aqueles pensamentos. Inferno de dia. Abaixei a cabeça por uns segundos, fechando os olhos. E a Mia me viu pelo espelho – “tudo bem, linda?”. Balancei a cabeça e disse que sim. Mas hesitei por um momento, ainda que fingisse sem esforço. Algo, é, algo me incomodava. Não sei. Me afastei da porta, como se fosse em direção ao quarto, numa vontade de sair de perto dela por um instante. Mas então voltei, num impulso:
 
_E-eu... – murmurei sem pensar, sentindo meu coração acelerar – ...e-eu não quero mais fazer isso, Mia.
_“Isso”, o quê? – ela prendeu o cabelo com as mãos e as palavras simplesmente saíram da minha boca.
_Isso. Eu e você – respondi, sincera – E-eu, eu preciso falar com o Fer, mano. Ou eu, ou você – ela olhou na minha direção, pega de surpresa – Não posso mais fazer isso enquanto vocês tão juntos.

abril 22, 2013

Má ideia

“Você tá bem?”, a Mia perguntou baixinho, me abraçando pelas costas. E eu suspirei, procurando recuperar a sanidade. “Não”. Maldição. A realidade parecia escorregar entre os meus dedos, se misturando a contragosto com as linhas do poema. Estava embriagada demais para evitar seus perigos sorrateiros, machucada. O meu coração não aguentava mais; e eu sabia. Num momento de lucidez eu soube. Por isso, não conseguia continuar.
 
Ela também sabia. Eu estava exausta, exaurida – dos meus erros, da forma como vivia a minha vida. Cansada de não a ter. E de nunca realmente ter ninguém. Por culpa minha ou dos outros, das circunstâncias. O meu coração fora se desgastando. Naqueles anos todos. E eu destruí as pessoas que amava pelo caminho. Não, mano, não entra nessa brisa, implorei a mim mesma, sabendo que a bebida e o contexto me induziam ao pior, não faz isso agora, porra. Mas o sentimento me tomou, subindo pela minha garganta.
 
A Mia sabia que cada linha tinha intenção – e é, talvez não fossem as melhores linhas para se dedicar a alguém, mas eram a verdade. Eram a gente. E me dilaceravam dum jeito. Porque yo te tengo y no, foi o que faltou dizer. Sentia toda aquela madrugada, aquela semana de merda pesarem de uma só vez no meu corpo. E uma vontade idiota de chorar, por que, p-por que diabos fui ler essa merda? Perdi o rumo por um instante, deitando no colchão. E a Mia deitou ao meu lado.
 
Eu perdi tudo, senti a ansiedade me sufocar. Suas mãos me envolveram a cintura, acariciando a minha pele, passando pela costela e depois por todo o decorrer do meu braço. Até segurar, por fim, na minha mão. E aí eu entendi, contendo as lágrimas silenciosamente nos meus olhos. Que aquilo não era pra sempre. Que íamos dormir e íamos acordar e que nada mudaria. Como não mudou em todo aquele tempo. E toda vez que ela me deixasse por ele, de novo e de novo, ia me machucar. Não importava o combinado entre nós. Eu, também, machucaria os outros – como já tinha machucado por tempo demais. “Fica comigo”, lhe pedi então, num sussurro, o que milhões de vezes antes eu não tive coragem de dizer, e a Mia me beijou o rosto, sem entender plenamente o que meu coração pedia.
 
Por favor.

abril 21, 2013

3 Songs – pt. 3

“Pardon me, but wasn't that your heart?
That I felt, on the bed? In the bed?
In between the sheets?
(The Blow)
 
_Ei... – senti baterem nos meus All Stars, cruzados sobre o braço do sofá, e abri os olhos com certa dificuldade – ...passa a grana, é um assalto.
_O... – murmurei, confusa e bêbada, vendo a Mia ali – ...q-quê?
_Sua porta tava aberta – ela riu.
_Ah, isso f-foi... – me observou sentar, ainda desorientada e com o cabelo amassado – ...de propósito.
 
Meio que tinha dormido no sofá da sala, largada com as pernas de qualquer jeito e com a mesma roupa do rolê. Como diabos eu cheguei aqui? O, o Du subiu comigo?, me questionei, sonolenta, sem ter certeza das respostas. Tinha apagado totalmente. E não fazia ideia de que horas eram – nove da manhã, três da tarde? O apartamento estava em silêncio e o céu nublado dificultava qualquer palpite sobre o horário. Do lado de fora da janela, caía uma chuvinha fina.
 
A Mia passou por cima do braço do sofá e se sentou ombro a ombro comigo, ao meu lado, ambas afundadas contra o encosto. Então sorriu.
 
_E aí, cê tá se sentindo melhor?
_N-não muito... – sorri também, sincera.
_Hum. Tá menos azeda, pelo menos?
_Argh, desculpa... – escondi o rosto no seu ombro, por um instante – ...e-eu fui uma babaca com você, n-não fui?
_Foi... – a Mia riu, ainda com o mesmo vestido da balada e os fios do cabelo meio bagunçados; me olhando de volta com apreço – ...mas eu sei que cê tá na merda agora, meu.
_N-não, não é motivo, mano. M-me desculpa.
 
Tropeçava nas palavras, com os olhos quase fechando, embriagada.
 
_Olha... – ela ergueu uma sacola de papel na mão, a tirando sei-lá-de-onde – ...trouxe pra ajudar com a amargura e essa bebedeira aí.
 
Me entregou o pacotinho e eu comecei a rir, o abrindo. Meti a mão e tirei um croissant com chocolate dali de dentro, estava com uma cara deliciosa. Puta merda, eu amo essa garota.
 
_Ahm... – achei graça – ...então esse é o seu lance? Me trazer comida?
_Olha, não me julga, faz quase 3 anos que namoro um taurino.
_Não tô julgando n-nem um pouco... – mordi um pedaço, sorrindo – ...tô achando ótimo, pô.
_Não é bom? É duma padaria lá perto de casa!
_Nossa, sim... – ofereci um pedaço e ela deu uma mordida, numa lentidão meio alcoolizada – ...mas, pera, cê foi até s-sua casa?
_Fui. Pedi pro Fê me deixar lá quando vi sua mensagem...
 
Hum. A segunda menção ao Fernando me revirou o estômago, sentindo voltar a culpa que me torturou por dias. A sensação de que fodia com a vida do meu melhor amigo. Logo, porém, o sentimento se esvaiu da minha mente – estava alucinada demais. Era como uma fumaça que se dissolvia no ar, fora do meu controle, deixando apenas um incômodo bem, bem lá no fundo da minha cabeça. E nos segundos seguintes, sequer tinha memória do que era, entre uma mastigada e outra. Cacete, isso tá gostoso mesmo. A Mia riu da minha cara de feliz, arrancando pedaços grosseiros do croissant com a mão e os colocando na boca, num sono bêbado e desajeitado. Sorri de volta, contente de estar com ela.
 
_Mano, não, espera! – limpei a boca com as costas da mão, apressada, e me ergui, me lembrando de supetão – Também t-tenho uma coisa pra você!
_Pra mim?!
 
Larguei o croissant na mesma hora e pulei por cima do encosto do sofá, numa afobação empolgada, indo para o meu quarto. Comecei a vasculhar as minhas coisas, no caos da prateleira sobre o computador, e a Mia entrou logo atrás de mim – “o que é?”. Minhas mãos iam bagunçando tudo, entre pilhas e mais pilhas de livros e papéis. Sem a responder. Até que encontrei o maldito livro do Benedetti, o que comprei na Argentina, propositalmente mantido longe dos meus olhos amargurados desde que desembarquei em São Paulo.
 
_Olha... – me virei para a Mia, o escondendo nas minhas costas – ...e-eu vou te dar, mas cê tem que p-prometer que não vai zoar.
_Hum – ela riu – Por quê?
_É cafona, tá.
_É? Deixa eu ver...
_Não. Primeiro promete.
_Só me dá logo!
_Promete!
 
Nisso, a Mia grudou em mim, tentando alcançar o livro nas minhas costas. Me desvencilhei e iniciamos uma disputa boba, nuns tropeços pelo quarto para ver quem ficava com o livro. O problema é que eu estava infinitamente mais alcoolizada – e uma hora deixei o desgraçado cair. Rapidamente, a Mia o pegou do chão e correu, droga. A alcancei a um metro da porta do meu quarto, a segurando contra a parede.
 
_Me devolve... – ordenei, com as mãos afundadas na sua cintura, e ela balançou a cabeça, sorrindo – ...v-você, cacete... – a admirei, a dois centímetros de mim, naquele vestido amarrotado que denunciava todas as horas não dormidas, meio porralouca – ...v-você, você é bonita demais... não dá, porra.
 
A sua boca colou na minha num só impulso e nos beijamos, com todo descontrole daquela madrugada ainda em nossas veias. Nos pressionando contra a parede. A Mia começou a tirar minha roupa, minhas mãos arrancaram o seu vestido, a subindo no meu colo. A beijava sem pegar fôlego, sem parar. Numa sacanagem assim que, puta merda. Então fodemos. Por oitenta? Duzentos? Trezentos minutos, não sei.
 
Já sem roupa na cama, depois, entre começos e recomeços à exaustão, a Mia me assistia acender o isqueiro repetidamente – tentando acertar a chama na ponta dum baseado e fracassando. Ela ria da minha falta de coordenação bêbada. “O seu corpo não tá pedindo arrego, não, ô?”, puxou o fino dos meus lábios. E eu esfreguei a mão no rosto, rindo, sem nem saber o que estava fazendo. O baseado seguiu apagado. Me levantei da cama, como num ímpeto.
 
_Volta para cá... – a Mia rolou no colchão, se divertindo – ...inferno.
 
Alcancei o livro largado no chão do quarto e fui voltando, folheando as páginas até encontrar o poema. Corazón coraza. Subi descalça no colchão, completamente despida. E comecei a ler a 79ª página, no pior espanhol que já se ouviu – “porque te tengo y no”. Recitei em voz alta. A Mia riu e me puxou pelas pernas, me querendo perto de si. Caí de joelhos no colchão. E continuei, achando graça na sua vontade de me beijar antes mesmo de eu ler, “porque te pienso”. Seus dedos me procuravam e eu proclamava, num tom quase shakespeariano:
 
_Porque eres linda – sorri – Desde el pie hasta el alma.
 
Elogiada, a Mia levou as mãos ao meu rosto. E me beijou. Senti a sua pele morna tocar o meu corpo, já frio pelo pouco tempo fora da cama, e larguei o livro por um instante. A segurei de volta, enroscando os meus dedos no seu cabelo. E a trazendo para perto. Numa fome que me subiu de repente, num pulsar apaixonado. Quase esquecendo do poema ali.
 
_Não, não, escuta – nos interrompi e deixei seus lábios, entreabertos.
 
Peguei de novo o livro e passei as páginas até encontrar onde tinha parado, ah sim. Aí fiz com que me ouvisse porque eres mía”. Retomei. “Porque no eres mía”. E aos poucos, o seu riso se transformou em atenção. Conforme as palavras saíam da minha boca, mais sinceras, “porque te miro y muero”, o quarto foi se tornando mais quieto, “y peor que muero, si no te miro amor”. Minha voz parecia ressoar nas paredes. Continuei – “porque tú siempre existes dondequiera”, sentindo que precisava lhe dizer aquelas palavras. Lhe garantir, “pero existes mejor donde te quiero”.
 
Os seus olhos me observaram, imersos. E o meu coração acelerava. De repente, tudo parecia mais sério. Merda. Me aproximava da última estrofe, a que me fizera comprar o livro. “Tengo que amarte amor”, meus lábios hesitaram, então, “tengo que amarte”. E quase sem dar-se conta, o ar também faltou à Mia. Cada vez mais ofegante, me escutando lhe dizer verdades demais. Meu coração apertou no peito. “Aunque esta herida duela como dos”, admiti. E ela fechou os lábios, forçando o ar pelo nariz. Numa inquietude que invadia todo o cômodo, “y aunque te busque y no te encuentre”. O clima mudou. Tentei prosseguir, “aunque la noche pase y…”, mas não consegui. Fechei o livro, desconcertada.
 
E respirei fundo, com a última frase entalada na garganta.
 
Chega.

abril 15, 2013

3 Songs – pt. 2

“I wanna be forgotten and I don't wanna be reminded
You say, "please, don't make this harder"
No, I won’t yet"

(The Strokes)
 
_CLARA?! – meu coração disparou – CLARA, NÃO DESLIGA! POR FAVOR, NÃO DESLIGA!!
_Por quê, meu? – a sua respiração parecia pesada – Por que cê acha que eu devia falar com você?
_Porque cê já tá falando, vai, por favor. Só me escuta! – implorei, com o telefone num dos ouvidos e a mão no outro, tentando abafar o som externo – Essa semana foi um lixo, Bi, um inferno! Eu não consigo parar de pensar em você!! LINDA, POR FAVOR! A gente tem que conversar! – choraminguei – S-só, sabe, só sentar em algum lugar e conversar, me dá outra chance! Me deixa explicar, eu... e-eu fiz merda, porra! Eu tô desesperada!! Só a ideia de te perder, meu... – minha boca atropelava as palavras, embriagada, e as lágrimas começaram a se formar nos meus olhos, me fazendo perder todo o controle das minhas emoções – ...e-eu não posso te perder, não posso. Eu te amo. Eu te amo tanto!!
_Você não superou aquela garota. Você sabe que não... – murmurou, magoada – Então por que você me liga? Hein?! Por que cê tem que me fazer passar por isso?!
_Me dá uma chance, só me deixa t...
_Meu... – ela me cortou – ...cê não entende. NÃO FAZ DIFERENÇA! Você, v-você perdeu o respeito por mim. Você nunca se importou...
_NÃO! NÃO!! NÃO É VERDADE!!!
_...você não deu a mínima para como eu ia me sentir, você só, s-só faz o que faz. E eu não sou saco de pancada para esse seu jeito errado, essa sua forma torta de fazer as coisas. Você não leva NINGUÉM em consideração, nada, porra, só as suas vontades... – ela parecia chorar do outro lado e as lágrimas desataram, incontidas, pelo meu rosto – ...você precisa crescer. Eu não posso tá com alguém como você. V-você sabia, inferno, sabia que as coisas tinham mudado para nós. Que eu tinha mudado, que eu te queria. E você, v-você vai e atropela tudo. Tudo! Você magoa todo mundo, porra, magoa a si mesma. VOCÊ ME MAGOOU! VOCÊ ENTENDE ISSO? VOCÊ ME MAGOOU DO PIOR JEITO POSSÍVEL, CARALHO!
_Clara, nã... – solucei, destruída, sem conseguir reagir.
_Olha, eu posso ter te amado... – concluiu, com rancor – ...mas você vai ver o quão rápido eu te esqueço.
_Por favor, não faz isso, nã...
 
Escutei-a chorar, enquanto eu implorava, segundos antes de ouvir o telefone desligar.

Não. Entrei em desespero. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Me senti impotente. Sem saída. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Todas as minhas ligações seguintes caíram na sua caixa postal. E eu perdi o controle. Esmurrei a cabine, gritando, com raiva. As lágrimas me rasgavam. As dela, mais do que as minhas. Quis destruir tudo, completamente fora de mim. Se algum resquício de sanidade ainda me restava, àquela altura já não sabia. Desatei. Sem qualquer noção.
 
Uma das funcionárias do banheiro começou a me chamar do outro lado da porta, alarmada, me mandando sair imediatamente. “FODA-SE! FODA-SE!”, eu chutava a porta de volta, aos berros. Aí ela ameaçou chamar a segurança. E eu sequer enxuguei o rosto. Saí. Furiosa. Deixando a porta escancarada para trás. Aí entrei na pista, absolutamente descontrolada.

_O que tá acontecendo? – o Fer tentou me segurar, ao trombar comigo no galpão – Você tá chorando??? O QUE ACONTECEU?!?!?!
_CADÊ A MERDA DA GAROTA??
_Que garota? – ele perguntou, confuso, e eu tentei me soltar dele, irritada, ainda chorando; a Mia me olhava assustada, ao seu lado, com todos os meus amigos em volta – QUE GAROTA?!? O QUE ACONTECEU??! FALA COMIGO, PORRA!!
_A MERDA DA MINA! A MINA QUE VOCÊS QUERIAM QUE EU PEGASSE, CADÊ A DROGA DA... DA MINA?!
_SEI LÁ ONDE TÁ A MINA, CARALHO! FALA COMIGO!! – ele me segurou forte, tentando me forçar, aos trancos, para fora do surto – QUE PORRA ACONTECEU?!?! CÊ FALOU COM A CLARA?? VOCÊ LIGOU PARA ELA?!?! O QUE ACONTECEU?!??
_ME SOLTA!! – eu chorava, embriagada, gritando – EU QU... Q-QUERO...

Eu queria achar a garota. Qualquer garota. Queria consumir cada milímetro de uma porra duma estranha. Comer alguém em plena pista. Expor a minha falta absoluta de escrúpulos para o mundo. Na frente dos meus amigos, da Mia. Queria magoar os outros, me destruir. Arrebentar a pior parte de mim, acabar com todos os caminhos até o meu coração. Queria aniquilar tudo, meus sentimentos, o que passasse pela minha frente. A garota, a Mia, aquela festa, tudo. Todas aquelas pessoas idiotas, alheias à dor no meu coração. Estourar cada veia no meu corpo até estar vazia. Completamente alcoolizada.
 
E comecei então a descontar em mim, no meu fígado. Fui gastando até o que não tinha em doses imprudentes, tão logo me soltei dos braços do Fernando. A Thaís tentou me segurar, aí a Lê, o Gui, eu não me importava. Fodia com tudo. E de certa forma, funcionava. A bebida me acalmou – mas perdi todos os outros sentidos. Anestesiada e delirante. Duas ou três horas depois e eu dançava em meio à multidão da outra pista, a de trás, absolutamente alucinada. Sem noção das horas ou de onde estava.
 
A minha consciência parecia apagar por intervalos inteiros de tempo. Por mais de meia hora, às vezes, para então ressurgir enquanto eu vomitava em pé ao lado das caixas de som. Aí voltava para a pista. Caía no banheiro. Não lembrava de rostos, nem de conversas. Discuti algo com o Fer, em algum momento. E a Mia apareceu – ou já tava lá? –, pouco depois dele sair de perto, irritado. Eu cambaleava e trombava nas pessoas, ela ficou ao meu lado. E tentou me segurar, colocando o braço ao redor do meu corpo, pedindo para que eu fosse junto com eles.

Eu fechava os olhos e me mexia desenfreada, fora de mim, dançando – e quase a derrubando junto. A Mia riu e disse, com carinho, que eu devia ir. “Vem tomar um ar comigo, com todo mundo”, repetiu algumas vezes, “vamos lá pra fora, vem”. Mas eu não ia. Você..., eu a observei, sem conseguir perceber direito os arredores, ...tá...tão bonita. Eu gosto tanto..., pensei, ...de você. E não disse nada. Não sei o que aconteceu então. Em algum momento, acho que virei as costas e simplesmente me enfiei na multidão, sumindo da sua vista e me afastando. Era tudo um borrão. Só retomei a consciência algumas horas depois.

Já amanhecia quando me dei por mim ao lado do Gui, fumando perto da piscina – como vim parar aqui? O Du estava junto a ele. Comecei a falar e os dois então me convenceram a pagar e ir embora. O Fer, a Mia e o Benatti já estavam do lado de fora. Havia outros amigos meus também, mas a maioria parecia ter ido para casa. Nenhum sinal da Lê ou da Thaís. Quando me viu sair na calçada, descabelada e bêbada, o Fer caminhou até onde estávamos e me falou algo, me deu uma bronca. Não me lembro bem. Não discuti de volta, só ouvi, meio fora de órbita.

Ele e o Du trocaram algumas palavras também – deve ter mandado que me levasse direto pro apartamento e que cuidasse de mim. Tive a impressão de que era isso. Me deu o seu casaco, antes de voltar para perto dos outros. E a Mia estava lá. Ao lado deles, me olhava à distância e sorriu, eu a observei. E aí, e aí eu, e-eu não sei. Tive um sentimento estranho, como se tivesse que ter dito alguma coisa naquela hora – mas não disse nada. Tinha sido uma idiota com ela mais cedo. Estava a metros da Mia, esperando junto ao Du e ao Gui até uma outra garota chegar. Aquela estranheza ficou entalada, o sentimento que tive.
 
O nosso carro iria duas vezes mais cheio do que na vinda. A Mia e o Fer foram noutro, junto com o Benatti.
 
O amigo do Du tinha um Gol branco, entrei cambaleando. Me sentia tonta. Completamente fora de mim. Me espremeram contra a porta ao final do banco, diretamente atrás do motorista. Me dava certa noção de segurança por estar voltando para casa, mas a luminosidade do sábado de manhã ardia nos meus olhos. Peguei então o celular e digitei torto para a Mia – “me necotra noapto??1”. E então desmaiei. Até acordar, lá pela metade do caminho, com um dos amigos do Gui vomitando pela janela. A garota ao meu lado falava sem parar, uma ruiva que parecia hétero, com uma voz estridente. Ou talvez fosse toda a bebida dentro de mim. O meu estômago estava embrulhado, minha cabeça começava a doer.
 
Argh.

abril 13, 2013

3 Songs – pt. 1

What makes you think we can fuck?
Just because you put your tongue in my mouth
And you twisted my titties, baby?
(The Trucks)

_VAI LÁ, PORRA! – o Fer gritava e ria.

Era a quarta vez que a garota olhava para mim. De cabeça raspada, butch, tatuada; estava com as amigas a uns metros adiante na pista. Já meu amigo seguia apoiado sobre o meu ombro, estourando os meus tímpanos. O Benatti e a Lê o apoiavam, ao redor de mim, insistindo para que eu fosse até ela. A garota olhou mais uma vez e eles me cutucaram, quase grosseiros, enquanto eu desviava o olhar para o quinto copo da noite. Como odeio aniversários. O Fernando praticamente fechava negócio por mímica com a desconhecida. E eu tinha que puxá-lo de volta, conforme se erguia na ponta dos pés para vê-la sobre a multidão.

_VELHO, LARGA DE SER RIDÍCULA! VAI PEGAR A PORRA DA MINA!!
_NÃO, CARALHO! – resmunguei – NÃO QUERO!
_POR QUÊ? POR CAUSA DA CLARA? – o Fer achou ruim, me empurrando na direção dela – SÓ VAI LOGO!
_É, MANO! – o Benatti completou – A GENTE ATRAVESSOU A CIDADE PRA VIR NUMA BALADA QUE DESSE PRA CÊ PEGAR ALGUÉM...
_VAI LÁ, DIABO! – a Lê riu – VAI TE FAZER BEM!!

Olhei rapidamente para a Mia, que observava tudo quieta, um pouco mais atrás dos três idiotas. E fiquei em silêncio. O Fernando fez mais uma tentativa de me arrastar pro outro lado da pista. E eu puxei o meu braço, me desvencilhando. “VOU ENCHER O COPO”, anunciei então e virei as costas para eles – e para a garota.
 
Assim que saí do galpão da The Week, tirei o celular do bolso. E tentei ligar mais uma vez para a Clara, na área próxima à piscina. Nada. O lugar estava lotado, as pessoas se moviam num caos bem viado. Minhas pernas já começavam a trançar. Voltei até o bar externo. E redisquei mais uma vez, conforme o barman me enchia uma dose de rum. Cancelei a chamada, sem resposta – inferno.

_Então, me diz... – a Mia encostou ao meu lado no balcão e acendeu um cigarro, me fitando – ...é impressão ou cê tá mesmo me evitando?
_Eu não tô te evitando – coloquei o celular de volta no bolso.
_Não?

Apoiou os cotovelos na bancada, com a cabeça sutilmente inclinada. E sorriu, de leve. Num vestido de alcinha que eu gostava, com os fios castanhos caindo sobre os ombros, escorregando pelas suas costas tatuadas com flores. Pôs-se a me observar – os meus dedos ao redor do copo, os meus pulsos, os meus braços. Quase flertando. E eu senti uma falta impulsiva da sua pele.

_E o que acontece...
_Hum?!
_...que cê tá toda solta aí... – ela respirou fundo, fazendo graça – ...e tá recusando mina na balada?
_O que isso quer dizer, Mia?! – a respondi, sem paciência.
_Nada. É só que não te vejo muito “comportada” assim...
_Vê, sim. Vê, sim, Mia! – me irritei com o comentário, um pouco alterada pela bebida – Cê já me viu fazer isso um milhão de vezes! Eu consigo contar na mão as garotas que peguei na sua frente E VOCÊ SABE!
_Nossa, desculpa! – ela sorriu, sem se abalar pelo meu mau-humor – Não tá mais aqui quem falou. Muito comportada, sim!
_O quê?! Cê acha que porque eu fiquei com você, quer dizer que eu traí a Clara com todo mundo??
_Meu, não tô tentando te irritar, eu tava só...
_Olha, na boa, não sei por que tá todo mundo agindo como se eu fosse comer a primeira porra de menina que passar na minha frente!
_Calma. Eu só acho que cê tinha que tentar se divertir... – sorriu – É seu aniversário. Tamo aqui pra isso, não?
_Com outra garota?!? Me divertir com quem, Mia?
_Comigo.
_Eu não posso fazer isso. Não aqui, não assim – balancei a cabeça, séria, e tomei o último gole da minha bebida – Cê veio com o Fer, caralho, não comigo.
_Isso é problema meu... – ela deu mais um trago, com certa irreverência, me encarando – ...não seu.
_Escuta, a gente precisa parar de fazer isso – me angustiei.
_Hum. Mas e o seu presente, como faço para entregar?

Nisso, senti o meu bolso vibrar. É o meu celular, cacete.

_Que foi? – a Mia notou a minha expressão se alterar, já alcançando o telefone no bolso, e reajeitou o seu corpo – É a Clar...?
 
Saí andando antes que ela terminasse a frase, com o telefone em mãos. Numa ansiedade de abrir logo a mensagem. E então li, ainda caminhando, conforme as palavras me deferiam socos no estômago – “Para de me ligar. Para de me mandar msg. Eu ñ qro q vc me procure nunca mais”.
 
Não.
 
Me tornei violenta, irracional. Perdi a cabeça. Trombei em dezenas de pessoas no caminho para o banheiro – em partes por estar bêbada, noutras por sequer olhar direito para frente, as atropelando enquanto relia a mensagem duas, três, quinze vezes. E assim que cheguei na fila, comecei a ligar para a Clara, compulsivamente. Desrespeitando o que me pedia, num comportamento deplorável, desesperada, fora de controle. Sentia a ansiedade esmagar meus pulmões.
 
ATENDE, POR FAVOR, ATENDE.
 
Tocou até cair na caixa postal por quatro vezes antes que uma das cabines fosse liberada. E eu me tranquei ali, nervosa. Aí lhe enviei uma enxurrada de SMS, recados de voz, tudo. Ela não me atendia. Sentia que a perdia, agora pra valer. E não sabia o que fazer. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Isso é culpa minha. Minha. Minha, cacete, como eu sou burra! Aí tornava a discar – atende, atende, atende, atende, atende, por favor, atende – e me angustiava com o telefone mudo entre os toques. Vez atrás de outra.
 
Até que, de repente, ouvi a sua voz:

_O que você quer?

abril 09, 2013

Esquenta

Minha honrada decisão durou dois dias. Nem isso. E com a chegada da minha festa, que o Fer tinha adiado para o fim de semana seguinte à viagem e agora insistia em manter só para me tirar de casa, todas as minhas promessas de ser uma pessoa melhor dali em diante e de dar espaço à Clara foram rapidamente diluídas em três copos de whisky, seguidos de doses colossais de desespero emocional, com o coração destruído, instantes antes de eu embarcar para uma balada do outro lado da cidade.
 
O Du terminava de se arrumar no quarto e eu o aguardava pacientemente, na cozinha – isto é, virando uma dose atrás de outra e grudada àquele celular como se minha vida dependesse dele. Patética. Começava a me tornar deliberadamente inconveniente. E a Clara se mantinha em silêncio, me ignorando, como fizera a semana toda. Os meus SMS iam se tornando cada vez mais apelativos – indo de “sdds :(” a “ME ATENDE, PFVR!! EU SO QRO FALAR COM VC!!! TO SENTINDO TANTO SUA FALTA, CARALHO, EU TAVA ERRADA!! EU SEI QUE TAVA, BI!! PFVR! FALA CMG!!”, em menos de quarenta minutos.
 
É. Minha fossa estava oficialmente fora de controle.

_Pronto! – o Du surgiu de repente, num jeans claro e regata preta, encostado na porta que dava para o corredor – Vamos?
_Vamos, só espe... – eu terminava de digitar um último SMS para a Clara – ...ra. Tá! Vamos.

“To indo na gambiarra da the week”, dizia minha mensagem, “qro mto te ver, pfvr. vms conversar. eu qro ir com vc, bi. COM VC!”. E a notificação de recebimento chegou antes mesmo de entrarmos no elevador. Saber que ela tinha lido minhas mensagens e ainda não respondia me matava. Um amigo do Du veio nos buscar e estava nos aguardando, estacionado na antiga vaga do Fer na garagem. Ela agora era alugada por um cidadão do terceiro andar que não ficava em São Paulo nos finais de semana.
 
Saímos em direção à Barra Funda. E tão logo deixamos a garagem do prédio, o meu celular vibrou. Apressei-me para ver o que era, um tanto embriagada e iludida que talvez pudesse ser a Clara, finalmente me respondendo. Mas era a Mia – “Ei. ta animada? ;-) senti sua falta essa semana”. Apaguei a mensagem, num impulso amargo. Não contra a Mia, mas mim mesma, a minha má índole. E tão logo me arrependi de tê-lo feito. Argh.
 
A verdade é que eu sentia a falta dela também – mas não tinha certeza se queria passar a festa que o meu melhor amigo planejou escondida com a sua namorada em algum canto. E por mais que o meu corpo inteiro parecesse sedento por curar aquela fossa nas suas mãos, em seus beijos, que eu tanto gostava, eu não conseguia. Simplesmente não conseguia.

abril 05, 2013

Meio-fio

_Cê tem um novo admirador...
 
Comentei ao sair com o Fer para tomar um ar em frente ao prédio – o apartamento estava um forno, não dava mais para continuar ali.
 
_É só o que me faltava – ele achou graça, acendendo um cigarro – Se bem que eu devia mesmo aparecer na casa do velho com um namorado, ver se ele me deserda de vez...
_Bom, tá fácil. Já tem voluntário... – arqueei a sobrancelha e roubei o cigarro das suas mãos, dando um trago também – ...mas acho que o Du faz mais a linha só-quero-te-comer.
_Não, para. Tô de boa.

Retirou a brincadeira na hora. E eu comecei a rir – o tesão platônico do Du pelo Fer me divertia. E me distraía da merda que estava a minha vida. Nos sentamos no meio-fio, já levemente bêbados de tanta cerveja, e eu traguei mais uma vez o cigarro que tinha roubado, passando-o de volta para o Fer logo em seguida.
 
_Mas e aí, meu... – olhei para ele – ...falando em namoro, acabei nem perguntando, como tão as coisas entre você e a Mia? Cês andavam se desentendendo, né...
_Ah, mano...  sei lá... – balançou a cabeça, frustrado – ...esse fim de semana até que foi da hora. Mas mesmo quando tamo de boa, estar em Santo Amaro dificulta um pouco as coisas. É foda não ter grana pra sair e ter que ficar se vendo na casa dos pais dela, dos meus...
_Nossa, sim. Não dá nem pra fumar um, meu!
_É, então. Foda. Mas vamos ver, né... O cara lá do trampo da Marina me ligou, vou lá essa semana. Quem sabe rola mesmo e aí eu volto pra cá te atazanar...
_Por favor! Preciso de pelo menos uma notícia boa na minha vida...
 
E assim que falei aquelas palavras, ainda que sinceras, o meu coração afundou. É estranho como os seus pensamentos se voltam contra você quando se está triste. Peguei o cigarro das suas mãos, dando mais um trago, enquanto sentia meu peito se dividir entre realmente querer morar com meu melhor amigo de novo e um medo desgraçado de perder o que tinha com a Mia quando ele não estava no apartamento, a intimidade que construímos nos últimos três, quase quatro meses. Argh. Como posso sequer pensar isso, me reprimi silenciosamente, escrota do caralho.
 
Aquela semana estava particularmente difícil para lidar comigo mesma. E por mais que tentasse manter a minha cabeça no lugar, a minha mente tinha um jeito sorrateiro de tirar as coisas de contexto, de ir me envolvendo numas brisas estúpidas. E eu não conseguia fugir. De repente, conversando ali, sentados na calçada da Frei Caneca, me sentia como a razão para tudo o que tinha dado de errado na vida do Fer recentemente – desde o relacionamento dele com a Mia ao seu retorno à casa dos pais. A culpa era minha. Toda minha. Assim como também era culpada pelo meu término com a Clara, por machucar tanto a garota que eu amava. E eu me torturava por dentro, inferno, naqueles breves segundos, soltando a fumaça para o lado, cabisbaixa.
 
_Ei... – o Fer notou a minha angústia e deduziu – ...calma, ela vai voltar também.
_Fer, não, e-ela... – suspirei e os meus olhos doeram, cacete – ...ela é esperta demais para voltar para mim. Cê não tá ligado o quanto eu fodi as coisas.
_Ela seria uma idiota de não voltar, meu.
 
Colocou o braço sobre meus ombros, me abraçando, numa tentativa de me animar, e sorriu. Mas no fundo, eu sabia – sabia que a Clara não tinha que aguentar nenhuma das minhas merdas. E sabia que ela estava certa. Já estava decidido no segundo em que subimos naquele avião – e no fundo, talvez o Fernando também soubesse disso. Mas me beijou a testa, com carinho, chateado por ter que assistir o meu coração partir assim.

Conversamos até tarde naquela noite. E quando me deitei, lá pelas tantas da madrugada, tive um impulso de religar o celular. De ir importuná-la. De ligar e ligar e ligar, de novo, até que me atendesse, de obrigá-la a lidar com a falta absurda que eu sentia dela, por mais injusto que fosse. Não sabia o que fazer com aquele buraco no meu peito, na minha vida. Caralho. Mas por algum motivo não o fiz – dando-me conta de quem eu estava me tornando. E quem eu não queria ser. Eu precisava deixar a Clara em paz.
 
Deixar ela me esquecer.

É. É isso.

abril 04, 2013

Moleques

_Parei já, alguém quer?

O Fer ofereceu da poltrona, antes de apagar o baseado sobre a mesa de centro. Nenhum de nós se manifestou. E o Du arrancou meio de qualquer jeito os sapatos, visivelmente bêbado. Notei que os seus olhos se demoraram alguns segundos nas tatuagens no corpo do Fer – sentado a uns metros de nós, sem camiseta. Achei certa graça. Meu melhor amigo tinha a mania de passar a mão na parte de trás da cabeça, alisando os fios cortados na máquina – e agora ganhava um espectador. O Du o observou, sem muito filtro, chapado. Estava afundado ao meu lado no sofá. Sem perceber a atenção, o Fer reuniu as latinhas vazias sobre a mesa e levantou para buscar mais uma na cozinha.
 
_Pô, gato esse seu amigo aí... – o Du disse em tom baixo, na primeira oportunidade que teve, largado contra o braço do sofá – ...num tinha reparado da outra vez que ele veio.

Acenei com a cabeça. E ao longe, ouvi o som das latas sendo jogadas no lixo e depois a geladeira se abrindo.

_Um cara assim... – meu roomie prosseguiu, bem bêbado, com uma vontade sincera – ...sem chance dele dar a bunda, não é?

E pela primeira vez em dias, eu comecei a gargalhar.

abril 03, 2013

A fossa

Peguei mais uma cerveja na geladeira. E disquei o seu número – “por favor”, murmurei, com os olhos já inchados de tanto chorar. Fui até a área de serviço, tentando não fazer barulho conforme me escondia. Ouvi o telefone chamar, sem resposta. Era a minha quarta ligação em menos de duas horas. Atende, atende. A latinha suava entre meus dedos e o calor que assolava São Paulo naquela noite se esparramava janela adentro. Contra meu ouvido, os toques ecoavam. Ignorados. Vai, só atende, porra.
 
Aí escutei o meu nome na cozinha e a ligação caiu mais uma vez.

_Caralho... – chutei um balde entulhado de produtos no chão, apoiada nas beiradas do tanque com celular e cerveja ainda em mãos.

O Fernando abriu a porta atrás de mim.

_Mano, cê tá se escondendo?!  
_Não – retruquei, grossa.
_Para, porra... – relou na minha mão e eu saí da área de serviço, trombando no seu ombro – ...para de ligar pra ela!

Continuei em direção ao corredor, sem responder. Larguei a latinha sobre a mesa da sala e enfiei a cara numa almofada, me jogando no sofá. O Fer veio em seguida. Sentou na poltrona, me observando ter um ataque de frustração. Ele riu. E então mandou que eu entregasse o celular. “Não” – respondi, rancorosa. E me sentei, tornando a discar o número da Clara. Ninguém atendia. O Fer se levantou, dando dois passos até mim, e tirou o aparelho do meu ouvido – “chega”. Desligou o telefone ao sentar-se de volta na poltrona e o meteu no bolso da bermuda, encerrando o assunto.

_Me dá. Eu não vou ligar.
_Vai, sim.
_Me dá a merda do telefone!
_Não, cara... – ele riu, de novo – Quê que cê vai conseguir com isso? Faz dias que você tá perseguindo a mina e ela num dá sinal de vida, meu... a única coisa que vai sair disso é briga.
_Dane-se! Talvez eu queira que ela brigue comigo!
_Mais?! – o Fer balançou a cabeça, indignado.
 
Aí puxou a camiseta por cima da nuca, a tirando. E tornou a encostar na poltrona, largando a blusa no chão e acendendo um baseado.
 
_Velho... – soltou a fumaça espessa no ar, me encarando – ...para. Cê não é assim, na boa.
_Foda-se. Eu preciso fazer alguma coisa! Qualquer coisa! Eu prefiro que ela atenda essa porra desse telefone e me xingue, que grite comigo do que que eu não tenha nem chance de falar, caralho, de explicar q-que eu... porra, que eu sinto uma falta desgraçada dela!! Fer, eu, e-eu tô enlouquecendo!
_Calma, ela vai voltar... Cê tem que dar um tempo para ela, mano.
_Não. Não pra Clara... – neguei e ele roubou um gole da minha cerveja, com calor – ...ela não vai me esperar. Já deve ter uma porra duma fila de mina aí pra curar ela de mim, cacete. Eu não posso, não posso deixar ela me esquecer, mano. Porque eu sei que ela vai! Ela não vai vir rastejando de volta, não a Clara.
_Meu, cê tá viajando, o que cês tinham não é descartável assim. Ela gosta de você.
_Não, Fer... Eu fodi tudo, fodi mesmo. Ela tá puta comigo.
_Ela te levou para a Argentina, mano! Cê que não tá vendo o quanto essa mina te curte...

Não, balancei a cabeça e arqueei a sobrancelha, não sei se a Argentina melhora ou pioras as coisas. Tomei mais um gole da minha cerveja, pensando se devia fumar também. Meu coração estava dilacerado. Não conseguia acreditar que tinha fodido tudo com a garota que eu amava. Sentia-me vazia sem ela do meu lado, sem os seus SMS o dia todo. Parecia que faltava algo, alguém para dividir a minha cama, a minha porra de existência naquele buraco – São Paulo tornava-se ainda mais cinza. Argh.
 
Já era quarta-feira. E eu me deixava amargurar com o passar dos dias, a sua ausência parecia gritar dentro de mim. Tinha feito tudo, tudo errado. Chorei por três noites seguidas, consolada pela Marina que dormiu comigo de domingo até aquela quarta de manhã. A cada pausa que fazia no trabalho, cada segundo que tinha livre, eu mandava mensagem, ligava e checava a tela do meu celular compulsivamente. Mas nada.
 
Mais cedo naquela noite, o Fer me encontrou na saída da produtora, provavelmente depois de receber uma mensagem preocupada da minha ex. Contei quase tudo que tinha acontecido. Ele não entendia como eu podia ter mencionado o nome de outra garota em meio à nossa viagem em Buenos Aires – no caso, o da namorada dele. Cujas mensagens, aliás, eu vinha ignorando a semana toda. Eu sabia que o Fer já tinha contado para ela e que a Mia só estava preocupada, tentando me apoiar. Mas não estava com coração cabeça para lidar com o motivo personificado do meu término com a Clara. Inferno.

_Pelo menos deixa ligada essa merda, meu! – me inquietei no sofá – Vai que ela responde...
_Não vou ligar, cacete. Esquece!
_Fernand... – interrompi meu próprio resmungo, nervosa.

Ele me observava, inabalado. E me vi obrigada a ceder – não estava desesperada o bastante para ir, de fato, até lá e tirar o celular à força do bolso dele. Foi quando ouvimos a porta da frente se abrir. Era o Du, chegando de algum happy hour, com cheiro de bar. O Fer se virou para ver quem entrava, estendendo-lhe a mão por cima do encosto da poltrona.

_E aí, velho? Beleza? – ambos se cumprimentaram e o Du largou uma sacola da Livraria da Vila sobre a mesinha à minha frente.
_Que cês tão fazendo aí?

Perguntou ao sentar na ponta oposta do sofá, largado a meu lado. Revirou então os olhos e riu, de bom humor, assim que o Fernando explicou – “curando a fossa dessa aí”.

abril 02, 2013

Que falta desgraçada

 



 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
...dela.