setembro 26, 2011

"So please, please, please...

...let me, let me, let me get what I want this time.
(The Smiths)
 
A Patti me seguiu, em meio àquele mar de gente dançando pós-punk, segurando a minha mão. E os olhos dos amigos dela nos seguiram também, entusiasmados, nos observando à distância em meio à pista. Nos olhavam ainda, com uma dose a menos de empolgação e umas quatro a mais de whisky, os olhos castanhos da Mia. Merda. Não vou conseguir nada aqui, me frustrei, não com essa plateia toda. Então puxei a Patti pela mão, numa decisão rápida, e entramos no banheiro. Os amplificadores tocavam o que me parecia ser The Smiths. Tinha só duas pessoas na nossa frente na fila. Longe da roda de amigos, a Patti se tornou mais quieta e eu perguntei se ela estava bem, sozinha ali comigo. Ela disse que sim. E me zombou:
 
_Então era isso que cê queria me mostrar? – riu.
_Isso – eu ri também – Gostou?
_Do banheiro?
_É.
_Olha... Não sei.
_Mas cê viu os ladrilhos que bonitos?
_Muito, verdade. Tem razão.
_Não é? Passei a noite toda querendo te trazer aqui, meu... – brinquei – ...sabe, é um lugar especial pra mim.
_Sei. Traz várias lembranças, né?
_Várias.
 
A gente se divertia, enquanto esperava. Até uma das cabines vagar. Finalmente. Fechei a porta atrás de mim e a Patti me olhou, agora menos confiante. Como se, de repente, estranhasse a situação. Encostei em um dos lados da cabine, apoiando um dos pés contra a parede atrás de mim. E ela ficou do outro lado, segurando com ambas as mãos a garrafa, com um restinho ínfimo de cerveja, um tanto insegura em seus movimentos. Não fiz nada, a esperei. Ela parecia nervosa com a possibilidade de realmente nos beijarmos – me lembrava, de certa forma, a Mia de muitos meses antes.
 
Ela sorriu para mim. E observou em volta, passando os olhos pelas quatro divisórias que nos cercavam naqueles dois-metros-por-um bem mal iluminados. Ficamos quietas ali por alguns instantes. Terminei de virar a minha cerveja e me curvei para apoiar a garrafa ao meu lado, no chão. Então ela me olhou de volta.
 
_Isso é estranho... – a Patti sorriu, um tanto desconfortável.
_Por que estranho?
_Ah, não sei... mas é – disse, sem desgrudar os braços e a garrafa da frente do corpo – Não achei q-que eu... s-sei lá.
 
Ela começou a rir, sem saber o que fazer ali comigo. Aí desviava o olhar e eu a observava, com calma. De repente, agora, parecia constrangida pela minha presença. Tirei os olhos de cima dela e abaixei a cabeça, encarando o chão junto com ela. Tinha as suas pernas encostadas contra a parede, grudadas uma na outra e tensas, nuns shorts rasgados que revelavam metade do que parecia ser uma âncora tatuada na parte de cima da sua coxa. Seus dedos se alternavam, dedilhando contra o vidro suado da garrafa. Então respirou fundo.
 
_Ei, cê quer ir? – comecei a rir mais uma vez, achando graça no seu nervosismo.
_Não, eu... – ela riu, abaixando a cabeça com vergonha, e a ergueu logo em seguida – Será que... sei lá... a gente não pode só dizer que se beijou?
_Pode – respondi e sorri para ela – Como cê quiser, meu.
 
Mas aí não se moveu em direção à porta. Pelo contrário, ela ficou. E eu a esperei decidir. Passou algum tempo encarando os nossos pés, próximos uns dos outros no chão, hesitante. Ela com um All Star preto e eu com o meu coturno surrado. O som da balada entrava abafado dentro da cabine. Ela me olhou de volta e riu, ainda nervosa. Escuta, se você não vai fazer nada, declarei terminado o seu tempo, então eu vou, garota.
 
Desencostei da parede, me movendo na sua direção. E escorreguei os meus dedos por cima dos seus, retirando a garrafa das suas mãos, a levando para trás do meu corpo. A Patti inspirou fundo no mesmo segundo, tensa. E me olhou – levei a outra mão até o seu rosto e ela fechou os olhos, deslizei os dedos pela sua bochecha, depois os seus lábios. O mais devagar possível. Aí me aproximei do seu corpo, descendo a mão até a sua cintura. E a beijei.

setembro 25, 2011

Redirecionando

Tá. Olha, eu já ia agir daquele jeito de qualquer forma. Aquela era a minha noite e eu tava com um fogo desgraçado na raba. Então, não, não é como se todos os vai-e-vens de sem vergonhice lésbica na pista fossem mero capricho meu. Eu estava feliz pra caralho, porra, e queria beijar todo mundo mesmo – fosse a garota que estava dançando entre eu e a Thaís ou a amiga da Lê que saiu para fumar comigo lá pelas tantas da madrugada. Que se dane.
 
Contudo – e este é apenas um mínimo detalhe –, o fato da Mia estar lá, digamos, a tão poucos metros e com aquela cara de merda para mim, tornava cada má decisão um tanto mais divertida. E eu estava, acreditem, fazendo com que ela visse e reprovasse cada uma delas. 
 
_Cara, nem a pau que cê superou essa mina...
_Ah, cala a boca, Lê! – ordenei, resmungando, conforme pegava dois shots de tequila do balcão.
 
É. Decidi que aquela noite merecia um passe livre. Mas depois de uns 4 meses sem beber direito, bastaram uns dois shots para eu já estar falando mais alto do que nunca e abraçando todo mundo que cruzava meu caminho. Lá pelas duas da manhã, quando o Gui chegou, todo atrasado, cercado dos seus amigos do teatro, pulei em cima dele com tanta empolgação que caímos os dois no chão. Entre a multidão de pés e a sujeira do Vegas. E quanto mais barulhenta e sem noção eu ficava, mais a Mia se incomodava comigo.
 
Que se foda. A verdade é que naquela noite tinha, ali no rolê, uma hétera muito mais interessante do que a Mia vinha sendo naquelas últimas horas, com suas viradas de olho e cortes categóricos às minhas tentativas de integrá-la nas minhas conversas com o Fer. Era amiga de um amigo nosso. Uma ilustradora duns vinte e poucos anos. Em quem eu, após me perder por diversas vezes na boca de outras garotas na pista, tinha encanado de uma maneira que só é possível quando se tem mais tequila do que sangue correndo pelas veias e tudo parece ser uma epifania. Como se fosse a porra do destino.
 
Todavia, apesar dos meus nada modestos esforços, eu ainda não tinha conseguido a beijar.
 
Com ambas as tequilas em mãos, retornei para o seu lado num círculo de pessoas a poucos metros de onde o meu círculo de pessoas estava. Dei um dos copos para ela e viramos tudo de uma só vez. O álcool desceu queimando pela minha garganta, enquanto uma música qualquer do Billy Idol ressoava nos amplificadores da balada. Eu a olhava, insistentemente – e ela se aproximou do meu rosto, apoiando-se no meu ombro, para me provocar e perguntar, brincando, se eu estava querendo embebedá-la com segundas intenções.
 
_Olha, o que eu quero com você... – respondi em seu ouvido, já um tanto insolente devido à bebida – ...eu quero fazer sóbria, para lembrar de cada segundo.
 
Ela se enroscou em mim, se aproximando ainda mais enquanto me escutava, e a sua boca relou de raspão no meu pescoço, desgraçada. Antes de sorrir e se afastar do meu rosto, me negando com a cabeça. É – esse era o nível de flerte que a gente estava. Mas eu gostava, puta que pariu. Disse então que eu estava me achando. E eu dei de ombros, ela começou a rir. Nos divertíamos. Volta e meia, no entanto, os meus olhos cruzavam acidentalmente com os da Mia, a poucos metros de nós. Cada vez mais desconfortável.
 
Qual o seu problema, garota?
 
A Lê trocava ideia com o Fer na rodinha ao lado e a Thaís já tinha sumido, em algum momento, correndo atrás duma butch recentemente descomprometida e que mais estava interessada em fazer ceninha para a ex-namorada do que em genuinamente ficar com a minha amiga. Drama sapatão. Enquanto isso, eu e o meu probleminha da vez nos encontrávamos em mais uma rodada, com duas cervejas em mãos.
 
Ela se chamava Patti. Tinha um piercing no septo, o cabelo preto jogado para o lado, um sotaque mineiro e umas tatuagens old school que estavam me tirando do sério. Sorria na minha direção, rindo de qualquer coisa que eu tinha falado. E eu me perdia por um segundo no jeito da sua boca. Tomei um gole, já ultrapassando a metade da garrafa, numa tentativa fracassada de esfriar a cabeça. Não rolou. Então fiz graça para ela, arqueando brevemente as sobrancelhas:
 
_Vamos dar uma volta comigo, vai?
 
E ela riu, balançando a cabeça.
 
_Não dá, eu sou hétero... – repetiu, como se eu não a tivesse ouvido nas últimas dez vezes que se antecederam.
_Todo mundo é... – retruquei – ...até não ser mais, né.
 
E mais uma vez, ela riu, me olhando. Começava a ganhar certo carinho por mim – acho. E eu, certa confiança. Ela deu um gole na sua cerveja e olhou para o outro lado. Então me aproximei do seu ouvido, fazendo graça – “é pra eu ir embora?”. “Não”. “Não?”. “Fica aqui”, respondeu, esbarrando a mão na minha e eu entrelacei os meus dedos nos seus. “Então vem comigo, vai?”. “Onde?”. “Dar uma volta”. E ela balançou a cabeça, de novo. “Quero te mostrar uma coisa”, insisti. “Que coisa?”. “Vem comigo que eu te mostro”, ri e ela riu também, ainda de mãos dadas comigo.
 
Aí me observou por um instante, hesitante, e deixou escapar um sorriso – “tá”.

Bem-vindos ao Vegas

...que comecem os jogos!

setembro 19, 2011

Isso!

“Me deve uma tatuagem!! :) rs”, digitei para a Thaís no metrô de volta. E nem um minuto depois, a resposta já estava vibrando na minha mão – “Conseguiu?????”. “Sim!!”. “DO CARALHO!”. “Vamos sair hoje?? Chama a Le”, sugeri, descendo na estação Consolação. Coloquei o celular no bolso, animada, e subi as escadas rolantes. Assim que pisei do lado de fora, senti meu telefone vibrar de novo. Era um SMS da Lê, já devidamente informada.
 
“PARABENS SAPATAOOOO bora comemorar kkkk”, li e sorri.
 
Desci a Frei Caneca num piscar de olhos. Cheguei no apartamento e escancarei a porta, numa felicidade tão grande que assustei o pobre do Fernando. Ele estava assistindo TV com a Mia – desta vez, com as roupas vestidas. A luz estava acesa e o cômodo bagunçado. Entrei, toda empolgada, fazendo um escândalo. Aí pulei no sofá, me virando deitada de barriga pra cima, e apoiei a cabeça no colo do Fer. Sorrindo. E ele me olhou confuso, sem entender porra nenhuma.

_Então... – ri – Quem é a mais nova assistente de produção contratada?
_ERA HOJE?? – sorriu também, feliz – DEU CERTO??

Levantei e ele me abraçou, na mesma hora.
 
_CÊ TÁ ME ZOANDO? JÁ É CERTEZA?!
_É! – continuei, ignorando a presença da Mia, quase gritando as boas notícias – E meu, paga bem mais!! É sensacional! E fica na porra da Brigadeiro, muito perto!
_Tá zoando?
_Meu, não. É o trampo perfeito. Sério! Até a minha chefe nova é gata... – comecei a rir, acendendo um cigarro – ...começo na segunda!
_A gente tem que comemorar!
_Cê acha que não? – dei um trago – Já avisei a Lê e a Thaís, vamos no Vegas hoje. Bora?
_Fechou!
_Meu, Fer, cê num tem noção de como eu tô feliz. Tô pilhada pra caralho!! Sério, mano. Quero pegar a balada inteira hoje! – ri – Vamos arregaçar, meu. Tô feliz pra cacete!!

Aí olhei para a Mia inconscientemente, já tragando logo em seguida e olhando pro outro lado de novo. Ela não pareceu gostar.

_Demorou! – o Fer riu, empolgado também – Vou chamar os moleques. Te pago a primeira cerveja!
 
Tirou o celular do bolso para avisar nossos amigos, como se precisassem de motivo para sair numa quarta-feira e encher a cara na Augusta. Digitou umas três ou quatro mensagens e guardou o telefone de novo, me abraçando, mais uma vez. E aí nós dois olhamos para a Mia, ao mesmo tempo, meio sem querer.
 
_Parabéns... – resmungou, a contragosto.
 
Parecia desconfortável – com a noite anterior ou com a mensagem que não respondi. Vai saber. Talvez fosse meu comentário de minutos antes. Se limitou a concordar com o rolê no Vegas, sem lá muito ânimo, conforme as confirmações dos nossos amigos iam chegando no meu celular e no do Fer. E mal olhou para mim.

setembro 18, 2011

Na boca do lobo

Batia os pés inquietamente, na sala de espera. Alternando-os contra o piso, em um ritmo acelerado – acelerado e crescente, conforme minha ansiedade também crescia. Cadê a porra da recepcionista? Um cara mais ou menos da minha idade esperava a umas duas cadeiras de onde eu estava. Bem menos preocupado, claro – como qualquer filhinho de papai.
 
O movimento dos meus pés impacientes começou a me irritar. Escorreguei então contra o encosto, afundando na cadeira, e cruzei as pernas um pouco mais adiante. Aquietando-as. Suspirei fundo e cruzei os braços em frente ao corpo. Maldição, por que eu tô tão nervosa?! Forcei-me a sossegar por um instante – mas, no segundo em que me distraí, lá estava o meu pé direito sacudindo mais uma vez no ar. Inferno. De repente, escutei o salto da recepcionista dar passos em direção a onde estávamos.
 
Me endireitei na cadeira. E aí olhei para o garoto ao meu lado, trocando um sorriso de meio segundo por etiqueta. Boa sorte é o caralho, observei atenta a porta da sala de espera, ansiosa, torcendo para que me escolhessem. Eu tinha ido bem na entrevista, uma hora antes. A recepcionista nos olhou ali, sem o menor interesse na nossa angústia por qualquer informação que fosse, e só anunciou que o veriam primeiro. Merda. Respirei fundo e preparei para me levantar, já com a certeza de que não tinha conseguido, pronta para dar o fora.
 
_Vão falar com você em seguida – ela me advertiu.
 
Olhei-a de volta, sem vontade nenhuma de continuar ali. E tornei a me sentar. O cara ao meu lado passou bem na minha frente, com seus alargadores de 4mm de playboyzinho paga-pau e um sorriso de canto de boca, desta vez sincero, como se tivesse me vencido. Mano, que ódio, eu respirava pesado, tomada por uma frustração imensa. Antes que a recepcionista voltasse para o corredor, acompanhando o moleque, a chamei por um instante.

_Escuta... – perguntei – Onde eu posso fumar aqui?
_Lá na frente. Eu já volto para te chamar.

Mal posso esperar, hein...
 
Revirei os olhos mentalmente, em ironia, e me levantei. Atravessei o mesmo corredor que eles, virando pouco antes, saindo pela mesma porta que entrei no começo da tarde. Pisei para fora, enquanto tirava o maço do bolso e logo acendi um cigarro. Puro consolo. Bosta. Apertei o filtro com o polegar e o dedo indicador, tirando-o da boca e assoprando a fumaça, frustrada. Era uma quarta-feira de cinzas realmente cinzenta. Matei meu expediente à toa, “ótimo”.
 
Terminei de fumar e joguei o cigarro na sarjeta, pisando rapidamente na brasa acesa antes de voltar para dentro. E uns dez minutos depois, a recepcionista me chamou – “eles vão falar com você agora”.
 
Entrei atrás dela, atravessando o corredor e uma outra sala, até o escritório da diretora da produtora. Uma mulher de uns quarenta e poucos anos, bonita dum jeito incomum, com ares dessas críticas cults insuportáveis. Cumprimentei-a mais uma vez, junto à uma altona responsável por recursos humanos – ambas que me haviam entrevistado na hora anterior. Me observaram sentar, de frente para a mesa, e eu as encarei de frente, destemidamente, como quem não tem nada a perder, numa atitude natural e um tanto desnecessária. As duas se entreolharam e sorriram.

_Então... – a diretora propôs, me encarando – ...o que você acha de começar aqui na segunda?

setembro 17, 2011

Desagradável

 ...pra caralho.

setembro 16, 2011

De volta

Umas cinco horas depois, inadvertidamente, abri a porta do apartamento com a mochila nas costas e dei de cara com a Mia em cima do Fer no sofá. Literalmente fodendo. Estava sentada no seu colo, com as mãos dele em suas coxas, só de camisetão e sem calcinha – aquela marofa desgraçada em volta e um Misfits estourando o som da sala. Argh. Bati a porta atrás de mim propositalmente alto, me anunciando antes de atravessar pro corredor.
 
_PUTA MERDA! – o Fer gritou, enquanto a Mia saía de cima e eles se vestiam apressados, meio de qualquer jeito – CÊ NÃO VOLTAVA AMANHÃ, PORRA?!
_Não.
 
Dei uma olhada para ele, um tanto irritada. Agora não posso circular no meu próprio apartamento, caralho?! A Mia alcançou a calcinha no chão, a subindo pelas pernas tatuadas. E então me olhou, meio sem jeito – era estranho vê-la ali, agora, sabendo que dois dias antes ela estava me mandando mensagem de madrugada. Abaixou o olhar, constrangida. E eu entrei no corredor, dando as costas para os dois e me trancando no quarto.

setembro 14, 2011

[ CONTEÚDO EXCLUSIVO ]

AVISO: Os próximos 12 posts foram escritos exclusivamente para o livro do Fucking Mia e não estão disponíveis aqui. Os títulos são "Boas-vindas", "Maresia", "P.O.R.C.O.", "C'mon, c'mon", "Beliches", "O incômodo", "Pão e circo", "Marina", "O crime", "Superlotação no brejo", "Os pingos nos is" e "Mormaço". 

O livro do Fucking Mia está sendo preparado com muito carinho, em comemoração aos 10 anos de blog. O novo conteúdo está sendo escrito desde meados da pandemia e a ideia é lançar em breve! ♥

Se você quer ser avisada(o) sobre o lançamento do livro, deixe seu e-mail aqui:



setembro 06, 2011

No trânsito

...há duas horas e sem nem ter saído de São Paulo ainda.
 
Cidade de merda.
 
Estávamos fritando naquele sol. Ninguém se movia naquela porra de rodovia. E pra piorar, o carro da Marina não tinha ar condicionado – é claro. Já nos primeiros minutos de trânsito, eu e a Thaís tiramos a camiseta, ficando só de top e bermuda no banco de trás. Minha ex ia na frente com a atual. Tirei o maço do bolso e acendi um cigarro, segurando-o para o lado de fora da janela. Não tinha uma brisa sequer.
 
Come with me”, a Cat Power começou a cantar lentamente no rádio. Fechei os olhos e arrastei a voz junto com a dela – “myyyy loooove”. Podia sentir o suor escorrendo do meu pescoço para dentro do top. Cacete, tá calor demais. A Thaís se escorou na janela aberta, do outro do banco, se abanando com o próprio boné e acompanhando a letra comigo – “to the sea, the sea of...”.
 
E foi quando, do nada, a porra da Bia trocou a faixa.
 
_Mano... – me inclinei para frente, indignada, sem entender – ...por que cê tirou?!
_Ah, velho, puta música chata...
_É Cat Power!!
_E daí? Que merda mais deprê... – bufou no banco do passageiro, de saco cheio, e se virou para a Marina – Que mais tem nesse CD aí que cê fez?
_Ah, e-eu... – a Marina hesitou, meio constrangida –  ...eu coloquei várias músicas, que... q-que tem a ver com mar, com praia, não sei.
_Tá, mas não tem uma MPBzinha, sei lá?
 
Ouvi a Bia reclamar e afundei de volta no banco, deixando o rosto cair pro lado da Thaís e revirando os olhos. Ela riu. “Ah, tem ‘Segundo Sol’ da Cássia”, a Marina sugeriu no banco da frente, tentando agradar a namorada. E a idiota desdenhou na mesma hora – “nossa, mas cê foi escolher justo a mais chatinha? Não tem nada mais animado?”. Eu vou matar essa garota, juro, me irritei, tentando respirar fundo. A Thaís franziu as sobrancelhas na minha direção, confusa, sem entender por quê a droga da Bia estava insistindo naquela discussão.
 
_Só volta na que tava – me intrometi – Tava boa, meu!
_É! – a Thaís resmungou também.
_Por favor, vai, amor – a Marina murmurou – Tá todo mundo ouvindo junto.
 
E a infeliz se viu obrigada a voltar a faixa. Me afundei no banco de trás, com ranço. Babaca. Não basta ter atrasado a viagem, ainda quer ficar decidindo a trilha por todo mundo. Não entendia como diabos a Marina ainda estava com aquela garota. No rádio, a Cat Power já tinha começado a cantar de novo – desta vez, todavia, sozinha. A atmosfera ficou estranha no carro. A Thaís pegou o cigarro da minha mão e tragou, silenciosamente, soltando a fumaça rapidamente pela janela antes de o devolver. Nos entreolhamos, como cúmplices daquele climão.
 
E de repente, numa tentativa de mudar o assunto, a Marina me chamou.
 
_Meu... – disse, animada, com as mãos no volante – ...podemos falar 5 minutos sobre a Mia?
 
Ah, não. Ela me olhou pelo retrovisor, certificando-se de que eu a estava escutando, e então se virou brevemente para mim, olhando para o banco de trás, com entusiasmo. E eu me preparei psicologicamente para aquilo.
 
_Nossa! Meu, ela não é nada como eu imaginava...
_Como assim?
_Ah, não sei... – ela riu – Sempre achei que ela fosse mais, m-mais padrãozinha.
_Mano, né, nove da manhã e... – a Thaís comentou, do meu lado – ...a mina já tava com cara de que ia jogar molotov em vidraça de banco.
_Total! O dia que te levei lá na casa dela, fiquei com a impressão de que ela fosse uma dessas patricinhas, com cara de fresca, magra, sei lá. Sabe? – a Marina continuou e eu me afundei ainda mais no assento, tragando o cigarro – Acho que foi culpa de Higienópolis...
_Mas é gata, hein? Puta que pariu.
_Cala a boca, Thaís – resmunguei.
_Quê?! – riu – Ela é. E mano, na boa... sapatão.
_É, verdade! Ela tem cara de que curte umas minas...– a Marina concordou, se divertindo com o meu desconforto – ...e meu, ela ficou olhando pra você o tempo todo que a gente tava lá!
_Claro que não!
_FICOU, SIM! – as duas gritaram juntas, em coro.
_Tá. Que seja – me enchi – Chega, vai. Cortou o assunto!
_Ihhh.... Não pode nem falar nada mais!
_Falar pra quê, meu? Que importa agora?! – pistolei – Já acabou, porra, ela escolheu o Fer e eu superei, vida que segue.
 
Cruzei os braços e olhei pela janela, tragando mais uma vez. Foda-se a Mia. Não tinha disposição para ficar ouvindo minhas amigas se impressionando tardiamente com a garota que tinha tornado a minha vida um inferno por meses. Puta conversa desnecessária. Soltei a fumaça para fora do carro e senti as duas me observando, silenciosamente arrependidas, enquanto a Bia se mantinha quieta no banco do passageiro.

_Ei... – a Marina retomou, com a voz baixa – ...e como você tá?
_Tô bem, Má. Só não quero ficar falando disso...
_Mas... – continuou, preocupada – ...como cê tá com ela lá, tipo, no apê o tempo todo? Não te incomoda, flor?!
_Ah, sei lá, meu. Que vou fazer, não tenho que achar nada... – mantive os olhos no asfalto entre os carros mais adiante, expressando o meu mais sincero desinteresse – ...na boa, eu já tô tão de saco cheio dessa história que só quero ficar em paz. Pra mim, já deu.
_É. E acho que se ela não fica te procurando, também facilita...

Facilitaria, né.
 
_Na real... – traguei mais uma vez o cigarro, já quase no fim – ...ela me procurou dias desses. Veio com um papo estranho pra cima de mim, que não queria que as coisas ficassem assim, que queria ser "minha amiga"...
_Mas você quer ser amiga dela?!
_... – olhei para a Marina, pelo retrovisor, com minha melhor cara de “é óbvio que não, né, porra”.
_É, meio complicado mesmo...
_Meu, sério... – a Thaís colocou a mão sobre meu ombro – ...cê tá melhor sem essa mina.
_Bem melhor! E outra... –  a Marina ajeitou os óculos no nariz, me olhando de volta – ...quem tem paciência pra ficar correndo atrás de mulher hétero, não é?
_Nossa, sim – revirei os olhos – Chega, meu. Só quero pegar sapatão graduada daqui pra frente...
_Mas que ela tem bom gosto pra tatuagem... – a Thaís me provocou, piscando na minha direção – ...isso ela tem.

setembro 02, 2011

Tortilleras

Cadê, mano? Me afundei na pilha de roupas que cultivei durante meses no armário, o bagunçando ainda mais. Ironicamente eu tinha dois biquínis no fundo de uma das gavetas, ambos dados pela minha mãe numa tentativa de abafar a minha caminhoneirice, mas não conseguia achar por nada a porra da bermuda de nadar que eu queria. É de foder o cu do palhaço, resmunguei para mim mesma, jogando peça por peça do armário para o chão. Sem encontrar aquela desgraça. Argh.
 
Eu não usava biquíni desde os 12 anos de idade e não pretendia voltar em momento algum. Me recuso, prefiro nadar pelada. E claro, eu podia ter arrumado a minha mochila na noite anterior – mas resolvi passar na casa da Thaís depois do trabalho para fumar um, pela terceira vez naquela semana, e acabamos acordadas até tarde cozinhando larica atrás de larica. Agora já era sábado de manhã e o relógio se aproximava da hora que eu tinha combinado com a Marina. Inferno. Não achava de jeito nenhum aquela droga de... Achei! Isso! Isso! Resgatei os shorts do meio das roupas amontoadas, vitoriosa. E então o enfiei de qualquer jeito na minha mochila.
 
_Eita! – me surpreendi ao abrir a porta da frente, minutos depois – Cadê a embuste? Não vem?
_Não chama ela de... – a Marina revirou os olhos, bufando, sem completar a frase – ...ela não tá pronta ainda.
_Mas cê não ia passar lá antes de vir pra cá?
_Ia. Olha, nem vamos falar sobre isso que já me estressei com a Bia e não quero mais passar nervoso – resmungou, entrando no meu apartamento – Ela vai mandar mensagem quando tiver pronta.
 
Aparentemente, o azar da Marina nessa vida era namorar minas descompromissadas com pontualidade. É. Eu inclusa. Marchou para dentro do apartamento, irritada, com os seus shortinhos de linho marinho e uma blusa soltinha branca enfiada para dentro na cintura. Alertado pela campainha, o Fer entrou na sala e se espantou ao ver minha ex ali. Abriu um sorriso. Atrás dele vinha a Mia, claro, com as pernas de fora num camisetão do Discharge, o cabelo preso sobre a cabeça num coque despenteado e uma cara de quem tinha acabado de acordar. Esfregou as costas da mão no rosto, meio sonolenta, e observou o namorado cumprimentar aquela garota de óculos pretinhos que ela nunca tinha visto na vida.
 
_Nossa, faz mó cara que num te vejo... Cês madrugaram hoje, hein?! – o Fer comentou e se virou para a Mia – Cê já conheceu a Marina, amor?
 
Imediatamente todo sono sumiu da cara dela.
 
Eita. Olhou para a minha ex ali e depois para mim, bem rapidamente, abaixando o olhar em seguida para disfarçar. A Marina sorriu para ela. E a Mia deu alguns passos, a cumprimentando mais adiante na sala. Assim que afastou o rosto, seu olhar escapou mais uma vez na minha direção. Num reflexo – do qual provavelmente se arrependeu na mesma hora. Perdeu alguma coisa na minha cara, porra?
 
O Fer e a Marina puxaram o maior papo, apoiados contra o encosto do sofá. E a Mia ficou ali, meio deslocada, enquanto os dois tagarelavam sobre o nosso feriado. A Lê tinha nos convidado para passar uns dias no Guarujá, na casa de praia de sei-lá-quem que ela conhecia. A ideia era juntar as sapatonas e comemorar o seu aniversário em qualquer lugar que fosse longe de São Paulo. E perto do mar. Dividimos o comboio de caminhões entre o carro dela  – que ia com a Paula e a Jéssica – e o da Marina – onde íamos eu, a Thaís e lamentavelmente a idiota da Bia.
 
De repente, o interfone tocou.
 
Corri até a cozinha para atender e olhei para o relógio de parede sobre a minha cabeça – já eram 9:30. Droga. A aquela altura, a outra metade do comboio já devia estar saindo da casa da Lê na Barra Funda. A gente tem que se apressar, pensei, desligando o interfone. Me virei para voltar para a sala, apressada, e trombei com a Marina. Sem ver direito. Estava com cara de animada, entrando na cozinha. A olhei sem entender o que estava fazendo ali e ela me segurou pelo braço, sem conseguir se conter, como quem está prestes a fofocar em segredo.
 
_Uau! – cochichou, sorrindo e dando uma olhada por cima do ombro para garantir que ninguém estava nos ouvindo – Então essa é a Mia?!
_É.
_Cacete!
_Qual é, Marina...
 
Que tal não fazermos isso agora?
 
Lancei um olhar de reprovação na sua direção e ela riu, conforme eu me soltava das suas mãos fuxiqueiras. “Você sabe que não vai escapar dessa conversa, né?”. “Aqui não, meu”. Revirou os olhos, se dando por vencida, e resmungou um “tá” insatisfeita. Era só o que me faltava. Voltamos juntas para a sala e mal deu tempo da Mia fingir que não estava nos olhando, saindo juntas do corredor, quando a campainha tocou. Pois é.
 
Como se faltasse lésbica nesse apartamento, não é mesmo? Abri a porta e lá estava a Thaís, com o melhor visual caminhão-praieira que alguém podia querer – bermudão, papete, óculos escuros, boné para trás, risca na sobrancelha, regata e uma camisa com folhas de palmeira aberta por cima.
 
_Caralho, hein... – sorri na mesma hora – Cê tá gata, puta merda!
_Gostou? – me zombou, piscando na minha direção – Me arrumei só pra você...
_Idiota.
 
Eu ri e ela sorriu de volta – é, com aquele sorriso desgraçado.
 
_Quanto tempo, né? – brincou, colocando o braço sobre meus ombros – Que a gente não se vê...
_Pois é – ri, entrando com ela no apartamento – Umas 10 horas?
_Ficou com saudade, meu?
_Ô!
 
Entramos na sala rindo. E a única ali que prestava atenção nos nossos flertes era a Mia. O seu olhar insistente – encostada contra a parede, com os pés descalços no chão – começou a me incomodar. A Marina e o Fer conversavam entre si, entretidos, como se fosse 2006. A Thaís largou sua mochila no chão e nos vimos obrigadas a interagir com o meu erro duns meses antes.
 
_Essa é a Mia – as apresentei, com certa indisposição – Não sei se cês já se conheceram.
_Acho que eu te vi numa das festas aqui, mas não nos falamos – a Thaís a encarou e sorriu – E aí?
_Oi! – ela sorriu de volta.
_E essa é a...
_...Thaís – a Mia me interrompeu, completando a frase, e a olhamos surpresas.
 
Como diabos cê sabe disso?
 
_E-eu... – a Mia emendou uma explicação, com os braços cruzados em frente ao corpo, olhando para a Thaís – ...eu seguia seu trampo no Fotolog.
_Nossa, sério?! Faz muito tempo que nem mexo naquilo...
_É – a Mia riu – Faz uns anos já isso. Cê é muito boa, meu, eu curtia pra caralho suas tatuagens.
_Porra, valeu – a Thaís se alegrou, ainda surpresa – Mano, aparece lá no estúdio qualquer dia pra tatuar. Ia ser massa...
 
Não exagera, né, Thaís, me irritei com aquela interação.