fevereiro 24, 2012

O inferninho

Aquilo me fez, de certo, algum bem. Estar com a Clara me fazia bem. Assim que cheguei na loja em que trabalhava, ela deu uma desculpa para o chefe e vazou comigo. Aí fomos caminhando até o seu prédio. E chegando lá, como a sua roomie também trabalhava de sábado, transamos em todos os cômodos do apartamento. Um por um. Por mera diversão, só porque podíamos. Sem ninguém ali para nos julgar, exceto a gatinha preta da Clara, a Luna, que nos observou com certo desprezo do alto de uma prateleira da cozinha, enquanto nós duas ríamos e nos comíamos contra a pia. 

E eu não voltei para casa até terça de manhã. É.
 
Dei uma passada rápida antes do trabalho só para pegar uma troca de roupa, já que naquela noite ia ter festa na casa do Rafa Benatti. Ele fazia aniversário quatro dias depois de mim – o que, quando o Fer conseguia organizar festas forçadas pra a minha pessoa, significava uma semana inteira de bebedeira entre os nossos amigos. O próprio Fer fazia aniversário quase um mês depois da gente e, às vezes, a comemoração se estendia até lá. Tudo era desculpa para encher a cara e se ver. E vejam bem, o meu problema com aniversários é só com o meu próprio. O dos outros eu gostava.
 
Passei o dia inteiro animada, atazanando a Clara para que fosse comigo, sem muito sucesso. “Cansou de mim?”, brinquei, enviando SMS para ela no meio de uma gravação. “Ñ! Tonta!”, ela me respondeu em seguida, “hj ñ da, dsclp! :3”.
 
Argh.
 
Fiz hora extra até tarde naquela noite e quando finalmente cheguei no prédio do Benatti, numa ruazinha perto da praça Tiradentes, já era quase hora de eu voltar para casa. Isto é, caso quisesse dormir antes de ir trabalhar de novo. Fico só um pouco, pensei, é terça, né, meus amigos vão pegar leve. Mas assim que abri a porta e dei de cara com o Rafa lambendo as bolas do Fer, ali, de calça arriada no meio da sala, trêbados e rindo, enquanto eram cercados por uma multidão aos gritos – logo percebi que não. Tá. Vai ser esse tipo de festa.
 
O Rafa era um dos melhores amigos do Fernando, estava em todas. O conhecemos por acaso nos rolês punks do ABC que a gente ia na adolescência. Era um pivete magrelo com um moicano verde, normalmente desbotado. Estava fazendo 22. Morava numa república com três outros caras e ocasionais namoradas, num apartamento caindo aos pedaços em que eles pixaram todo tipo de merda e uns símbolos anarquistas pelas paredes. Era um inferninho.
 
Atravessei toda a marofa e a gritaria, já rindo daquele caos, e fui até a cozinha ver se descolava alguma coisa para beber. A situação era deplorável. Tinha tanta latinha e garrafa vazia espalhada pelo chão, pela mesa, pela pia que parecia que a festa tinha começado uns três dias antes. Caralho. O rádio tocava Discharge no último volume. Numa área de serviço apertada, achei o tanque transbordando de gelo – aí enfiei a mão e peguei uma cerveja dali.
 
Abri a latinha e me virei para voltar, desviando de duas ou três pessoas na cozinha, quando vi a Mia. Estava acendendo um cigarro no corredor, encostada na parede e, por algum motivo, só de sutiã preto. Com uns shorts rasgados e uma meia-arrastão que começava na metade da sua barriga e terminava nos seus coturnos surrados. Puta merda. Deu um primeiro trago, soprando a fumaça para o lado, depois subiu à boca um copo plástico com conteúdo duvidoso. E foi quando os seus olhos cruzaram comigo ali, saindo da porta da cozinha. Tirou o copo da boca e veio até onde eu estava, caminhando como se já tivesse tomado alguns daqueles.
 
_E aí...
_E aí... – ri.
 
A Mia encostou no batente oposto, sorrindo para mim. Era um tanto desconcertante vê-la tão bonita assim, tão confiante – fazia alguns meses que não a notava desse jeito. Qual o meu problema? Masoquismo, porra?! A encarei ali. E ela respirou fundo, aí abaixou os olhos por um milésimo de segundo, quase como se tentasse não se constranger.
 
_Obrigada... – me encarou logo em seguida, envergonhada, e sorriu – ...pelo outro dia.

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