_VOCÊ?! – ela acenou envergonhada que ‘sim’ com a cabeça, com os
olhos ainda escondidos entre os dedos – VOCÊS DUAS, MANO?!
Dei um passo para trás, com uma das mãos sobre a testa, e comecei
a rir ainda mais. No máximo de silêncio que conseguia, digo, para não
chamar atenção. A festa seguia, desavisada, atrás de nós. E a Clara me olhou,
constrangida, fazendo um gesto com as mãos – como se dissesse “e agora?”. Mas tudo
o que eu conseguia fazer era rir.
Não, não é
possível, balancei a cabeça. A Marina não é assim, ela não tem nada a ver
com a bandida da Clara, porra. Estiquei o pescoço novamente para a
cozinha e observei a minha ex em seu vestidinho preto, sapatos de boneca e os
seus olhos atentos ao fogão, por detrás dos óculos pretinhos. Mano, tornei
a encarar a Clara, ainda desacreditada, essa é a melhor fofoca do ano. Puta merda.
_Você?! – repeti, abismada – Com, com a minha Marina?!
_“Sua”?
_É. Ela... – expliquei, rindo – ...é a minha ex. Eu te falei dela!
_Mas e-eu achei que v-vocês fossem... amigas, não?!
_Não, nós namoramos uns anos atrás. Mas agora a gente é muito,
muito amiga.
_Cê tá me zoando, né?!
_Não. Eu fui a primeira namorada dela, cara.
_Inferno... – a Clara então se desesperou, subindo as mãos
novamente ao rosto e xingou a si mesma – ...merda! Eu não sab...
_Como? – eu continuei rindo, a interrompendo – Quando? Quando vocês
duas, digo, COMO?! COMO É POSSÍVEL?!
_Não... – choramingou, se recusando a falar – ...para, não piora
tudo, mano. Por favor!
Insisti e ela se negou a explicar. Então a puxei pela mão, para
entrarmos de vez na cozinha e acabarmos com aquilo logo, cumprimentando as
meninas, mas a Clara grudou as costas na parede, a pouco mais de um metro da
porta. “Não posso entrar aí!”, cochichou pra mim. E eu não podia evitar senão
rir ainda mais da situação. “Isso é ridículo!”, eu dizia, “ela não vai te
morder, mano, todo mundo aqui já saiu uma com a outra! Vem!”. “Nem pensar!”. A
Marina seguia cozinhando, inadvertidamente, junto às meninas. E não havia
argumento que convencesse a Clara a entrar lá do meu lado.
Foi quando, de repente, me deu um estalo:
_Voc... v-você deu bolo nela! – a olhei, como se desvendasse um
grande enigma – Filha da mãe! Você deu perdido na Marina!
_Eu não dei bolo em ninguém – me desprezou com os olhos.
_Deu, sim. Alguma coisa! Alguma coisa você fez, mano! Pra tá agindo
assim... – eu gargalhei, empolgada – Você não consegue nem esconder, meu. Olha
o medo na sua cara! Sua desgraçada, fala. O quê?! O que você fez? – me aproximei
da Clara, de novo – Me conta, por favor, por favor, me conta. Juro que não
conto pra Má que cê falou. Mas conta, vai, o que foi?! – ela virou o rosto e eu
a apertei contra a parede, insuportável, rindo – Você deu bolo nela, não deu?
Deu?!
_Não! Não dei bolo nela, para... – sussurrou – ...e-eu, eu só
nã...
_O quê? O quê?!
_Não fica pulando aí de felicidade, mano! – me deu bronca, fugindo
do assunto, e eu revirei os olhos, nem aí, voltando a rir – Para!
_Vai, só me conta logo!
_Não.
_Vai, Bi! Por favor!
_Para com isso, tonta!
_Por favorziiiinho...
_Tá. Mas faz, f-faz muito tempo...
_Ahm...
_Faz uns dois anos já. Ou três, sei lá! A gente saiu uma vez só, ela
é amiga da irmã da Lu e e-ela dormiu lá em casa depois e eu... meio que... namorava...
– a Clara suspirou, sem conseguir me olhar direito – ...outra menina, na época.
E aí ela a-apareceu na porta de casa, no dia seguinte, do nada. E eu tive que
mandar a menina ir passear e fui pedir, correndo, para a Marina sair.
_Você acordou ela, na sua cama?! – quase gritei – E pediu pra ela sair?!?
_Ela já estava acordada, idiota, eu só pedi para ela ir.
_Ainda assim, mano! – eu me diverti – Que filha da puta!
_Você quer o quê?! Fazer soar pior do que já é, meu?!?
_Cara... – eu ri ainda mais – ...eu tô te odiando muito agora, cê
tem noção? Muito.
A Clara enfiou o rosto nas mãos, mais uma vez, constrangida. E me olhou
depois, desesperada por qualquer salvação daquela festa, sem querer estar
naquela posição e comigo, ainda por cima comigo. Eu não conseguia parar
de rir, sem qualquer intenção de ajudá-la a sair daquela. E ela também ria, de
tempos em tempos, quando não conseguia se segurar. Tomada pelo absurdo do
rebuceteio paulistano. Já estávamos encostadas ali há algum tempo. Eu tirava sarro
da Clara, aos sussurros, e ela me dava tapas no braço, implorando para que eu
parasse.
_Ela me mandou à merda, cê sabe, né... – comentou, encostada na
parede comigo.
_E cê mereceu. Porra, mano, é a, a Marina!
_É, bom. Se eu soubesse... – ela riu, arqueando as sobrancelhas de
leve.
As maçãs do seu rosto estavam ainda um tanto coradas, resultado
dos minutos de desespero anteriores. Mas tentava recuperar a calma. Não é fácil,
eu sei. Ficar conhecida como “a mina que deu um puta fora na Marina” entre
as minhas amigas certamente era a última coisa que a Clara esperava daquele rolê.
Levou então uma das mãos ao topo da cabeça, entrelaçando os dedos no cabelo, como
se tomasse coragem. E aí me olhou, determinada – “tá, vamos entrar logo”.
Desencostou da parede e eu segurei a sua mão, rindo. Mas bastou um
passo para ela mudar de ideia – “não, isso vai ser muito feio”. “Não vai”. “Muito,
muito feio”, hesitou, balançando a cabeça. “Cara, ela não vai falar nada!
Relaxa...”. A Clara me contrariou imediatamente com os seus olhos castanhos,
argentinos. “Sério”, reafirmei, rindo. “É! Fácil pra você dizer, né...”. “Eu
conheço ela, besta”, cochichei, “tô te falando”. “Mano, não acredito que ela é
sua ex! Puta merda!!”, irritou-se consigo mesma. “Calma”, eu ri. “Eu quero
morrer, juro. Sou uma idiota!”. “Vai ficar tudo bem”. “Que merda!”. “Relaxa!”.
“Eu...”. “Meu, só entra logo, vai. Eu te protejo...”, ri. “Não, não. Não posso
entrar, mano! Não dá!!”. “Deixa disso... vem, vem logo”. “Não”. “Vem!”. “Por
favor, não me faz fazer isso...”. “Vem logo!”. “Meu, eu não consigo. Eu não
posso. Que cara eu vou fazer?!”. “Deixa as caras comigo, vem”. Suspirou. “Tá”.
“Sem medo. Vamos”, peguei de novo na sua mão. A Clara me olhava, no entanto,
com uma cara de você-me-paga-por-essa. E eu achava graça. “Ai, vai ser feio”. “Não
vai”. “E se ela ainda tiver puta comigo?”. “Olha, relaxa. Eu te amo, aconteça o
que acontecer”, ri do seu nervosismo, “vai ficar tudo bem”. “Promete?”. “Prometo”,
sorri. “Tá. Vamos!”.
Fizemos as nossas melhores caras de não-era-a-gente-que-tava-discutindo-por-dez-minutos-atrás-dessa-parede
para entrar na cozinha. Corajosamente. Faltavam apenas dois passos até a porta.
A Clara apertou a minha mão e eu fui na frente – sem dar-me conta, porém, do
que acabara de lhe falar.
_Flor!