junho 27, 2012

Partners in crime

"I couldn't tell her 
What my private thoughts were
But she had some way of 
Finding them out"

(Bob Dylan)

junho 23, 2012

Os casos

_VOCÊ?! – ela acenou envergonhada que ‘sim’ com a cabeça, com os olhos ainda escondidos entre os dedos – VOCÊS DUAS, MANO?!
 
Dei um passo para trás, com uma das mãos sobre a testa, e comecei a rir ainda mais. No máximo de silêncio que conseguia, digo, para não chamar atenção. A festa seguia, desavisada, atrás de nós. E a Clara me olhou, constrangida, fazendo um gesto com as mãos – como se dissesse “e agora?”. Mas tudo o que eu conseguia fazer era rir.
 
Não, não é possível, balancei a cabeça. A Marina não é assim, ela não tem nada a ver com a bandida da Clara, porra. Estiquei o pescoço novamente para a cozinha e observei a minha ex em seu vestidinho preto, sapatos de boneca e os seus olhos atentos ao fogão, por detrás dos óculos pretinhos. Mano, tornei a encarar a Clara, ainda desacreditada, essa é a melhor fofoca do ano. Puta merda.
 
_Você?! – repeti, abismada – Com, com a minha Marina?!
_“Sua”?
_É. Ela... – expliquei, rindo – ...é a minha ex. Eu te falei dela!
_Mas e-eu achei que v-vocês fossem... amigas, não?!
_Não, nós namoramos uns anos atrás. Mas agora a gente é muito, muito amiga.
_Cê tá me zoando, né?!
_Não. Eu fui a primeira namorada dela, cara.
_Inferno... – a Clara então se desesperou, subindo as mãos novamente ao rosto e xingou a si mesma – ...merda! Eu não sab...
_Como? – eu continuei rindo, a interrompendo – Quando? Quando vocês duas, digo, COMO?! COMO É POSSÍVEL?!
_Não... – choramingou, se recusando a falar – ...para, não piora tudo, mano. Por favor!

Insisti e ela se negou a explicar. Então a puxei pela mão, para entrarmos de vez na cozinha e acabarmos com aquilo logo, cumprimentando as meninas, mas a Clara grudou as costas na parede, a pouco mais de um metro da porta. “Não posso entrar aí!”, cochichou pra mim. E eu não podia evitar senão rir ainda mais da situação. “Isso é ridículo!”, eu dizia, “ela não vai te morder, mano, todo mundo aqui já saiu uma com a outra! Vem!”. “Nem pensar!”. A Marina seguia cozinhando, inadvertidamente, junto às meninas. E não havia argumento que convencesse a Clara a entrar lá do meu lado.
 
Foi quando, de repente, me deu um estalo:

_Voc... v-você deu bolo nela! – a olhei, como se desvendasse um grande enigma – Filha da mãe! Você deu perdido na Marina!
_Eu não dei bolo em ninguém – me desprezou com os olhos.
_Deu, sim. Alguma coisa! Alguma coisa você fez, mano! Pra tá agindo assim... – eu gargalhei, empolgada – Você não consegue nem esconder, meu. Olha o medo na sua cara! Sua desgraçada, fala. O quê?! O que você fez? – me aproximei da Clara, de novo – Me conta, por favor, por favor, me conta. Juro que não conto pra Má que cê falou. Mas conta, vai, o que foi?! – ela virou o rosto e eu a apertei contra a parede, insuportável, rindo – Você deu bolo nela, não deu? Deu?!
_Não! Não dei bolo nela, para... – sussurrou – ...e-eu, eu só nã...
_O quê? O quê?!
_Não fica pulando aí de felicidade, mano! – me deu bronca, fugindo do assunto, e eu revirei os olhos, nem aí, voltando a rir – Para!
_Vai, só me conta logo!
_Não.
_Vai, Bi! Por favor!
_Para com isso, tonta!
_Por favorziiiinho...
_Tá. Mas faz, f-faz muito tempo...
_Ahm...
_Faz uns dois anos já. Ou três, sei lá! A gente saiu uma vez só, ela é amiga da irmã da Lu e e-ela dormiu lá em casa depois e eu... meio que... namorava... – a Clara suspirou, sem conseguir me olhar direito – ...outra menina, na época. E aí ela a-apareceu na porta de casa, no dia seguinte, do nada. E eu tive que mandar a menina ir passear e fui pedir, correndo, para a Marina sair.
_Você acordou ela, na sua cama?! – quase gritei – E pediu pra ela sair?!?
_Ela já estava acordada, idiota, eu só pedi para ela ir.
_Ainda assim, mano! – eu me diverti – Que filha da puta!
_Você quer o quê?! Fazer soar pior do que já é, meu?!?
_Cara... – eu ri ainda mais – ...eu tô te odiando muito agora, cê tem noção? Muito.

A Clara enfiou o rosto nas mãos, mais uma vez, constrangida. E me olhou depois, desesperada por qualquer salvação daquela festa, sem querer estar naquela posição e comigo, ainda por cima comigo. Eu não conseguia parar de rir, sem qualquer intenção de ajudá-la a sair daquela. E ela também ria, de tempos em tempos, quando não conseguia se segurar. Tomada pelo absurdo do rebuceteio paulistano. Já estávamos encostadas ali há algum tempo. Eu tirava sarro da Clara, aos sussurros, e ela me dava tapas no braço, implorando para que eu parasse.

_Ela me mandou à merda, cê sabe, né... – comentou, encostada na parede comigo.
_E cê mereceu. Porra, mano, é a, a Marina!
_É, bom. Se eu soubesse... – ela riu, arqueando as sobrancelhas de leve.

As maçãs do seu rosto estavam ainda um tanto coradas, resultado dos minutos de desespero anteriores. Mas tentava recuperar a calma. Não é fácil, eu sei. Ficar conhecida como “a mina que deu um puta fora na Marina” entre as minhas amigas certamente era a última coisa que a Clara esperava daquele rolê. Levou então uma das mãos ao topo da cabeça, entrelaçando os dedos no cabelo, como se tomasse coragem. E aí me olhou, determinada – “tá, vamos entrar logo”.
 
Desencostou da parede e eu segurei a sua mão, rindo. Mas bastou um passo para ela mudar de ideia – “não, isso vai ser muito feio”. “Não vai”. “Muito, muito feio”, hesitou, balançando a cabeça. “Cara, ela não vai falar nada! Relaxa...”. A Clara me contrariou imediatamente com os seus olhos castanhos, argentinos. “Sério”, reafirmei, rindo. “É! Fácil pra você dizer, né...”. “Eu conheço ela, besta”, cochichei, “tô te falando”. “Mano, não acredito que ela é sua ex! Puta merda!!”, irritou-se consigo mesma. “Calma”, eu ri. “Eu quero morrer, juro. Sou uma idiota!”. “Vai ficar tudo bem”. “Que merda!”. “Relaxa!”. “Eu...”. “Meu, só entra logo, vai. Eu te protejo...”, ri. “Não, não. Não posso entrar, mano! Não dá!!”. “Deixa disso... vem, vem logo”. “Não”. “Vem!”. “Por favor, não me faz fazer isso...”. “Vem logo!”. “Meu, eu não consigo. Eu não posso. Que cara eu vou fazer?!”. “Deixa as caras comigo, vem”. Suspirou. “Tá”. “Sem medo. Vamos”, peguei de novo na sua mão. A Clara me olhava, no entanto, com uma cara de você-me-paga-por-essa. E eu achava graça. “Ai, vai ser feio”. “Não vai”. “E se ela ainda tiver puta comigo?”. “Olha, relaxa. Eu te amo, aconteça o que acontecer”, ri do seu nervosismo, “vai ficar tudo bem”. “Promete?”. “Prometo”, sorri. “Tá. Vamos!”.
 
Fizemos as nossas melhores caras de não-era-a-gente-que-tava-discutindo-por-dez-minutos-atrás-dessa-parede para entrar na cozinha. Corajosamente. Faltavam apenas dois passos até a porta. A Clara apertou a minha mão e eu fui na frente – sem dar-me conta, porém, do que acabara de lhe falar.

_Flor!

Bullying

A expressão de surpresa da Lê, ao abrir a porta e deparar-se ali conosco, quase me fez sentir como se eu devesse ter ligado antes. Não era pra vir?, pensei. Mas ela logo abriu um sorriso, de orelha a orelha, vestida num moletom com bermuda bem sapatão, e me cumprimentou com um abraço violento. Já estava notavelmente embriagada.

_PORRA! PORRA, MANO!! – disse, em alto e bom som, no meu ouvido; aí se afastou, olhando para nós duas paradas ali, alternadamente – Não sabia que você vinha, meu...
_Podia vir, né? – ri.
_Tá brincando?! Lógico!! Já te xinguei para meio mundo porque cê não tava aí, meu!
_Besta! – revirei os olhos – Mas e aí, afinal, quê que tá rolando hoje?
_Como o que tá rolando?! – ela me deu um tapa no alto da cabeça, indignada – É aniversário da Jéssica, ô sua merdinha. Dá pra acreditar nesta mina, meu?! – ela me apontou para a Clara, ofendida.
_Foi mal, foi mal, foi mal...
 
Me desculpei, rindo, de cabeça ainda abaixada. E a troglodita da Letícia partiu para cima de mim com os punhos fechados e me encheu de “socos” no estômago, na costela, argh. Bêbada de merda. “Aparece aqui e num sabe nem que tá fazendo, né, ô, num ia dar nem um parabéns pra mina, sua sem vergonha!”, ela ria, gritando. Durou seis ou sete segundos apenas, nem doeu também, mas eu dispensava completamente aquela demonstração fina de a-gente-se-trata-assim-na-base-do-soco bem em frente à Clara. Ótimo. Quando enfim me soltei, depois de ser vitimada pela minha memória de maconheira, a Lê se virou à minha convidada e sorriu:

_E você, então, é a famosa?
_Ah, é! Esta é a Clara. Cê lembra dela, não... – eu fiz as devidas apresentações, ainda me recuperando – ...cê tava junto quando a gente se trombou aquele dia lá, na Calixto.
_Hum, então é vocêêê... – a Lê desafinou, rindo, e eu implorei mentalmente para que o comentário parasse aí, mas é claro que não parou – ...essa aqui, meu, ó... – colocou o braço ao redor do meu pescoço, argh, e eu dei um sorriso amarelo, envergonhada – ...essa aqui ficou toooda, toda quando te encontrou lá, cara. Não queria nem me falar teu nome! – a Clara achou graça e me olhou, eu quis morrer – Mas eu sabia na hora! Sabia que tinha coisa! Sabia!! Voltou toooda apaixonadinha pro estúdio comigo, ficou o resto do dia agindo esquisit...
_Tá bom, tá bom já! Chega!
_Quê?! E tô errada?! – a Lê arqueou as sobrancelhas pra mim – Ah lá, meses depois e cês tão junta aí!
_Tá, Letícia. Já deu, vamos. Se comporta! – apontei pra Lê e virei pra Clara – Vamos entrar, Bi, vem...

Puxei-a para longe da minha amiga claramente fora de si – e sem amor à vida –, que riu. Menos de três minutos aqui e eu já me arrependi de ter vindo.
 
_Ah, poxa, mas eu tô achando interessantíssimo... – a Clara achou graça, a defendendo, conforme eu a puxava para dentro da casa.
 
Passamos pelo corredor lateral da entrada. Ali moravam a Lê e uma outra garota, uma amiga meio hétero dela – que já tinha beijado todas nós em algum momento daqueles anos todos, nas festas que elas davam ou nos nossos rolês. A Camila era alguns anos mais velha que eu e tinha sardinhas, era amiga de colégio da Lê. Sorri assim que a vi, sentindo que não a encontrava há uns bons dois ou três anos.

Ela então olhou para a Clara, curiosa.

_E essa aqui, hum, quem é?
_Clara, Camila. Camila, Clara.
_Prazer... – a Clara sorriu.
_Ó, já vou avisar... – a Camila brincou, me apontando – ...cuidado com essa daqui, hein?

Caralho. Me deixa só chegar antes?, revirei os olhos, respirar talvez? As duas riram. E a Lê passou por trás de mim, dando outro tapa no topo da minha cabeça e achando graça da situação. “Agora cê tá me achando menos mal, né?”, cochichou no meu ouvido. “Não”, retruquei baixinho, “e você não tá perdoada ainda”. A sala estava ocupada por umas sete ou oito amigas nossas – incluindo a Thaís e a Ju, que agora namoravam. Passei o olho e não achei a aniversariante.
 
_E a Jéssica, cadê?
_Tá lá na cozinha com a Má.
_E ela e a Lê, hein, mano? – perguntei baixinho, em tom de fofoca – Tão juntas ainda ou não?!
_Ah, meu, sei lá. Eu não pergunto, não falo nada, né... – a Camila deu de ombros, rindo – ...mas direto ela dorme aí.
 
Nos olhamos como se soubéssemos o que ambas não queriam admitir. As duas estavam saindo desde antes do aniversário da Lê, quando fomos para o Guarujá. E para o terror da minha amiga, que no fundo gostava mesmo era de namorar, a Jéssica tinha mais talento para a galinhagem. Aí ficava esse chove-num-molha sem fim. Pois é. A Clara nos observava ali, futricando, tentando acompanhar quem era quem. Fiz um gesto com a cabeça para ela e fomos em direção à cozinha para achar a aniversariante.  
 
_Não! Espera, espera... – a Clara me puxou pelo braço, de repente, quando já estávamos quase na porta – ...espera, só um segundo!
_O que foi?!
 
Eu a olhei, assustada, e ela se escondeu atrás das próprias mãos.
 
_Ai! – reclamou – Tem uma mina que eu já peguei aí!
_Quê?? Quem?!? – estiquei a cabeça pela porta e vi a Jéssica cozinhando perto do balcão, junto com a Marina e a Paula, que pareciam preparar um molho de macarrão em meio a uma zona de pratos e louça suja – A Jéssica? A de tatuagem no pescoço?!
_Não! Não! A de cabeço comprido!!
_A Marina? – eu comecei a rir, descontroladamente.

junho 21, 2012

Inconseqüências monetárias

Marchei apartamento adentro, indo o mais longe que conseguia do Fernando. Folgado! Vem agora me pedir um tostão que seja, vem, larguei minhas tralhas sobre a mesa da cozinha, com ódio, você vai ver só. Desviei das latinhas e garrafas vazias espalhadas no chão, odiando o meu colega de apartamento inútil por não ter arrumado nada naquela tarde.
 
Busquei na geladeira uma cerveja e abri a long neck desajeitadamente com a mão, machucando de leve a minha palma. Olhei para o relógio na parede. Eram 23:21. A real é que todo mundo tinha pavio curto naquela casa – aqueles bons modos e a nossa incapacidade de medir as palavras que saíam da nossa boca eram nossa pior característica. Era sempre assim. Toda vez. Toda maldita vez. Nos irritávamos e nos ofendíamos, aí baixávamos o nível – fosse pelo aluguel ou por uma louça suja esquecida por três dias no meio da sala. Eu perdia o controle, ele saía soltando fumaça. E quem não nos conhecia podia até se espantar, achar que nunca mais falaríamos um com o outro, mas a verdade é que nunca durava muito.  
_Vocês parecem duas crianças, cara, na boa... – a Clara riu.
_Que se foda! – resmunguei, equilibrando o celular no ouvido, enquanto trocava de camiseta – Eu vou sair. Você vem?
_Quê?! Agora?!?
_É! Vou lá na casa da Lê... – terminei de vestir a regata, alcançando uma jaqueta e a minha cerveja no armário – ...já tinha recusado o convite mais cedo, mas se o idiota do Fernando acha que pode sair, então eu também posso. Cê vem ou não?
_Vou, vou...
 
A Clara murmurou, rindo. E combinamos de nos encontrar no metrô. Em menos de 10 minutos, já estava saindo de casa de novo. Antes de deixar o apartamento, todavia, escrevi um bilhete “bem educado” pro Fernando e grudei com uma fita na porta de entrada. Bem madura. Subi a rua até a estação Consolação e esperei pela Clara na plataforma.
 
23:47, ela chegou. Numa meia-calça preta grossa, com uma blusa do Billy Idol e uma jaquetona larga por cima. Sorri na mesma hora. A estação abrigava animados grupos de 20-e-tantos anos, como nós, que apanhavam os últimos trens da noite. A gente tinha que ir até a República e depois até a Barra Funda. Já dentro do vagão, sentamos com os nossos pés apoiados nos bancos da frente e dividimos os fones do iPod dela durante o breve percurso.
 
Descemos na primeira baldeação e esperamos o segundo trem da noite. A Clara fazia graça sobre a linha no chão e eu a assistia, na minha, sorrindo. Quando subimos no próximo vagão, resolvemos ficar em pé, apesar do trecho ser mais longo. Estávamos segurando no cano imundo, no meio do corredor. E a Clara fazia sutis movimentos, dançando discreta ao som da música que escutávamos nos fones. Eu achava graça. Podia assistir ela dançar assim para sempre.
 
“Jolene, jolene, jolene”. As suas mãos escorregavam pelo cilindro de metal e ela me olhava com sua melhor cara de imprestável. Eu ria. “I’m begging of you”, o Jack White gritava nos nossos ouvidos, numa trilha sonora suja, “please, don't take my man!”. Apoiou-se contra o cano, pelo ombro, chegando perto o suficiente da minha boca. Num beijo, ou quase. Hum, volta aqui... Tornou a deslizar, no entanto, fazendo graça, antes que eu recebesse o meu beijo. Suas curvas desciam tentadoras no ar. “Jolene, joleeene...”, cantei junto, entrando na brincadeira. E ela fez então que virava, meio de repente, esquecendo-se dos fones.
 
Acabou toda enrolada.
 
Presa na própria falta de atenção, a Clara riu, sem se envergonhar. E eu a ajudei a se desenroscar. Que besta você, hein, fui tirando os cabelos dela do meio do fone. Os outros passageiros ignoravam as nossas risadas. E por precaução, guardamos os fones no bolso até chegarmos na estação Barra Funda. Saímos na rua já depois da meia-noite e pegamos um táxi até a casa da Lê, o que me custou mais alguns bons reais. Quem foi o infeliz que inventou a bandeira dois?
 
Batemos na porta da modesta e um tanto acabada casa da Letícia. Podíamos ouvir a música alta vinda lá de dentro e eu reconheci a moto da Ju e o carro da Marina, estacionado na garagem junto com outro que não sabia de quem era. Comentei com a Clara e ela teve um frio na barriga – ia finalmente conhecer o resto das minhas amigas.

junho 17, 2012

No corredor

Cacete. Apertei suavemente a parte de trás do meu pescoço, o sentindo doer, conforme saía do elevador do prédio. Eram 23:14 – mas já parecia madrugada. Tinha passado o dia inteiro numa gravação na puta que pariu, lá pros lados de Parelheiros. E agora chegava em casa, muitas baldeações depois, arrastando os pés de tanto cansaço. A poucos metros dali, do nada, ouvi a porta do nosso apartamento abrir bruscamente. Era o Fernando saindo. Desgraçado. Me encarou, estressado, como se já estivesse atrasado para algum lugar e não quisesse falar comigo.

_Onde cê tá indo, meu?
_No Z Carniceria... – resmungou, vindo na minha direção – ...vou encontrar os moleques.

Você só pode tá brincando.
 
_Como assim? – o segurei antes que chegasse no elevador – Com que dinheiro, Fer?!
_Ah! Qual é?! – brigou comigo, irritado com a mera pergunta – VAI VIRAR MINHA MÃE AGORA?!
_Aparentemente vou, né... – levantei a voz também – ...se sou eu quem vai ficar bancando a porra das suas contas!
_E EU PEDI PRO CÊ BANCAR ALGUMA COISA, CACETE?!
_Ah! E você acha então que tem dinheiro sobrando?!?

Folgado.
 
_Tem?! – eu repeti, indignada, encarando-o ali em pé.
_Não. Não tem. NÃO TEM! – gritou, ofendido – MAS ISSO É PROBLEMA MEU, PORRA. MEU! POR QUE CÊ TÁ SE METENDO?!
_Ah, não. Não mesmo... – eu ri, revoltada – ...isso é PROBLEMA NOSSO, FERNANDO! NOSSO!!
_ENTÃO CÊ VAI FICAR CONTROLANDO TUDO O QUE EU FAÇO AGORA?!? É ASSIM?! VAI TOMAR NO CU, MEU!!
_VAI VOCÊ! – retruquei – É ASSIM QUE CÊ VAI TRATAR SUA AMIGA?? EU TÔ TENTANDO TE AJUDAR, PORRA! Cê vai ficar saindo todo dia, estourando verba que não tem?! Porra, Fer, caralho. Não é assim! Você tem que pensar no apê, meu, pensar em mim também, no que a gente paga junto. Puta merda! E na boa, se cê acha que eu vou ficar bancando tudo da casa pra você ir lá fazer festa todo dia, cara, cê tá muito enganado...
_Mas, mano... Eu nem vou gastar!! – ele esfregou as mãos contra o rosto, irritado – Eu vou com os caras, caralho, eles que chamaram... Não paga nada pra entrar. Vou tomar só umas!
_Só que não interessa, Fer!! Não interessa quanto cê “acha” que vai gastar, meu! É a sua atitude que tá errada! Porra, eu também tô deixando de sair...
_E EU PEDI PRA CÊ PARAR DE FAZER ALGUMA COISA?!
_AH! SE É ASSIM, ENTÃO POR QUE EU NÃO SAIO HOJE TAMBÉM?! OU MELHOR, POR QUE EU NÃO SAIO E TORRO TODA A MINHA GRANA JÁ QUE CÊ TEM TUDO SOB CONTROLE, NÃO É MESMO?!?
_SAI! SAI, ENTÃO!! SAI! FAZ O QUE VOCÊ QUISER DA SUA VIDA, INFERNO, EU NÃO TÔ NEM AÍ!!
_VOU! VOU SAIR MESMO! – gritei e ele esbarrou no meu ombro, sem paciência, indo em direção ao elevador – CÊ TÁ SENDO UM BABACA, FERNANDO!
 
Virei as costas para ele e entrei no apartamento, batendo a porta.
 
Filho-da-puta do caralho.

junho 16, 2012

Toda calma do mundo

É. Não nos casamos, evidentemente – mas também não nos largamos mais. Nem naquele dia, nem nos meses que se seguiram. E talvez eu tenha tropeçado um tanto para afastar o meu coração da Mia, incapaz de realmente deixar seu apartamento no outro dia ou de impedir seus avanços durante a festa, , mas estar com a Clara era diferente. Diferente de tudo que eu já tinha vivido.
 
Era o relacionamento mais sincero que eu já tinha tido. Numa ausência completa de hesitação. Não tinha um pensamento que cruzasse a minha cabeça e que não saísse sem medo da minha boca, se concretizando quase imediatamente ao lado dela. Como se testássemos o limite uma da outra e fôssemos nos expandindo, sem filtro. Juntas. Nos apaixonando pela expressão mais sincera de quem éramos. Puta merda.
 
Assim, matando o trabalho só para nos ver; dez, doze horas sem sair da cama; fodendo em cada banheiro que a gente encontrava; caindo pelas sarjetas da Augusta, numas declarações bêbadas de madrugada; subindo no primeiro ônibus pro litoral só para ver o sol nascer no mar; conversando o caminho todo, com as mãos e as pernas entrelaçadas, afundadas no banco; nos contando todos nossos segredos, nuns papos sem fim, aos risos; xavecando nossas amigas; cuspindo água gelada uma na outra, numa tarde de calor no sofá da sala; e nos beijando até acabar o ar. Nunca tinha vivido esse tipo de genuinidade com alguém.
 
Esse tipo de liberdade.
 
A única coisa sobre a qual a gente não falava era a Mia. Mas também não é como se tivesse muito o que dizer – desde que conversamos sobre nossos sentimentos, eles pareciam ter perdido a força. Ou a urgência. Era como se, em algum lugar, a Mia agora soubesse o que significava para mim e eu para ela. E a certeza nos tirava aquela angústia toda. Chegamos num ponto em que passamos a quase achar graça, ocasionalmente nos provocando pelos corredores ou nuns SMS bobos. Mas sem nunca cruzar a linha.
 
As coisas só não estavam indo lá muito bem no apartamento. É. Financeiramente – o Fer continuava sem emprego. Começou com uma festa aqui, outra ali, mas aí passou um mês inteiro e depois outro e nada. No terceiro mês, bateu o desespero. Paramos com as festas e passamos a mandar o currículo dele para tudo quanto é canto. O Fer tentou alguns freelas e até rolaram umas entrevistas, mas nada. Nada de vaga. E quando foi lá pelo quinto mês, acabou o seguro-desemprego. Aí apertou de vez.  
 
No sexto, acabaram-se as economias dele. No sétimo, as minhas. E aí aconteceu exatamente o que não deveria – as festas voltaram.
 
Inferno.
 
Não para o apartamento em si, porque eu deixei bem claro que era contra, mas o Fer não passava mais uma porra de noite em casa. Não sei. Talvez ele estivesse cansado de ficar lá depois de tantos meses ou talvez só precisasse extravasar a frustração, vai saber. Mas o clima ficou uma merda. Toda vez que eu chegava do trabalho, exausta de tanta hora extra que pegava, e não o encontrava... eu reclamava.
 
E toda vez que eu reclamava, ah, dava treta.  

junho 15, 2012

[ CONTEÚDO EXCLUSIVO ]

AVISO: Os próximos 2 posts foram escrito exclusivamente para o livro do Fucking Mia e não estão disponíveis aqui. Os títulos são "5/5" e "Por que está amanhecendo?".
 
O livro do Fucking Mia está sendo preparado com muito carinho, em comemoração aos 10 anos de blog. O novo conteúdo está sendo escrito desde meados da pandemia e a ideia é lançar em breve! ♥
 
Se você quer ser avisada(o) sobre o lançamento do livro, deixe seu e-mail aqui:
 


junho 14, 2012

Lares insólitos

_Posso te contar uma coisa? – a Clara sussurrou, sorrindo.
_Pode.
 
Sorri de volta para ela e sentei na cama, despida. Alcancei o isqueiro no chão e acendi um baseado, soprando a fumaça na direção da janela aberta. O sol terminava de se pôr lentamente. E a luminosidade do meu quarto dependia quase unicamente dos postes do lado de fora, praticamente nula. O cômodo estava escuro e os nossos olhos, já acostumados. Os presentes comprados para suas amigas pendiam em duas sacolas na maçaneta da porta.
 
Fazia algumas horas que a gente tinha voltado para o apartamento. Passadas ali, entre as coxas e as mãos, os beijos uma da outra. E agora as pernas da Clara se moviam no lençol, encaixando-se na lateral do meu corpo. Ela encostou os seios descobertos na minha pele fria, esfriada pela proximidade da janela. Num déjà-vu. E me senti bem de estar ali, com ela.
 
_No outro dia, quando... – continuou, baixinho, apoiando o rosto nas minhas costas – ...v-você passou lá no apê, de surpresa, e-eu... não ia jantar com uma amiga.
_Não? – traguei, segurando a fumaça por um instante.
_Não.
_Hum. Mas você ia jantar com alguém... é isso?
_É... – ela suspirou, envolvendo o braço na minha cintura, e eu soltei a fumaça no ar – ...quer dizer, era uma amiga, mas não... do tipo que... que você não precisa se preocupar. Era uma amiga mais... do... outro tipo.
_Sei.

Senti a sua respiração oscilar sobre a minha pele.

_Clara, eu... – dei mais uma tragada, me preparando para mentir – ...não tô preocupada.
_Mas nã... n-não era isso que eu queria te contar... foi depois. Depois que você apareceu lá. Foi o que eu te mandei no SMS que você não recebeu, nessa semana. Sabe, e-eu te vi naquele dia e, e percebi que não...
_Hum – murmurei.
_...n-não sei. Acho que foi o... – continuou – ...o jeito como você falou o que falou, a situação toda. E-eu me senti feliz, Bo. Mesmo que você tenha ficado dez segundos, porra. E, e eu sei que a gente não é como... como outras pessoas, sabe, como outros casais... Mas eu fiquei tão feliz, só de te ver ali.

Sorri, em silêncio, com as costas ainda viradas para ela.

_Meu, você vai achar besta... – ela comentou, apoiando o queixo pouco abaixo do meu ombro, e continuou – Mas foi como se você tivesse me salvando de um jantar que eu realmente não queria ter, de um encontro idiota como qualquer outro, sem sentido nenhum. E... e era você, sabe? E-eu não queria estar ali, eu queria ficar com você. E olha, eu tentei, e-eu passei o fim de semana todo com ela, m-mas...
_Hum – soltei a fumaça, em silêncio, engolindo o ciúme que brotava em mim.
_Mas v-você é diferente, Bo – murmurou, apoiando de novo a lateral do rosto em mim – Sabe?

Não – eu não sabia. Sorri discretamente, num reflexo natural.
 
_E eu só queria q-que você soubesse disso. Do quanto você é importante para mim, porra.
_Então... – respirei fundo, sentindo meu coração acelerar – ...o que cê tá dizendo? V-vamos mesmo fazer isso?
_Não sei. O q-que... – ela sorriu contra a minha pele, com o rosto ainda nas minhas costas – ...que você acha?
_Eu quero ficar com você, Bi – respondi na mesma hora.
_E eu quero ficar você, desgraça.
 
Ela riu e eu achei graça, dando mais uma bola no baseado. Demoradamente. Então, um sentimento estranho de felicidade foi me contaminando, à surdina. Em cada poro. Bem de mansinho. E eu soltei a fumaça, aos poucos. Os fios do seu cabelo deslizaram pela minha coluna, a Clara ajeitou o rosto. Estar com ela me fazia bem – e eu sabia. Desci a mão sobre os seus joelhos, ao redor de mim, com a seda ainda entre os dedos.
 
Deixei a fumaça escorregar aos poucos para fora da minha boca, dos meus lábios. É impossível te ignorar, garota. Na minha vida, na minha cabeça. E coloquei a ponta restante do baseado sobre o parapeito da janela, esticando o braço. O THC inebriava os meus pulmões e os seus movimentos, sutis, tornavam-se cada vez mais perceptíveis. As pontas dos seus dedos percorriam pela minha barriga, faziam cócegas pela minha cintura e iam subindo, delicadas.
 
Me virei na sua direção e a Clara sorriu. Podia senti-la ainda na minha pele – um sentimento descomplicado. É. E talvez fosse mesmo simples, talvez pudesse ser assim o tempo todo. E é engraçado o quanto quatro paredes podem mudar a sua percepção das coisas, do que te basta para ser feliz. Calmamente, não sei, minha mente contemplou os caminhos ondulados do seu corpo, do que tínhamos juntas. Minhas mãos foram deslizando, ali, pelo entendimento que possuíamos uma da outra. Levemente chapada. Ela ia se tornando cada vez mais, e mais, real.
 
_Então... – sorri, encarando os seus olhos castanhos, com a boca quase na sua – ...então é isso... – os meus lábios encostaram nos seus, entre uma palavra e outra – ...que a gente vai fazer.

junho 08, 2012

Etiqueta

Peguei o cigarro de volta das suas mãos, sem querer o confronto, e virei dois passos para trás. Sentei no degrau frente à galeria Ouro Fino. De cabeça baixa, encarando meus tênis contra o chão de cimento. Traguei mais uma vez. E a Clara abaixou, agachando-se na minha frente. Colocou os braços apoiados nos meus joelhos e me olhou nos olhos. Soltei a fumaça e a encarei de volta, indisposta.
 
_Olha, eu... – ela emendou, me olhando de perto – ...não tô, aqui, achando que aconteceu alguma c...
_Não aconteceu.

Ela segurou o fôlego, interrompida.

_O quê, meu? – a conversa me deixava inquieta, gesticulando um tanto nervosa – Você sabe que não! Não aconteceu nada, porra! Então por que você tem que vir e começar isso agora?!
_Eu não tô c... – respirou fundo – A gente só tá conversando, Bo.
_”Conversando”, tá. Sei.

Balancei a cabeça, frustrada, e traguei mais uma vez. Durante todo o tempo, outras pessoas passavam por nós ali no degrau e entravam na Ouro Fino. Olhei para a minha mão e o cigarro dela já estava quase no fim. Soltei o ar lentamente, meio tensa. Não posso perder o controle, meu. Eu tendia a estragar este tipo de conversa, sem nem sequer dar chance de começar. Argh. E não queria fazer isso com a Clara, definitivamente. Mas é, inferno, tão difícil manter a calma quando não se tem certeza da sua própria culpa.

Dei mais uma tragada, aproximando fatalmente a linha da brasa do filtro e ofereci o pouco restante para a Clara, que recusou com a cabeça. Então o terminei. E apaguei contra a calçada de cimento. Os seus olhos castanhos me observavam, suspirei. Cacete. Como me meti nessa? Alguns lojistas conversavam e fumavam metros adiante na calçada – uma conhecida acenou para mim de longe e eu lhe dei um rápido sorriso, por educação. Tornei a olhar então para a Clara, na minha frente.
 
_Olha, eu sei porque... – retomei – ...p-porque você acha que temos que conversar, mas... não temos. Não temos mesmo. Porque não tem nada, Bi! Não aconteceu nada.
_Então, você tá me dizendo que não sente nada pela Mia? É isso?! Nem ela por você?
_E o que você tem a ver com isso, meu?!?
_Nossa... – ela arregalou os olhos, ofendida.

Com um gesto de mãos para cima, ela saiu da minha frente, ficando novamente em pé. “Aparentemente nada”, resmungou. Aí balançou a cabeça, num suspiro, desistindo de tentar conversar numa boa comigo. Como eu sou idiota, mano. Me arrependi, na mesma hora. Fechei os olhos e passei a mão no rosto. Por que eu não calo a boca? Mas a Clara logo deixou para lá, ainda de pé, falando para entrarmos antes que as lojas fechassem. Me levantei e a acompanhei galeria adentro.

O clima agora estava uma merda.
 
Passamos por algumas das lojas do térreo e eu a segui, com as mãos nos bolsos. A Clara sequer olhava na minha direção. Agíamos como meras conhecidas – droga. Não posso magoá-la toda vez que fico ansiosa, não a Clara. Subimos a escada rolante para o primeiro piso. E eu me arrependia, cada vez mais, mas continuava quieta. E ela tentava se mostrar indiferente, olhando as roupas e fazendo comentários breves, curtos. Apática. Estava procurando um presente para duas das suas amigas, cuja festa conjunta de aniversário aconteceria na outra sexta-feira.

Nada no primeiro andar, continuamos para o segundo. Demos a volta toda em silêncio. Feliz agora? A culpa é sua, sua imbecil, dizia a mim mesma, mentalmente. Observei a Clara dar alguns passos adiante, na sua jaqueta de inverno e com o lenço de flores pequeninhas. Parou frente a uma vitrine com roupas vintage. No entanto, não entrou – desanimada com tudo o que via. Alcancei-a, andando novamente ao seu lado, e ela ignorou um sorriso espontâneo meu. Cruzei o meu olhar com o dela, mas – nada. Nos aproximamos do elevador, caminhando em piloto automático para o terceiro piso.

_Espera, não. Vem aqui... – a peguei pela mão, afetuosamente, e a encostei numa das paredes – ...espera só um pouco, vai.
_O quê?
_Eu... – apertei os olhos, fechando-os arrependida, e abaixei a cabeça, encostando com a testa no seu ombro – ...e-eu sou uma idiota, Bi! – aí a olhei novamente – Uma idiota, me desculpa. Não queria ter sido grossa com você daquele jeito...
_É, né.
_...e eu, e-eu sei que cê não tava me cobrando, nem nada, aquela hora.
_Só queria conversar numa boa, meu! – se irritou.
_É, eu sei. Desculpa!
_Sério, cara, você precisa melhorar esse... – bufou – ...esse seu “jeito”, sabe. Urgente. Você me trata como se...
_Eu sei, eu sei – a interrompi, arrependida, tentando me explicar – É que eu... sabe, e-eu gosto de você, gosto mesmo, e não quero estragar tudo com a minha boca grande, só que aí... não sei... eu sou muito, muito ruim com esse tipo de conversa e, sei lá, f-fico nervosa na hora e acabo dando respostas piores ainda. Saiu tudo errado, meu! Não era a minha intenção, não mesmo... – respirei fundo – ...e-eu gosto tanto de você, porra.

Meu corpo pendia sobre o seu e ela me olhava, com os braços ainda cruzados. Suas costas estavam contra a parede e a sua expressão aborrecida. Deixa passar essa, garota, eu a encarava de volta, na maior cara de pau, por favor. E naquele momento, a Mia podia ir à merda. O que eu queria mesmo era ficar bem com a Clara. Nunca quis tanto, tanto algo. Ela abaixou a cabeça, então, cedendo, e empurrou o meu corpo com um dos seus ombros, num movimento leve, ainda de braços cruzados.

_Eu, e-eu também gosto de você... – ela murmurou, admitindo pela primeira vez; e aí me olhou um tanto brava, um tanto sorrindo – ...mas você é MUITO babaca. Puta merda!
_Eu sou mesmo... – eu ri.
_Não! Não, não... – ela achou graça, indignada – ...não vai achando aí que é engraçado, que você pode se safar assim toda vez... – descruzou os braços, apontando o dedo na minha cara e eu ri ainda mais, junto com ela – ...você vai ter que aprender a conversar que nem uma pessoa normal, cara. Entendeu? Se a gente for mesmo ficar junt...
_Ah! – brinquei – Então você quer ficar junta?!
_Cala a boca! Eu não terminei.
_Clara Villares Huanca desistindo do seu mar de amantes paulistanas... – a provoquei – ...quem diria, hein?
_Olha... – ela me encarou, sem paciência – ...seria muita sorte sua.
_Seria mesmo.

E nós ainda ríamos, quando nos beijamos contra a parede.

junho 06, 2012

...duas cajadadas

Andei pelo corredor, sem olhar para trás, e encontrei a Clara ainda na porta. Dei-lhe um beijo e fomos. Eu respirava inquieta, enquanto o elevador descia. E ela agia um tanto estranha, sem qualquer afeto, se forçando a se conter. Procurei ignorar todos os sinais e saímos do prédio, subindo a Frei Caneca em direção ao lado “bom” da Augusta – isto é, a área em que as casas de strip e os botecos sujos eram substituídos por restaurantes e lojas de estilistas em começo de carreira.
 
Um pouco depois de atravessarmos a Paulista, parei para pegar café. O dia estava mesmo frio, o termômetro da rua marcava 14ºC e a ressaca me maltratava, junto com o vento. Nenhuma palavra da Clara no caminho todo. Por favor, por favor, implorei mentalmente, a olhando ao meu lado, não vamos brigar. Involuntariamente, me cruzou a cabeça a época em que eu ainda namorava a Marina e nós discutíamos toda noite. Tentei evitar pensar naquilo. Para. A Clara não é a Marina, eu me convencia.
 
Mas o que ela é, então?!
 
Desde que voltamos a nos ver, nunca discutimos as premissas do nosso relacionamento – só fomos levando. Nos vendo quando dava vontade. O problema é que, sem isso ou qualquer conversa, eu não sabia até onde ela tinha direito de agir daquela forma. Simplesmente por eu estar sozinha na sala com a Mia, isto é. Sequer sabia se a Clara saía com outras minas. E importa? Argh. Estava apreensiva. Se tinha uma coisa na qual eu era realmente, realmente péssima, sem dúvida, era em discutir relacionamento – especialmente se me sentia culpada.

Atravessamos a Lorena lado a lado, ainda em silêncio. Nenhuma de nós dizia nada. As ruas estavam relativamente cheias naquele horário. Descemos o quarteirão até parar em frente à galeria, quando a Clara me segurou para que eu a esperasse acender um cigarro. Tirou o maço do bolso, acendendo um Lucky Strike com o meu isqueiro. Deu a primeira tragada, me oferecendo-o num gesto automático. Aceitei. Traguei duas ou três vezes também, devolvendo-o logo em seguida para ela. Merda. Os seus olhos não saíam de mim – seus dedos seguravam o filtro e pressionavam os lábios, suavemente – e eu sabia o que estava por vir.

_Eu vou te perguntar... – ela disse, então – ...isso... – a Clara me encarou, segura – ...antes de a gente entrar e eu não quero que você pense que me deve alguma coisa, mesmo. Mas eu queria que você falasse a verdade...
_Bi... não, meu. Por favor.

junho 05, 2012

Duas coelhas...

_N-não, ele... – me enrolei, tentando responder com naturalidade – ...saiu, f-foi levar uns amigos que tavam aí.
_Hum.

O seu olhar oscilou, voltando para mim no batente da porta. Parada, ali, implorando para que não levasse a mal aquilo. Estava vestindo uma jaqueta preta, botas curtas por cima do jeans e um cachecol com flores pequenas, indicando o frio que fazia do lado de fora. O seu cabelo preto caía, bonito e desfiado, por cima do lenço. Me encarou, refletindo, como se procurasse alguma explicação plausível – a que fosse – para a minha cara de culpada, quieta ali, e para a Mia logo atrás, apenas de blusão no chão do apartamento vazio.
 
Mas... afinal, rolou alguma coisa?!
 
Nem eu sabia dizer, eram sempre esses momentos tão dispersos, argh. A Mia nos observava de longe e os seus olhos, os da Clara, não se enraiveceram diante da situação, se manteve tranquila. Ainda assim, no fundo deles, podia perceber uma constatação magoada – uma decepção comigo e consigo mesma, pelas possibilidades pouco admiráveis que o meu comportamento podia vir a tomar. E eu me dava conta agora, de repente, do quanto me importava com o que ela pensava.

_E-então, mas... – eu disse, afobada – ...eu, e-eu vou com você!

Sem saber bem o porquê, em meio a uns segundos de constrangimento, me virei para me trocar, para a acompanhar – estava nervosa. Pedi que me esperasse dois minutos, que iríamos juntas até a Ouro Fino, uma galeria de artistas independentes que ficava do outro lado da Augusta. Me virei na direção do corredor, meio às pressas. E a Clara se surpreendeu com a minha decisão.
 
A Mia também.
 
Com as pernas de fora no blusão, sem que a visse, me seguiu até o quarto e fechou a porta atrás de nós. Por que diabos você veio?, a olhei ali, angustiada. Agora é que a Clara vai pensar que tá rolando alguma coisa mesmo, porra!

_Você vai mesmo com ela? – me perguntou, num tom baixo e levemente indignado.

Respondi que “sim”, começando a tirar as roupas do meio da zona que estava o meu armário. E a Mia ficou em silêncio, cruzando os braços. Vesti os meus jeans rasgados e coloquei a primeira camiseta que vi na frente, junto com um lenço palestino. Enquanto procurava pela minha jaqueta no bolo de roupas, largadas ali de qualquer jeito, ouvi-a suspirar, irritada. A um metro de mim. Achei a jaqueta.
 
Me virei e a Mia ainda estava lá. O que cê ainda tá fazendo aqui, meu?! Aquilo não me ajudava em nada a manter as aparências para a Clara. Por favor, só volta para a sala. Desviei novamente o olhar, enquanto calçava um par de tênis sujos. Cruzando e descruzando sistematicamente os braços, a Mia era incapaz de esconder o seu incômodo e me observava ajeitar o cabelo amassado no espelho, meio de qualquer jeito, às pressas.

_É sério mesmo que você vai com ela?! – ela sussurrou, de novo, ainda mais indignada – Agora? Assim?!
_E o que eu deveria fazer, Mia? – respirei fundo, colocando a jaqueta para sair logo – Hum?! Esperar aqui com você até o Fernando voltar?
_Não foi o que eu quis dizer... É só q-que, sei lá, eu achei que a, a gente tivesse...
_Sei. Ótimo plano! – a interrompi, irônica, indo já em direção à porta – Só que só funciona para uma de nós.
_Não. Você não precisa ir...

A sua mão alcançou a minha, me segurando. Havia carinho no toque dos seus dedos. Eu suspirei, tentando não me deixar afetar por cada gesto seu, e a olhei, ainda decidida. Sentia-me estranhamente capaz de ser cada vez mais sincera com a Mia.

_Não. Não preciso ir, não preciso mesmo... – retruquei, inquieta, também sussurrando – E você também não precisa ficar com ele. Mas você, v-você fica, não é?! E enquanto você fizer o que quiser, eu também faço.

Desviei dela e fechei a jaqueta, apressada, soltando minha mão da sua. A Mia me deu passagem, quieta, com os olhos magoados. E eu abri a porta do quarto. Preciso sair logo daqui.

junho 01, 2012

52 ways to murder anyone

Uma tonelada. Esse era o peso da minha cabeça no dia seguinte, afundada contra o travesseiro e tentando suportar a dor, enquanto o meu estômago se retorcia. Passei mais de quarenta dos minutos iniciais daquela tarde de sábado rolando de um lado para o outro na cama, sem realmente acordar de vez, num limbo de ressaca.
 
Quando finalmente levantei, vesti um moletom cinza – o mais confortável do meu armário – para tentar me esquentar. Aí coloquei um par de meias grossas e, já me sentindo melhor, fui até a cozinha pegar um copo de água. Abri a geladeira, sentindo a minha cabeça e o meu corpo resmungar a cada movimento. De lá, com o copo em mãos, andei preguiçosamente até a sala de estar, onde me deparei com o caos silencioso daquela madrugada. O apê parecia ter sido saqueado – com copos vazios, garrafas e latas amassadas por todo lado.
 
Cacete.

Empurrei uma jaqueta e algumas das coisas largadas sobre o sofá, despejando-as de qualquer jeito no chão. Liguei a TV, demorando um pouco para achar o controle, e acendi um cigarro ao me deitar, com a barriga virada para cima. Mudei o canal para um desenho animado qualquer que passava. E fiquei ali por algum tempo – fumando o cigarro apenas até a metade e o apagando na mesa de centro em seguida. O meu cabelo amassava-se contra o encosto e eu tinha uma das mangas do moletom apoiadas na testa. Estava tão confortável que acabei cochilando de novo. Não sei bem quanto tempo se passou. Só sei que despertei sentindo alguém acariciar levemente os dedos da minha mão, que pendia para fora do sofá. Num ritmo lento, como se desenhasse com a ponta dos dedos sobre a minha pele.

Abri os olhos e a vi ali – a Mia estava sentada ao pé do sofá, no chão da sala. Vestida só num blusão e com a cabeça apoiada num dos braços, bem próxima às minhas pernas. Sorri. Ei, você ... Suas mãos acariciavam as minhas, no pequeno trecho descoberto do meu antebraço. O sofá tinha repuxado o moletom, apenas um tanto. Já a outra manga do agasalho cobria parcialmente os meus olhos, com o braço largado sobre a testa – e eu a observava dali, por debaixo. Ainda um pouco fora da realidade.
 
Não estava acostumada a receber carinho da Mia. E sei lá, não pensei. Foi deslizando dois ou três dos seus dedos pela minha pele, despreocupada. Mas onde tá o... de repente, eu voltei à realidade de uma só vez. Arregalei os olhos na mesma hora – puta merda. Me ajeitei no sofá, mais para cima, tirando o braço do alcance dela, me dando conta de onde eu estava. E com quem. Merda. A Mia levantou a cabeça do sofá, como se despertasse junto comigo, num susto.

_O, o que v-você tá fazendo? – sussurrei, alarmada – Cadê o Fer?!
_Relaxa, meu, ele saiu... – ela riu, trazendo novamente a minha mão para perto de si e olhando os meus dedos com carinho – ...faz um tempo já. Foi levar o Igor e o Rafa lá em Tiradentes.

Hum. Sei. Encostei de novo o corpo contra o sofá, um pouco mais tranquila. E não sei bem por que, mas deixei que as suas mãos continuassem na minha. Me sentia estranha ali. Com ela. Entretanto, a ressaca parecia me impossibilitar de conseguir me mover. Olhei para ela ali, me segurando com carinho, e – não sei.
 
Não faz isso, porra. Argh. 
 
Parte de mim gostava. De cada pequena atitude da Mia. O problema era a outra parte – a que gritava nos meus ouvidos, suplicando para eu me afastar. Não tinha condições de voltar ao caos que fora no passado. Você não faz bem para mim, garota. Só que lá estava ela, tão bonita e tão confortável ali, comigo. E por algum motivo, deitada naquele sofá, eu não conseguia tirar a minha mão das suas.

_Cara, não acho que a gente devia tá assim... – eu comentei, ainda sonolenta – ...no meio da sala.
_Por quê?! – a Mia fez graça, se debruçando de leve sobre o sofá – Se alguém chegar, eu falo que tava só agradecendo por aquele beijo de ontem...
_Sei... – eu ri.

Ela colocou a cabeça levemente apoiada sobre a minha barriga, sem pedir permissão. E aí ajeitou o cabelo atrás da orelha. A encarei ali, realmente bonita, do seu jeito que eu conhecia tão bem, com mais carinho do que costumava me permitir. Inferno. E então sorri, curiosa:
 
_E me diz, como... – minha voz se arrastou, afundada no sofá – ...c-como você conseguiu que a sua amiga m-me desafiasse, afinal?
_Eu pedi.
_Mas ela não achou estranho, meu?!
_Não... Disse que sempre tive curiosidade... – a Mia riu, falando em tom de segredo – ...mas que preferia que fosse você, que eu já conhecia. E aí ela topou.
_Nossa. Cê não tem noção de como eu quis te matar ontem, cara... Juro.
_Eu disse para ela não contar pro Fer que eu que tinha pedido.
_Sei – achei graça – Muito esperta voc...

Foi então que a campainha tocou, nos interrompendo. Nós duas nos afastamos na mesma hora, num gesto automático, e nos olhamos. Mas... Espera, a porta tá trancada? O Fer esqueceu a chave?, estranhei. Aí me levantei, passando por cima do braço do sofá, e fui na direção da porta. Com o meu cabelo amassado, de ressaca. A Mia continuou no chão, sentada, e observou. Tentei virar a chave na fechadura e notei que já estava aberta – então girei a maçaneta. Dei um passo para trás ao olhar, o que diab...?
 
Era a Clara.
 
_E, e aí, meu?! – eu a cumprimentei, confusa – O q-que cê tá fazendo aqui?
_Ah! Ia dar uma passada lá na Ouro Fino para comprar umas coisas e aí pensei em te chamar para ir junto. Ia te mandar mensagem, mas como cê tava sem celular... – ela riu e olhou por cima do meu ombro.

A sua expressão mudou na mesma hora, merda, ao ver a Mia sentada no chão e notar nós duas sozinhas na sala. Então tornou a me encarar, agora menos confortável, e hesitou.

_O Fer... – ela disse baixo e voltou a olhar para a sala, por cima dos meus ombros – ...tá aí?