novembro 29, 2010

Opiniões em excesso

Troquei o moletom por uma camisa mais arrumadinha – com uma regata por baixo – e ouvi meu celular apitar. Busquei entre as roupas bagunçadas no armário. “Amei o bilhetinho, obg por ontem :3”, li e sorri, enfiando o telefone no bolso da calça. Voltei para a sala antes que o Fer pudesse terminar o seu cigarro, sentado no sofá ao lado do meu pai, dando uma consultoria técnica de graça. Minha mãe se entretinha em pé no canto do cômodo, próxima à janela, observando a nossa respeitável coleção de vinis – digo, do Fernando, porque meus mesmo não tinham nem dez ali.

_E aí? – perguntei, animada – Vamos?

Almoçar fora com os meus pais sempre significava comer decentemente – como há muito eu não fazia. Tinha passado as últimas semanas subsistindo de pizza, cerveja e macarrão. Quase na mesma hora em que cheguei na sala, o Fer se levantou, apertando a mão do meu pai, como se já se despedisse. Apagou o cigarro no cinzeiro que estava sobre a mesa e veio na minha direção, tocando meu ombro:

_Bom almoço pra vocês – disse.
_E esse casamento, hein, vocês dois?! – meu pai brincou e o Fer me olhou, rindo.
_Ai, pai. Não enche!
_Ah, cê sabe, eu tento... – o desgraçado do Fer me abraçou, fazendo graça – ...mas ela não me dá bola. O que eu vou fazer, né, meu, sua filha que não me quer.
_Babaca... – revirei os olhos, tirando-o de cima de mim, enquanto meu pai se divertia com a cena – ...vamos embora, por favor?!

Eles acenaram que “sim” e fomos em direção à porta. Nisso, a Lê passou atrás de nós, levando o copo vazio de volta à cozinha, e cumprimentou meus pais com um “oi” de longe. Me despedi do Fer num gesto breve com a cabeça e gritei um tchau para a Lê. Então saímos, finalmente, os três juntos para o elevador.

(...)

_Você está saindo com aquela garota? – minha mãe perguntou, de repente, no meio da descida.
_Quem?! A Lê?
_É. Aquela que estava na sua casa – ela disse, como se desaprovasse.
_Meu deus... – eu arqueei as sobrancelhas – ...lá vem.
_Fale a verdade – insistiu, intrometida – Vocês estão namorando?
_Não, mãe. Não estamos namorando, a Lê é só minha amiga.
_Sei. Olha, eu não... n-não quero me intrometer na sua vida, você sabe... – ela começou um discurso passivo-agressivo, que eu já sabia só pelo tom que ia ser uma merda – ...a gente não liga, eu e o seu pai, você pode sair com meninas, faz o que você quiser.
_“Posso”? – eu interrompi, rindo, e ela me ignorou.
_Só que essa garota é meio... estranha, não sei. Você não achou, bem? – meu pai olhou para o outro lado, evitando ter parte na conversa, e minha mãe prosseguiu – Sabe, eu não entendo porque essas garotas precisam andar como se fossem uns moleques, cortar o cabelo curto daquele jeito, usar aqueles... – ela me olhou, fazendo um movimento esquisito perto da orelha – Como chama mesmo?
_Alargadores?
_É. É muito esquisito e com aquelas tatuagens enormes, sabe, no braço... Bom, você sabe minha opinião sobre tatuagens – ela me olhou feio, conforme saíamos do elevador – E não tem necessidade disso! Se ela só colocasse um vestidinho, deixasse o cabelo crescer... Você viu aquela roupa que ela estava usando?! Parecia um menino! Com aquela calça larga... Ah, eu não gosto. Por que você não arruma uma garota mais... estilo a... a-aquela que você namorou... a... a Natália! Ou a Marina, ah, eu gostava tanto da Marina. Ou, então... – cutucou meu pai com as costas da mão, batendo no seu braço – Como era mesmo o nome daquela bonitinha, bem? A que eu sempre comentava?
_Raquel.
_Isso! Hein, por que você não sai com umas meninas assim? Sabe, mais femininas... Você é tão bonita, minha filha, se você se arrumasse mais também. Passasse uma maquiagem, sabe...
_Mãe, na boa, não começa – me irritei, já de saco cheio de ter a mesma porra de conversa toda vez que nos víamos – Eu tô bem assim.
_Mas, filha, precisa sair com umas meninas dessas?
_Não tem nada de errado com a Lê! Cê já olhou pra sua filha, por acaso? Porque sou eu que você tá criticando, mãe, a Lê é igualzinha a mim – enfatizei, sem paciência, enquanto andávamos na calçada em direção ao shopping – E que parte de “nós somos amigas” cê não entendeu?!
 
O meu pai ficava cada vez mais desconfortável com o assunto, quieto na sua.

_Ah! Você vai me dizer, então, que ela chegou às oito da manhã para te visitar? Num domingo?!
_Não... – bufei – ...eu não disse que ela não dormiu aí, ela dormiu. Só não comigo.
_Não precisa dar os detalhes.
_Mas eu não falei nada!! – resmunguei, revirando os olhos – Meu, não sei qual a dificuldade de entender que lésbicas têm amigas. Eu tenho um monte e não é porque são minas que eu vou me interessar. Não funciona assim, meu, não tá todo mundo dormindo com todo mundo...

Em tese, pelo menos.
 
_Humm... – ela me olhou, não muito convencida – E se não é com ela, com quem você tá saindo, então?
_Ai, meu deus... – olhei para o lado oposto, incomodada.
_O quê?! – ela questionou, como se não entendesse o que tinha feito de errado – Eu só quero saber, oras, não tenho direito?
_Não é da sua conta, mãe... Não tô saindo com ninguém, pô.
_Benzinho, deixa a menina em paz – meu pai se manifestou, enfim.
 
Salve, salve papai.

novembro 28, 2010

Em família

Aquele domingo, apesar de nublado, ia se tornando progressivamente menos frio, o que me permitia ficar de boxer e moletom no quarto. A minha amiga se entretinha sozinha, se entupindo de Coca-Cola e fuçando na vida social da ex pelo Facebook. O que talvez fosse pouco saudável, em todos os sentidos, mas né – quem nunca? Eu brisava na minha, deitada à toa na cama. E conforme as horas passavam, a playlist do computador ia rodando aleatoriamente pelas milhares de músicas que eu tinha salvas no PC.
 
_Do you see... do you see... do you see how you huuurt me, baby? – eu cantarolava, com um baseado na mão, já levemente chapada – ...so I hurt you too... – tragava mais uma vez, entre um verso e outro, conforme meus pés descalços deslizavam lentos pelo colchão – ...then we both get soooo bluuuuuuueeeeee.
_Ei, Joni Mitchell? Me ouviu, porra?! – me interromperam, de repente.
 
Olhei para cima, ainda deitada, e vi o Fer na porta com o braço apoiado no batente, rindo. Estava com o mesmo jeans e camiseta branca que saiu na noite anterior e cara de quem tinha acabado de acordar.
 
_Pois não? – perguntei.
_Seus pais tão subindo aí. Vim te chamar... – colocou a cabeça para dentro do quarto e riu – ...mano, tá puta marofa aqui dentro! Seus pais não vão entrar aqui, não?
_MANO, SERÁ?! – pulei da cama, meio assustada, e a Lê achou graça.
_Relaxa – o Fer começou a rir de novo – Vai lá, meu. Eu abro a janela...
 
Meti qualquer calça no corpo, enquanto ele entrava no quarto para ajudar. Não sabia se meus pais iam, de fato, pisar ali dentro – mas era sempre melhor evitar o desgaste. Para a minha sorte, ambos nunca souberam reconhecer o cheiro da maconha em si. Se pudessem, certamente a minha adolescência teria sido bem diferente do que foi. Mas aquela fumaceira acumulada não pegava bem.
 
Deixei o Fer lá e fui até a sala, encontrando os meus pais já do lado de fora do apartamento. À primeira vista, meu pai estava mais gordo e simpático do que nunca.
 
_Acordou agora? – ele perguntou, me abraçando pelo ombro.
_Não, acordei cedo – respondi – Espera dois segundos aí na sala, que eu vou trocar de roupa e a gente sai pra comer em algum lugar, pode ser? Cês querem ir lá no shopping?
_Tá. E ah! Chama o Fernando aí, quero trocar uma palavrinha com ele.
_Seu pai comprou um laptop novo – minha mãe revirou os olhos, explicando.
 
Eu ri e os deixei esperando no sofá, voltando para o quarto. O Fer tinha acendido um cigarro normal e estava fumando na janela, enquanto conversava com a Lê, ainda sentada na cadeira do computador. Apenas olhei para ele e fiz um gesto para que voltasse à sala, indicando que meu pai o queria lá, para variar.
 
A admiração do velho pelo Fernando, às vezes, me cansava. O Fer viveu boa parte da nossa adolescência lá em casa e acabou se tornando o filho que meu pai nunca teve – ou pelo menos, essa era a minha teoria. Viam futebol juntos, se provocavam, o meu pai sobre o Corinthians e o Fer sobre o Paysandu, um zoando o outro, aí debatiam inovações tecnológicas, de carro, falavam incessantemente de assuntos que não me interessavam. Era o clichê da broderagem masculina. Para ajudar a situação, o Fer não se dava lá muito bem com o próprio velho, então a amizade com o meu se intensificou ao longo dos anos.
 
Agora, parei em frente ao armário, meio brisada, preciso de uma roupa.

novembro 27, 2010

A saga

Dez minutos antes da seis, sem ter dormido quase nada, o meu celular me despertou. A Mia ainda dormia abraçada em mim – o que tornava sair daquela cama quentinha ainda mais difícil. Cacete. O que eu não daria para poder ficar o resto da minha vida manhã com ela. Mas um dia cinza já começava a amanhecer do lado de fora e encontrar com os pais da Mia no meio da sala não estava nos meus planos. Então, me convenci a desvencilhar-me dos seus braços.
 
Andei até a estante do seu quarto e peguei o primeiro papel que encontrei – um flyer desses de farol. “Bom dia, bonita! :)”, escrevi e dobrei o papel ao meio, o colocando erguido sobre a mesa de cabeceira. Deixei a Mia dormindo e fechei a porta do seu quarto, atravessando aquele apartamento gigante o mais silenciosamente possível. Estava tão concentrada torcendo para não ter ninguém acordado que só fui respirar de novo quando cheguei no elevador e apertei o botão do térreo.
 
Ufa.
 
A rua estava deserta. Caminhei até o ponto de ônibus, naquele frio desgraçado, ainda vestida na minha calça de pijama da noite anterior. Devo ter esperado uns quarenta minutos, congelando, até a porra do ônibus passar. E quando cheguei na Frei Caneca já eram mais de 7:30. Merda. Entrei no apartamento tentando passar despercebida, fechando a porta cuidadosamente. Mas quando fui virar – puta que pariu. Senti uma pancada na cabeça, do nada.
 
_É MUITA CARA DE PAU, HEIN?! – ouvi a Lê gritar, rindo, depois de tacar uma almofada na minha cara – APARECENDO AQUI ESSA HORA!
_Mano. Fala baixo, caralho!
_ONDE CÊ TAVA, HEIN, Ô VAGABUNDA?!
 
Ela se divertia, sentada no sofá, me ameaçando com outra almofada. Me aproximei com os braços na frente da cara, numa tentativa de me proteger, e larguei o corpo ao seu lado. Exausta. Então a Lê me bateu mais duas ou três vezes com a almofada em mãos, me xingando – até eu pedir trégua. Era pra você tá dormindo, inferno. Olhei para a cara dela, sem saber onde enfiar a minha, e comecei a rir. Aí espiei para trás, checando se a porta do quarto do Fer estava fechada.
 
_O Fer já acordou?
_Não – a Lê riu, percebendo na hora onde eu tinha passado a noite – Já sei até o que cê aprontou, cachorra.
_Ah, velho... – passei a mão no rosto, suspirando – Ela é demais, Lê. Cê num tem ideia.
_Ai, ai... “É o amooor...” – ela começou a cantar, me zombando – “...que mexe com a suuua cabeeeça e te deeeixa assiiiim”.

E claro, sucedeu-se um contrataque de almofadas da minha parte. Folgada do caralho, revirei os olhos, rindo.

novembro 26, 2010

Pequenos delitos

Eram 2:03 quando o táxi encostou em frente ao seu prédio. “cheguei :)”. O porteiro já tinha sido avisado e quando o elevador parou no décimo-primeiro andar, a Mia estava encostada na porta me esperando – num esquema para que os seus pais não acordassem. Nos olhamos e rimos. “Eu não acredito que cê tá aqui”, ela cochichou. Entramos cuidadosamente. No caminho até seu quarto, os meus pés mal encostaram no chão, pisando como se fosse vidro. A Mia trancou a porta, com o cabelo preso num rabo improvisado, usando uma calça de moletom cinza e um camisetão do Discharge que ia até o seu joelho, todo furado por traças. Ela tossia, de tempos em tempos; uma tosse doída. Nos enfiamos debaixo das cobertas na sua cama e ela apoiou a cabeça no meu ombro, abraçada em mim – sequer nos beijamos. A sua testa estava quente, febril, encostada contra o meu queixo. “Me conta uma história?”. “Que história?”. “Qualquer uma”, murmurou, “só pra eu te ouvir falar”. E durante os minutos seguintes, inventando conforme ia, sussurrei baixinho as aventuras de uma peixe-boi que se apaixonava pela lua. Até a Mia dormir.

And you sang:
“Sail to me, sail to me, let me enfold you”
Here I am, here I am, waiting to hold you
– Song to the siren

novembro 25, 2010

Sonolência

Por fim, não fomos à Clash. O plano original era só jantar juntas e daí a Lê iria pro seu date, mas acabou que ela me ajudou a arrumar a sala – nuns empurra sofá de cá, empurra móvel de lá para varrer tudo – e aí fizemos uma lasanha inteira, que comemos vendo qualquer reality podre na MTV. Então, de barriga cheia, após mais algumas horas de papo furado e muitos litros de cerveja, a Lê acabou capotada no meu sofá.
 
Já era uma da manhã quando me dei conta. Estava jogada sobre o encosto do outro lado, bêbada e acabada de sono, assistindo não sei nem porquê – certamente por preguiça de desligar a porra da TV – a um documentário sobre os peixes-boi na Amazônia, quando ouvi a minha amiga roncando. Ah, pronto, olhei pro lado e achei graça. Voltei os olhos para a TV, já imaginando a pobre da Jéssica tomando um bolo na Clash. Cogitei enviar uma mensagem para avisar que o encontro delas tinha miado e peguei o telefone na mão, mas – não, hesitei, melhor não me meter.
 
Antes de largar o celular de novo no sofá, no entanto, ele vibrou. E assim que li o nome da Mia na tela, sorri imediatamente – ”ta por ai?”. Afundei o corpo ainda mais contra o encosto, respondendo o SMS, com os olhos já quase pregados de sono. Eram 01:27. “oi ;)”. “dsclp. to atrapalhando o clima ca marina?”. “ta, meu. me manda msg daqui umas 3h pfvr, melhor”. “vsf ¬_¬”. Comecei a rir sozinha, colocando os pés sobre o sofá. E continuei: “tonta. como ta ai?”. “ja acabou. nossa... ñ via a hr de td mundo ir embora”. “vc ta melhor?”. “ñ, meu... so piorei. acho q to ficando doente msm :(“. “serio???”. “sim, mo bosta :/, a Mia reclamou e alguns segundos depois emendou, “qria q vc tivesse aqui”.
 
Não faz assim, garota. Caralho.
 
Passei a mão no rosto e olhei para o lado, vendo minha amiga desmaiada ali. Não. Não posso fazer isso, argumentei comigo mesma, imediatamente tomada por uma vontade impulsiva de ir lá ver a Mia. Por que as madrugadas deixam tudo mais intenso? Talvez a mensagem sequer fosse um convite e a minha mente já estava ali calculando o quanto gastaria num táxi até Higienópolis. Tinha algo de inquietante em saber que a Mia me queria lá.
 
Esfreguei o rosto de novo, respirando fundo. Li o SMS mais uma vez e fiquei encarando a tela por alguns segundos, afundada no sofá, pensando em quanta sacanagem seria com a Lê, com o meu bolso, com a porra do Fer e até com os meus pais, que iam passar lá para me visitar no dia seguinte.
 
Mas num impulso, respondi – “se vc qser msm, eu vou”.
 
Larguei o celular ao meu lado e subi as mãos até o cabelo, bagunçando os fios de qualquer jeito, naquela ansiedade de quem acabou de fazer besteira. Olhei de novo para a Lê ao meu lado – ela continuava dormindo. Suspirei. Quando a tela do meu celular acendeu, o peguei na mesma hora. “ñ, meu... to podre”. “a gnt ñ precisa fazer nd, so te faço cia”. “<3”, a Mia respondeu e eu sorri, numa felicidade de levinho, “mas c ñ ta falando serio, ne... ta tao tarde”. “to sim”. “mas e meus pais amanha? rs”. “eu espero vc dormir e saio rs”. “nem a pau, se vc vier vou qrer q vc fique :3”. “eu fico entao”. “vc ta falando serio msm?”. “to. posso ir?”. E no segundo seguinte, o telefone vibrou – “vem”.         
 
O meu coração acelerou. A vontade era de ir correndo – mas coloquei os pés vagarosamente no chão, um por vez, derrubando algumas latinhas vazias que estavam largadas ao redor do sofá, num movimento cauteloso e desajeitado ao mesmo tempo. Aí andei silenciosamente até a TV e a desliguei, tentando ao máximo não fazer barulho para não ter o meu delito flagrado em sua totalidade.
 
Voltei até o sofá e me curvei por cima da sapatão adormecida que ali jazia:

_Lê... – a cutuquei de leve, tentando não a acordar muito – ...tô saindo.
_Tá... – ela murmurou, meio inconsciente.
_Cê vai dormir aí? Não quer que eu arrume um colchão pra você lá no quarto?
_Não... – continuou, sem abrir os olhos e engolindo as letras, afundada na almofada – ...deixa eu aqui, tô de boa.
_Beleza.

Descalcei os tênis da minha amiga, que já roncava de novo, deixando-os ao lado do sofá. E recolhi as latinhas no chão, levando todas as que consegui empilhar nos braços até o lixo da cozinha. Então, voltei e recolhi os pratos e talheres, colocando-os na pia. Apaguei todas as luzes e fui até o banheiro escovar os dentes, sem querer demorar muito mais. Joguei uma água rápida no rosto e encarei o espelho, com aquele cabelo bagunçado e as olheiras do tamanho do meu sono de dez minutos antes, prestes a sair para a casa da Mia – que se dane.
 
Passei no quarto para pegar a carteira e um tênis que não estivesse molhado na lavanderia, sem sequer trocar o pijama-com-moletom que eu estava vestindo. E então saí.

novembro 21, 2010

O programão

Sem a Marina, a minha noite de sábado começou – mas começou sem Mia também.
 
Sozinha, sentada no piso frio em frente à máquina de lavar. É. Foi assim que começou. Ali, assistindo as minhas roupas rodarem, rodarem e rodarem, com um baseado aceso na mão. Entediada e uma vez na vida, para variar, fazendo o que deveria ao invés de me meter em encrenca. O meu olhar se perdia nas cores molhadas, girando, entre uma tragada e outra. E eu mantinha a cabeça vazia. Mas mesmo que não pensasse em nada específico, sabia que pensava nela – porque era sempre nela. Em algum lugar de Higienópolis, morrendo de sono, enquanto aturava os seus parentes comentando babaquices do tipo “tá virando gibi?” sobre as suas tatuagens. A ideia me fez rir sozinha.

_Nossa, cê tá aqui?!
 
Ouvi, de repente. Olhei para cima e vi o Fer parado na porta da nossa pouco utilizada área de serviço, rindo da minha cara.

_Que diabos cê tá fazendo?
_Meus pais vêm aí amanhã... – justifiquei.
_Ahh... – ele riu como se, de repente, a minha presença ali fizesse sentido – ...escuta, e cê vai lavar mais alguma coisa?
_Faltam as brancas ainda.
_Pô... Posso trazer umas minhas aí?
_Traz – coloquei o baseado na boca.
 
E em menos de dois minutos, o Fer passou pela porta de novo, empilhando um lençol dobrado com um monte de roupa suja no meio. Só a culpa mesmo pra me fazer lavar cueca de marmanjo, pensei. Largou tudo no chão, ao lado da máquina, e se despediu de mim. Ia sair – não perguntei para onde, muito menos com quem. Com o baseado já quase terminado entre os lábios, ergui as mangas do moletom, peguei um dos All Stars largados no tanque e pus-me a lavá-lo com as mãos naquela água gelada do caralho.
 
Assim que o Fer saiu pela porta, o meu celular tocou com um SMS da Lê. Queria saber – daquele jeito amigável meio estúpido dela – o que havia se passado comigo na madrugada anterior, quando sumi de uma hora para outra sem me despedir, e se eu ia sair. “Tenho q lavar roupa e arrumar a casa hj... se tiver a toa passa aí q te conto. puta bad, meu”, escrevi, com as mãos ainda molhadas. E antes de voltar para os meus tênis sujos, completei: “ei, traz umas brejas se for vir”.

Quarenta minutos depois, a campainha tocava prolongadamente já pela segunda ou terceira vez. Do outro lado da porta, plantada ali enquanto eu terminava de estender as roupas, já irritada, estava a minha amiga e dois engradados. Sorri ao vê-la parada no corredor, me desculpando pela demora.

_Tomar no cu, mano! – ela entrou, indignada, e me olhou – E que merda cê tá fazendo com esse pijama, meu?!
_Quê?! Eu tô estendendo cueca na lavanderia, porra – disse, ajudando-a a levar os engradados para dentro – Você quer que eu vista o quê?!
_Mas a gente não vai sair depois?!
_Não, meu! Onde diabos cê leu isso?
_Eu supus, né, caralho.
_Aí a culpa já não é minha... – eu ri – Eu não disse nada disso.
_Por que cê não quer sair, meu? Vamos na Clash, vai.
_Nem pensar! É do outro lado da cidade, mano.
_E daí? Eu tô de carro aí... Vai, se troca lá. Vou pôr as brejas pra gelar!
_Não, velho, nada a ver... Fora que tô zerada de grana – resmunguei e a acompanhei até a cozinha – Sério, vou ficar sussa hoje.
_Ah, cara, mas eu tenho que ir... Combinei com a Jéssica já.
_Com a Jéssica?! – eu ri, abrindo uma cerveja, enquanto a Lê colocava as outras na geladeira – Mas, tipo, “combinou” como?
_Ah... Ela que me mandou uma mensagem de madrugada, tava voltando da Sarajevo ontem, disse que queria me ver. Acho que tá sabendo que eu não tô mais com a Bah. Aí, sei lá... né, topei.
_Meu, cê sabe que eu já fiquei com ela, né?
_Bom, até aí... – a Lê achou graça, sentando na borda do tanque enquanto eu esticava as roupas que faltaram – ...todo mundo já pegou todo mundo.
_“Todo mundo” cê quer dizer quem?
_Eu, a Jéssica, a Marina, a Flavinha, a Cá...
_Espera. Cê pegou a Marina?
_Nossa, antes de você até!
_Que mentira, mano! – debochei – Eu fui a primeira dela, babaca!
_Ah, bom, então foi depois... – ela riu.
_Filha-da-puta.

novembro 17, 2010

Iniciativas

Quando, por fim, saí do banho mais demorado da história da humanidade, a luz do sol já perigava a desaparecer por trás do céu nublado e ia se transformando, deprimentemente, num pôr-do-sol acinzentado. Argh. Ainda me sentia um lixo. Andei pelo quarto só de cueca e moletom, procurando calças-de-ficar-em-casa que não me apertassem. Vasculhei pela pilha de roupas que se espalhava pelo chão e achei a parte de baixo dum pijama desbotado.
 
Cacete. Queria um cigarro agora.
 
Olhei pela janela, sem vontade de sair para comprar um maço na banca da esquina. Pateticamente dividida entre a moleza pós-horas-de-choro e a minha maldita necessidade por nicotina. Me sentei na ponta da cama pelo que me pareceram minutos a fio, tomada por uma preguiça imobilizadora, até que o vício me venceu. Tá. Vou lá. Observei então o meu jeans, largado em frente à cama, e pensei no quanto andava precisando ser lavado. Que programão pra sábado, revirei os olhos. Continuei a olhá-lo ali, enrolando o máximo que me fosse possível para tomar qualquer atitude, sem coragem de trocar as calças naquele frio.  
 
Acabei enfiando um All Star velho no pé e descendo de pijama mesmo. Foda-se. Cruzei até a outra calçada, sentindo aquele vento gelado na cara e no cabelo molhado – porra, São Paulo. Aí contei minhas moedas em frente ao atendente da banca de jornal, para ver se conseguia pagar um Marlboro vermelho, mas o dinheiro não deu.
 
_Me vê qualquer um, então – disse, irritada.
 
Acendi o primeiro logo que virei as costas, enquanto esperava os carros terminarem de passar na minha frente. Atravessei a rua de volta, morrendo de frio, e parei no portão do meu prédio para terminar o cigarro. Por que diabos não se pode fumar em elevador? Alcancei o celular no bolso do moletom, entre um trago e outro, e reparei numa chamada não-atendida da Mia. Inferno, respirei fundo. Mais do que nunca, me incomodava com o quanto filha-da-puta eu estava sendo com o Fer, sem saber o que fazer com aquela situação toda em que me meti. 
 
Joguei a bituca fora e subi, indo direto para o meu quarto, trancando a porta atrás de mim. Sentei na cadeira do computador e olhei para um post-it amarelo grudado na torre do PC – um lembrete escrito por mim mesma, dias antes, de que meus pais me visitariam naquele domingo. Bosta, lembrei com desgosto do compromisso, que me dava mais um motivo para lavar a porcaria da roupa suja amontoada no chão. Peguei o celular na mão novamente e olhei para a chamada perdida. Mia. E sem pensar muito, apertei o botão verde sob o meu dedo, vendo o seu número chamar na tela.
 
_Oi.
_Oi...
_Cê me ligou?
_Liguei. Espera um segundo... – ouvi uma porta se fechar, do outro lado da linha – ...queria saber como que cê tá.
_Eu tô bem – ri, sem entender – De ressaca só. Por quê?
_Ah... – a Mia hesitou – ...por causa do que rolou ontem com o Fê. Tá tudo bem mesmo?
_Tá – respondi, um pouco incomodada com o assunto – Tá, sim. A gente conversou hoje mais cedo.
_Não era pra cê ter ido embora daquele jeito, e-eu... – ela tossiu, brevemente – ...eu fiquei muito puta com ele, a gente acabou discutindo feio ontem.
_É. Eu sei.
_Ele te contou?
_Não, só comentou por cima. Mia, olha...
 
Senti uma angústia entalar na garganta. Queria lhe dizer o quanto tínhamos passado do limite, o quanto a amizade do Fer significava para mim, o quanto tudo aquilo tinha me incomodado o dia todo – mas não consegui. Ouvia a sua voz e imediatamente me lembrava da pista escura da Sarajevo, de como me sentia com ela. De como a amava. E de repente, todo aquele peso se diluía.
 
_O quê? – estranhou, após segundos de silêncio meu.
_Não, nada...
_Você tá bem?
_Sim. Só meio… sei lá, estranha.
_A gen... – ela pareceu se afastar do telefone, tossindo mais algumas vezes – ...desculpa.
_Tudo bem por aí?
_Tá. Acho que peguei muito frio ontem, meu, acordei zoada.
_É “ressaca” o nome disso, cê sabe, né? – fiz graça.
_Pois é – ela riu também – Puta merda, tudo que eu queria hoje era dormir, mas a minha casa tá cheia de parente. Vieram comemorar meu aniversário – suspirou, com a voz ainda embargada – E você, vai fazer o quê hoje?
_Ah, a roupa, a louça...
_Besta – ela riu – Cê não vai sair?
_Não, meu, acho que vou ficar por aqui... dar uma arrumada nas coisas, fumar um, sei lá.
_Hum... E a Marina, não vai ficar com saudades?
_Quê?! – eu comecei a rir.
_Ué. Cê não andava “passando as noites lá”? Vai deixar ela sozinha justo no sábado à noite?! – continuou, fazendo graça – Que maldade.
_Jesus... – balancei a cabeça, rindo, sem acreditar – ...memória de bêbado é uma desgraça mesmo, hein?!
_Memória seletiva, meu bem...
_Cara, pra começo de conversa, não foram “noites”. Foi uma... ou duas, no máximo. E não tem nada a ver, o Fer aumenta as coisas – resmunguei – Então, cê nem começa...
_Não tô começando nada... – a Mia riu – ...só tava curiosa para saber o que tem de tão interessante na casa dessa Marina aí.
_Olha, já teve muita coisa interessante... – respondi, imprestável – Mas hoje em dia, não. Não mais.
_Sei. Então, não tem nada?!
_Tem. Tem, sim. Tem você, sua tonta – eu ri e expliquei – Ela é uma das únicas que sabe de você.
_É? Hum, e você falou bem de mim?
 
E tem algum outro jeito de falar, garota?
 
_Isso não é da sua conta... – disse, já achando graça na reação que ela sequer havia tido ainda.
_Que absurdo! – ela riu, indignada – Como não é?!
_Um dia, quem sabe...
_Um dia, o quê?
_Eu te conto. O que ando falando de você por aí...
_Não quer vir me contar hoje?
_Hoje?!
_É. De repente, cê podia vir aqui...
_É?
_...e me sequestrar, quem sabe.
_Hoje não dá.
_Não?
_Não, meu, já vou sair com a Marina... – comecei a rir, de novo.
_Idiota! – ela riu também.

Recorrente

I've come to my senses
That I've become senseless
I could give you lessons 
On how to ruin your friendships

Every last conviction 
I smoked them all away
I drank my frustrations 
Down the drain
Out of the way
So I sit and wait and wonder:
"Does anyone else feel like me?"
Someone so tired of their routines
And disappearing self-esteems

I'll sing along
Yeah, with every emergency
Just sing along
I'm the king of catastrophes
I'm so far gone
That deep down inside
I think it's fine by me

I'm my own worst enemy

(Less Than Jake)

novembro 11, 2010

We define our moral ground

O almoço – ou janta? – ficou pronto, poucos minutos depois da minha entrada triunfal. Até então, o silêncio havia dominado o espaço entre nós dois. A minha cabeça, embebida em ressaca, se recusava a pensar na confusão daquela madrugada – mas aquilo estava me machucando por dentro. E eu sabia. Sabia que, se deixasse o pensamento escapar, por um segundo que fosse, ele se alastraria pelo meu corpo inteiro.
 
E foi o que aconteceu.

Argh. Eu odiava brigar com o Fer. Nós nunca medíamos palavras – e numa dessas, nuns surtos de raiva, acabávamos dizendo a primeira coisa que nos vinha à cabeça, sem limite algum, nos ofendendo. Dois estourados de merda. Muita convivência tem dessas mesmo, nos sentimos confortáveis para xingar até a nona geração um do outro – e aquilo era péssimo.
 
Eu me sentia um lixo. Mas evitava de pensar no contexto completo, porque a culpa, essa sim, acabaria comigo. Então me mantive quieta, olhando para a mesa, conforme o Fer colocava frente a mim uma panela com arroz requentado do dia anterior, misturado com almôndegas, dessas que se compra já prontas. Depois veio o seu prato, os talheres um a um, duas latinhas de cerveja e o que restava de uma salada de cenoura com tomate. Observei-o misturar tudo no prato, meio de qualquer jeito.

_Quer? – ele perguntou, falando baixo, ao reparar o meu olhar acompanhando seus movimentos.
_Não, tô de boa... – respondi, me juntando a ele naquele nosso fingimento babaca de não-aconteceu-nada – ...o meu estômago tá zoado, não sei.

Ele levantou os olhos na altura dos meus, me encarando por um instante, e depois tornou a encarar o próprio prato. Sem ódio, nem remorso – como um gesto normal. Voltou a comer, logo em seguida, e foi quando reparei que éramos só eu e ele ali. Sozinhos. Eu com a roupa amassada da noite anterior e ele com um trapo qualquer de ficar em casa. O apartamento estava vazio.

_A Mia não tá aí?
_Não – ele deu um gole da cerveja, com um tom sério, entre uma garfada e outra – ...ela foi pra casa dela depois da Sarajevo, a gente brigou ontem.
_Brigaram por quê?

O Fer me olhou novamente. E então continuou a comer, quieto, como se não quisesse falar a respeito. Merda. Por que fui abrir a boca? Não conseguia interpretar a reação dele – parte de mim sentia que o Fer estava puto comigo, a outra desconfiava que ele tinha alguma culpa naquilo. Ou talvez fosse apenas sono, não sei. Maldição. Inquieta, me movi na cadeira, me apoiando contra a parede de ladrilho. O Fer subiu o olhar até o meu, mais uma vez, brevemente.
 
E segundos depois, sem que eu dissesse nada, emendou:

_Não foi nada, a gente só discutiu... – murmurou, já quase terminando o prato – ...mas ela ficou irritada e quis ir embora. Eu voltei sozinho depois.

Senti um mal-estar tomar todo meu corpo. Na mesma hora. Imaginei a discussão dos dois – regada à álcool e fora de controle, desnecessária. Em plena madrugada. O Fer aos gritos no meio da Sarajevo, a Mia puta e indo embora do próprio aniversário. A ideia me revirou ainda mais o estômago e tive vontade de vomitar. Quis sumir dali. Só faço merda, porra. E num impulso, me levantei antes que a culpa me consumisse. Apoiei a mão na mesa para sair da cadeira e o Fer me segurou no pulso – “espera”.
 
Caralho.
 
Respirou fundo. Ele parecia dividido – e chateado.
 
_Escuta... Desculpa por ontem. Eu... – ele suspirou – ...e-eu, sei lá. Não era pra você ter ido embora.
_Não, Fer...
_Foi zoado – me interrompeu e passou a mão na cabeça, como se tudo aquilo fosse realmente difícil para ele – E-eu... eu tava chapado pra caralho, nem sei que merda eu tava falando. Quase não dormi hoje, velho, juntou com a briga com a Mia também e sei lá. Saiu de mão. Foi tudo zoado.
_Não, meu... – balancei a cabeça, inconformada comigo mesma – ...eu que tenho que te pedir desculpas, Fer.
_Pára... Pedir desculpas, por quê? Não tem nada a ver!
_Tem, sim!
_Não, mano, Puta lance idiota.
_Eu fiz merda, e-eu... – abaixei o olhar – Não devia ter ido tão longe, não sei o que aconteceu...
 
Inferno. Me sentia a pior pessoa do universo – mas simplesmente não conseguia admitir. Não a verdade toda. Aquilo ia destruir a nossa amizade. O Fer também hesitou, por um instante, com os olhos fixos em mim. Parte dele parecia não ter tanta certeza de que a culpa era inteira sua. E ele me encarava, sério, como se estivesse num conflito interno. Destruído pela nossa discussão. Droga.

_E-eu... sei lá, eu bebi demais também – continuei de repente, sem pensar, num reflexo desesperado de consertar logo as coisas – E aí chegou uma hora que nem me dei conta de com quem eu tava dançando, Fer, acabei saindo da linha. E eu não queria, de verdade. Eu não, n-não sei, porra, não sei o que deu em mim.
_Tá tudo bem.
_Fer. É sério – fiz com que olhasse para mim, pegando em sua mão de volta – Me desculpa, meu. Por favor.
_Relaxa... – ele deu um sorriso amarelo – ...eu que fui um babaca.

Não consegui dizer mais nada. Nunca estive tão errada em toda a minha vida – puta merda. E a consciência disso me engasgou dolorosamente a garganta. Mal conseguia respirar. Ali, completamente perdoada e incapaz de me sentir bem.
 
Abaixei a cabeça. O Fer se voltou para o prato na mesa, continuando a comer, como se tivesse tirado um peso das suas costas de repente. Inventei então que precisava tomar um banho e saí da cozinha o quanto antes. Os meus olhos começaram a inchar, a me doer. E o engasgo na minha garganta piorava progressivamente, conforme eu andava apressada pelo corredor. Precisava sair de perto dele – urgentemente. Não queria que ele me visse assim. Me fechei correndo no banheiro e tranquei a porta, sentando no chão. E quase imediatamente comecei a chorar.

Indistinto

Minha cabeça doía. Caralho. Meus olhos se abriram, lentos e desnorteados, feridos pela luz que invadia o cômodo. Os raios cinzentos de sol entravam frios pela janela, machucando os meus olhos e piorando aquela dor aguda que irradiava por todo o meu cérebro. A agonia – por qualquer líquido que fosse – se alastrava pelas minhas veias, me dobrava o estômago no meio do caminho e chegava seca à minha garganta. Completamente desidratada, após uma noite daquelas.

Senti vontade de vomitar e ignorei. Foda-se. Continuava deitada, imóvel. Minha posição me incomodava de alguma forma, porém demorei um certo tempo para perceber, toda torta e largada no sofá. Espera, sofá? Olhei em volta, movendo apenas as pálpebras, judiadas pela noite mal dormida, e nem um só músculo do corpo ou rosto. Meus pés continuavam calçados com os Nikes preto e vermelhos sobre uma almofada e o azul-marinho do sofá. Estranho. A minha jaqueta me apertava e o encosto me impedia de deitar com ambos os ombros confortavelmente acomodados.
 
Puta merda, eu tinha mesmo desmaiado na sala.

Alcoolizada, é claro, em algum momento da madrugada anterior. Forcei minha mente, sonolenta, tentando refazer os meus passos Augusta abaixo e até a porta de casa. Não consegui. Porra. Um pedaço me faltava na memória. Passei as mãos pesadas pelo rosto e suspirei, me virando e esticando um dos braços em seguida para a mesinha de centro, onde aglomeravam-se o meu celular, um maço de cigarros e as chaves de casa.

Peguei o telefone: nenhuma mensagem. Ufa. Para minha sorte, a caixa de saída estava vazia. E o maço também, merda. Meu estômago se revirava, oco, como se fosse dar a volta em si mesmo, de fora para dentro. Quis vomitar, de novo. Não... não, caralho. Num ato de protesto comigo mesma, levantei o corpo e arranquei a jaqueta, largando-a longe, já sentada na beirada do sofá. Me forcei então a ficar bem. Era só uma droga de uma ressaca, eu sabia e resistia ao mal-estar, teimosa.
 
Já passei por piores.

Um cheiro enjoado vinha da cozinha. As luzes estavam todas acesas, do corredor para lá, e um barulho de panelas me irritava os sentidos – que horas são? Me sentia confusa quanto à linha temporal daquele fim de semana. Aquilo devia ter me acordado, o cheiro ou o som, mas que inferno. Levantei-me, meio rabugenta, a cabeça pesada e o corpo esvaziado. Caminhei pela sala na máxima velocidade que aquela ressaca desgraçada dor de cabeça me permitia. Ou seja, extremamente lenta e tropeçando nos meus próprios pés. Patética.

Encostei com as duas mãos no batente da cozinha. O Fer estava cozinhando no fogão, de costas para mim, com uma calça de moletom cinza e uma camiseta velha de dormir. Olhei-o por dois segundos, indiferente à nossa discussão na noite anterior. Não era apatia minha, sei lá, era algo diferente. Entrei e sentei numa das cadeiras em frente à mesa. O som do metal contra o piso frio denunciou a minha presença e fez ele me notar, brevemente, por cima do ombro. Sem se importar comigo, o Fer continuou cozinhando e eu desabei de cansaço, apoiada nas minhas palmas, com os cotovelos sobre a mesa e o rosto metido no meu próprio cabelo. Fisicamente exausta, que merda.

novembro 09, 2010

Os bem-educados

_Tá se divertindo?! – perguntou, me olhando direto nos olhos.
_Quê?!
_Perguntei se cê tá se divertindo, porra!!
_Que foi, Fernando?! – retruquei, ofendida com o tom de voz dele – Sei lá, meu... tô, t-tá normal.
_É, tô vendo que tá mesmo... – resmungou.
_Que foi, mano??
_Como o que foi? – bateu no balcão, bravo, se virando de frente pra mim – COMO O QUE FOI, PORRA?!?
_TÁ LOUCO, FERNANDO?!
_CÊ TÁ LÁ DANÇANDO COM A MIA, CARALHO, C-COMO SE...
_COMO SE O QUÊ?! – briguei de volta – HEIN?!
_VOCÊ SABE POR QUE EU TÔ PUTO, SABE MUITO BEM! NÃO VEM FAZER ESSA CARA DE DESENTENDIDA AÍ, NÃO!
_QUE CARA?! FERNANDO, PORRA, A GENTE TÁ SÓ DANÇANDO!!
_SÓ “DANÇANDO”?? – ele gritou ainda mais alto – SÓ FALTOU VOCÊ ENTRAR DENTRO DA ROUPA DELA, CARALHO!! VOCÊ ACHA QUE EU SOU IDIOTA, PORRA?!
_Ah, mano... – eu ri, debochando – ...pára, na boa. Puta nóia!
_CÊ NÃO FICA RINDO AÍ, NÃO! – ele me apontou, nervoso, e as pessoas em volta começaram a olhar – Cê sabe MUITO BEM o que tava fazendo de errado!
_Você fumou, caralho?! Tá louco?! “O que eu tava fazendo de errado”?! Eu não fiz nada!! A GENTE SÓ TAVA DANÇANDO, FERNANDO, PELO AMOR DE DEUS!
_SÓ DANÇANDO?! CÊ TAVA QUASE COMENDO A MINA NO MEIO DA PISTA! A MINHA MINA, PORRA!! – se irritou, berrando, tão embriagado quanto eu – VOCÊ TEM MERDA NA CABEÇA, VELHO?!?!
_EU NÃO TAVA FAZENDO PORRA NENHUMA!
 
Senti vontade de ir embora na mesma hora, mas o encarei, baixando a voz – numa tentativa de acalmar os ânimos.
 
_Fer, me escuta. Eu não fiz nada – ele balançou a cabeça, sem acreditar numa só palavra, puto, e eu pedi – Olha para mim! A gente estava só dançando, eu juro. Cê acha que eu ia pegar a sua mina? A sua mina, porra?! Na sua frente, mano?! Eu nunca ia fazer isso, Fer, NUNCA!
_N-não sei... – ele virou para o lado, abaixando a cabeça, e se apoiou de novo no balcão, respirando fundo – ...por que cê foi lá dançar com ela, caralho?!
_Por que eu não iria dançar com ela?! – retruquei, indignada, levantando o tom da discussão mais uma vez, nitidamente bêbada – É ANIVERSÁRIO DELA! Fer, todo mundo tá dançando com a Mia. Todo mundo. Todas as minas. TODAS. Aliás, aquelas amigas dela... né, vamos concordar? Mano, até selinho elas ficam dando e cê vem encanar JUSTO COMIGO, PORRA?!?
_Cê acha, meu... aquilo não é nada. Nada! – resmungou, revirando os olhos – Elas tão de graça, mano... Não significa merda nenhuma!
_AH, E ELAS PODEM?? Elas podem fazer graça e cê não tá nem aí?? É isso?! – comecei a dar bronca, com a pachorra de ainda me achar a certa na história – ISSO É UMA PUTA HIPOCRISIA DO CARALHO E VOCÊ SABE!! Porra, Fernando, SÉRIO MESMO?! Cê vem aí esquentar para cima de mim, que não fiz merda nenhuma, QUE EU SOU SUA AMIGA, MANO!! – me exaltei – As meninas tavam fazendo mil vezes pior! Eu tava de boa lá, só dancei duas, três músicas com a Mia...
_Duas ou três músicas COM A MÃO METIDA NAS COXAS DELA, CARALHO!! – tornou a levantar o tom comigo, bravo – Olha, eu posso te garantir, garantir, que as amigas da Mia não tavam dançando com ela daquele jeito...
_CLARO QUE TAVAM!! CÊ É CEGO?? – gritei e ele me encarou, puto da vida – CLARO QUE TAVAM!!
_FODA-SE! NENHUMA DELAS TÁ INTERESSADA NO QUE ELA TEM NO MEIO DAS PERNAS!
_EU TAMBÉM NÃO, PORRA!!! CÊ TÁ LOUCO?? – cheguei mais perto do rosto dele, revoltada, olhando-o nos olhos – Você está levando isso pro lado pessoal, Fernando... Sério, porra!! NINGUÉM FEZ NADA! QUAL É O SEU PROBLEMA COMIGO?!?
_MEU PROBLEMA COM VOCÊ É QUE CÊ NÃO TEM LIMITE!
_NÃO TENHO LIMITE, CARALHO?? SEMPRE TIVE O MAIOR RESPEITO PELA SUA MULHER, MEU! CÊ TÁ ACHANDO O QUE?? PUTA PARANÓIA, MANO! PUTA MERDA, QUE É ISSO?! EU E A MIA SOMOS AMIGAS!
_NÃO! – ele me cortou – EU E VOCÊ SOMOS AMIGOS, EU E VOCÊ. ENTENDEU, PORRA?! – me ameaçou – ENTÃO CÊ TOMA MUITO CUIDADO COM O QUE VAI FAZER DAQUI PRA FRENTE!
_Olha, eu não preciso ficar aqui ouvindo essa merda... – peguei minha comanda no balcão e o encarei uma última vez – ...na boa, vai tomar no meio do seu cu, Fernando!

Me virei e saí andando, deixando-o falar sozinho.

É

Me fodi legal agora.

Portanto, bandeira branca

Não é como se eu quisesse, de fato, ficar em cima da Mia. Ali. Naquele canto da pista mais subversiva da Sarajevo, entre tanta gente se movendo junta e se agarrando. Não – eu não queria. Mas assim que ela parou no meio da multidão e se virou na minha direção, apoiando as mãos atrás do meu pescoço, os meus pés se rebelaram e as minhas mãos desaprenderam a me obedecer. Já os meus olhos, bom, esses eu nunca consegui tirar dela mesmo. 
 
E antes que eu pudesse perceber, as minhas pernas já estavam entre as suas e o meu corpo perto demais do dela. Para me foder de vez, o DJ ainda mandou uma pesada do Tricky. É – “Hell is round the corner”. Que se foda. É exigir muito do meu autocontrole, porra, ter aquela mulher nas minhas mãos e a segurar de qualquer forma que não fosse aquela. Com todo o respeito. Isto é, mais ou menos.
 
Mas não beijei, ok?
 
Em momento algum, nem de relance, nem um pouco, nem assim de levinho, nem por um instante, encostei na boca da Mia. Naquela boca. Aquela. Sabe, aquela... boca. Com aqueles lábios malditos que me tiravam a sanidade. “We're hungry, beware of our appetite" – a música ecoava numas batidas graves e eu suava frio, puta que pariu, enquanto a olhava descer, rebolando, deslizando aquela raba desgraçada pelo meu corpo e aí se virando para mim, com a boca logo ali, na minha cara, a três centímetros da minha, porra. Um só movimento, um milésimo de segundo, e eu poderia beijá-la. Mas não – eu não fazia nada. Nada.
 
Cacete. Só a olhava, ali, me olhando de volta, virando de costas e deixando o rosto de lado, com as mãos para trás e o corpo encostado em mim, segurando nos meus braços e escorregando as mãos para a minha cintura, pelas minhas pernas, conforme abaixava na minha frente, deslizando o seu jeans no meu. De novo e de novo. Perdendo qualquer noção de autopreservação. Caralho, garota, cê vai me enlouquecer assim. Tinha dias que me dava umas vontades de matar a Mia – sabe, figurativamente, só para não existir mais assim do meu lado. Desgraçada. Num impulso de fugir o quanto antes dali. Todavia, eu ficava. Eu sempre ficava. Com o coração na garganta, aquele verão de 40º dentro das calças e os olhos irremediavelmente nela.
 
Tem gente que rouba o seu ar e nem percebe. Agora, a Mia começava a perceber o que fazia comigo e a maldita gostava – ela adorava. Podia ver ela se divertindo em me deixar completamente idiota por ela. Como se fosse difícil. E eu continuava ali, dividida entre amá-la ou odiá-la por isso – porque bom era, né? Mas aquela impotência circunstancial acabava comigo. Puta merda. Chega a doer, viu, com pontadas agudas no peito, ter a garota que você quer nas suas mãos e, por motivo de melhor amigo força maior, não poder fazer nada.
 
Argh.
 
O absurdo é tanto que, uma hora, de repente, você simplesmente precisa sair de perto. Ir tomar um ar, esfriar a cabeça, fumar um cigarro, qualquer porra que seja. Sei lá. Qualquer merda que tire ela da sua cabeça. E foi o que eu fiz – “já volto”, disse no seu ouvido e a larguei sozinha na pista. Apenas o ato de sair daquele aglomerado de calor humano já me fez respirar melhor – ainda que eu soubesse que a culpa ali era de uma só pessoa.
 
Encostei no balcão do bar que ficava perto da entrada, sentindo uma leve corrente de ar vinda da porta, e pedi uma cerveja gelada para o cara de dreadlock que me encarava à espera do que marcar na minha comanda. O primeiro gole foi como sentir o paraíso descer frio – e gostoso – por todas as paredes de fogo do meu corpo. Acalmando vagarosamente aquele inferno ali dentro.
 
Ah, eu precisava disso.
 
Suspirei, aliviada, olhando para a garrafa e a abaixando de volta no balcão. Mal a encostei e já subi mais uma vez, tomando outro gole, sedenta. Abaixei a cerveja e os olhos novamente, em toda minha embriaguez distraída, quando senti que alguém me observava. De canto de olho, vi um braço tatuado emparelhado com o meu, apoiado no balcão também. Subi o olhar e dei de cara com o Fer, me encarando, puto, a dez centímetros de mim.