Sabe
quando se está dormindo tão, tão fundo que se tem a impressão inconsciente de estar
submersa? Pois lá estava eu, num túnel escuro de sono, afundada no breu. Uma caverna
dentro da minha própria cabeça. E foi quando, bem lá no fundo, ouvi um barulho.
Bem distante. Foi de repente, como se fosse algo estalando. Cléc-cléc. Um movimento mecânico. Me
virei, pesada, para o outro lado, mas algo continuava em movimento, não muito
longe de mim. Eu podia sentir ali, em algum lugar, por ali, mesmo que não
prestasse atenção.
Outro ruído.
Começou a me puxar, no sentido contrário do túnel, me tirando do escuro, do
sono profundo. Inconscientemente, passei a mão no rosto e o virei mais para o
lado, me afundando contra o encosto azul marinho. A textura do sofá contra a
minha pele parecia rude, mas estava gostosa, confortável. Então, veio mais algum
barulho, de leve. Alguém disse, eu acho,
disse alguma coisa. Sem muita vontade de ser ouvido, falou baixo.
E aí, de
novo, mais um estalar. Cléc-cléc. Recuperei
a consciência no segundo deles – abri os olhos e ainda estava no sofá. O cômodo
estava bem mais escuro do que quando adormeci. As paredes estavam apagadas, em
tons de cinza e marinho, imóveis e silenciosas. Que horas são? Me mexi com preguiça para o lado, tirando o celular
do bolso com certo esforço e acendi o visor por um instante. 3:59. Dormi demais, que merda.
Coloquei o telefone no chão, próximo às chaves. Continuava com sono, meu corpo
parecia ter sido atropelado por um caminhão. O efeito Augusta. Me ajeitei para a esquerda, virando os braços e encarando
mais uma vez o encosto, me preparando para dormir de novo. Só que aí ouvi mais
um barulho, um pouco mais ao longe. Deixei os olhos abertos de novo, não resisti
– a luz da cozinha estava acesa agora, notei. E a porta encostada, deixando escapar apenas uma fresta, um
feixe de luz, no teto da sala. Suspirei, incomodada por ter sido acordada, meio
sonolenta. As minhas pálpebras pareciam pesar a todo custo para baixo.
De repente, a luminosidade aumentou, cutucando os meus olhos cansados. E ao reabri-los,
notei que a fresta estava bem maior do que antes. A porta, calculei. Uma movimentação quase silenciosa
acontecia em frente a ela, no corredor. Tentei segurar a respiração por alguns
segundos, a fim de ouvir o que diziam, mas não escutava nada além de passos que
pareciam não sair do lugar. A sala estava mais silenciosa do que o comum para
uma sexta à noite. Talvez tenha chovido,
supus e senti um vento mais friozinho entrar pela janela, encostando nos meus
braços. Isso explicaria a ausência de bêbados e baladeiros pelas calçadas da
Frei Caneca.
_Mas eu qu... – ouvi alguém sussurrar, do nada.
O Fer? Talvez.
Não
consegui entender a frase toda. E não sabia quem estava com ele, mas estavam
conversando. Por favor, desejei, qualquer pessoa menos a Mia. Meu coração acelerou, esquisito. Por favor, por favor. Seguiam cochichando
alguma coisa, frente à cozinha, eu não conseguia acompanhar. Estava baixo
demais. Pareciam se mover às vezes. Prendi a respiração novamente, em silêncio
no sofá, tentando não ser notada ali.
_Não, deixa aí... Amanhã voc... – a outra pessoa cochichou.
_Vai estragar se eu deixar aí!
_Tá, vai lá, mas... – observei a porta se movendo, no teto, e escutei alguém
mexendo na geladeira.
Aí nenhum ruído, por um instante.
_Ô... Cê quer o resto da Coca aqui? – ouvi, agora claramente, num tom bem
mais alto, o Fer perguntar, aparentemente de dentro da cozinha.
_Não... – aí ela respondeu e, merda,
era mesmo a Mia – ...o que cê tá fazendo aí?! Vem logo!
Poucos segundos depois, após mais alguns passos, ouvi o interruptor clicar e
todo o cômodo ficou novamente escuro.
_Eu tava guardando lá, meu... – ouvi o Fer dizer, cochichando – ...você
largou em cima da pia, porra.
_Shhh!
A essa altura, eu não estava mais conscientemente segurando a minha respiração,
mas já não respirava. Os passos se seguiram, um atrás do outro, tentando não
fazer barulho pelo corredor. E do nada, um pequeno estrondo. O idiota trombou na porta do quarto. Devia
estar bêbado, o que só piorava tudo. Ambos riram, se contendo, e eu ouvi o som
vir de longe. Bem baixinho. Escutei, então, a maçaneta se abrir e fechar
novamente, no fim do corredor. Aí todo o som sumiu do apartamento.
Completamente.
Fiquei sozinha na sala e, por um segundo, não me mexi – não conseguia. Parada,
as costas contra o estofado do sofá e os olhos silenciosos no teto, inquieta.
Respirei fundo. E então, me levantei. Sentei no escuro e acendi um cigarro, sem
pensar. Deixei o maço e o isqueiro em cima da mesa de centro e olhei para a
televisão apagada. Eu simplesmente não sabia o que fazer.