março 25, 2012

Nove-décimos

Escorreguei o tênis de leve para a esquerda, alinhando a borda do meu All Star à sombra do assento que eu ocupava. O metrô corria silencioso. E a próxima parada seria a primeira de duas curtas estações que separavam a produtora das redondezas do meu apartamento. Num vagão, eu e mais umas doze pessoas dividíamos os bancos disponíveis. 21:03. Estou saindo tarde demais de lá, todo dia. Passei a mão no rosto e apoiei novamente no encosto, já um tanto largada. Fazia horas que tentava apagar a conversa com a Mia da minha cabeça.
 
As portas se abriram e os passageiros do Trianon-MASP entraram. Inferno. Apoiei os antebraços brevemente sobre as coxas, curvada para a frente, e em seguida tornei a me encostar contra o banco, inquieta. Para de pensar na Mia, porra. Soltei o ar e olhei para frente – uma garota estava sentada fileiras adiante, numa cadeira. Ela tinha os olhos castanhos e uma das laterais da cabeça raspada, como muitas que andavam na Augusta de sexta à noite. A observei por algum tempo, sem qualquer intenção, e então abaixei a cabeça. Tornei a olhar para as sombras no chão, ajeitando os meus tênis paralelamente.
 
O autofalante então anunciou – “próxima estação, Consolação.” As pessoas começaram a se aglomerar nas portas, mudando a distribuição do vagão. A garota também se levantou. Poucos instantes depois surgiu, do lado de fora e bem-iluminada, a plataforma que eu frequentava diariamente. Os novos passageiros esperavam em pé atrás da linha amarela. Parada brusca, portas abertas. O movimento intenso durou por alguns segundos. E logo as portas se fecharam novamente. Por algum motivo, no entanto, eu não desci.
 
Restavam menos pessoas no vagão agora. Desde que a Mia e eu resolvêramos falar sinceridades uma à outra, tudo parecia estar acumulado de tal forma dentro de nós que cada conversa era uma catarse. E uma catástrofe. Ainda tinha, dava-me conta, um décimo incontestável dela que continuava no meu peito. Eu me sentia estranha, não sei. Saltei na estação Sumaré, como se aquele fosse meu destino o tempo todo. E do lado de fora, o céu ameaçava com nuvens de chuva. Desci a rua, sem saber bem o porquê, até o prédio da Clara. Mal toquei o interfone e ela atendeu, me deixando subir. Abriu a porta toda arrumada, realmente bonita, com os cabelos soltos sobre os ombros.
 
_O que cê tá fazendo aqui? – me perguntou, desconfiada, sorrindo.
_Não sei. Eu... – esfreguei as mãos no rosto, só então percebendo a tamanha idiotice em estar ali, de repente, sem avisar – ...n-não sei, desculpa!
_Eu vou jantar com uma amiga – ela riu – Cê quer entrar?
_Não, meu, eu... e-eu já vou.
 
Isso, me detestei, parada em frente à sua porta, agora a Clara vai pensar que eu sou louca mesmo. Fiquei ali no corredor por alguns instantes. Mas, não... espera, que amiga?! A encarei e ela me olhou de volta, sem entender nada – eu só podia estar desregulada mesmo, ali, brotando no seu apartamento do nada e com ciúmes de uma porra de uma amiga. Qual é o meu problema, cacete?! Me preparei para sair, tentando ignorar a dúvida que brotava em mim, mas logo mudei de ideia.
 
E me aproximei, dando-lhe um beijo, dos mais intensos e demorados.
 
_Tá tudo bem? – ela me perguntou, assim que nossas bocas se separaram, e eu senti uma melancolia tomar conta de mim.
_E-eu... não sei, talvez.
_Bo?
_Sabe, eu... eu gosto mesmo de você... – confessei e ela me olhou um tanto feliz, um tanto confusa com a declaração inesperada – ...e eu, sei lá, não sou muito boa nisso. Mas, enfim, só achei que cê devia saber.

março 22, 2012

O que me importa

"...seu carinho agora? 
Se é muito tarde para amar você"
(Marisa Monte)

_Eu... e-eu não quis, merda! – ela sussurrou do outro lado da linha, arrependida – Escuta, eu, e-eu acho que a gente tem que... se encontrar... conversar, não sei...
_Mano, eu não tenho nada pra falar com você.
_Não faz isso! – implorou – Eu não quis dizer nada disso! Não era pra, não era pra nada disso ter nem acontecido. Essa conversa, que... que saco! Eu... olha, eu... eu queria tanto, tanto só... só conversar direito com você. Eu tô me sentindo... – interrompeu, já ofegante e confusa – ...não sei, eu...
_Não, não. É exatamente isso. É exatamente como você disse... é isso. Sempre foi isso na, na porra da sua cabeça, não foi?! – a minha respiração se atropelava nas palavras e o meu coração apertava ainda mais – O problema sou eu, sempre fui eu. A culpa dessa merda toda é... é minha! – ri de nervoso – Eu é que sou louca, não é, Mia, e que fui enxergar o que não tava lá! Eu!! Eu que coloquei ideia na sua cabeça, que te corrompi, que te fiz fazer tudo aquilo e você, v-você não teve nada a ver com isso... NADA, não é?! – o jornaleiro da banca em frente me olhava como se eu fosse uma descontrolada, gritando ao telefone – Fui eu! Que decidi me apaixonar por você e que me coloquei nessa merda de situação. Eu!! – senti as lágrimas engasgarem na minha garganta, mas as engoli, com raiva – Cara, se... se é isso que você... v-você pensa que... aconteceu... entre a gente, meu. Na boa, Mia... vai se foder.
_Não é isso! Não! – se desesperou – Não é nada disso!! Eu...
_Olha, garota, o que você tá sentindo por mim agora... – a interrompi, num tom mais baixo e frio – ...não é amor... – me convenci, conforme falava aquelas palavras – ...é só rejeição. Só isso.
_Não, não é!! Por favor, me escuta... não é isso!! Hoje, eu... e-eu fui lá na... – ela continuou – ...na Mi, porque eu... eu não aguentava mais. Eu, e-eu não consigo parar de pensar em você... eu, não sei, eu só... eu só não queria que fosse assim, não qu... – sua voz se misturava com o choro – ...ontem à noite, eu...
_Eu não quero saber, Mia! Eu nunca devia ter te tocado! Nunca devia ter olhado na sua direção, ontem menos ainda! – atravessei a rua de volta, prestes a acabar com aquilo – Fica longe de mim. Você e as suas amigas!
_Por que cê tá fazendo isso?? Não era pra... E-eu... eu só...
 
E antes que ela pudesse terminar, eu desliguei o telefone. Numa estupidez incorrigível, como se meu coração tentasse desesperadamente se proteger. Enquanto dava tempo. Porque me doía, puta merda, como me doía escutar as suas palavras e percebê-la assim, tão disposta e completamente vulnerável, exposta. Parte do que eu vomitava na sua direção não era, de fato, verdade – era uma tentativa de me afastar. E eu sabia, sabia o quanto acreditava nos seus sentimentos e nas coisas que me dizia, agora tão mais claras e mais sinceras. Sabia que havia parte de mim nela e, principalmente, parte dela em mim.
 
Caralho, como eu sabia.
 
Todavia, sentia o meu peito prestes a explodir de raiva, de frustração. Como se ela fosse a vítima, meses depois; como se fora eu quem procurara aquele sofrimento para mim mesma, para começo de conversa; como se ela pudesse voltar assim e fingir que nada aconteceu, que não me magoou, como se eu fosse esperar para sempre. Nem a pau. Tirei o volume das chamadas e entrei de novo na produtora, metendo o celular – e todos os meus problemas – no bolso. Que se foda.

Petulância de uns

_Michelle, né? Olha, eu não sei como cê conseguiu o meu número, garota... – tirei o cigarro já quase terminado da boca, soltando a fumaça no ar, irritada – ...mas você não faz ideia do que tá falando.
_Faço! Faço, sim! A Mia, ela, e-ela chegou... – me interrompeu – ...c-chorando aqui em casa, hoje, e por SUA causa! Pela merda que você fez ontem, por tudo que cê tá fazendo ela passar. E já chega! Já deu! Eu quero você LONGE da minha amiga, cê tá entendendo?!?
 
Ah, não.
 
_Eu?!? Mano, cê tá muito louca, garota!! – me revoltei com ela, ali, me acusando daquele jeito – Cê acha que pode me ligar e falar um monte de bosta?! Eu é que quero a Mia longe de mim, porra! Tá maluca?! E outra, a Mia já é grandinha e pode falar por si própria! Cê não tem a mínima noção do que tá rolando, na boa!!
_Eu sei o que eu VEJO! É ISSO QUE EU SEI!! – pistolou, de volta – Sabe, é, é ver minha amiga chegar na droga da faculdade sem dormir, sem ânimo e ficar ouvindo ela falar sobre você e você e você... e aí você ainda vai e me faz o que fez ontem!! Debaixo do teto do namorado dela, caralho!! Puta merda! Você... v-você, meu, você tem ALGUMA IDEIA do que... – pausou e eu senti o ódio no seu silêncio – ...do que tá fazendo com ela, cacete?!
_Olha aqui, eu...
_VOCÊ TÁ ACABANDO COM ELA! – continuou, respondendo a própria pergunta – É isso que cê tá fazendo, porra!!
_Olha, desculpa, mas eu não preciso ouvir essa merda.
 
Perdi a paciência e desliguei o telefone – aquilo tinha ultrapassado todos os limites. Eu?! Eu tô acabando com a Mia?!, meti o celular no bolso, furiosa, andando de um lado para o outro na calçada frente à produtora enquanto fumava o resto do cigarro, eu tô vivendo a porra da minha vida, na minha, tô com a Clara, caralho. A garota fica me procurando e eu ainda tenho que ouvir sermão da amiga dela? Vai se foder! Aquilo me tirou, de repente, do sério. Quem ela pensa que é?!
 
Argh. Tudo. Tudo o que eu já fizera com a Mia passou em flashes pela minha cabeça, sucessivamente. Como essa idiota sabe de nós? Quanto ela sabe, cacete? A Mia... a Mia não teria contado. Ou teria? Podia sentir a minha respiração acelerar, exagerada. Com o coração na boca e uma vontade cretina de ligar para a Mia, de lhe dizer tudo na cara, de descarregar. Não, refleti, melhor deixar para lá. Joguei o cigarro fora na sarjeta imunda da Brigadeiro e andei cinco, seis passos de volta até a porta da produtora. Mas aí voltei, no mesmo instante, com raiva.
 
Que se dane. Digitei o número da Mia, sem pensar, atravessando a rua.
 
_Fala... – ela atendeu o celular, hesitante, num suspiro.
_Então, é assim, né... – já fui a acusando, nervosa – ...agora cê põe suas amigas pra me ligar e me dizer bosta?! Sério mesmo, Mia, cê vai querer jogar ESSE jogo?!
_Eu nã... – ela se surpreendeu e atrapalhou um pouco para responder; a voz rouca denunciava a sua tristeza, como se, de fato, tivesse chorado a tarde toda – ...e-eu pedi pra, pra Mi não te ligar. Eu... m-me, me desculpa.
_Como diabos essa mina tem meu telefone, Mia, porra?!?
_Eu nã... eu não... – respirou fundo, soando emocionalmente cansada – ...você... você precisa fazer isso?
_EU?! E O QUE EU FIZ?! HEIN?? O que é que eu tô fazendo? – me irritei – Eu tava aqui de boa, trabalhando, porra... e vem você com essa droga pra cima de mim?! Que, q-que merda você foi falar com essa garota, Mia, cacete? – eu descontava nela, cada vez mais agressiva – Escuta, por que cê não fala pra sua amiguinha que é você que fica me procurando, na frente da porra da Clara, do Fer?!?! Não sou obrigada, cara! A ficar ouvindo que cê tá mal, que eu tenho que parar de fazer o que seja, a ficar aqui escutando bosta de uma fulana que não sabe PORRA NENHUMA, como se eu fosse a errada nesta merda! Não sou obrigada!
_E VOCÊ QUERIA QUE EU FIZESSE O QUÊ?! – ela surtou, de repente – EU... EU NÃO SABIA MAIS O QUE FAZER! COM QUEM FALAR!! – a sua voz desafinou, perdendo o controle – MEU, COMO VOCÊ ACHA QUE EU ME SINTO?!?!
_NÃO SEI! NÃO SEI, CARALHO! – gritei, de volta – É O GRANDE MISTÉRIO DA PORRA DA HUMANIDADE!
 
Pude ouvir as suas lágrimas voltarem, do outro lado da linha, de uma só vez.
 
_EU ME SINTO UM LIXO! É ASSIM QUE EU ME SINTO!! – berrou – É isso que você quer ouvir?? Eu me sinto um, u-um NADA pra você! E confusa e, e presa nesta merda que eu não sei mais nem como começou e... e... e quando eu tento te falar... você vai, vai lá... e faz o... o q-que quer, sabe? Ontem, eu... – suspirou, aos prantos, se interrompendo.
_MANO, E COMO VOCÊ ACHA QUE EU ME SINTO?! HEIN?!? NESSA HISTÓRIA TODA?! JÁ PAROU PRA PENSAR NISSO ALGUMA VEZ NA SUA VIDA??
_Não... n-não precisa ser assim... – retomou o tom baixo, como se engolisse, arrependida – a gente nã... não precisa... merda! Não precisamos discutir assim, por favor...
_Precisamos, sim. Precisamos, Mia! – continuei, exaltada – E vamos continuar discutindo assim porque você, você parece que não entende, cara! Não entende o que eu passei por você. O tanto que sofri, todo esse tempo, e como foi difícil pra eu me recuperar, caralho, pra me livrar do que eu sentia por você. Pra no segundo em que eu fico bem, em que eu tô feliz com outra pessoa, você vir e me enfiar de novo nessa merda?? Como você tem... – perdi o controle – ...coragem de falar isso sobre mim?! Que eu tô te magoando?? Foi você que escolheu ficar com o Fernando, caralho! E agora tem a cara de pau de dizer que tá sofrendo, de ir chorar pra porra da sua amiga... Eu só me fodi!! Eu só quebrei a cara por sua causa!!
_E ISSO TE DÁ DIREITO DE FAZER O QUE QUISER COMIGO?! DE FAZER IGUAL?? – se revoltou, subindo o tom no nível do meu – É ASSIM?! Só porque você se machucou, só porque eu te magoei, você pode ir lá e me, m-me comer na porra do banheiro só pra depois me largar lá e... E IR DORMIR COM A DROGA DA CLARA?! – ela chorava, irritada comigo – PORRA, EU TAVA ALI DO LADO!! DO LADO!! VOCÊ NEM OLHOU NA MINHA CARA! SAIU ANDANDO E FOI LÁ COMER ELA DEPOIS, CARALHO!! V-você... meu... como você PÔDE fazer isso comigo??
_AH, TÁ! Por que você nunca fez, né?! Você nunca foi até o meu quarto e depois voltou correndo pros braços do Fer, não é?? – retruquei, gesticulando que nem uma louca no meio da rua, ofendida – TODO ESSE TEMPO, TODAS AQUELAS VEZES, PORRA! Que eu tive que sentar lá e engolir, assistir você com ele, todo santo dia, ouvir vocês rindo e trepando e brigando e conversando no quarto ao lado e o caralho a quatro, sem poder falar nada... NADA!! COMO VOCÊ ACHA QUE EU ME SENTIA?!?! – gritei, indignada com a hipocrisia dela – Ah, fala sério, Mia, não me vem com essa agora... ISSO você não pode falar!!
_MANO! – ela se ofendeu – EU NAMORO O FER, CARALHO, EU SEMPRE NAMOREI! Cê faz soar como se EU tivesse procurado tudo isso, como se eu tivesse feito alguma dessas coisas de propósito, ido lá te procurar... FOI VOCÊ, PORRA!! FOI VOCÊ QUE FEZ ISSO COM VOCÊ MESMA!

Sério mesmo?!, me indignei e senti o meu peito doer.

_Ah, Mia... na boa, vai à merda! 

março 16, 2012

(a way of) breakin' hearts

À luz do dia, tudo parecia menos complicado. Acordamos na manhã seguinte numa preguiça boa, a Clara e eu, juntas na cama. Amassei o rosto na sua pele morna, com as pernas entrelaçadas nas suas, sem qualquer vontade de me levantar. O despertador ainda ecoava no quarto e eu o ignorava. Achando graça, a Clara se levantou e o desligou, caminhando até o meu armário. Começou a se trocar para ir trabalhar e eu restei, apagada entre os lençóis.
 
Não vi ela sair. Apenas senti uma mão no meu braço, de repente – ainda afundada no colchão, deitada de bruços. Movi os olhos para cima, abrindo-os com certa relutância, e vi o Fernando ali. O que cê tá fazendo aqui dentro?, estranhei.
 
_Escuta... – ele disse, com pressa – ...preciso que cê deposite o aluguel hoje, tá?
 
Você me acordou pra dizer isso?! Post-it pra quê, né…
 
_Aham... – murmurei, sonolenta.
_Tá?! – insistiu – Deixei minha parte em cima da mesa da cozinha, vê lá.
_Tá, tá... – virei o rosto.
 
Não enche.
 
Voltei a dormir, de ressaca e sem ter pregado o olho direito a noite inteira, exausta. E foi assim que perdi hora para ir trabalhar merda. Levantei no susto, correndo, quarenta minutos depois. Não acredito nisso, puta que pariu. Vesti a primeira roupa que achei limpa no armário e passei na cozinha para pegar a porra do dinheiro do aluguel, metendo-o no bolso da jaqueta. Meu cabelo estava todo amassado, bagunçado, com a raiz por fazer. Pulei desajeitadamente até o elevador, descalça, e fui vestindo os tênis enquanto descia até o térreo.
 
Minha chefe vai me matar.
 
Nunca tinha atrasado assim desde que começara na produtora. Argh. Inventei uma desculpa esfarrapada e dei as caras quase uma hora depois do meu horário normal. Para compensar, sequer saí para almoçar. Ralei do começo ao fim daquela sexta-feira. Lá pelas 16h, entretanto, o meu celular tocou. Saí na rua para atender, aproveitando para levar comigo o maço de cigarros, já que não tinha feito nem metade das minhas pausas usuais para fumar.
 
_MEU, VOCÊ FEZ O QUÊ?!?!?
 
Era a Marina, indignada – certamente depois de ler o meu SMS.
 
_Calma, calma... – ri e fui colocando um cigarro na boca, segurando o telefone contra o ombro.
_CÊ PERDEU QUALQUER NOÇÃO DE LIMITE, NÉ?! MEU DEUS! – gritou comigo – COMO VOCÊ TRANSA COM A MIA, ENQUANTO O FER E A CLARA TÃO NO APARTAMENTO?!? ALIÁS, QUE MERDA DEU NA SUA CABEÇA PARA IR LÁ COMER A MIA, CARA???? QUAL É O SEU PROBLEMA??
_Eu sei, eu sei... calma! – achei graça na reação dela – E meu, também não é como se eu tivesse planejado, né, só... sei lá, aconteceu, porra!
_”ACONTECEU”??? – aumentou novamente o tom de voz, irritada, e eu me diverti com o escândalo que ela estava fazendo – Sabe, imprevistos “acontecem”... chuva em Ubatuba “acontece”... perder o ônibus “acontece”... MAS NÃO SE ENTRA NAS CALÇAS DE NINGUÉM POR ACIDENTE!
 
Continuei rindo, entre uma tragada e outra.
 
_Na boa, olha as cagadas que você faz. Sinceramente! – continuou – Como cê vai lá e dá uma dessas, sabe? É inacreditável! Não sei nem o que te dizer...
_Má, escuta... Dessa vez, não me arrependo! – podia sentir os seus olhos revirando do outro lado da linha – Sei que vai soar estranho, mas agora... a-agora eu sei, manja? Sei que não quero ficar com ela, meu.
_Ah é, porque ISSO nitidamente prova que cê já superou a Mia...
_Não! Escuta... – ri – ...eu sei, sei que tenho umas paradas pra resolver dentro de mim. Não tô negando isso. Só que agora, sei lá, eu... e-eu acordei tão bem com a Clá, sabe? E com a Mia, não sei, é tudo tão pesado, sempre. Me faz tão mal. E eu não quero isso, meu.
_Ah, pronto! Quem te ouve falar assim nem parece que eu já... – senti o telefone vibrar – ...não tinha te falado um milhão de vezes que a...
 
Baixei o celular, olhando rapidamente o visor – com o cigarro entre os dedos.
 
_Linda, desculpa, tenho outra ligação. Já te ligo!
 
A Marina suspirou, interrompida. E eu desliguei, apertando o botão para receber a segunda chamada, colocando o cigarro de volta na boca.
 
_Alô?
_Oi, preciso falar com você.
 
Aquela voz era estranhamente familiar.
 
_Quem tá falando?!
_É a Michelle... – quem? – ...amiga da Mia. A gente se conheceu na casa dela, ano passado.
_Ah, sei.
 
Como diabos essa garota conseguiu meu telefone?
 
_Escuta, presta muita atenção no que vou te falar! – ouvi sua voz, firme – Você precisa parar com isso. Com essa merda toda, já deu! Cê tá acabando com ela!

março 11, 2012

Estrondo

_O que aconteceu?! – a Clara perguntou, com uma perna dobrada frente ao corpo no colchão e a outra pendurada para fora, como se acordara num susto – Ouvi um barulho, meu! Uma porta batendo com forç...
 
A interrompi com um abraço, subindo na cama, me apertando contra o seu corpo no escuro. Me perdoa, por favor. Me arrependia de cada passo que eu dava, argh, furiosa comigo mesma, naquela recorrência autodestrutiva de merda. Cacete. Arriscando magoar a única garota que realmente me importava. Como eu sou burra, porra. Inferno. Apertei os braços ao redor da Clara. E os meus pensamentos dispararam. Se atropelavam, pareciam desmoronar sobre mim. Maldição. Numa vontade louca de gritar, de chorar, mas seguia quieta – tentando conter a minha raiva, minha fragilidade, dentro do meu peito. E a Clara também, me segurando ali no escuro, em silêncio. Os lençóis estavam desarrumados, num recém despertar dela. E eu sabia que era injusto. Sabia. Mas deitei ao seu lado e ela se aninhou no meu ombro. Não queria soltá-la nunca mais. Ela sorriu e eu acariciei seu rosto, deslizando as costas da mão pelo seu braço vagarosamente. Meus pensamentos seguiam vertiginosos, me consumindo por dentro. Mas me dava certa calma tê-la, assim, por perto...
 
...enquanto eu deixava a Mia, lá, do lado de fora.

março 07, 2012

Partidas

“Me beija”, sussurrou no meu ouvido, conforme eu a subia no meu colo, a pressionando contra a parede. You let me violate you. Mordi a ponta do queixo e fui arranhando os dentes pela linha do seu maxilar, pelo seu pescoço. A sua pele ia marcando com facilidade, nuns chupões, enquanto eu arrancava a sua calcinha. Desgraçada. Então me segurou pelo cabelo, me puxando para ela e eu a beijei, a empurrando contra os ladrilhos duros. You let me desecrate you. Rudes – eu, ela. Seus braços se apoiavam nos meus ombros, com as pernas ao redor do meu corpo. Puxei a calcinha até o meio das suas coxas, num movimento arrogante; e ela se inclinou. You let me penetrate you. Encaixou o quadril nos meus dedos e suspirou, gemendo – cacete. As minhas mãos, pudera, já estavam sujas no instante em que entraram nela. Suas pernas nuas, abertas, se apertavam contra mim. You let me complicate you. Minha língua percorreu a curva do seu pescoço, imprestável. Alcançando a sua boca de novo e ela puxou meu braço, conforme eu ia cada vez mais fundo, cada vez mais forte. (...) Puta merda, me desconcertei por um instante, no calor do momento. Caralho. Me perdendo ali, nela. Senti a minha pele esquentar, cada vez mais, mais molhada, a escutando sussurrar indecências no meu ouvido, agarrando a minha regata e me puxando, enquanto eu a fodia. Suas mãos subiam pelas minhas costas, me arranhando a pele. E eu me contraía, tentando me conter. Inferno. Naquela vontade desgraçada dela. (...) Epifania estrondosa, violenta. Contra a parede. Ela me olhava, agora direto nos olhos. E a sua respiração escalava, crescia ofegante; com os lábios entreabertos. I wanna... Murmurou algo, entre um fôlego e outro, inebriada; prestes a gozar. Entrelacei meus dedos no seu cabelo; ela fechou os olhos e os abriu, ainda fixos em mim, se contorcendo de tesão... fuck you like... A apertei por dentro, movendo meus dedos do jeito que ela gostava, a sentindo ali, a um segundo de explodir na minha mão... an animal... Ambas, nós duas, tensionadas entre si. Como eu te quero, filha-da-puta. O ar se suspendeu, num começo demorado de orgasmo. Com os seus olhos presos nos meus. Segurei a sua boca para que não fizesse barulho e a encarei – goza, vem. Todas as cores, de repente. As pálpebras dela se fecharam por um segundo... I wanna feel you from... num prazer nostálgico... the inside. E os segundos se esticaram, prolongados.
 
Então os meus pés, descalços contra o piso frio, e as costas dela, na parede de ladrilhos, descontraíram-se aos poucos, lentamente. Ela suspirou, contida, retomando sua respiração, voltando a si.
 
E eu me dei conta do que tinha feito. Merda.
 
Puta merda. Ergui o queixo, a encarando – com raiva de mim mesma. Dela. A Mia sorriu e se moveu para frente, para me beijar, mas eu desencostei na mesma hora. Tirei a minha mão dela e me afastei, dando um passo na direção contrária. Não. Não, não, inferno. Ela ainda estava ligeiramente atordoada, recuperava o fôlego apoiada contra a parede. Me olhou, sem entender, na mesma posição em que eu a deixara. Eu sou uma idiota, cacete. Uma porra duma idiota, o que eu fui fazer?! Senti a minha consciência pesar, caralho. Meu coração acelerou, embriagado, e eu sabia – sabia que a Clara estava deitada no meu quarto, do outro lado do corredor. E eu, puta que pariu, e-eu não queria estar ali, com a porra da Mia. De novo, não. Esfreguei a mão no rosto, angustiada. As mãos dela subiram a calcinha pelas pernas – meio sem jeito –, sem entender. E eu saí. Que se foda. Irascível, deixando o silêncio e a porta escancarada para trás. 

Já não tinha mais o que fazer ali.

março 06, 2012

Vem

Naquela noite, ainda que bem acompanhada da Clara, eu não consegui dormir. Algo me mantinha acordada. Fecha os olhos, inferno, eu me revirava na cama. E por mais que lutasse contra a ideia, sabia que uma parte significativa da minha insônia tinha os dedos da Mia. A sua presença ao meu lado, o teatro; os seus beijos na garota da festa. Merda. Encostei cuidadosamente a porta do quarto, saindo para o corredor, buscando silêncio na ponta dos pés. Esqueci o cigarro lá dentro, mas deixa... tarde demais. Na cozinha, o relógio marcava quase três da manhã e os ponteiros ecoavam ritmadamente seus tics-e-tacs pelo cômodo vazio. 
 
Todos, exceto eu, dormiam. 
 
A luminosidade daquela madrugada na Frei Caneca entrava à surdina pelos vitrôs abertos sobre a pia, me dispensando de acender o interruptor. Caminhei no escuro, apenas eu e os meus pensamentos angustiados – no breu. Abri a geladeira e a luz forte me doeu os olhos. Observei as garrafas colocadas aleatoriamente na porta até uma de rum, quase cheia, que estava esquecida ali. Fazia alguns meses que não a bebia. , peguei, vamos lá... E voltei à mesa da cozinha, sentindo o vidro gelar entre os meus dedos no percurso. Com os gestos sonolentos, acendi a luz na parede e empurrei a cadeira, sem muita delicadeza. 
 
Me sentei ali, com a garrafa em frente a mim, e enchi um copo. A Marina vai me matar, penseiMas virei de uma vez – e o primeiro gole desceu gelado, esquentando a minha garganta em seguida e me invadindo assim, aos poucos. A minha cabeça ia e vinha nos acontecimentos daquela noite, daquela semana, perturbada. A Clara tinha reclamado no quarto, horas antes, incomodada com a atitude da Mia, ainda que não tivesse percebido todos os desdobramentos. “Essa garota só quer tanto sua atenção porque você não é mais dela”, disse antes de deitarmos, ao tirar as calças. E sou sua?, me incomodei. Mas sabia que ela tinha razão – e a Mia não. 
 
Não?
 
A ideia me incomodava. Era o que me mantinha acordada. Respirei fundo, angustiada – não queria a Mia de volta. Não queria a confusão, não queria trair o Fer, de novo. Mas não conseguia agora, insone, tirar o meu pensamento das suas mãos. Do atrevimento silencioso dos seus dedos. Podia senti-los, tão reais, tão intencionados, na minha pele. Ali mesmo, sozinha, sentada na cozinha. Deslizando em mim, numa destas memórias sensoriais. Sem intenção ou controle. Ah, não, não faz isso, cacete. Mas ainda assim seguiam, o indicador e o do meio, encostando na minha mão. E eu escorregava meus dedos pelo copo suado, gelado, sobre a mesa da cozinha. E lembrava, perigosamente, de todas as vezes em que as mãos da Mia correram assim por mim. Pelos contornos do meu corpo, pela minha boca. Nuas, descobertas, as duas no chão frio do banheirinho na sua casa, na cama do seu quarto. A sensação ia me tomando, lentamente. Insólita. A sua memória, o seu toque, arrebentando cada centímetro de mim. 
 
Não. O meu peito apertou, doído. Por que, por que eu faço isso?, apoiei os braços na mesa e pressionei as mãos contra a minha cabeça, arrependida. Caralho. Bagunçava sem querer o meu cabelo. Ela nunca lutou por você, me convenci, com rancor, nunca. Nas madrugadas, às vezes, era pior; aquela nostalgia burra e meio impensada do peso dela dentro de mim, do amor que eu lhe tinha me ocupando, sabe, denso e em todo o coração. Nem sempre o seu corpo quer a leveza que conquista, entende? Mas não, você não, n-não tem direito, garota. De me tirar isso, de me roubar a paz.
 
O meu copo se esvaziava, me embriagando aos poucos. O que me incomodava mesmo era a proporção. Do quanto ela, de fato, tentara naquela noite e o quanto de tudo aquilo era apenas eu quem permitia. É, “permitia” – essa era a palavra –, pois permitia que entrasse de novo em mim. Parte da culpa era minha, sim. Ainda que não tivesse movido um milímetro em sua direção naquela noite. E como poderia? Agora que não te quero, agora que não me importa mais. Puta merda, né, virei o segundo copo, agora você vemNão quero isso, Mia. Seu drama, suas incertezas, suas idas e vindas com o Fer, comigo, não é mais problema meu. E eu não quero – agora que me livrei de você, eu sei, sei o quanto me faz mal. E não quero, porra. 
 
A mera ideia de perder a amizade com o Fer ou o que eu tinha com a Clara me embrulhavam o estômago, me fazendo arrepender de sequer olhar na sua direção. Não vale a pena. Enchi mais uma vez o copo, começando a perder a conta. E balancei a cabeça, já com o copo vazio em mãos, instantes depois de beber – não, não vale a pena. Mas, ainda assim, não conseguia tirar da cabeça seus beijos com a desgraçada da festa. Ou pior. Num refluxo de emoções, fui tomada por uma angústia. Diabo de garota. E senti que precisava reassumir de vez o controle da situação, da minha vida.
 
Já estava no meu quarto, quinto copo? Não sei. Com os olhos secos, insones. Chega. Já se passavam quase uma hora ali, sentada. Suspirei então, empurrando o último gole, com uns dois dedos restantes de rum no copo – e me levantei, cansada. Desgaste emocional, dor de cabeça, tudo junto, sei lá. Preciso parar com isso. Com aquela mania de confusão, aquela dependência de caos, numas obsessões recorrentes demais de madrugada. Sozinha na cozinha, sem saber parar. 
 
Peguei a garrafa em mãos, já não tão fria quanto antes, e a devolvi à geladeira. Voltaria aos lençóis que compartilhava com a Clara. Mais uma tentativa de dormir, uma última. Talvez o álcool ajude, pensei. É. Apaguei a luz da cozinha, ficando no escuro. Aí saí para o corredor e, quase simultaneamente, a lâmpada ali se acendeu. Como...? Do outro lado, saindo do quarto e ainda com a mão no interruptor, a Mia se assustou ao me ver parada ali. 
 
Como que...? 
 
Terminou de fechar a porta atrás de si, em silêncio. E os meus pensamentos demoraram alguns segundos para assimilar, já um tanto bêbada, e inconsequente, que ela estava acordada. E ali. Seus olhos, grandes e castanhos, me olhavam de volta, com a respiração suspensa. Tinha as pernas descobertas, num blusão branco e velho, emprestado do Fer. E me encarava, imóvel. A minha expressão logo mudou, se tornando séria. E todo o meu rancor por ela me subiu, de repente, de uma só vez, à cabeça. Aí os instantes de silêncio se esgotaram, tão rápido quanto surgiram.
 
_Sabe, eu queria saber... – disparei sem pensar, meio bêbada e estúpida – ...QUE MERDA que passou pela sua cabeça pra cê sair por aí pegando mina.
 
Para minha surpresa, ela me encarou de volta. Sem se abalar ou responder. 
 
_Que é?! – continuei, arrogante – Tá com saudade de beijar mulher agora?!
_Você sabe o que é... – retrucou, à altura, irritada com a minha atitude – ...o que eu quero.
 
Comecei a rir, indignada.
 
_Não. Quer saber, não, não sei... – passei as mãos no rosto, perdendo a cabeça – ...eu não tenho IDEIA de, de PORRA NENHUMA, Mia! Porque ainda é com ele que você vai dormir toda maldita noite, NÃO É?! – senti umas lágrimas me doendo a garganta, de raiva, embriagada – Então, não, não sei! Não sei nada do que se passa nessa MERDA da sua cabeça! Não tenho ideia!!
_TEM! – me encarou, mais segura do que a jamais vira – TEM, SIM! 
 
E eu perdi o controle. Tenho?!?, me revoltei. E o que é?!? Eu?! Sou eu, porra?! A minha respiração pesava, cada vez mais. De repente, eu valho a pena?! É isso?! De repente, você quer ficar comigo? Os meus pensamentos gritavam tão alto que a Mia quase os ouvia. Simples assim, né?! De repente, não tem problema?, sentia meu coração disparar. De repente, não te importa mais o Fer?! De repente, tudo bem colocar tudo a perder na frente dele, da Clara numa porra de um teatro... numa festa inteira cheia de gente?! Que se foda, né?!, caminhei na sua direção, num impulso. É isso, Mia?!  
 
E fui, sem pensar. Por todos os seus nãos, as suas meias palavras. Por toda aquela merda do caralho, os seus erros, os meus. Todos eles. Os acertos. Por tudo. Pelo tanto que eu a quis, desgraçada, e pelo tanto que a queria naquele instante. Pelas suas pernas descobertas naquela droga de corredor; pelo seu gosto na minha memória. Pelo desgosto também. Pela dor que eu nunca realmente deixei de sentir. Pela saudade que tinha dela. Então tá, garota, a empurrei para dentro do banheiro, batendo a porta atrás de nós duas, quer ser sapatão?! 
 
Então, vem.

março 03, 2012

Bulletproof

_Fica aí dois segundos, cacete! A gente já volta... – o Fer reclamou, rindo – ...não vou roubar a menina, porra!
 
A gente estava naquela dança infeliz desde que chegamos na droga do teatro. Ele tentando me deixar sozinha com a Mia, para “sondar” sobre a garota da festa, e eu querendo ficar o mais longe possível dela – pelos mesmos motivos. Porcaria. Agora, ele arrastava a Clara para ir buscar pipoca com ele, enquanto insistia que eu e a Mia ficássemos guardando nossos lugares na fila. E eu o olhava, descontente, percebendo o que o cachorro do meu amigo estava fazendo. Folgado de merda.
 
Agia como se eu estivesse fazendo grande caso daquilo e fui obrigada a ficar quieta. Não podia dar mais motivos para não querer ficar. Então assisti, conforme ele e a Clara se afastavam, nos deixando ali. Eu e a Mia. Argh. Faltava vinte minutos para a peça começar e umas quarenta pessoas se aglomeravam, falando alto, em frente ao teatro. Abaixei o olhar para os meus coturnos, observando-os contra o chão de concreto, tentando não dar nem um segundo de atenção para a Mia. Sentia, todavia, que ela me olhava.
 
E como num pesadelo que se concretiza, ela tocou minha mão, assim que ficamos sozinhas.
 
_Quero falar com você – disse.
_Não tenho nada pra falar com você.
 
Afastei a minha mão da sua. E a olhei, com rancor, por um segundo antes de voltar os olhos para o lado, para as pessoas na calçada, a ignorando ali.
 
_Por favor – insistiu.
 
E eu me segurei. Sem me dirigir a ela, sem falar mais uma palavra. Porque sabia que se o fizesse, se ousasse abrir a minha boca ou sequer virar o rosto na sua direção, se a visse ali, se lembrasse da sua boca em outra, era capaz daquilo me subir à cabeça e eu falar alguma besteira da qual me arrependeria depois. Não. Não vou perder o controle. Mas meu coração acelerava, por mera proximidade dela, e a desgraçada me encarava, com seja lá o que fosse engasgado em seus olhos.
 
_Eu... – retomou, após algum tempo desconfortável de silêncio, se esforçando – ...e-eu só queria d...
_Vou achar eles! – a interrompi, irritada, saindo da fila.
 
Caminhei na direção do carrinho de pipoca e a Mia ficou parada, me olhando. É. A situação beirava o ridículo. A calçada estava cheia de intelectuais paulistanos, amantes de teatro. Assim que dei alguns passos, vi que os dois voltavam já com as pipocas em mãos. E os encontrei no meio do caminho – o Fer me encarou sem entender, como se eu tivesse acabado de perder uma oportunidade e tanto. Que se dane. Não vou fazer isso, pode esquecer!
 
Voltamos para a fila e, de maneiras pouco perceptíveis aos demais, o contexto se agravou. Naquele breve período de espera frente ao teatro, é, com a insistência dos olhos da Mia em me procurar. Em todas as brechas, em toda oportunidade que tinha. Isso é absurdo. Eu virava o corpo, incomodada, e me voltava à Clara, fingia que nada acontecia. Ela me abraçava, desavisada, e conversava com o Fer. Não sei se eu era realmente tão boa mentirosa ou se ela já tinha percebido a patifaria toda e optado por não se envolver. Sinceramente não sei o que é pior, pensei, torcendo para abrirem logo as portas do teatro.
 
Quando enfim entramos, o Fernando logo se apressou para entrar primeiro na fileira, sendo seguido naturalmente pela Mia. Calculista do caralho. Rapidamente, fiz um gesto para a Clara para que me passasse e fosse atrás deles, mas ela se recusou. “Não vou sentar do lado dessa garota”, cochichou para mim, “ela me detesta!”. Inferno. Suspirei me sentindo encurralada, , e entrei na sua frente. A muito contragosto. A Clara me seguiu, satisfeita com sua pequena vitória, se sentando na outra ponta.
 
Ótimo.
 
Ficamos o Fer, a Mia, eu e depois a Clara, ali – e eu não consegui me mover direito a peça inteira. Mal respirava. Durante as suas longas quase duas horas, senti que a Mia me olhava. Aquilo começou a me tirar do sério, digo, a sua atitude comigo. Qual é, porra?! Suspirei e me esforcei, sem conseguir, para prestar atenção na peça. Do outro lado da cadeira, eu segurava as mãos da Clara, com os dedos entrelaçados nos seus. E a Mia nos observava.
 
Me deixa, mano, minha cabeça imploravaMas ela não ia embora – a sua atenção, sua intenção, os seus olhos. Em mim o tempo todo. Puta merda. E a Clara ali, do outro lado, comentando a peça comigo de tempos em tempos. Eu a olhava e sorria de volta, tentava focar no Gui no palco. Mas a minha respiração seguia suspensa, tensa. Até que, numa ousadia que ultrapassava todos os limites, senti a Mia esbarrar em mim.
 
Ah, não. Nem a pau.
 
Me ajeitei na cadeira, desejando que se fosse um engano das suas mãos. Querendo mesmo acreditar que aquele milésimo de segundo havia sido sem intenção. Um descuido – dela. Todavia, ela voltou. A Mia, é. E outra vez pude sentir a sua pele na minha, tão deliberadamente. Colocou a ponta do indicador sobre as costas da minha mão, num toque suave. E inconsequente. Com o Fer ao seu lado, a Clara ao meu – você perdeu a cabeça, porra?! Mas ficou. E então, passeando por aqueles centímetros intermináveis, encostou também o dedo do meio. Ambos ali.
 
Minha respiração congelou, antes de acelerar. Respirei fundo. Sentia como se tocassem além de mim, dentro de mim, droga. No meu âmago – como se as pontas dos seus dedos encostassem, de leve, no nosso passado. Um incômodo me subiu pelo corpo, pela garganta. Pensei que a ânsia ia me expor ali mesmo e a imaginei imediatamente com a outra garota, na festa. O rancor tomou conta de mim. Senti meu coração sair do peito. Filha-da-putaNão.
 
Aí tirei minha mão num movimento grosseiro e cruzei os braços frente ao corpo. Irredutível. A Mia me olhou, com pesar, mas os meus olhos permaneceram fixos no palco, impermeável. Me recuso a participar disso. E então, ela se encolheu na sua cadeira.

março 01, 2012

Pretensão, inevitável

“I wanna be your last, first kiss
That you'll ever have”
(Anberlin)
 
Ahh, desgraçada – eu fumava, um atrás do outro.
 
Os minutos passavam devagar, sozinha no meu quarto, angustiada. A Clara chegaria a qualquer momento. E o apartamento tinha o seu silêncio perturbado pelo som do Fer martelando a mesinha de centro da sala – um dos suportes estava solto. Ali, de um jeito intragável, a Mia não saía da minha cabeça. E a beirada da janela já acumulava cinzas o suficiente para me matar. Dum câncer no pulmão, do que fosse, qualquer coisa é melhor. Melhor do que essa merda.
 
O meu coração dava voltas, inquieto. E os meus olhos se fixavam na calçada imunda da Frei Caneca, naquelas árvores e nas pessoas que eu nunca iria conhecer. Por que não consigo simplesmente não me importar, caralho?, me irritei. Me incomodava como a Mia me afetava. Mas afetava – os seus beijos, o que fez com a outra garota. E continuava me afetando, quase dois dias depois, numa incapacidade de ignorar o que tinha acontecido. Cacete.
 
Me despertei daquele estado reflexivo, martirizante, ao ouvir tocar a campainha. E somente então. Tá, ela chegou. Chega dessa merda. Apertei contra a madeira o último cigarro de uma série nada saudável, o apagando, e o joguei pela janela. Eu não ia tornar a situação pior do que já era e me recusava – r e c u s a v a – a transparecer o caos dos meus pensamentos para a Clara, que nada tinha a ver com aquela confusão toda.
 
Saí no corredor com o meu par de coturnos e uns skinny jeans escuros, de regata cinza. Passei pelo Fer na sala, vendo-o terminar o reparo com todas as tatuagens à mostra, sem camiseta. Abri a porta e a Clara sorriu assim que me viu, me beijando e me resgatando quase imediatamente daquela tortura mental. Parecia que fazia semanas que eu não a via.
 
_Então... – virei o pescoço, mantendo uma das mãos na maçaneta, e olhei para o Fer – Vamos?
_Vamos! – ele se levantou na mesma hora, largando o martelo sobre a mesa – Deixa só eu pôr uma camiseta lá... Aguenta aí!
 
Apoiei o corpo no batente da porta, observando a Clara na minha frente. Na mais imprestável das intenções. E ela riu. Estava com saudades, garota. Senti o algodão da minha regata deslizar suavemente pelas costas da minha mão, metida debaixo da blusa, escorregando à toa sobre a minha barriga. A Clara e eu nos olhávamos, em nossas eternas reticências, e ríamos. “E aí, hein?”, ela fez graça, esbarrando a ponta da sua bota contra o meu coturno. Nutria um carinho descomplicado por ela, não sei. Nos gostávamos – e isso, de repente, me bastava para aguentar duas horas no teatro com a droga da Mia.
 
Respirei fundo. É. Talvez não seja tão ruim.
 
Entramos no carro alguns minutos depois, os três, e dirigimos por uma São Paulo congestionada, em plena noite de quinta, até as ruas de Higienópolis. Ao estacionarmos em frente ao prédio da Mia, que eu conhecia tão bem, o Fer ligou duas vezes para ela. Sem sucesso. Desceu então do carro, já irritado, indo à portaria para pedir que interfonassem no apartamento. Aí voltou e se sentou, batendo a porta.
 
_Inferno! – resmungou.
 
O meu braço estava ao redor da Clara, no banco de trás, quando a Mia finalmente saiu pelo portão. Absolutamente linda, desgraçada. Como se fizesse de propósito, numa skinny e jaqueta pretas, com o cabelo castanho jogado para o lado. Merda, pensei, sentindo a raiva voltar. E a observei entrar no carro. Não parecia feliz ou disposta a ir. Me viu ali, ainda de fora, e se sentou no banco ao lado do Fer, sem beijá-lo ao entrar.
 
O carro mal deu partida e a Mia se virou na minha direção. Sem sequer se dar ao trabalho de disfarçar. Me olhou com os seus olhos castanhos, amendoados. Você não tá tornando isso fácil, garota. Me ajeitei no banco, desconfortável, presa naquele carro com o Fer, a Clara, a Mia e a porra da garota da festa, que agora não saía da minha cabeça. Argh. A Mia parecia querer me dizer algo, mas eu não queria ouvir. Nem a pau.
 
Virei os olhos para fora do carro, pela janela, fugindo dos seus. Começava a sentir agora que já não ia conseguir – digo, não transparecer o rancor que sentia, pulsando, entalado na minha garganta – e nós mal havíamos saído do seu quarteirão.
 
Puta merda.