Era isso. Aquilo me bastava. Aqueles dois minutos mal articulados
eram suficientes para que eu soubesse que ela gostava de mim. E imediatamente me
sentisse melhor – é. Ela gosta de mim. E mesmo que não tivesse
beijado a Mia o dia todo, de repente me sentia mais próxima dela do que em
muito tempo. Todas as horas passadas olhando para a tela do telefone nos
últimos dias, à espera de uma mensagem sua, já não me importavam. Meu coração
se agarrava a cada palavra que tinha tropeçado desajeitada para fora da sua
boca. De algum jeito, eu significava algo para ela – e isso me fazia feliz.
O restaurante todo já tinha esvaziado. Éramos as últimas pessoas
que restavam ali. Àquela altura, o atendente já nos olhava com cara de
vocês-duas-não-vão-sair-da-porra-dessa-mesa-nunca, então decidi pedir a conta.
Pagamos e saímos para a rua para fumar – o frio havia piorado exponencialmente naquele
meio tempo. Mal acendemos nossos cigarros e a Mia começou a pular na minha
frente, reclamando sobre como o vento machucava a sua tatuagem nova. E eu ria,
entre uma tragada e outra.
_ESSA PORRA CORTA, CARALHO!
_Coitada de você, né... – disse, irônica, e fiz uma careta para
ela.
_Cala a boca... Arde muito, meu! – ela ria e choramingava ao mesmo
tempo, exagerando – É SÉRIO!
_Sei... – eu ria também e colocava o cigarro na boca, olhando para
ela.
_Vaiiiii! Termina logo aí e vamos embora!
_Mano, é pior andar contra o vento... Relaxa, a gente já vai! – a
observei saltitar na minha frente, no meio da calçada – Cê também não acabou aí
ainda...
_É, mas são sei lá quantas quadras até a casa de vocês, né,
caralho... Já que vamos sofrer de qualquer jeito, a gente podia ir de uma vez!
_Espera – me surpreendi – Cê vai pro apê hoje?!
Mano, não. É de foder.
_É, eu... e-eu... – a Mia me olhou, constrangida pela minha reação,
conforme as palavras saíam sem muita confiança da sua boca – ...é q-que eu tinha...
dito p-pro Fer que ia... passar lá à noite... ele... e-ele queria comemorar
comigo e... aí c-como o estúdio... era... e-era perto, eu...
Vi ela se atrapalhar para explicar, palavra atrás de palavra,
nitidamente afetada pela minha cara. Forcei um meio-sorriso, fazendo um sinal
discreto com a cabeça, como se indicasse que estava tudo bem, que não tinha
problema. Mentira. Tinha problema
pra caralho. Abaixei o olhar até as pedras da calçada, tentando disfarçar
como podia, sentindo um aperto horrível no peito. Depois de passar o dia inteiro comigo, porra, pensei, você vai
me fazer andar com você até o apartamento, como se nada fosse? Até o Fernando?!
Respirei fundo, engolindo o incômodo que sentia, e coloquei o
cigarro de volta na boca. Merda. Nenhuma
de nós disse mais nada por um tempo – a Mia no meio da calçada e eu encostada contra
a parede do restaurante, a poucos metros da porta. Sem nos mover um passo
sequer. O vento continuava impiedoso, se esforçando para piorar ainda mais a
situação. Mas o frio já havia perdido a sua importância ali, como se perdesse
lugar para o desconforto que surgiu entre nós. Dois segundos de conversa do lado de fora e todo o clima foi por água
abaixo – mas que droga.
O pior é que nem eu entendia a minha surpresa. O que diabos eu achava que ia acontecer? Que
ela ia me convidar para dormir na casa dela? É aniversário dela, caralho, é claro
que ela vai ver ele. É claro que vai dormir com ele! Não comigo. O que eu tava
pensando, porra?! A minha vontade naquele segundo era de subir no primeiro
ônibus que passasse, independentemente do destino, e ir para o mais longe que
eu conseguisse do maldito quarto que ficava ao lado do meu. O mais longe
possível dela e do Fernando. E por pouco, realmente pouco, não ergui o
queixo e o fiz.
Todavia, repetidas vezes, as palavras da Marina mais cedo ecoaram na
minha cabeça. E a expressão no rosto da Mia, naquele momento, não era de alguém
que achava aquilo fácil. Pelo contrário. Estava encolhida no seu moletom, com
as mãos protegendo os braços do frio como podiam. Tinha os olhos e a mente
perdidos em seus pensamentos, igualmente em silêncio. E aquilo me desarmou. A
observei ali parada, por um tempo, até que seus olhos angustiados encontraram
os meus.
E aí, enfim, eu entendi.
Segurei o zíper da minha jaqueta com a mão e o deslizei para
baixo, a abrindo. Então alcancei a Mia – sem me desencostar da parede. E ela se
moveu relutante na minha direção. Toquei o seu rosto e a olhei por um instante,
correndo meus dedos pela sua pele cortada pelo frio. Nossos gestos e o tempo se
desenrolavam devagar. Sorri e ela sorriu de volta, como que por mero reflexo.
Então a segurei com as duas mãos, trazendo-a para ainda mais perto, e, de um
jeito quase sem querer, nós nos beijamos.
O vento nos castigava naquela travessa escura da Augusta. Com a
boca ainda na sua, envolvi cada um dos lados da minha jaqueta sobre seus braços,
a protegendo. Senti suas mãos geladas me abraçando e percorrendo a lateral do
meu corpo, procurando conforto entre a minha jaqueta e a camiseta. O beijo logo
terminou e os nossos lábios se separaram. A Mia afastou o seu rosto, a dois
mínimos centímetros do meu, me olhando ali de perto, e suspirou.
É. A
Marina estava certa.