setembro 28, 2012

And...

“When I awoke
I was alone, this 
Bird had flown”
(The Beatles)

A voz do Fernando invadiu os meus ouvidos. Eu estava completamente apagada, deitada de qualquer forma no sofá da sala. Com a coluna toda torta. Acordei com as suas mãos me sacodindo o cotovelo, que eu tinha erguido sobre o rosto para bloquear a luminosidade da janela. Meu braço direito cobria os olhos – o movi alguns centímetros para baixo, abrindo as pálpebras com certa indisposição, e encontrei o Fer ali, em pé do outro lado do encosto, bem na minha frente.
 
A minha cabeça doeu violentamente. Puta merda, me contorci, incomodada – e ele riu da minha careta. O meu corpo parecia pesar cinco toneladas a mais, afundado contra o estofado, e a ressaca parecia sugar secas as minhas veias.

_O que cê tá fazendo aí, mano?! – o Fer questionou, rindo – E por que cê tá sem roupa, porra?

Ahn?, eu o ouvi, desorientada. Senti a minha camiseta amassada contra a minha mão esquerda e notei, então, que o meu braço a segurava sobre a minha barriga. Minhas calças estavam puxadas apenas até a metade das minhas pernas. O quê?, o meu cérebro parecia embaralhado, encharcado em rum e THC, o que aconteceu ontem? Cada pensamento doía, argh. E tudo o que me vinha à cabeça eram os orgasmos da Mia naquele chão, a sua boca contra a minha, o movimento da sua pele tatuada entre os meus dedos. Inferno.
 
As mãos do Fernando se colocaram a menos de vinte centímetros de mim, apoiado com os antebraços no alto do encosto, me observando ali de cima e rindo.
 
_Essa é a melhor memória que eu podia ter de você... – zombou – ...no meu último dia aqui.
 
Revirei os olhos para ele, ofendida. É – eu numa puta ressaca violenta, com os peitos de fora no meio da sala. Mas a verdade é que era até que bem apropriado. Resume toda a porra da nossa convivência nesse apartamento. Esfreguei uma das mãos contra o rosto, tentando me livrar daquela enxaqueca de merda, e me sentei. Aí vesti a camiseta de novo, descabelada.

_Sério, velho... O que diabos cê tava fazendo?! – ele achava graça na minha desgraça e eu só queria que ele calasse a boca, sentindo a minha cabeça doer a cada palavra que entrava no meu ouvido.
_N-não sei... – murmurei, ainda confusa – ...fiquei com calor à noite, acho. Não lembro.

Levantei como um cão rabugento e ele riu ainda mais. Começou a juntar os poucos vinis que restavam no chão, determinado a terminar de empacotar aquelas caixas todas, enquanto eu subia as calças pelas pernas.
 
_Devia ter tirado uma foto... – fez graça, com um disco do Alton Ellis na mão.
 
Ah, vá. Engraçadinho. 

setembro 26, 2012

Isn't it good?

Antes, quando falei sobre trens, vejam bem, a questão... é que, uma vez que saem dos trilhos, trens requerem um esforço descomunal para serem novamente encarrilhados – e bom, nós, nós não tínhamos isso.

A sua boca deixou a minha. E os nossos corpos penderam no ar, sobre o chão, envoltas em demasia de rum. Seus lábios percorreram a lateral do meu rosto, se arrastando pelo meu pescoço, e aí voltaram para os meus. Prensadas uma contra a outra, naquele piso de madeira, de maneira estúpida. Naquela irracionalidade controlada, em meio à sala. Mas isso, isso era diferente. Os beijos, as mãos. A forma como nos conduzíamos, bêbadas. E plenas, não sei bem. A forma como os seus dedos entravam em mim, como eu a segurava perto. Numa avidez lúcida. Isso era eu e era ela, nós duas. Éramos nós, ali, conscientes do que fazíamos – e fazendo, juntas. Não eram banheiros ou áreas de serviço, não eram desafios ou agressões emocionais; acidentes de percurso. Não. Isso, isso era diferente. Isso éramos nós, inteiras.
 
E puta que pariu.

Em um só movimento, tirei a minha camiseta e pressionei o meu corpo descoberto contra o da Mia. Apenas as tatuagens me cobriam a lateral da pele e os ombros. E a sua mão subiu pelas minhas costas, com a outra ainda metida no meu jeans. Se movia com a arrogância de quem sabia o que estava fazendo. De quem já tinha me amado antes. Os seus beijos deixavam a minha boca, mais uma vez, e eu sentia os seus lábios tocarem os meus ombros, os meus seios. Cada um dos traços marcados na minha costela. Lentamente. As suas mãos deslizavam por mim, me molhando. E era como voltar doze, treze meses antes – ao chão do seu apartamento. Mas não. Isso, isso era diferente. E sentir ela tão próxima assim, de novo, foi me tirando do sério.

O meu coração apertou. Percebi todas as minhas emoções tomarem conta de mim e subirem, de uma só vez, pela minha garganta. Senti-me esmagada. Numa vontade repentina e idiota de chorar. Vulnerável no chão da sala, com o meu corpo aberto e entregue a ela. À Mia. Crescia, como um som ensurdecedor dentro de mim, enquanto todo o cômodo restava em silêncio. Eu o traía, eu sabia, de novo. E me traía também. Traía a Clara ainda, traía tudo o que construíra, traía todos os últimos meses. O álcool me destruía a sanidade, argh. Traía tudo. A minha independência emocional, o meu bem-estar. Traía as minhas escolhas.
 
Mas o pior, o horrível – o deplorável – é que eu gostava. Puta que pariu, como gostava. Gostava. De sentir cada grama do peso dela em mim. Toda a extensão do seu corpo e da minha agonia. Porque, inferno, era como voltar para casa.
 
Como?! Como eu posso gostar, porra?!

Os seus beijos intensos, em transe, no entanto, acalmavam o aperto em minha garganta. E eu me via envolta num oceano de águas familiares, submersa naquele momento. Naquele mesmo instante. Embriagada no seu cheiro, no seu jeito, não sei. Parte de mim condenava o que fazíamos, sim, mas a outra não dava a mínima – puxando-a pela cintura e a colocando no meu colo, sem nem hesitar. Sua boca me arrancava a razão, conforme as suas mãos arrancavam a própria blusa do corpo. Mais um beijo. E outro. Não era cauteloso tirar as roupas assim na sala, verdade. Mas o fazíamos mesmo assim, deliberadamente, dane-se.
 
Desajeitadamente, eu tentava descer as minhas calças por debaixo das suas pernas. E a Mia ria. Eu achava graça também – numa naturalidade de interromper a nós mesmas, nos divertindo. Como você linda, garota, cacete. Ao mesmo tempo, os meus pés empurravam e chutavam os All Star de si, para o mais longe possível. E eu sorria para ela. Nos olhávamos, em sincronia. As maçãs do seu rosto contornavam suavemente a margem sob seus olhos, os seus cílios. E o calor da sua pele me engolia. Fechei as minhas pálpebras e tirei o seu cabelo da frente dos ombros, colocando-o para trás. Beijei, pouco a pouco, a linha do seu colo. Podia sentir a sua pele mover-se, pendendo o pescoço e a cabeça para o lado.
 
Agora que te tenho de novo, garota, não te deixo mais ir.
 
Se contorcia contra meu corpo. Mas me comia, numa sacanagem crua, e os meus beijos se tornavam mais famintos. Deitei o seu corpo sobre o piso escuro de madeira, arrancando de uma só vez os malditos shorts e a sua calcinha. Os meus dedos cravavam-se agora nas suas cerejeiras, nos seus narcisos. E a minha língua consumia os seus contornos, o seu gosto. O seu suor, cada nuance dela. Encaixei as nossas pernas, com certa grosseria, e apoiei um dos joelhos ao lado da sua coxa – subindo em cima da Mia num movimento contínuo e igualmente arrogante. Ela me segurou com ambas as mãos no rosto, sorrindo, e me beijou, conforme eu me pressionava contra ela.
 
E é – àquela altura, eu sequer mais via os trilhos do trem.

setembro 21, 2012

O inverso

O som agora estava mais baixo. E o cômodo parecia tomado pela imobilidade da madrugada. Seguíamos, porém, no mesmo ritmo – rindo e embriagadas. Eu e a Mia conversávamos lado a lado no chão. Entrincheiradas frente ao sofá, que dava de costas para a porta do quarto do Fer. Ao final do corredor. Em suas mãos, a Mia enfileirava os vinis, sentada sobre os próprios pés enquanto falava e eu a escutava, rindo às vezes. Tinha a minha cabeça apoiada no assento do sofá e os olhos distraídos pelo teto branco, completamente chapada. Nos divertíamos, não sei explicar, falando uma asneira atrás da outra. E eu fechei os olhos, em lassidão.

_Não queria que a noite terminasse... – ela disse.

Aí senti o tecido do sofá franzir, fazendo notar a sua presença ao meu lado. A minha mente girava, a esmo, com as pálpebras coladas em si; meio no escuro. O que eu tô fazendo, meu deus. A Mia seguiu falando, um tanto emocional. As mangas da minha camiseta estavam enroladas sobre os meus ombros e, de repente, o seu braço tocou a minha pele. Sabe quando a sua percepção fica aguçada? Os sons e as sensações pareciam uma viagem à parte – dentro de uma brisa particularmente boa, largada no chão da sala. Percebi as pontas do seu cabelo moverem-se, sutis, ao meu lado. E a Mia divagava ainda, tão bêbada quanto eu.

_...não quero que chegue amanhã, sabe. Não quero! Argh... mano, por quê?! – se chateava – Por que o Fê tem que se mudar?! Que inferno. Não vai ser a mesma coisa mais, vai ser estranho... vir para a Augusta, sabe, sem vir aqui. O apê é a minha segunda casa, pô. Eu gosto tanto dessas quatro paredes, tanto...
_Mas você não precisa deixar de vir, meu – intervi, alcoolizada – Cê pode me visitar quando quiser, porra. Só passar aí...
 
A real é que eu estava tão preocupada com a saída do Fer que sequer tinha me dado conta de que aquilo também tirava a Mia do meu apartamento. Puta merda. Silenciosamente, aquilo me abalou um pouco. Não sei bem. Era como se tudo o que eu conhecia, tudo a que tinha me acostumado naqueles anos, estivesse mudando. E me dava uma vontade irracional de me segurar ali, no presente, por quanto tempo pudesse.
 
_Ah, é! – a Mia riu, irônica – Porque a Clara vai achar, assim, “lindo”... né?
_A Clara não tem que achar nada, o apartamento é meu.
_Tá. Mas...
_Mia, na boa, vem aí quando quiser.
_Mesmo?
_Lógico, besta... – inclinei a cabeça para o seu lado, abrindo os olhos por um instante, e sorri – ...assim... é só não vir com esses shorts aí, que estamos bem.

Ela riu, dando-me um tapa de leve no braço, elogiada. Depois te tanto tempo, garota, e eu ainda gosto de te ver sorrir. A Mia afundou mais ainda o corpo ao lado do meu, encostada contra o sofá com um cigarro apagado em mãos. Estava completamente fora de si. Deixou que o filtro lhe escapasse por entre os dedos, sem sequer dar-se conta, conforme deslizava os pés mais adiante no chão, acidentalmente ou não esbarrando a sua perna na minha.

_E a propósito... – disse, com um ar meio de entrelinhas – ...como vai... – prosseguiu, escorregando sutilmente a mão no decorrer da própria coxa, de forma que alguns dos seus dedos ficassem sobre o meu jeans, descendo até quase a altura do joelho – ...a Clara?

A acompanhei com os olhos, sem me mover. Me diverti. Os seus dedos continuaram, como se por casualidade, para o vão entre os meus joelhos. Isso não pode estar mesmo acontecendo, ri, em silêncio. E virei o rosto para ela, também embriagada.

_Me diz você... – respondi, arqueando a sobrancelha – ...”como vai” o Fer?
_Hum. Tem certeza de que quer entrar aí?
_Cê que começou... – achei graça na situação e ela sorriu, imprestável.
_Tá. Do que cê quer falar, então?

A sua mão continuava parada nas minhas pernas. E é – talvez tenha sido o rum; ou talvez tenha sido toda a maconha dentro de mim. Ou ainda, os shorts de menos nela. Não sei. A sua presença inegável, maldita, em qualquer cômodo que ela ocupava. Algo causava a minha falta de filtro, de reação naquele momento. Ou talvez tenha sido a descomplicação incomum daquela noite toda, daquelas conversas, que me remetiam ao primeiro ano de namoro deles. À época em que os meus sentimentos por ela não pesavam tanto. Não sei.
 
Mas a verdade é que eu sabia, sabia, onde aquilo estava indo – e sabia desde o instante em que o Fer levantara para ir dormir, sabia desde o começo. Desde o rum, desde as suas pernas sobre as minhas. Mas ainda assim não me movia, eu ficava. Irredutível e interessada. “Do que você quiser”, respondi então. Os seus olhos estavam presos aos meus. As pontas dos seus dedos começaram, então, a subir suavemente pelas minhas pernas, numa brincadeira perigosa, puta que pariu – e as minhas pupilas deixaram as suas para observar o que as suas mãos faziam.

_Bom, e se você... – a Mia sugeriu, quase sussurrando – ...me contasse o que... – eu seguia atenta – ...era naquela mensagem, na outra semana.
_Que mens...? Ah! Ahn-ahn, não. Nem fodendo... – eu ri, com a voz já arrastada.
 
Você não espera mesmo que eu te conte em que eu estava pensando enquanto comia a Clara, né? Nem a pau.
 
_Por que não?! – ela achou graça, de repente.
_Não. Agora não.
_Ah, me conta, vai...
_Não, meu.
_Por quê?! Você tava... – sugeriu, quase tão lenta quanto os seus dedos, que ela agora também acompanhava com os olhos sobre minhas coxas – ... pensando em mim?
_E se eu tava?! – respondi, a encarando.

E ela sorriu. Estava mesmo, a mensagem tinha sido clara quanto a isso, de que adiantava mentir? A Mia levantou o olhar e o cruzou com o meu, sorrindo de novo ao notar que eu a observava – o meu coração, embriagado, parou por um instante. Você não, relutei em pensamento, v-você, puta que pariu, você é linda demais. Um som ritmado de cítara começou ao fundo. E eu a olhava, a uma distância ainda segura. Com os meus reflexos lentos, afetados por toda a fumaça, por todo o rum. I once had a girl...”, o Lennon cantou baixinho no rádio, “...or should I say, she once had me?”. E a nostalgia me foi embalando a cada verso de “Norwegian Wood”. Parte da minha consciência dizia-me, sóbria, “não faz isso” – enquanto todo o restante considerava ignorar o aviso.

Cacete. Os seus dedos seguiam subindo vagarosamente, apenas as pontas, pelas minhas pernas. E eu podia sentir cada movimento.

_Não começa, garota... – suspirei, hesitante.
 
Fechei os olhos, por um segundo. E senti as suas mãos, enfim, me tocarem. Desgraçada. Não me aguentei. E abri novamente os olhos, observando-a se mover. Os seus dedos foram subindo. Lentamente para cima – a minha respiração começava a pesar, impulsiva, e eu ia ficando realmente desconfortável, sentada ali. Não me movia. Não fazia nada. O meu coração, todavia, acelerava, instável com tudo aquilo, com o que eu poderia cometer se ela não parasse – com cada milímetro que ela continuava e continuava, puta merda.

Aproximou-se de mim, do meu corpo. A sua boca agora parecia ainda mais perto. A poucos e perturbadores, irrelevantes centímetros da minha. Meu deus, só, só para com essa merda. A ponta dos seus dedos atravessou, entretanto, a linha da minha calça, deslizando pela minha pele descoberta num arrepio. Debaixo da camiseta. Subiu pelo centro e veio descendo depois, contornando lentos arabescos imaginários pela lateral, acompanhando então a cintura baixa do meu jeans. A esta altura, eu já estava perdendo a cabeça. Me sentia tomar por toda irracionalidade do álcool das horas anteriores – queria empurrá-la contra a primeira parede do apartamento que ela tanto, tanto gostava. Mas não me movia.

Os seus dedos se colocaram acima dos botões da minha calça. O primeiro, num tranco. Não faz isso, por favor. Eu não podia beijá-la ali, como não podia. E eu não devia – mas sentia os seus dedos contornarem o segundo botão, sem qualquer intenção de parar. Tinha os seus olhos fixos nos meus. E eu ainda não deferira um movimento sequer. A sua boca, todavia, testava cada gota de autocontrole em mim. Completamente passiva às suas intenções, como nunca ficara antes. Inebriada. A cada toque inconsequente seu. E a cada decisão das suas mãos. Porra. Sentia os seus dedos desabotoarem já não tão sutilmente a minha calça. E a sua boca se aproximar, ali, tão perto, ansiando por um beijo.
 
O momento começou a me consumir, num fogo egoísta e – que se dane.
 
Me movi para frente e a alcancei.

setembro 17, 2012

Receita pro desastre

A montagem das caixas começava a virar um caos. Uma após a outra, cada vez com mais dificuldade. A ideia tinha partido da Mia, que levantou em determinado momento para ir à cozinha e voltou com uma garrafa de rum entre aquelas suas mãos – que eu, cada dia mais, tinha certeza de que não prestavam. Nada, nem um centavo. E se tinha uma coisa que eu e o Fer éramos incapazes de recusar, como os fracos humanos que éramos, era rum gelado.
 
E ela sabia. Maldita.
 
Eu podia ver os trilhos prestes a serem descarrilhados – como uma observadora passiva, inerte – e não fiz nada a respeito. Pelo contrário. Bebi gole atrás de gole, rindo junto aos dois, por horas no chão da sala, em meio aos vinis espalhados. A nossa sorte é que embalamos cuidadosamente a vitrola ainda no início da garrafa. Agora já estávamos na sexta ou sétima leva de vinis. E, embriagados, descontávamos a nossa crescente falta de coordenação no papelão, que se tornava cada vez mais amassado na lateral torta das caixas.
 
As conversas logo começaram a ocupar todo nosso tempo, enquanto pouco trabalho era, de fato, feito. Por volta das onze da noite, acendi um baseado, abdicando do meu posto. E ri da desorganização que causamos na sala. Fazia tempo que eu não me divertia assim com o Fer e a Mia. Senti falta disso, admiti para mim mesma, cacete – apesar dos pesares, aquelas eram duas das minhas pessoas favoritas no mundo, com quem eu me dava tão bem. Peguei um dos compactos originais de rocksteady do Fer nas mãos, para olhar a capa, e a Mia me roubou o baseado.
 
_Mas, e aí, afinal... – ela perguntou, tragando demoradamente – ...quanto tempo vocês já tavam aqui?
 
Comecei a calcular em voz alta, confusa pela quantidade de rum que se infiltrava na minha cabeça.
 
_Foram cinco, seis... não! Cinco anos e... seis me...
_Oito! Foram oito.
_Não, Fer... OITO meses?! Nem a pau... – balancei a cabeça para ele, com convicção – ...eu tinha quase 19, meu. Tenho certeza! E o meu aniversário é só daqui quatro meses ainda, não pode ser oito.
_Então foram sete. Seis não pode ser... – argumentou, sério – Mano, “seis meses” a gente teria que ter mudado em... espera, que mês a gente tá agora?
 
Comecei a rir, largada no chão. “Como cê não sabe em que porra de mês a gente tá?!”, gritei com ele e ri, já fora de mim de tão bêbada, “não faz nem uma semana que virou o ano, caralho!”. A Mia começou a rir comigo, com o baseado em mãos, sequer entendendo o que se passava naquele momento. Peguei o fino de novo e puxei por algum tempo, na intenção de segurar tudo aquilo nos pulmões – mas, claro, comecei a rir mais uma vez e a fumaça escapou toda.
 
Já o Fer, por sua vez, ria de mim. E o som na sala seguia barulhento – tão alto que já tava passível de multa. Para piorar tudo, a gente conversava aos berros, competindo com os alto falantes. Com carinho, a Mia argumentou que a gente tinha, de longe, o apartamento mais legal de toda a Frei Caneca.
 
_Todo dia, juro. Nós saímos TODO DIA no primeiro mês, quando mudamos pra cá – apontei o indicador contra o chão, numa assertividade embriagada – Mano, eu não lembro nem O QUE aconteceu quando começamos a morar na Augusta! É tudo, tipo, uma grande nuvem na minha cabeça...
_No fim do primeiro mês, a gente já tava casado com a privada... – o Fer riu, me tomando o baseado e dando duas bolas rápidas – ...essa aqui passava mal no vaso, eu ia ajudar e acabava gorfando no chuveiro, era uma beleza.
_Cara, na boa, eu peguei gente que eu não sei o rosto até hoje... – achei graça e a Mia sorriu, nos observando tagarelar – ...se eu vir na rua hoje, juro que não sei dizer.
_Nem eu sei, porra... – o Fer riu – Não. Espera! Quem eu tava pegando quando a gente mudou?
_Nossa... Cê jura mesmo que cê espera que EU lembre? – comecei a rir daquele pedido absurdo quando, subitamente, me ocorreu num flash desagradável de memória – MANO! NÃO! Nããããão, ahhh! Você tava com aquela mina insuportável! Puta merda, Fernando. Essa era pior que a Julia, velho. Lembra? A, aquela lá, a que me odiava. Homofóbica do caralho!
_Ah, a Karina... – ele começou a rir, também.
_Nossa... – a Mia entrou de novo na conversa – ...por que te odiava, meu?!
_Ela tinha alguma coisa contra, sei lá. Mano, era só eu CHEGAR no apê, que ela revirava os olhos. Toda vez! E se eu tivesse com alguém, então, ela saía do cômodo. Puta mina idiota. Depois veio dizer pro Fer, não foi, que não achava que cê devia andar com “gente assim”. Muito babaca!
_Credo! – se revoltou, dando um tapa no ombro do Fernando – POR QUÊ cê tava com essa escrota?!
_Ah, sei lá... só tava, meu. E a gente nem ficou tanto tempo assim, dei um pé nela depois que ela falou essas paradas aí...
_É. ”Sei lá”, né... – comecei a rir de novo, sabendo a resposta, e me virei para a Mia para fofocar – ...ela tinha, mano, juro...
_Fica quieta!
_Cara, a garota nã...
_Cala a boca! – ele me interrompeu, de novo.
 
Me empurrou com o pé, fazendo graça, e eu ri. Aí a Mia se esticou – naqueles shorts cada vez mais difíceis de ignorar – até alcançar o isqueiro largado no chão. Parecia vinda direto dos infernos para o meu lado, naquele piso de madeira. Então acendeu, mais uma vez, a brasa já apagada do baseado. O cômodo parecia enevoado e o contraste com a lâmpada amarela no teto não ajudava muito. A poucos centímetros da TV, o rádio tocava “Oh Babe” no último volume, a versão do Ewan & Jerry com os Carib-Beats, e o meu pensamento se fundia, meio vago, àquela atmosfera ensurdecedora, um tanto perdido entre as palavras que falávamos e a letra da música ressoando ao mesmo tempo, enquanto ríamos incessantemente.
 
Senti os meus pensamentos sumirem. Era como viver no absoluto presente, sem roteiro algum na cabeça. Em branco. “Oh babe, watcha gonna do now”, a música seguia, “I’m sick and tired, tired, tired, girl, and I’m worried over you now”. Fechamos mais uma caixa, com muito custo e algumas distrações extras – faltavam agora só alguns poucos discos espalhados pelo chão. O Fer, todavia, já começava a sentir o baque daquela maconha toda no cérebro. Bocejando durante a montagem da caixa seguinte, enquanto eu ainda fumava, descomedida – empurrando a fumaça seca com o que restava do rum, chegando ao final da garrafa, num comportamento insensato.
 
O trem descarrilhava. Sem que tenha demorado muito, apenas quatro ou cinco músicas depois, o Fer bateu com as mãos nos joelhos e se levantou do chão, anunciando que não conseguia mais manter os olhos abertos, fritando chapado com a má combinação de THC e rum. Ia nos deixar ali, disse. Deu dois passos até a prateleira no centro da sala, abaixando o volume do rádio, e se dirigiu a nós duas:
 
_Ó... Pode largar o, o, os coisos aí que, deixa que, q-que amanhã de manhã eu termino – falou, em palavras arrastadas, meio desconexas.
 
E aí entrou no corredor para ir dormir.

setembro 12, 2012

Pré-Bacardi

_Hum, alguém aí tá de bom humor... – comentei, ao escutar o Fer entrando aos risos com a Mia no apartamento, sob risco de ganhar uma olhada feia na minha direção.
 
Mas não – ele riu e passou por trás de mim no sofá, me dando um tapa atrás da cabeça. Carregavam algumas caixas de papelão nas mãos, ainda desmontadas, e eu estava jogando videogame, com os pés espalhados sobre a mesinha de centro. Os dois seguiram para o quarto dele. E eu até me reajeitei no sofá, surpreendida pelo bom humor do meu amigo, e virei a cabeça para os observar no corredor. Isso só pode ser obra sua, pensei, vendo a Mia caminhar alguns metros atrás dele. E balancei a cabeça, achando graça.
 
Era o último dia do Fer na casa e agora, de repente, ele resolvia desfazer o bico. Vai entender. Por toda a tarde, pude ouvir a música alta saindo do quarto dele e ambos conversando, se divertindo enquanto empacotavam o que restava. A maior parte das coisas dele – as roupas, os lençóis, todos os livros – estava lá dentro, acumulada ao longo dos anos e socada no fundo do armário. Enquanto isso, ainda na sala, eu já abria minha terceira cerveja do dia, afundada no sofá e quase desfalecendo de tanto calor.
 
Quando, enfim, escutei a porta do quarto se abrir de novo, o sol já começava a se pôr. O som escapou barulhento para o corredor – um "give me champagne when I'm thirsty”, na voz rouca do Muddy Waters, “give me a reefer when I wanna get high". Meio que cantei junto, por um instante, distraída. Segundos depois, senti a Mia apoiar os braços no encosto, ao meu lado, atrás do sofá onde eu estava. Aí subi os olhos na sua direção.

_Acalmou a fera? – sorri e voltei a prestar atenção na TV, sem chegar a pausar o jogo.
_Ah, ele tava nervoso... com a história toda, meu. Não queria ter que sair... – ela respondeu e passou os pés descalços por cima do encosto, se deitando ao meu lado e colocando as pernas sobre as minhas, com naturalidade – ...mas eu disse que ele precisava aproveitar o tempo que tem aqui, não ficar se torturando pelos cantos. Não é como se fosse o funeral dele também, né?
_É...

Respondi, meio sem jeito, pega desprevenida por toda a sua “liberdade” repentina. Puta merda. Procurei me distrair da audácia das suas pernas, com as coxas expostas num mini-shorts apoiado sobre a minha calça jeans, focando os olhos no jogo que ainda rodava na TV. Mas seguia incomodada. Inferno. A tatuagem que fiz na Mia parecia ficar ali, sempre na minha visão periférica, me incomodando. Não, calma. Isso não quer dizer nada, tentei me tranquilizar. E ainda assim, a minha cabeça começou a disparar, inevitavelmente preocupada com a porra do seu namorado no fim do corredor. Não, não dá. Não podemos ficar assim tão perto. Menos ainda aqui dentro, caralho, com o Fer logo ali!
 
Argh. Respirei fundo.
 
Aí apertei o botão embaixo do controle, soltando uma porra dum casco vermelho na pista. Estava na segunda volta no Mario Kart. E a minha respiração acelerava – sem qualquer relação com a corrida. Desde quando tá tudo bem fazermos isso, porra? Sentia suas pernas pesarem sobre a minha pele. De onde diabos surgiu essa intimidade toda?, a questionava em pensamento, sem abrir a boca. Então debatia comigo mesma – tá, eu sei de onde surgiu. É culpa minha. Que merda, não devia ter mandado aquela droga de mensagem, não devia ter falado nada quando a Marina veio. Cacete.
 
Aquilo era ridículo e eu sabia – argh. Um movimento da Mia e lá estava eu, inquieta, perdendo a minha cabeça no meio da sala. De novo. Quantas vezes mais preciso superar essa merda?, continuei jogando em piloto automático, enquanto convencia a mim mesma de que aquilo não significava nada. Que não era um problema. Se o Fer vir a gente aqui, não vai ter nada de errado, raciocinei, é totalmente normal. O drama todo tá na minha cabeça.
 
Pisquei forçosamente, na tentativa de afastar aquelas pernas questões dos meus pensamentos. E por que inferno eu me importo, afinal?, me revoltei comigo mesma. Fodam-se as pernas da Mia! As duas! Dane-se. Não dou a mínima, cacete, eu tenho a Clara.
 
As coxas dela, todavia, continuavam ali.
 
_E você...?
_Hum?! Eu?
_É. Cê tá... – ela questionou, me olhando – ...nervosa com tudo isso?
_E-eu... não sei, acho que não.

Respondi sem ser sincera. E aí senti a Mia se reajeitar no sofá, escorregando as coxas de leve no meu colo. Eu tô nervosa com as suas pernas aí, caralho, isso sim. Suei frio. A verdade é que ainda não havia dado à mudança toda consideração que deveria – uma vez que pensasse a respeito, de fato, ou me visse enfim sozinha no apartamento, certamente entraria em parafuso. Mas não, não vou pensar nisso agora.
 
Voltei a minha concentração ao jogo mais uma vez, já na última volta. E então ouvi o Fer surgir detrás do sofá, vindo do corredor, para pedir que o ajudássemos a empacotar os vinis da sala. Pulei em pé na mesma hora – me livrando o quanto antes daqueles 95 centímetros desgraçados de evidências pernas.

_Quero levar só a vitrola e os discos – ele explicou – Vou deixar os CDs aí, beleza?

setembro 09, 2012

"Feliz 2012"

O clima no apartamento ficou estranho. Apesar dos meus esforços para compensar a minha acidental falta de sensibilidade, o Fer manteve a sua cara devidamente fechada pelas duas semanas seguintes. Para piorar, a Clara foi passar seus dias de recesso num camping em Jaguariaíva com duas amigas. E sem dinheiro nem para a passagem de ônibus, eu fiquei em São Paulo – na companhia emburrada do meu melhor amigo, cuja namorada também o trocou por uma viagem em família.  
 
Pois é. Fim de ano é sempre uma droga, mas aquele era o pior de todos. Sequer comemoramos o Natal ou o Ano Novo, rodeados de caixas de papelão enquanto os fogos estouravam na Paulista. Coexistíamos como dois irmãos após uma briga. Ridiculamente – eu puxava assunto na mesa da cozinha e ele me respondia com três palavras. É. Aquele era o meu castigo nos nossos últimos dias morando juntos.
 
A sua indiferença.
 
Agia como se pouco importasse, enquanto a verdade é que meu melhor amigo estava menos bravo com a minha rápida troca de colega de apartamento e mais incomodado em ter que deixar a sua vida comigo ali na Augusta. E os ânimos naquela casa só melhoraram quando a Mia voltou, num sábado de manhã.

setembro 08, 2012

Ganja

O restante do dia correu abarrotado de tarefas para tentar fechar o ano. Entre uma crise e outra, troquei mensagens com o Gui para me assegurar da sanidade do Du e, horas depois, quando encontrei com a Clara na saída de casa, já havia me decidido por ele. “Tem certeza?! Não é melhor procurar mais um pouco, Bo?”, ela me perguntou, fumando ao meu lado na rua. Mas eu não queria ter que ficar procurando gente para entrar no lugar do Fer – não tinha paciência ou emocional para isso – e achei que o melhor era aceitar o que o destino me arranjou.
 
Liguei para o Du quando cheguei no apê e combinamos que ele traria suas coisas depois do Ano Novo, assim que voltasse do interior. Ficou feliz com a notícia. E eu desliguei também com um sorriso no rosto, como se um peso tivesse sido tirado das minhas costas. “Resolvido. Num só impulso. Joguei o celular sobre o travesseiro e a Clara deslizou pelas minhas pernas, subindo pelos meus joelhos até as coxas. Aí acomodou-se entre elas. E os seus dedos foram me fazendo cócegas, me arrepiando, escorregando lentamente por debaixo da minha blusa. Meio assim, à toa.
 
Passamos horas daquele jeito. Na pele uma da outra. Nuns carinhos distraídos, numa sacanagem boba. Com aquela calma de quem tem todo tempo do mundo pela frente. Como eu gostava de passar o tempo do lado daquela mulher – puta que pariu.
 
Só lá pelas dez é que ouvimos alguém chegar. Estávamos as duas afundadas na minha cama e fumando haxixe, ouvindo o Maxinquaye no último. Bem legalizadas naquela casa, sim. Passei o baseado para a Clara assim que escutei a porta da frente – “é o Fer”, murmurei, me levantando do colchão, “preciso falar com ele”. O meu corpo parecia pesar três vezes mais, de repente. Eita. A Clara resmungou ali, com a ponta na mão e só de sutiã, sem calcinha. “Não, não vai...”, miou e eu sorri para ela, vestindo a mesma camiseta desbotada de horas antes só para sair do quarto. Abaixei e lhe dei um beijo rápido – “já volto”.
 
Fui até a sala e o Fer estava em pé na frente do sofá, abrindo uma correspondência qualquer.
 
_E aí, meu... – apoiei o joelho ali, numa das almofadas, meio chapada – ...deixa eu falar, fechei hoje com um moleque aí, amigo do Gui, pra vir morar aqui. Gente boa. Combinamos dele já mudar quando virar o ano, pode ser?
 
O Fer me olhou de volta, surpreendido pelo assunto. Ou pela rapidez com que as coisas se acertaram. Não sei bem. E me senti subitamente mal pela forma como lhe dei a notícia. Droga. Delicada que nem um elefante. Ele não esboçou reação alguma, mas podia ver que tinha se incomodado. Sabia quando o Fernando não estava bem e os seus olhos transpareciam certa frustração. Argh, eu sou uma imbecil. Eu tenho merda na cabeça ou o quê?, me condenei.
 
_Sei – ele cruzou os braços, abaixando a cabeça – Deu certo, então...
 
Droga. Tentei forçar os meus dois únicos neurônios sóbrios a formular qualquer resposta, buscando desesperadamente alguma maneira de consertar aquele clima de merda que causei, mas o que diabos eu posso dizer agora? Já tinha combinado, o cara vinha mesmo. E em pouco mais de duas semanas. Duas semanas, caralho! Mas que inferno. O pânico começou a tomar conta de mim, enquanto eu olhava para o Fer ali na minha frente – foi cedo demais? Me precipitei? Tentava articular qualquer solução na minha cabeça, mas não conseguia, completamente chapada, não saía nada dali. Nada. O meu pensamento estava tão lento que quase parava, afogado pela fumaça nos meus pulmões. Cacete.
 
_Deu, e-ele fa...
_Ok – o meu melhor amigo me interrompeu, deliberadamente grosso.
_Fer, por favor, e-eu... – me angustiei, sem saber direito o que falar.
_Não, não. Tudo bem! De boa.
_Mas eu não... m-merda, eu, e-eu não...
_Cara, foi isso que a gente combinou, não foi?! Então tá certo, porra.
_Mas v-você não... e-eu... Fer, é q-que... argh! – me enrolei toda, intensamente lesada, e me irritei comigo mesma – É q-que, sei lá... e-ele já tava, t-tava afim de vir logo e vai virar o mês também e aí eu pensei q-que...
_Relaxa. De boa, mano. É isso, vai fazer o quê... – resmungou, de cara fechada, deixando escapar certa agressividade – Pode deixar que tiro minhas tralhas e libero o quarto pro moleque entrar.
 
Largou a carta que estava olhando em cima do sofá, meio amassada, e aí saiu em direção à cozinha. Bosta.

setembro 04, 2012

Prazer, Du

Estava entre a diretora de arte da produtora e uma das atrizes no set, quando senti o celular vibrar no meu bolso. Tirei-o discretamente da calça e espiei a resposta da Mia – “e oq era? :3”. Digitei em poucas palavras – “dps t conto”. Tornei a focar os meus olhos na prancheta cheia de rabiscos e naquele caos organizado do cliente, sem dar bandeira. A manhã parecia durar para sempre.
 
Céus. Não é possível que achem isso ‘cool’, julguei silenciosamente, observando com certo desgosto as escolhas trágicas da equipe de figurino. Umas roupas pretensiosas que contrastavam escandalosamente com a calçada suja e aquele charme urbano de São Paulo. Mas quem era eu pra falar, né, metida numa bermuda e com a mesma camiseta desbotada de quatro dias antes.
 
Esperei as coisas acalmarem um pouco e dei uma escapada para fumar. Fiquei fofocando com uma das assistentes, entre uma tragada e outra, do lado de fora. Ela ria dos meus comentários sobre o figurino. A gravação, claro, estava atrasada. Aí olhei no meu relógio e faltavam menos de vinte minutos para as 14h – merda, merda. Joguei a bituca no chão, com pressa, apagando a brasa com a ponta do meu All Star encardido. Corri até a tenda onde estava o restante da equipe e avisei que ia tirar o meu horário de almoço, largando a prancheta com um estagiário.
 
Subi então para o metrô, descendo na Consolação e cruzando a pé para a Frei Caneca, de olho no horário. 14:07. A menos de um quarteirão do nosso prédio, vi um cara de cabelo loiro escuro parado em frente ao portão. Vestia uma calça saruel preta e tinha uns óculos escuros Clubmaster da Ray-Ban. A regata branca com o corte fundo na lateral o denunciava como amigo do Guilherme. 100% viado.
 
_E aí, beleza? – me aproximei, o cumprimentando – Você que é o Du?
 
Ele sorriu e se apresentou, pegando a mochila que estava no chão; tinha umas tatuagens esquisitas no braço – dessas propositalmente toscas e aleatórias, descoladas. Não sei bem explicar. Fomos juntos até o elevador do prédio. E apertei para o nosso andar. Aí enrolei as mangas da camiseta sobre o ombro, cansada da descida em ritmo apressado até a Frei. Me sentia confortável ali com ele, o que era bom sinal. Agora que o via mais de perto, todavia, não me parecia ser mesmo gay. Ou será que é?, me ocupei com o meu radar por um instante, distraída.
 
Andamos até a porta do apartamento e eu entrei, largando minhas chaves na mesa e chamando o Fer para checar se estava em casa – mas ele não respondeu. O apê estava vazio. Fui na frente, mostrando o espaço e puxando assunto, sondando mais sobre o Du. Ele era ator de teatro, assim como o Gui, só que de uma outra companhia que eu nunca tinha ouvido falar. Trabalhava dando aula e fazia mestrado, tinha 26 anos. A princípio parecia meio quietão, na sua, não abriu muito a boca, mas algo me dizia que era debochado.
 
_E cê tá querendo sair lá de onde cê mora?
_É. Moro com uma família no Santa Cecília, tenho um quarto alugado – o Du olhava os cômodos conforme a gente ia andando – Mas é ruim lá, meu, não tenho privacidade e ficam cagando regra. Não funciona.
_Não te deixam levar gente pra dormir ou o quê?
_Ah, entre outras coisas... – riu – ...mas, assim, já fodi meio vale ali escondido enquanto eles tavam ouvindo louvor no andar de baixo.
 
E aí estava, o deboche.
 
Achei graça. Senti que a gente podia se dar bem. Chegamos enfim ao quarto que ele ocuparia caso resolvesse se mudar pra lá e eu afastei a bagunça do Fernando com os pés para que pudéssemos entrar direito. Expliquei que aquele era ligeiramente maior que o meu, então o aluguel não seria dividido exatamente na metade. E que a maioria dos móveis ali iam sair – tudo o que o Fer não fosse levar, ele ia tentar vender, então não ia sobrar muita coisa. Nem mesmo a cama.
 
_Hum. E o seu amigo tem planos de voltar quando?
_Então, daqui uns meses, acho. Assim que ele arranjar um trampo e juntar uma grana, se estabilizar, aí ele vem de novo. Mas dá pra ir conversando... – cocei a nuca, já voltando pra sala – Quanto tempo cê acha que ia precisar aí?!
_Ah, meu... uns sete, oito meses. Tô tentando uma bolsa na gringa, a ideia é fazer uma parte do meu mestrado fora, mas isso deve rolar só lá pra julho, agosto... O que der pra eu ficar aí antes já ia ser perfeito. O apê de vocês é do caralho, meu... do lado da Augusta, porra! Animal.
 
Sorri e encostei contra o apoio do sofá, ainda meio em pé, cruzando os braços. Ele me parecia mesmo o tipo de cara que frequentava a Society – que, além de tudo, não era 500 metros dali do prédio –, senti que se mudaria imediatamente para o quarto do Fer se pudesse. Estava visivelmente animado. Achei que eu tinha que falar mais alguma coisa, não sei, mas a verdade é que eu não sabia muito bem como diabos entrevistar alguém para dividir um apartamento. Só tinha morado com o Fer desde que saí da casa dos meus pais.
 
_E... c-cê tem alguma pergunta? – o olhei, sem muitas ideias de como prosseguir.
_Não. Ou melhor... – o Du riu – ...só por precaução, quais as regras?
_Olha, não muitas – ri também – A gente divide as contas e dá uma faxinada a cada semana, quinze dias, sei lá. Eu passo a maior parte do tempo fora, então nem vou ficar muito aí. Quando venho geralmente tô trancada no quarto... E de resto é bem de boa. Traz quem cê quiser, faz o que quiser, tô pouco me fodendo. Só não comer ninguém na cozinha enquanto tô almoçando e não largar prato sujo por três dias na pia que tá tranquilo.
_Pode crer. E assim, é “legalizado”?
 
O encarei como quem diz “meu bem, olha pra minha cara de maconheira, né”.
 
Já gostei de você.

setembro 01, 2012

AM

_Bi... – eu ri, enchendo o seu rosto de beijo – ...acorda!
 
Já tinha me levantado há quase 40 minutos, tomado banho, feito café e a Clara continuava desmaiada entre os lençóis. Balancei os cabelos molhados, os bagunçando com a mão, para que respingasse na sua cara. Nada. Uma careta aqui, outra ali, e ela se afundou ainda mais no travesseiro, sonolenta. “A gente vai se atrasar”, cochichei então, subindo em cima dela. Mas nada feito.
 
Na noite anterior, acabamos fumando um baseado e nos enroscando no sofá, assistindo um filme qualquer na TV enquanto a sua gata passava inconvenientemente em frente à tela. Afundei-me nos seus braços e nos ajeitamos deitadas, levemente tortas, naquele pequeno espaço. Até que começamos a nos cutucar por baixo das nossas camisetas de dormir, como duas bobas, e a brincadeira virou uns amassos meio adolescentes – que logo se transformavam num passatempo um pouco mais adulto. Dessa vez com sucesso. E o que começou no sofá da sala, uma hora passou para o quarto. Lá pelas tantas da madrugada.
 
Agora eu lutava para tirar a Clara da cama. Quando finalmente consegui, não deu tempo nem de comer qualquer coisa – saímos correndo, atrasadas e rindo, derrubando o café pelo corredor do prédio e tropeçando nos nossos próprios passos para descer as escadas. Corri até a estação Sumaré e peguei o metrô lotado para a Brigadeiro. Assim que desci na Paulista, chequei um relógio eletrônico de rua e o visor já marcava 09:11. Ops, ligeiramente atrasada

Acendi um cigarro, apressada, e peguei o meu celular para enviar uma mensagem ao tal do Du, conforme descia a rua.“Oi, o gui me passou seu numero. Ce quer ir hj ver o apto? Pode ser umas 18?”, digitei. E ainda estava descendo na calçada da Brigadeiro quando ele me respondeu – “preciso ta na rodoviária as 5, passo o Natal c/ minha família no interior :/”, lamentou. Aquele era o último dia antes do recesso na produtora e eu tinha uma gravação para acompanhar até às 13 na Liberdade. “Pode ser dps do almoço? 14?”, perguntei a muito contragosto, já calculando o corre que ia ser sair do set para ir até em casa. “Sim, com ctz!”, piscou na minha tela, uns segundos depois.
 
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Passei o endereço e fiz como se fosse guardar o telefone de volta no bolso, mas, por algum motivo, mudei de ideia a poucos passos da entrada da produtora. E numa idiotice impulsiva, abri mais uma vez a caixa de mensagem. Vejam bem. Não foi planejado, foi... n-não sei o que foi. Foi um “pensei em vc do nd ontem, meu, na hr mais nd a ver... rs”, escrito meio sem pensar para a Mia, conforme dava um último trago no cigarro. Apertei o “enviar” antes que pudesse me dar conta do que estava fazendo. E na mesma hora, senti um revirar leve no estômago.
 
Não queria passar a impressão errada, nem desencadear nada. Mas, não sei, me senti tomada por uma vontade boba de lhe mandar algo. De falar com ela. Pra quê?, me incomodei comigo mesma.