maio 31, 2010

Ah, se vou...

“When I was tired of looking around, oh yeah, I found her”, os músicos aceleraram o ritmo do show. Puxei a Mia na minha direção, pegando-a pela cintura, e grudei o meu rosto momentaneamente no seu. E aí no auge da minha pretensão, competindo com as caixas de som, disse em seu ouvido:
 
_Essa é a nossa música...
 
Ela sorriu para mim, confusa. E eu fiz graça, olhando-a de perto enquanto cantava, sorrindo de volta – “she was really one of a kind, I know that so”, a música prosseguiu e eu continuei com as mãos ao redor dela, numa serenata alcoolizada. A minha memória tentava acompanhar as palavras, num charme descompassado na direção da Mia, que ria com cada frase que saía da minha boca. Whenever that old foolish heart of mine was by that little girl, time would stop and kindly give us the way”.
 
_Ficou romântica, é? – ela perguntou no meu ouvido, me zombando – Tem certeza de que é para mim?
 
Revirei os olhos e fiz um gesto para que ela escutasse, rindo, sabendo o que estava por vir. “Well, nothing in my life happens like in the movies”, continuei, fazendo com que prestasse atenção no que eu dizia. E junto com o cantor, expliquei: “she had another guy that loved her just the same”. A Mia começou a rir na mesma hora.
 
_Agora, sim, parece a nossa música! – ela brincou.
 
Dei de ombros e ri, colocando o braço ao redor da sua cintura. Rodei com ela no meio de toda aquela gente. Enquanto confessava: “No, I don’t really like to spoil nobody’s marriage”, cantei, “but I’m caught in the scent that something here is just not right”. A Mia ria, indignada, conforme eu discordava abertamente do seu relacionamento com o meu melhor amigo, na maior cara de pau. “C’mon, woman! I’m the one who’s gonna do you good”, pisquei na sua direção, fazendo graça. E o álcool me convencia de que aquela ceninha ia dar certo.
 
A Mia ria. “I will have no peace until you’re mine”, puxei ela ainda mais perto de mim e ela balançou a cabeça, desacreditada. Enquanto isso, no palco, o Peixoto e o Maxado continuavam animados. A pista inteira balançava de um lado para o outro, conforme eles repetiam a mesma frase – “until you’re mine, until you’re mine, until you’re mine”.
 
Senti que poderia beijá-la naquele momento. Bem ali. E mesmo que todos os olhos fossem se voltar a nós, de repente tinha a impressão de que a Mia não se incomodaria. Mas segurei a sua mão e a virei, abraçando-a pelas costas, possivelmente com mais carinho do que queria demonstrar. Aquela era a primeira vez que nós dançávamos juntas assim e eu estava adorando cada segundo. Completamente bêbada e apaixonada. Movi seu cabelo para frente do ombro, sem pensar muito, e em segredo encostei na sua nuca – num beijo escondido.
 
“I’ll do... I’ll do you. I’ll do... I’ll do you. I’ll do... I’ll do you. I’ll do... I’ll do you good.”
 
Tão logo a música acabou, a Mia se virou e apoiou os braços sobre os meus ombros, me olhando por um instante. E entre toda aquela gente, me beijou mais uma vez.

Recatadas

Voltamos para o bar pelo mesmo lugar que entramos – por baixo da fita amarela. Agora nos sentíamos um pouco mais dignas de estar ali, isto é, na cena do crime. Andei na frente dela, segurando-a atrás de mim pela mão, e fui direto para o bar no lado de dentro. Todo aquele ar fresco do Itaim havia nos deixado ligeiramente mais sóbrias. E isso era inaceitável. Peguei o menu de bebidas e comecei a passar o olho.
 
Nada de tequila, pensei. E por sorte, a Mia concordou no segundo seguinte.
 
Não dissemos nada, apenas nos olhamos e rimos, conforme o nome da diaba apareceu na lista. Preciso de um whisky, concluí. E o meu desejo foi rapidamente concedido, após anotarem uma taxa salgada na minha comanda. Tomei coragem e virei meu copo de Jameson assim que ele chegou, enquanto a Mia colocava aquela boca maravilhosa ao redor de um shot adocicado de B52. No palco, a banda ia a toda velocidade e a pista de dança a acompanhava enlouquecida. Naquele ska gostoso, eita.
 
Coloquei o copo de volta no balcão e fui em direção à multidão, me enfiando no meio das pessoas e arrastando a Mia para dançar comigo. A ausência de espaço daquele bar lotado e a minha falta de vergonha na cara alcoólica nos empurravam para perto uma da outra. Por outro lado, toda aquela heterossexualidade ao nosso redor quebrava um pouco o clima – para a Mia, digo. Eu tava pouco me fodendo. Mas, graças àquela plateia toda, eu não estava conseguindo mais beijo nenhum. Esses tinham ficado do lado de fora do bar, lá em cima do carro.
 
Droga.
 
Ao final da terceira ou quarta música que dançamos juntas, a minha cabeça já estava rodando. Com a movimentação, sim, e toda tequila whisky não sei nem mais o quê dentro de mim. A Mia sorria, abraçada no meu pescoço, e deixava a cabeça cair para trás ao som dos amplificadores. Fechando os olhos lentamente. Eu achava graça. Ela subia o corpo de novo e me olhava, completamente na minha. E tudo o que eu queria, naquele instante, era mais. Mais dela. Mais de tudo. A noite inteira.
 
E sabe como é, se todo o charme e tequila do mundo não for suficiente, um pouco de Peixoto & Maxado resolve o problema.

maio 27, 2010

Gracinha, gracinha

Dei uns passos para trás, encostando num carro que estava na rua. Nuns beijos que, cacete. Joguei o cigarro no chão e coloquei uma mão de cada lado do seu rosto, segurando-a, com os pés espaçados na calçada e as minhas costas apoiadas no vidro da porta. A Mia se encaixava no meio das minhas pernas, abraçada contra o meu corpo. E aí perdemos a noção do tempo – envolvidas demais, uma na outra, para sequer reparar se mais alguém passava pela calçada.
 
Ficamos ali pelo que pareceu mais de uma hora. E a cada beijo, eu sentia mais, e mais, o peso da Mia em mim – o seu quadril fazia pressão entre as minhas pernas e as linhas do meu jeans já começavam a marcar a parte de dentro das suas coxas. Caralho.
 
_Por que a gente não fez isso desde o começo? – a Mia comentou, sem fôlego, me beijando logo em seguida.
_Não sei... – respondi, sincera – ...era só o que eu queria, puta merda.
 
A Mia riu. Já estávamos ali há tempo suficiente para o meu amigo achar que eu tinha largado ele no rolê e ido embora sem avisar. Ela me olhou e achou graça:
 
_Cê tava querendo isso desde que a gente chegou, né, pilantra?
_Querendo o quê? Você?! – segurei firme a sua cintura, numa honestidade bêbada, falando mais do que devia – Eu te quero o tempo todo, garota.
_“O tempo todo”? – ela repetiu, rindo.
_É, desde sempre.
 
Mal terminei de falar e a Mia me beijou de novo. Eu a virei contra o carro, sem tirar a boca da sua, invertendo nossas posições e ficando na sua frente. Coloquei uma das pernas entre as suas coxas, a agarrando pela cintura. E cada vez mais apoiando o meu peso contra o seu corpo – nuns movimentos assim que, puta que pariu. Ela me puxava na sua direção. Até que eu não conseguia pensar em outra coisa a não ser comer ela ali mesmo. “Cacete”, deixei escapar, baixinho, e a Mia sorriu. “Quê?”. “Vou enlouquecer assim, meu”, sussurrei de volta. E ela me beijou, me puxando ainda mais contra ela, apoiada na lateral do carro.
 
Podia sentir os seus dedos arranhando o meu antebraço. Desci a mão pela sua bunda – aquela raba maravilhosa – e a apertei, a Mia estava usando um vestido curtíssimo. Talvez o mais curto que já tinha visto na vida. E toda vez que aquele maldito pano acabava, com a minha mão a meio centímetro de onde as suas pernas começavam, a minha pressão subia. Na mesma hora. E eu tinha que voltar a mão para sua cintura para não perder a cabeça. Em público demais para eu arrancar aquela desgraça.
 
_Cê tá ficando abusada, hein? – a Mia sussurrou para mim, numa dessas.
 
Ah, claro, “eu” – pensei. Como se nunca tivesse testemunhado você sentada no colo do Fernando, se agarrando com ele no meio duma sarjeta lotada, em plena Augusta, com todo mundo olhando, achei graça, mas tá bom, “eu”.
 
_Desculpa... – tirei as mãos de cima baixo dela, ofegante – Tá difícil aqui.
_Tá? – a Mia se divertia e me beijava mais uma vez, me torturando.
_Nossa. Pra caralho... – confessei, baixinho.
_Hum...
_Mas... – dei uma olhada para as suas coxas, respirando fundo, sem confiar por um segundo no que estava prestes a prometer – ...e-eu vou me comportar.
_É?
_É.
_Hum... – a Mia murmurou no meu ouvido, subindo a mão por debaixo da minha camiseta – Mas e as minhas aulas?
 
Para, desgraça.
 
Aquela garota ia me matar. Olhei para ela e ela riu – “não faz isso, Mia”. “O quê?”, ela me olhava de volta, com desaforo e um sorriso no canto da boca.
 
_Ah, é? – falei, colocando as duas mãos atrás das suas pernas e a pegando no colo – Quer brincar? Então vamos.
 
Dei dois passos para o lado e a coloquei sobre o capô do carro, praticamente deitada em cima dela. A Mia segurou o meu rosto e me beijou na mesma hora, com força. Desci a língua pelo seu pescoço e lambi mordi beijei a curva para o seu ombro. Então ela me puxou pelo jeans, com metade da mão dobrado para dentro da minha calça – por cima do botão da frente, é. Me segurando ali entre as suas coxas. Puta merda. Subi a boca até a sua e fui descendo as mãos pelas suas pernas até a barra daquele vestido nulo. Então deslizei os dedos pela lateral da sua calcinha e comecei a tirá-la, meio de qualquer jeito. Nuns beijos gostosos.
 
_Não... – ela segurou a minha mão, de repente, entre um beijo e outro – ...aqui não.
_Hum... – eu ri, com a boca ainda na sua e a calcinha entre os meus dedos, subindo-a de volta pelas suas pernas – ...achei que você queria umas aulas.
_E-eu... – ela me puxou na sua direção, de novo – ...ainda quero.
_É? – falei baixinho – Então posso tirar?
 
A Mia parou de me beijar e me olhou indignada, achando graça.
 
_Você não vale nada... – riu – ...meu deus.
_Eu?! – argumentei, rindo também, com as mãos ainda nas suas coxas – Você que começou... Cê não tava falando aí que queria umas aulas... – deslizei os dedos para debaixo do seu vestido – Vou te dar umas aulas, então.
_Não! – ela riu.
_Ah, não disse?!
_Era brincadeira!
_Era? – me fiz de indignada, segurando o riso, e tirei as mãos dela – Vai ficar brincando com os meus sentimentos, então. É isso?
_E os seus sentimentos ficam na sua calça, por acaso?
_Vai à merda...
 
Eu ri e me virei, apoiando o corpo contra o carro, ainda em pé na calçada. “Vem cá! Vem...”, a Mia sorriu e deslizou no capô, me abraçando por trás, com uma perna de cada lado do meu quadril e os braços por cima dos meus ombros.
 
_Eu não... – dei de ombros, fazendo graça.
 
Mas comecei a rir. Então ela me puxou para trás, me beijando sobre o capô.

maio 25, 2010

Inside + Out

I'm the girl
Who loves you inside and out
Backwards and forwards
With my heart hanging out
I love no other way

(Feist)

Itaim Bibi

_PORRA, QUE MALA, MEU!
 
Viramos a esquina e a Mia riu, aliviada, se metendo noite afora comigo pelas ruas do Itaim. Colocou o braço sobre o meu ombro e pôs todo peso em cima de mim, caminhando completamente bêbada. Satisfeita com o escracho que demos no cara. A gente ria e se olhava – caralho. Que mulher. Nem eu conseguia explicar o tesão que me dava ver a Mia entrar numa treta daquelas comigo e calar a boca do cara. Que se dane. Poucas coisas superavam aquilo.
 
Quase não tinha pessoas naquela ruazinha do Itaim. Assim que passamos por elas, peguei a Mia pela cintura e a encostei contra o muro de um prédio qualquer. Ela sorriu, me puxando também para perto dela. E nos beijamos. Num desses beijos impulsivos, ainda tomadas pela adrenalina da discussão no bar. “Cê acha que ele vai vir atrás da gente?”, a Mia cochichava. E a gente ria, entre um beijo e outro – “não”.
 
Apoiei uma das mãos no muro e coloquei a outra em volta da cintura dela, descendo com a boca pela sua orelha até o seu pescoço. E de repente, a Mia se ergueu em pé e tocou o meu ombro, como se indicasse para eu parar. Merda. Olhei para o lado na mesma hora, com a certeza de que era o idiota de novo, mas não tinha ninguém ali – só uma senhora na calçada oposta. Por que paramos então? Olhei para a Mia e ela tinha o olhar fixo na velhinha. Em cada passo que ela dava. Só então me dei conta de que o problema era ela. Achei graça.
 
Essa é a minha vida agora, pensei com certa ironia, tretando com marmanjo e me escondendo de velhinhas.
 
Comecei a rir. A Mia acompanhava cada metro andado, com as mãos bem longe de mim. Ficamos ali paradas, em pé, em silêncio. Tirei o maço do bolso e me apoiei no muro, ao lado da Mia, esperando a senhora passar. Ela caminhava vagarosamente do outro lado da rua, já quase de costas para nós. Acendi um cigarro, me divertindo com a situação. “Quê?”, a Mia perguntou. E eu sorri para ela, “nada”. A Mia pegou o cigarro da minha mão então e deu um trago, cruzando os braços em frente ao corpo – aí resmungou, “aquele babaca ainda me fez perder metade dum cigarro no meio da treta”. “Escroto demais”. “É”. “Cuzão”. “Desgraçado”. “Cretino”. Nos olhamos, entre um xingamento e outro, e rimos.
 
Com a senhorinha a uma certa distância e já fora de perigo, a Mia ficou em frente a mim na calçada:
 
_Então, me conta... – ela pediu, então, colocando os braços de volta ao redor do meu pescoço – ...qual foi a pior briga que cê já entrou?
_A pior? – eu ri.
 
Balancei a cabeça, achando graça na pergunta, dei um trago e coloquei as mãos na cintura dela.
 
_Não sei... – hesitei, sem muita certeza do quanto queria que ela soubesse – ...acho que só quando eu era mais nova. Mas já tretei com muito cara folgado que nem esse aí do bar. Uma vez dei um soco num, lá na Bubu...
_Sério? – a Mia sorriu, como se não valesse um centavo, se divertindo com aquilo – Mas o que rolou?
_Ah, eu tava muito bêbada. Foi uns anos atrás. Tava pegando uma mina e ele tentou entrar no meio, umas duas ou três vezes. Eu empurrava toda vez que ele vinha pra cima, aí a gente continuava se beijando, mas uma hora perdi a paciência...
_Mano... – revirou os olhos – Esses caras são muito nojentos.
_São. Num tenho saco para macho bêbado assim.
 
Ou sóbrio, aliás.
 
_Mas e você... Nunca tomou um?
_Um o quê? – achei graça, abraçada com ela ali, apoiada no muro – Um soco?
_É.
_Não. Soco, não...  – ri – Já levei tapa.
_Hum. Sei bem que tipo de tapa cê levou...
_Desses também – achei graça, tragando mais uma vez.
_É?
_Ah, meu... – respondi, sem completar a frase, com vontade de beijar ela de novo.
_Mas, espera – ela pareceu curiosa – Dos ruins também?
_Ah, já – ri, arqueando as sobrancelhas – A Dani mesmo já me virou um uma vez. Saindo dum rolê lá em Campinas, a Kraft. Eu e ela já entramos numas brigas bem feias...
_A DANI? A QUE TAVA AÍ?!
_É. Mas faz tempo isso...
_É SÉRIO ISSO?
_Sim, meu, ela tava muito louca no dia...
_Mas, mano, POR QUE ELA TE DEU UM TAPA?!
_Não... – eu ri – ...deixa quieto, eu não vou te contar essa história.
_ME CONTA!
_Não... – me soltei dos braços dela e comecei a andar, querendo mudar de assunto – ...vem, vamos mais para lá.
_NÃO! ME CONTA!
_Sem chance – eu ri, parando na esquina e colocando o cigarro na boca – Por que só eu tô me humilhando aqui?
_Só me conta! – a Mia riu também – E volta aqui, meu, cê não sabe nem onde tá indo...
_Sei, sim.
 
Atravessei a rua e a Mia apertou o passo atrás de mim, me alcançando com um abraço pelas costas. Apoiou o queixo sobre o meu ombro, ainda rindo:
 
_A gente vai se perder, sua louca!
_Claro que não! – tirei o cigarro da boca e respondi, ofendida – Eu sei onde a gente tá. Tem um bar sapatão a umas duas ou três quadras para lá.
_Sei...
_Tem, mano! Cê acha que eu tô inventando? – eu ri – O Vermont. É aqui pertinho.
_Nunca ouvi falar.
_Olha, não sei como, porque... Só vai umas minas cheias da grana... – a provoquei, tragando e soltando a fumaça para cima – ...tipo você.
_Vai se foder!
_Quê?! Eu curto umas princesinhas... – fiz graça.
 
A Mia revirou os olhos, indignada. Tentei trazê-la para perto de mim, enquanto ela se desvencilhava das minhas mãos e atravessava a rua de volta, na direção do bar, me mandando à merda. Corri para alcançá-la na outra quadra. Ela já estava a uns cinco metros do limite da calçada, quando a segurei pela mão. “Vem cá, meu!”. “Não”. Virei o seu corpo e o puxei na direção do meu, colocando os meus braços ao redor da sua cintura, tomando cuidado para não queimá-la com o cigarro. “Idiota!”, ela riu, me xingando. Tentei segurá-la para que não se soltasse e quase caímos no chão, bêbadas. Nós duas não conseguíamos parar de rir. Ou de tropeçar.
 
_Retire o que disse! – ordenou.
_Não falei por mal, e-eu disse que gost...
_RETIRE O QUE DISSE!
_Ok, ok. Você não é cheia da grana... – tentei segurar o riso – ...e nem princesinha, tá. Feliz?
_Babaca...
_Ah, é! – dei de ombros – E também não mora com os pais num prédio imenso de um apartamento por andar em Higienópolis...
_Vai à merda!
 
Ela se indignou, de novo. Eu ri mais ainda e ela me empurrou para trás, se soltando dos meus braços, se virando novamente para ir embora. Pôs-se a andar, reclamando bêbada da “impressão errada que eu tinha dela” e o caralho a quatro, do quanto eu achava que ela “era uma fresca”, mas não chegou a dar nem dez passos adiante. Eu a segurei, de novo, pela mão e a puxei mais uma vez na minha direção. Dessa vez, mais apertada ainda nos meus braços:
 
_Cê é besta, meu? – eu a abracei e a olhei, com seriedade – Eu te acho maravilhosa, garota.
 
As palavras mal tinham saído da minha boca e ela me beijou.

maio 24, 2010

O pasto

Desde que a porra da Lei Anti-Fumo foi aprovada, a cidade de São Paulo tinha entrado em estado de sítio. Os fumantes viraram uns terroristas em potencial, perdendo seus direitos para o Estado – o que não me incomodava tanto, afinal, sempre curti uma ilegalidade. Dou qualquer desculpa para desafiar o sistema e aquela era só mais uma oportunidade de quebrar as regras. Mas, porra, puta que pariu, esses cercadinhos de vaca são foda.
 
Sair da balada para fumar numa área protegida por grades me fazia sentir a escória da humanidade. Pior ainda é quando o estabelecimento resolve economizar uns trocados e restringir nossos metros quadrados com aquelas fitas listradas de amarelo e preto. Me sentia uma merda duma assassina. Assassina serial de tabaco.
 
O bar onde estávamos naquela noite era adepto do estilo homicídio-ao-ar-livre. Em meio à cena do crime, dividindo a calçada com outras vinte pessoas que se espremiam no perímetro demarcado pela fita, estávamos eu, a Mia e o babaca. Mais babaca do que nunca, aliás. E conforme o tempo passava, a babaquice só piorava. Todo assunto que a gente começava era interrompido por aqueles 1,80m de pura preguiça e vergonha alheia. E que sequer fumando estava. Mas isso não o impediu de se aproximar da Mia, praticamente babando, e soltar a seguinte frase:
 
_Acho sexy demais ver mulher fumando...
 
Jesus, eu revirei os olhos.
 
_É? – a Mia tirou o cigarro lentamente do meio dos seus lábios e olhou na minha direção – Eu também.
_Pô, me vê um aí – o idiota me cutucou com as costas da mão, pedindo um cigarro.
 
Mas é muita audácia mesmo, eu pensei, enquanto negava o pedido mais absurdo da noite. Nem a pau. Ele a cercava como um abutre.
 
_Hm, e esse “Mia”... É o quê? – ele continuou, falando arrastado de tão bêbado – Inglês? Russo?
_Italiano – ela respondeu, impaciente.
_“Mamma Mia!” – ele brincou, num xaveco cafona.
 
Nós duas reviramos os olhos imediatamente. E ele continuou:
 
_Quer dizer “minha”, não é?
_Não “sua”... – a Mia comentou baixinho, levantando as sobrancelhas ironicamente.
 
Eu comecei a rir.
 
_É, colega, acho que tá na hora de você ir arranjar aquele cigarro com outra pessoa... – aconselhei, já de saco cheio da presença desagradável dele ali – ...vai, já deu.
_Do que cê tá falando?
_Só vaza, meu.
_Por quê? – ele perguntou, se virando para a Mia – Você tem namorado? 
 
Claro. O imbecil não podia ter feito uma pergunta mais desconfortável. Merda. Já não basta os caras respeitarem mais um namorado do que um “não” das minas, ele ainda tinha que tocar justo no assunto que nós tentamos evitar a noite inteira. Olhei para a Mia e ela abaixou a cabeça, desviando o olhar, sem saber o que responder na minha frente. Droga. Droga, droga. Eu precisava fazer alguma coisa antes que a situação ficasse pior ainda.
 
_Amigo, vem... – coloquei o braço nas costas do mano e o virei para a direção oposta, tentando tirá-lo de lá – ...vai dar uma volta.
 
Ele se soltou e virou, visivelmente incomodado com a minha intervenção, resmungando um “tô bem aqui”. Ah pronto, o idiota vai insistir. Aí se voltou de novo para a Mia, daquele jeito sem limites que os caras ficam quando ouvem um “não”, falando ofendido.
 
_Vai, tamo pedindo numa boa...
_Tô conversando aqui com ela – reclamou na minha direção – Dá licença!
_Colega, só vaza, não vai rolar...
_Desculpa, cara – retrucou, ofendido de repente – Mas quem tem que me falar se está interessada ou não é ela!!
_Eu não tô – a Mia disse, na mesma hora.
_Pronto. Aí sua resposta! Agora vaza.
_Espera – ele riu, alcoolizado, indignado com a Mia – Cê tá falando sério?!
_Cara, sim, sério...  Tamo querendo fumar em paz desde que viemos aqui pra fora.
_Mas a gente tava trocando ideia até agora! – ele pegou no braço dela, como se ela devesse algo para ele.
_Me solta! – a Mia puxou o braço de volta e senti a situação começar a sair do controle.
_Que foi?! Hein?! – riu do desconforto dela – A gente tá só se divertindo...
 
A Mia virou levemente o corpo, constrangida, tentando evitar o cara. E ele se aproximou ainda mais dela.
 
_Nem um beijo? – insistiu, bêbado, pegando no cabelo dela – Só um e eu vou embora...
_Meu, NÃO!
_Não? Hum. Você é muito bonita, sabia...
_Mano – me enfiei no meio, tirando a mão dele de cima dela – Cê não tá escutando? ELA NÃO QUER!
_Velho, qual é, NÃO SE METE! – ele se irritou comigo – TÔ FALANDO COM ELA, NÃO COM VOCÊ!
_MAS ELA NÃO QUER FALAR COM VOCÊ, PORRA. JÁ DISSE TRÊS VEZES QUE NÃO!
_Mia... – ele tentou pegar na mão dela e ela se desvencilhou – Mia, fala para sua amiga que tamo numa boa...
_Deixa ela em paz, cara! CHEGA!
_CHEGA O QUÊ?! – ele levantou a voz, puto, vindo para cima de mim – VOCÊ QUE TÁ CAUSANDO!
_EU?! – gritei de volta – CARALHO, É TÃO DIFÍCIL ASSIM? A MINA NÃO TÁ AFIM, PORRA, SÓ VIRA AS COSTAS E VAZA! 
_E QUÊ QUE CÊ TEM A VER COM ISSO?!
_ELA VEIO COMIGO, BABACA!
_E DAÍ, PORRA?!
_JESUS! – suspirei, irritada – DEIXA EU VER SE FICA CLARO ASSIM: “COMIGO” NO SENTIDO CÁSSIA ELLER DA COISA, ENTENDEU? NÃO?! – expliquei e ele me olhou, confuso – COLAR O VELCRO, COLEGA, LAMBER CARPETE, SABE? RACHAR A BOLACHA COM A AMIGA, IR NA SAPATARIA, ABRIR O CLUBE DA LULUZINHA, FANCHA, ENTENDIDA... SAPATÃO.
_Não. Não mesmo – ele debochou – NEM A PAU.
 
Céus.
 
_Cês tão tirando com a minha cara... – ele negou, balançando a cabeça.
_Não. AGORA VAZA!
_SE CÊS TÃO JUNTA MESMO, ENTÃO DÁ UM BEIJO AÍ PARA EU VER!
 
E lá estavam elas, as palavras que nenhuma sapatão aguenta mais ouvir. O beija-aí-então é o ápice da escrotice masculina. Argh. Aquele misto deplorável de desrespeito, como se a sua sexualidade precisasse ser provada para ser levada a sério – e dá vontade de fazer só para esfregar na cara –, com o asco de saber que qualquer beijo que você der só vai alimentar uma fantasia punheteira adolescente de ver duas minas se pegando. Me recuso a dar prazer para esse idiota.
 
Antes que eu pudesse retrucar, todavia, a Mia entrou furiosa na discussão:
 
_DÁ O QUÊ?! – se intrometeu, indignada – O QUE VOCÊ FALOU??
_DÁ UM BEIJO AÍ!
_TENHO UMA IDEIA MELHOR, POR QUE EU NÃO TE DOU MEU DEDO?? – levantou o dedo do meio na cara dele – E VOCÊ ENFIA NO SEU CU!!! QUEM VOCÊ PENSA QUE É? CÊ ACHA QUE A GENTE TÁ AQUI PRA SUA DIVERSÃO?!
_TIRA A MÃO DA MINHA CARA!
 
Ele a empurrou e, na mesma hora, eu o empurrei de volta. Um cara que estava ali do lado segurou o idiota antes que ele viesse para cima de mim. A confusão começou a ficar cada vez mais barulhenta, podia ouvir a Mia gritando com o mano por cima do meu ombro, eu o xingava aos berros, as pessoas foram se metendo no meio e os seguranças da porta começaram a cortar caminho pela aglomeração da área de fumantes para chegar onde estávamos. Vai dar merda. Olhei para a Mia, no meio do caos, e a peguei pela mão:
 
_Vamos dar uma volta, eu e você... – eu disse, levantando a fita ilegalmente.
 
Demos as costas sem pensar duas vezes, largando o babaca entre outros fumantes desconhecidos, que se meteram na briga, e saímos em direção à rua. Não demos nem três passos na calçada e a Mia soltou a minha mão, virando-se de novo para o cara ainda na área cercada. E berrou:
 
_APRENDE A RESPEITAR AS MINAS, SEU ARROMBADO!

maio 23, 2010

Mojo

Os primeiros shots foram fáceis. Sal. José. Limão. Colocamos nossos copos vazios de volta no bar e nos olhamos, a Mia arqueou a sobrancelha na minha direção. I m p r e s t á v e l. Os segundos vieram logo em seguida num impulso irracional – e corajoso – dela. E eu me obriguei a acompanhar. Para não ficar feio, né. Já os terceiros foram sugeridos intimados pelo Gabriel uns quarenta minutos depois, um pouco antes da banda entrar no palco. Eu e a Mia combinamos de dividir o copo, já consideravelmente bêbadas. O nosso plano, todavia, acabou sendo descoberto e o grupo inteiro reclamou da nossa covardia. Merda.
 
_Que se dane, vamos lá... – eu respirei fundo e virei tudo de uma vez.
 
E essas foram as minhas últimas palavras sãs da noite. O que se seguiu foi uma gritaria crescente, competindo com os músicos, Peixoto & Maxado, naquela zona caótica dos bares paulistanos. Entre as cinco ou seis conversas paralelas que rolavam simultaneamente, indo e vindo de um lado para o outro nas rodinhas, me mantive constantemente virada para a Mia – ocupada em entretê-la com as minhas histórias e o meu papo furado. Ela ria.
 
Está funcionando, surpreendentemente.
 
Ou estaria, não fosse pelo babaca parado do outro lado dela. Um idiota que insistia em puxar assunto com a Mia, todo interessado. Homens e a sua ausência completa de noção. Argh. Porra, não tá vendo que ela veio comigo? Odeio quando pressupõem amizade entre duas minas – ou pior, ignoram e tratam nossa sexualidade como se fosse isca para macho. Aquilo me tirava do sério. Eu só queria que ele vazasse.
 
A atenção da Mia, todavia, continuava em mim. Ignorando as investidas dele, os seus olhos buscavam os meus em meio àquele caos. E ela se movia perigosamente, perto demais, porra. Cada vez mais ao alcance das minhas mãos. E da minha boca. Eu podia quase sentir o seu gosto, mas queria fazer aquilo direito. Eu tinha que fazer direito. Não sabia quando ia ter outra chance de estar sozinha assim com ela. E eu não queria só a sua boca, o seu gosto – eu queria mesmo era entrar na sua cabeça, no seu coração. Entrar e ficar, sabe? E isso não era tão simples.
 
Mas aquele inconveniente estava me empatando. Mesmo que sem muito sucesso, ainda era um saco. Não entendo essa incapacidade biológica dos homens de notar quando as minas simplesmente não tão afim. Toda a linguagem corporal da Mia o ignorava. O seu corpo estava inteiro voltado para mim. Os seus olhos desviavam toda vez que ele abria a boca. E ela o fuzilava mentalmente nas poucas vezes em que ele a tocava para falar algo. Mas o trouxa continuava lá, inabalado, se achando a pica das galáxias. Chega. Não estava com saco para aceitar muito mais daquilo. E como já estava no pique de tirar a Mia dali sair para fumar, sugeri que fôssemos dar uma volta sozinhas lá fora.
 
(...)
 
Pois é, o imbecil não captou a parte do “sozinhas”.

maio 22, 2010

Conspirando

Quadrados, comprimidos e amarrotados – mas chegamos.
 
Até que enfim. Nós quatro do banco trás não víamos a hora de sair logo do carro. Desesperados por um pouquinho de ar e espaço, descemos atrapalhadamente, um atrás do outro. O ar nós conseguimos assim que saímos, aleluia, mas não demorou muito para notarmos que o espaço deixaria muito a desejar: o bar estava lotado.
 
Inferno.
 
Destemidos, os garotos e a namorada praticamente muda do meu amigo seguiram em direção à porta, dispostos a enfrentar a muvuca do show. Eu, por minha vez, não estava lá muito animada em perder todo espaço e ar conquistados nos últimos minutos. A Mia hesitou em meio à calçada, meio perdida. Parecia não saber direito como agir naquela situação – e mal olhava na minha direção, de tão nervosa. Eu também estava, pra cacete, mas certamente já tinha tido mais encontros com garotas do que ela. Antes que entrasse, a segurei pela mão:
 
_Vamos ficar aqui fora um pouco?
 
Ela me olhou e a puxei pela mão, caminhando até a lateral do bar. A poucos metros da entrada, encostei na parede e me curvei, na tentativa de acender um baseado contra o vento. Quando finalmente consegui fazer a brasa pegar, levantei o rosto e olhei para ela. Ali, em pé, parada na minha frente. O vento cortava os nossos braços, ambas se encarando em silêncio. A Mia ensaiou um sorriso para mim, meio desconfortável. No que diabos estamos nos metendo? De repente, aquilo parecia real demais. E eu tentava não pensar no Fer – mas, é, era foda.
 
Respirei fundo. E fiquei observando o seu rosto a meio metro de distância do meu. A Mia tinha uma pintinha minúscula no canto do olho – logo acima da curva formada pelas maçãs do rosto, bem ali, pequenininha. Podia te olhar a noite toda, garota. Aquela proximidade me dava vontade de beijá-la. Isso e a ideia de que estava indo longe demais com a namorada do meu melhor amigo criavam sentimentos contraditórios em mim e o meu estômago embrulhava.
 
Desviei o olhar para o chão, sem querer me precipitar. Aquele seria um beijo público demais para lhe pedir. Traguei mais uma vez. E assim que abaixei a mão novamente, perto da parede, senti a dela encostando na minha e casualmente me roubando o baseado. Levantei o olhar na sua direção mais uma vez. E sem saber bem por que, tomadas por um nervosismo bobo, nós duas meio rimos.
 
A Mia apoiou então na parede ao meu lado, tragando duas ou três vezes. Ombro a ombro comigo. O silêncio já começava a me incomodar – mal tínhamos nos falado desde que saímos de Higienópolis. Diz qualquer coisa. É a Mia, porra, eu tentava me acalmar, a gente se fala todo dia naquela droga daquele apartamento. Não entendia por que de repente era tão difícil abrir a boca. Toda a aglomeração de pessoas se concentrava na porta do bar e quase não passava ninguém ali, onde paramos para fumar escondidas, numa ruazinha lateral e mal iluminada do Itaim. A fumaça saía da boca da Mia e desenhava curvas espessas no ar frio.
 
Isso é ridículo, me irritei comigo mesma, a gente sempre falou de tudo. Só diz qualquer coisa. E assim que ela me passou de volta o baseado, arqueei a sobrancelha e comentei:
 
_Hmm... E o Florian semana passada, hein?
 
Não, eu não sabia quem era Florian. Obviamente. Eu não fazia ideia. Duas horas antes, na maior cara de pau, joguei “UFC” e “lutas recentes” no Google para descobrir. E a Mia mordeu a isca – o clima mudou na mesma hora. Ela desembestou a falar sobre cada round e senti como se estivéssemos sentadas no sofá, em casa, numa tarde qualquer. Todo nervosismo sumiu. Ouvi ela descrever todos os movimentos e golpes deferidos com a mesma emoção que fãs de futebol discutem as partidas e suas minúcias. Praticamente num monólogo. E enquanto isso, eu dava mais uma bola quieta na minha, achando graça.
 
Após alguns minutos e sem ouvir uma só opinião sair da minha boca, a Mia parou de repente de falar:
 
_Você não viu a luta, né? – se deu conta.
_Não.
 
Sequer consegui conter o riso. Lá estava ela, aquela deusa, gastando um tempo considerável no meio da rua, tagarelando sobre um embate que eu não havia visto, com dois caras que eu desconhecia por completo, numa competição que eu mal fazia ideia do que se tratava. Desculpa, gata. A Mia me olhou como se ela fosse a única pessoa numa partida de porco ainda segurando as cartas, sabe, quando todo mundo já abaixou as suas na mesa.
 
_Você é ridícula, sabia? – ela riu.
_Ih, cê não viu nada ainda. Espera só até a gente entrar e tomar umas... – pisquei na sua direção – Vou te contar tudo o que eu aprendi hoje sobre o “The Terror”, “El Conquistador”, “O Aranha”, a internet é uma maravilha.
_Meu deus! – ela revirou os olhos, indignada.
 
A Mia me olhou por um segundo e balançou a cabeça, achando graça, como se não acreditasse na minha honestidade. Pegou mais uma vez o baseado da minha mão e se virou na minha direção, encostando a cabeça na parede.
 
_Cê gosta de tirar uma com a minha cara, né...
_Olha... – justifiquei – ...até gosto, mas também acho essa a coisa mais sapatão que tem em você. Então sou 100% a favor.
_Mais sapatão do que estar aqui com você?
_Não – eu ri.
_Hum... – a Mia sorriu e falou baixinho, se aproximando do meu ouvido – ...mais do que o que gente fez lá em casa, aquele dia?
 
Puta merda. Não fala isso, garota.
 
Antes que eu pudesse reagir – e digo, eu teria beijado ela contra aquela parede na hora –, a Mia riu e colocou o braço ao redor dos meus ombros, me olhando como se eu não prestasse um centavo. E eu não prestava nem meio.
 
_Vem, vamos entrar... – ela riu.

maio 18, 2010

A agonia dos sem carro

Quinta-feira à noite e o menor ponteiro do relógio da cozinha escorregava vagarosamente para o número 10. Eu o encarava, impaciente, abrindo o quarto maço desde segunda com as mãos ansiosas. Vestia a minha melhor regata-caminhão preta por cima de um skinny jeans surrado que beirava a piranhagem sapatão. Um par de All Stars, os braços e as tatuagens de fora. E o cabelo bagunçado, naquele desbotado-grunge feito em casa de qualquer jeito e com as raízes aparecendo, o de sempre.
 
Pronto.
 
Na verdade, eu estava “pronta” já há quase vinte minutos. Cadê a porra do Gabriel, mano?, eu apoiava os cotovelos na mesa e tragava o cigarro, olhando para o relógio na parede. O combinado era que ele passaria com o carro para me pegar às 21:45 e eu, que nunca fui pontual, estava milagrosamente a postos antes disso. Agora esperava ansiosamente pela minha carona, a um minuto de distância de um enfarte.
 
O apartamento estava vazio e silencioso. E era bom que estivesse – eu não queria encontrar com o Fer. De jeito nenhum. Nos falamos horas antes, por SMS, e ele avisou que chegaria só mais tarde, mas não disse quando. E “mais tarde” já poderia ser naquele exato momento. Isso não é bom, eu me precipitava. Com todas as minhas forças, torcia para que o Gabriel chegasse antes dele e, assim, me evitasse um encontro constrangedor com o namorado da garota que eu estava prestes a levar para sair. A culpa acabaria com a minha noite – e eu não conseguia evitar senão pensar que, se isso acontecesse, seria um puta de um desperdício.
 
E o prêmio “Canalha do Século” vai para...
 
...enfim, o meu telefone tocou. Para a minha sorte, era minha carona. Saí com pressa da cadeira, sem gastar mais um segundo naquele apartamento. Apaguei todas as luzes rapidamente, coloquei o celular no bolso e peguei as chaves de casa antes de sair. Eu gostava de andar por aquele corredor sem saber quando iria voltar. Com sorte, na manhã seguinte, pensei. Atravessei o meu andar em direção ao elevador, tentando terminar o cigarro antes de chegar naquela porta metálica.
 
A rua estava semivazia, ocupada por um vento leve e frio tipicamente paulistano, e o carro do meu amigo estava mais cheio do que eu esperava. Dividi o banco de trás com dois colegas de faculdade dele – ambos futuros publicitários e um deles viado – enquanto o Gabriel assumia a direção com a namorada ao seu lado. E ainda faltava a Mia. Como diabos vamos caber todos nesse carro?, calculei. E rapidamente sorri, imprestável, imaginando que só sobrava lugar para a Mia no meu colo.
 
Vai caber certinho.
 
Não via o Gabriel há uns bons dois meses. Ele era um amigo de alguns anos já e provavelmente um dos poucos que não tinha em comum com o Fernando. A gente tinha se conhecido ao acaso num buraco indie chamado Atari e desde então mantivemos contato. Na época, eu estava me separando de uma garota-problema que arranjei como consolo, numa das piores decisões da minha vida, para me distrair após o fim turbulento e bem mal resolvido do meu namoro de onze meses com a Marina.
 
O resultado foi um caos. E envolveu uma quantidade inacreditável aspirinas para combater a enxaqueca constante, uma ressaca após a outra, seguida de centenas de ligações psicopatas para o meu celular numa indignação com o término dum casinho que mal começou. Foram algumas semanas infernais desastrosas. Quando resolvia sair para espairecer, não podia nem ver mulher na minha frente e, numa dessas, acabei trombando com um Gabriel extremamente bêbado no Atari. Foi amizade instantânea.
 
Agora, apesar da grande consideração que ele havia adquirido por mim ao longo dos anos e de todas as furadas que enfrentamos juntos, não estava sendo fácil convencê-lo a buscar minha garota lá em Higienópolis. Sendo que, , o bar ficava pros lados do Itaim. Era até sacanagem fazer um pedido desses. E eu podia sentir o ódio-mudo de cada integrante daquele carro enquanto seguíamos numa direção totalmente oposta por longos minutos.
 
_É aqui! – anunciei, assim que avistei o prédio da Mia.
 
Dei um toque no seu celular e ela logo saiu pelo portão, como se já estivesse esperando lá embaixo há algum tempo. A namorada do Gabriel me deu passagem e eu desci do carro, empolgada, ganhando um sorriso imediato da Mia assim que ela me viu. Ela atravessou a calçada naquele vestidinho curtíssimo, com as tatuagens e as pernas me matando lentamente. Perfeita, meu. O meu coração não ia aguentar.

maio 16, 2010

Antecipação

...e pessimismo.
 
O pessimismo nada mais é do que a capacidade que alguns têm de ver o lado ruim de absolutamente todas as coisas, inclusive as boas. E dentre os muitos dotados de tal habilidade, inclui-se a minha pessoa. O que começou com um “sim” e o sentimento de finalmente ter obtido algum sucesso naquele triângulo amoroso de merda, transformou-se rapidamente num “chega logo” e naquela agonia esmagadora e insuportável de ainda ser segunda-feira. Claro.
 
Do momento em que baixei o celular na mesa – satisfeita com a resposta da Mia – em diante, os segundos se prolongaram de maneira terrivelmente cruel e a consciência de que cada minuto tem 60 desses segundos e cada hora tem 60 desses minutos e cada dia tem 24 dessas horas e que pra porra da noite de quinta ainda faltavam três dias inteiros – divididos entre 8 horas de trabalho e uma hora de almoço e algumas horas de sono e mais outras de absolutamente nada além de pensar na porra do meu encontro com a Mia – isso tudo, digamos, piorava bastante a minha ansiedade. Exponencialmente. Eu era pura expectativa pelas minhas horas e minutos e segundos sozinha com a Mia. E ainda era segunda-feira.
 
Pois é. Em três dias, adivinhem quantos cigarros eu fumei...

maio 14, 2010

R$ 4,10

Dei uma nota de cinco para o tiozinho do caixa e disse que ele poderia guardar o troco. Saí andando pela calçada, sem pressa, com um cigarro numa das mãos e o celular na outra. Nenhuma resposta ainda. Entre uma tragada e outra, eu olhava para a tela para me certificar se o alerta de um novo SMS não teria passado despercebido por mim. Nada, droga. E depois de dez segundos eu checava, de novo. Obsessivamente.
 
Apesar dos passos lentos, cheguei no estúdio antes de terminar o meu cigarro já no talo – ô timing ruim – e fui obrigada a parar na porta por algum tempo. Por fim, joguei a bituca na rua e me preparei para voltar ao trabalho. Quando estava passando pelo corredor, meu celular vibrou. Minha cabeça foi a mil no mesmo segundo. Olhei apressada para a tela e me deparei com um SMS aleatório de um amigo meu, me convidando para um show naquela quinta. A mais pura frustração feat. raiva. Nada da Mia. Não respondi, só de birra.
 
Trabalho, trabalho, trabalho. Mia, Mia, Mia. Quinze minutos de labuta depois e nada, resolvi desistir e parar de encarar meu telefone a cada segundo. Como diria minha avó, se ficar espiando o forno, o bolo não cresce. E sendo assim, voltei aos meus afazeres rotineiros e entediantes. Pouco tempo depois, a sabedoria da nona provou-se verdadeira e o nome da Mia piscou na minha tela, de repente – “eu tb. Qria sair qqr dia com vc... pra qqr lugar, vms?”
 
Ô, se vamos.
 
Sorri na mesma hora, sentindo uma felicidade boba encher meu estômago de borboletas. Minha mente suja, por outro lado, se pôs a listar todos os lugares com uma cama que eu conhecia. Não dá pra convidar ela pro motel, pensei, é grosseria. Chamá-la para passar o fim de semana na casa dos meus pais em Santo Amaro, convenientemente longe da Augusta e do Fernando, também me parecia estranho. Tá. Sem camas.
 
Coloquei minha cabeça para pensar, urgentemente, em qualquer programa que soasse legal. Não queria pedir que ela desse as cartas, queria mostrar que eu sabia jogar. O problema era que todos os lugares que eu frequentava estavam abarrotados de conhecidos, meus e do Fer. E isso incluía todas as baladas e bares próximos do nosso apartamento. Exceto pelos LGBTs, onde não sabia se a Mia ia querer ir assim tão de cara. Não queria errar com alguém tão significante – como a garota que há meses ocupava a minha cabeça. E o meu coração.
 
Droga.
 
A questão – mesmo que não colocada dessa forma – era que aquele poderia ser o meu primeiro “encontro” com ela. E era ela. A Mia. E como todas as coisas relacionadas a ela, uma simples mensagem se tornou um grande problema para mim. Eu sabia que podia levá-la para qualquer lugar, ela não era do tipo que ligava. A Mia estava pouco se fodendo para qualquer coisa a maior parte do tempo. Mas, sei lá, queria que ela realmente se divertisse. E que quisesse sair comigo de novo – então precisava fazer direito.
 
Um jantar? Não, sem graça. Sinuca? Não, me diverti, ela não tá preparada para essa sapatonice toda. Cinema? Hétero demais. Barzinho? Não, também não, puta coisa playboy. Boteco? Argh, mano, não é possível que eu não consiga pensar em nada melhor que isso. A tarefa começou a se revelar mais difícil do que o esperado. Até que, de repente, me lembrei da mensagem do meu amigo. A que eu ignorara meia hora antes – é, essa. E ela resolvia todo o problema.
 
Porra, como não pensei nisso? 

maio 12, 2010

Na pausa

O shoot demorou uma eternidade para terminar e só fui finalmente liberada para o almoço horas depois do normal. Antissociabilíssima, como sempre, ignorei os convites dos meus colegas de trabalho de ir para um restaurante arrumadinho nas redondezas e optei pelo boteco da esquina. Enchi rapidamente o meu estômago com um sanduíche barato bem trashera e meio litro de Coca-Cola, acompanhados por um ou dois cigarros. Saudável.
 
Enquanto sentava lá, apreciando aquela refeição orgulho-junkie, olhei para o celular inúmeras vezes, ainda com a Mia impregnada na minha cabeça. Não, raciocinei, nada a ver eu ligar agora. Não é? Eu me desdobrava em uma discussão interna comigo mesma, mas a ideia ainda me perseguia e eu sentia uma vontade incontrolável de esquematizar um possível encontro. Terminei o lanche e acendi mais um cigarro, o segundo desde que saíra do estúdio. Os botecos eram os poucos portos-seguros restantes para fumantes em São Paulo. Além do que, ela provavelmente está na aula a essa hora, retomei meu pensamento. Ou será que não?
 
Dois caras sentados a alguns metros de mim no balcão me olhavam daquele jeito irritante que macho olha para qualquer mina sozinha – me enojando até a morte. Argh. Voltei a focar no celular e nas minhas expectativas improváveis para aquela noite. Desisti da ideia de ligar para a Mia – os limites do nosso relacionamento, do que era ou não natural fazermos, não estavam muito claros. E eu tinha a constante sensação de que qualquer passo em falso podia assustá-la. Ainda assim sabia que precisava iniciar algum tipo de contato, caso quisesse mesmo levar aquilo a diante. E como sempre, a única solução restante me parecia ser um SMS.
 
O problema aí eram as evidências – quando se trata da namorada do seu melhor amigo é melhor não ter nada com o seu nome assinado embaixo, não é? Ou em lugar nenhum. Ainda vou me ferrar nessa, hesitei, olhando para a tela do celular. Mas conforme o meu cigarro chegava ao fim, simplesmente não aguentei. E comecei a digitar:
 
“Meu, ñ consigo parar de pensar em vc e no que vc disse ontem. Qro te ver.”
 
Mandei.

Olheiras

…e um humor fantástico pra caralho.
 
Me espremi entre os outros assalariados que enfrentavam a superlotação insuportável do metrô naquela segunda-feira de manhã. O aperto me obrigava a entrar em contato físico direto com cinco ou seis completos desconhecidos, além de me causar aquela claustrofobia matinal desprezível. Argh. A situação toda era mais do que suficiente para me deixar rabugenta a manhã inteira – mas a Mia queria me comer. E isso melhora o dia de qualquer uma. Sorri o trajeto todo.
 
Devo esclarecer que nunca acreditei muito nesse papo de ativa ou passiva. Sempre achei isso uma puta mentalidade heterossexual – e portanto, um tanto quanto limitada. Eu gostava mesmo era de mina participativa. Tem certa subversividade inerente em transar com alguém do mesmo gênero que você e sinceramente nunca vi sentido em limitar isso. Quando ia para a cama, não queria ir por um lado só; preferia garotas que me acompanhassem pela porra do perímetro inteiro. E mais ainda, as que me levam para fora dele. Para o chão. Para a parede. Para o corredor. Para onde for. Queria destruir todos os padrões. Desrespeitar todas as regras.
 
E aquela disposição toda da Mia estava me deixando louca desde a noite anterior. As tais aulas transbordaram a minha cabeça de sacanagem até eu conseguir pegar no sono. Sozinha no quarto e com aquela vontade desgraçada dela, caralho. E o pior nem era isso: era a ausência completa de cansaço – para quem acordou às cinco da tarde no domingo, não havia chance de eu dormir tão cedo. A minha tortura se arrastou por horas.
 
Cheguei no trabalho na segunda de manhã, atrasada e nitidamente destruída depois de um fim de semana interminável, seguido por uma madrugada inteira de auto-tortura. Ainda assim, não conseguia evitar aquele sorriso tonto de um lado ao outro da cara – não pensava em outra coisa que não a Mia. E nem queria. Ficava revivendo os nossos beijos na noite anterior em pensamento e me lembrando inúmeras vezes de como a boca dela pronunciou cada palavra na porta. Existem vários tipos de maldade nessa vida e, ah, aquele era o melhor deles.
 
_Pelo jeito, você continua casada... – a mina da recepção zombou, ao me ver entrar feliz no estúdio – ...é um recorde, hein?!
 
A memória indesejada da minha semana com a Dani, àquela hora da manhã, me fez querer retrucar a piadinha e mandar a recepcionista à merda. Entretanto, eu não ia deixar que qualquer comentáriozinho insignificante alterasse o meu humor. Sorri de volta, ironicamente, e isso bastou.
 
Passei na cozinha e descolei um café, antes de dar de cara com o meu chefe dentro do estúdio. Ele estava furioso. Me puxou imediatamente para um canto e deu uma bronca daquelas por ter chegado atrasada num dia de sessão. Moda, revirei os olhos, quem se importa? As palavras dele atravessaram batido pelos meus ouvidos e a única coisa que continuava na minha cabeça era ela – a Mia.
 
Mil vezes a Mia.
 
Perambulei de um canto a outro do set, obedecendo tudo o que me era requisitado, a fim de manter meu emprego – mas sem prestar muita atenção em nada. Tudo o que eu conseguia pensar, mesmo que com muita imaginação, era em sair dali às 18h e ir direto para a casa dela. E dar umas aulas bem dadas para aquela mulher.

maio 09, 2010

Não é justo

Estávamos metidas, eu e a Mia, nuns beijos sem fim.
 
A intensidade começava a aumentar, mas mesmo assim eu me controlava. E é – é difícil se controlar com a mulher que você ama praticamente sentada no seu colo, não é, mas eu sentia que não podia me arriscar. Não com o Fernando em casa. Um beijo flagrado ainda é mais justificável do que “perdi minha integridade e fui procurar no meio das pernas da sua namorada, com a boca”.
 
Melhor evitar ideias potencialmente idiotas, pensei.
 
Não que agarrar a garota do meu colega de apartamento fosse muito inteligente – para começo de conversa. E a Mia, claro, não estava ajudando em nada. Cacete. Gostosa dos infernos. Como você impede a sua mente de ter os pensamentos mais sujos? As suas mãos de abrir caminho entre aquelas coxas? Meu deus, não. Não dá. Era tortura demais. Os dedos da Mia estavam agarrados ao meu jeans, me puxando na sua direção, enquanto as minhas mãos ensaiavam e abortavam todos os tipos de movimentos mais indiscretos. Detidas sempre pela memória da porta destrancada, bem ali, ao nosso lado.
 
Conforme o tempo passava, todavia, o autocontrole se tornava uma tarefa cada vez mais difícil. A Mia me segurava contra ela e eu sentia a sua língua na minha, aquilo me enlouquecia. Foda-se. Num impulso, perdi a linha e a trouxe para o meu colo. Ela me beijou forte, com uma perna de cada lado do meu corpo. Fazia uns gemidos baixinhos entre um beijo e outro, respirando fundo – sabe, aqueles? Desgraçada. Senti que ia perder totalmente a cabeça.
 
E aí a brincadeira começou a ficar perigosa.
 
Enchia minhas mãos com as pernas da Mia e pensava, se o Fer entrar... Sentia o seu corpo oscilar contra o meu. Perto demais. Mano, se o Fer entrar... Deslizei as minhas mãos para a curva entre as suas coxas e a sua bunda, a segurando firme no meu colo. Porra, se o Fer entrar... Ela me agarrava pelo cabelo e me beijava com tesão. Caralho, se o Fer entrar... Comecei a subir minhas mãos por debaixo da sua blusa, com vontade. Se o Fer entrar... Filha-da-mãe. A Mia curvava o corpo para frente, pressionando os seios contra minhas mãos e... puta que pariu. Isso vai dar merda.
 
_Melhor... – tirei as mãos da sua camiseta, num lapso de bom senso, antes que fosse tarde – ...m-melhor a gente parar por aqui.
_N-não... – a Mia murmurou, me puxando – ...vem aqui.
_O Fer... – argumentei, recuperando o fôlego.
 
Senti o meio das minhas pernas molhado. Cacete. Nos olhamos por um instante, em silêncio e com uma vontade desgraçada. Porra, merda. Merda. Merda. Merda! A Mia continuava no meu colo, com os cabelos levemente bagunçados, e tudo o que eu queria era ir para cima dela. Sentia o meu corpo inteiro pender na sua direção. Inferno. Ainda ofegante, ela se abaixou e encostou a testa suavemente na minha. “Por que isso é tão difícil?”, sussurrou. E senti o meu coração apertar, de repente. 
 
Porra.
 
De olhos fechados, deslizou o seu rosto no meu, parando perto demais da minha boca. Mas agora a lembrança do Fer na sala nos impedia de seguir em frente – isso e o fato da tranca da porta não estar ao alcance das minhas mãos. Inferno. A Mia ergueu os olhos na minha direção e eu passei a mão no rosto, como se acordasse de um sonho imprestável, tentando esfriar a cabeça. Pelo menos, estamos fora de perigo.
 
A Mia arrumou sua camiseta e eu a minha, ambas amarrotadas. E então saiu de cima de mim. Nos levantamos, agora mais comportadas, e ela ajeitou o cabelo para não dar bandeira. Depois foi até a porta, abrindo a maçaneta. E pouco antes de sair, se apoiou no batente e me olhou:
 
_V-você... – disse, baixinho – ...ainda me deve umas aulas, viu?
_Aulas?!
_É... – deixou um sorriso escapar no canto da boca, sem valer um centavo – Já esqueceu sua promessa?
_Como assim? Não. Espera! – eu a puxei de volta para dentro, achando graça, e a coloquei contra a parede – Vai. Fala direito.
 
Aquilo mudava tudo. Tudo. E a Mia riu. Eu sabia que ela estava falando da conversa que tivemos no pátio do seu prédio, mas queria ouvir da sua boca. Palavra por palavra. Diz, garota, diz que quer umas aulas minhas. Quero te ouvir falar baixaria. Eu a olhava fixamente. Só de pensar a respeito já ficava com calor e todo autocontrole de dois segundos antes ia por água abaixo. Foda-se. Uma coisa é você querer um doce, outra bem diferente é o doce pedir para você comer ele.
 
_Me conta o que cê quer aprender... – pedi, já descendo as mãos pela sua cintura.
_Não. Num outro dia...
 
Eu me insinuava toda para cima dela e ela retrucava, fazendo graça.
 
_Só me lembra, vai? O que era mesmo... – insisti.
_Hoje, não... – ela se divertia com a minha mudança de atitude.
_Não faz isso... – eu a agarrava e quase implorava, com vontade de dar aquelas aulas ali mesmo – Não faz isso comigo, vai. Por favor. Vem aqui.
_Outro dia, outro dia...
 
Ela riu, me empurrando, e se virou para sair novamente. Já estava quase fechando a porta, quando eu a olhei, indignada. “Cê tá de sacanagem”, sussurrei, contendo o riso e vendo-a deixar o quarto, “volta aqui, como diabos eu vou dormir hoje, mano?”. Ela deu de ombros, achando graça. E fechou a porta.
 
Filha-da-mãe.

maio 07, 2010

Estática

Os olhos dela me encaravam de volta. Na minha imaginação, aqueles dez ou quinze centímetros entre a minha boca e a dela se comprimiam lentamente. Só o tempo que se esticava, conforme o silêncio insistia nos meus lábios. O que eu quero... fazer, minha mente divagava perigosamente. Mas a minha consciência me impedia de lhe responder, me alertando aos berros sobre o Fer. O Fer e a porra da tranca na porta. Aí o perigo sussurrava no meu ouvido – ele não vai entrar –, me puxando na direção dela.
 
O tempo parou. Os olhos da Mia meramente piscavam e o meu coração já pulava duas batidas, olhando-a de volta, naquela distância cruel. A vontade de beijá-la começava a me dominar por inteiro. Era insuportável. O que eu quero fazer, garota, sabe o que eu quero fazer com você?, respirei fundo. Eu mantinha as mãos grudadas no chão. Só que, então, num impulso impensado, ela se mexeu. Um milímetro para frente, um milímetro na minha direção. Meu deus. No fim das contas, eu nunca fui muito boa com o autocontrole.
 
Que se dane. Subi a minha mão subiu no ar e as pontas dos meus dedos deslizaram, inconsequentes, pela lateral do seu rosto. Como mera desculpa para tocá-la. Não pensei, apenas percorri o contorno da sua face e continuei, pouco a pouco, até os seus lábios. Ela fechou os olhos, como num reflexo, e eu me aproximei. Tirei minha mão e a substituí com um beijo. Hum.
 
Era quase adolescente, um beijo assim. Sentadas no chão, com as pernas cruzadas e os pés descalços, movidas por aquela atração irresistível, aquela hesitação excitante e o medo de sermos pegas. Fazia sentido – para a Mia, não para mim. Afinal, é aquele sentimento de primeiro romance, tudo de novo. Mas, e eu? Qual é a minha desculpa? O meu armário já estava aberto e escancarado há tempos, não havia nada de novo ali. Nada que justificasse aquele comportamento juvenil. Muito pelo contrário.
 
Mas eu quero você, garota.
 
E queria com toda a minha vontade. Com todo o meu coração – por mais pilantra que ele fosse. Queria cada pedaço daquela garota. Não por um dia, nem por uma noite: queria ela o tempo todo. Então, a tomei. Coloquei as duas mãos no seu rosto, uma de cada lado, segurando-a enquanto a beijava. E ela me beijou de volta, agarrou a lateral do meu jeans e nos movemos, juntas, intensamente, sem intenção de nos soltar. Encostei novamente na parede. A Mia se apoiou contra mim e nos beijamos, de novo e de novo, mesmo sabendo que não deveríamos. Mas a essa altura, quem se importa? As circunstâncias nunca estiveram ao nosso favor, de qualquer jeito.

maio 06, 2010

Tenso, tenso

Ficar sozinha com a Mia entre quatro paredes era sempre complicado. Mas ficar sozinha com a Mia entre quatro paredes e o Fer no apartamento, ah, aí já era bem mais complicado. Eu podia sentir cada batida do meu coração. Os dedos dela entrelaçados nos meus, a sua pele contra a minha. Evitava sequer olhar para o lado. Frustrada com a saída da Dani, esse era exatamente o tipo de situação que provocava a minha impulsividade. Simplesmente não podia confiar em mim mesma – não com a Mia.
 
Para a minha sorte, a música tocando ao fundo quebrava todo o possível clima que pudesse se insinuar ali. Ficamos em silêncio, por alguns minutos. Desde que eu menti descaradamente sobre “estar bem”, isto é. Não posso fazer isso, pensava. E me segurava para não olhar na sua direção – mas podia sentir os seus olhos em mim o tempo todo. Nossos braços estavam apoiados um no outro, a sua mão segurava a minha insistentemente. E o rádio ecoava ao fundo.
 
_Cê sempre ouve... – a Mia riu, quebrando o silêncio – ...isso na fossa?
_Fossa? Olha, cê tá dando muito crédito para a Dani...
_Tô?
_Eu fiquei puta porque ela armou aquela ceninha, não porque ela foi embora... – talvez parcialmente verdade – E o que cê tem contra Stiff Little Fingers, afinal?
_Nada. Mas ouvir punk irlandês na bad é meio nada a ver, né...
_Oi?!? – eu me revoltei, rindo.
_Posso? – perguntou, indicando o rádio com os olhos, como se pedisse minha permissão para trocar de faixa.
 
E eu ergui as mãos, sem me opor, me soltando dela. Grande erro. A Mia se levantou, ficando de joelhos, e apoiou uma das mãos para lá das minhas pernas cruzadas no chão. Esticou seu corpo a dois palmos acima dos meus jeans e, com a outra mão, alcançou o rádio. Que estava do outro lado das minhas coxas. Aí começou a rodar a playlist do meu iPod, lentamente, bem lentamente, praticamente de quatro em cima de mim. E eu fiquei ali, encurralada, observando cada curva dela. Mano, eu juro, ela faz essas coisas de propósito, me estressei, tentando ficar na minha. Puta que pariu.
 
Não me movia nem um centímetro para frente, grudada na parede, tentando a qualquer custo não encostar nela. É o pior sofrimento que uma garota pode passar – olhar para a mina que cê gosta, assim, e não poder se mexer. Ter que se conter no lugar. Meu deus. Claro que seria bem menos agonizante se eu não insistisse em ficar encarando-a daquele jeito, mas eu não conseguia evitar. Os meus olhos simplesmente não saíam daquela curva insinuante entre as suas costas e o seu quadril e... puta merda. Não, não tem como.
 
Desavisada, a Mia fez qualquer comentário sobre a minha lista de músicas e eu forcei um sorriso meia-boca, sem prestar realmente atenção – nem me lembro o que foi que ela disse. A minha atenção estava toda nos quinze ou vinte centímetros de absolutamente nada que separavam o meu corpo do dela. Caralho, viu. Mas que caralho. Ela tão perto assim e o Fer, o Fer, ali, no cômodo ao lado. Respirei fundo e ela, enfim, escolheu uma música do Velvet Underground para tocar. Mas à medida que começou a voltar, para sentar-se ao meu lado, só piorou...
 
Observei a sua barriga se dobrar, curvando lentamente as costas e deslizando na minha frente. E me deu água na boca. Diabo de mulher. Senti uma vontade irracional de sentir o seu gosto de novo, dentro de mim, naqueles devaneios insuportáveis de tê-la mais uma vez na minha boca. Na minha mão. Ela foi voltando quase em câmera lenta, exibindo cada pedacinho de si na frente dos meus olhos. Para com isso, garota. Apoiou uma das mãos entre as minhas pernas cruzadas, numa ré de desgraçar a cabeça. Engoli seco. Cacete.
 
Quase sem querer, ela subiu os olhos na minha direção e a minha expressão me denunciou imediatamente. Aí ela parou – bem no meio do caminho. Droga. Não faz isso.
 
_O que foi? – me perguntou, hesitante.
 
O meu coração estava prestes a sair pela minha boca. A Mia me encarava, a uma distância pequena demais do meu rosto, ciente da minha resposta.
 
_O que cê disse pro Fer?
_Pro Fer?
_O que ele acha que estamos fazendo, Mia? – inclinei a cabeça para trás e a encarei de volta, tentando me controlar.
_Eu disse que ia ver como cê estava... – respondeu e eu podia ver a sua vontade de me beijar escapando pelos seus olhos – ...q-que, que talvez cê quisesse conversar.
 
Respirei fundo.
 
_Eu não quero conversar... – murmurei, completamente tomada pela tensão entre nós, e ela me encarou fixamente de volta.
_E o que cê quer fazer, então?
 
Eu quero arrancar sua roupa e te colocar na parede, porra.

maio 05, 2010

Delicate

We might kiss,
when we are alone
When nobody's watchin',
we might take it home

We might make out,
when nobody's there
It's not that we're scared,
it's just that... it's delicate.

(Damien Rice)


Entra-e-sai

À saída dela, seguiu-se uma calmaria desconfortável. Uma tranquilidade que eu não esperava ter tão cedo. Com passos indispostos e preguiçosos, fui até a cama e me abaixei para pegar o maço que a Dani havia dispensado. Depois andei até a porta, que ainda estava aberta, e a fechei. Me sentei no chão, a poucos centímetros dali, e apoiei as costas na parede. Diminuí o som do rádio, que ainda gritava ao meu lado, e fiquei um tempo sentada, quieta, enquanto Stiff Little Fingers seguia tocando baixinho ao fundo.
 
Rodei o maço umas seis ou sete vezes na minha mão antes de o abrir. E agora?, pensei, finalmente colocando um cigarro na minha boca e o acendendo. Ergui o filtro entre os dedos, tragando direito, e soltei a fumaça em seguida. Eu deveria saber, porra, me arrependi, inevitavelmente. Quando foi que eu e a Dani alguma vez demos certo? Me irritava sozinha, com a discussão e com tudo. Quando foi que eu e qualquer garota demos certo? Argh.
 
Suspirei. E passei as mãos no rosto, frustrada. A verdade era que – querendo ou não – nós tínhamos dado certo por uma semana inteira. Mais do que muitas vezes no passado. E o pensamento me perturbava. Brigar com a Dani era fácil, o difícil era o que vinha depois. O que eu estava pensando para trazer ela bem pro meio do caos que é a minha vida? A Dani, porra?! Que bem poderia sair disso?, eu passava a mão no rosto e tragava mais uma vez, eu já deveria ter aprendido.
 
Chega. Chega de barraco, soltei a fumaça, determinada. Chega. E foi quando ouvi alguém bater na porta. Olhei para cima e falei para que entrasse, a maçaneta girou. Hesitante, a Mia espiou então pelo vão entre a porta e o batente. Me viu sentada ali embaixo, a meio metro de onde ela estava, e perguntou se podia entrar. Acenei que “sim” com a cabeça, ainda com a boca ocupada com o filtro do cigarro. Observei ela entrar e depois se sentar ao meu lado.
 
Aí me perguntou, baixinho:
 
_A Dani foi embora mesmo?
_Foi.
_Vocês brigaram?
_É – respondi, tragando mais uma vez, e a Mia observou a minha nítida frustração – Não que seja novidade, né... A gente sempre briga, é uma merda. A Dani é profissional em armar barraco, meu.
_Espero que não tenha sido por causa daquilo, lá na sala. Eu e você.
_Não, relaxa. A culpa foi minha – lamentei – Não sei por que diabos eu fui trazer ela aqui, eu odeio essas coisas... Já devia saber que ia dar ruim.
_Mas cê tá bem?
_Tô – respondi – Eu tô sempre bem, Mia.
 
Aquilo era uma mentira descarada, claro – eu mesma não esperava que a Mia fosse acreditar e ela não acreditou. Nem por um segundo. Mas essa era a última conversa que eu gostaria de ter com ela. Traguei mais uma vez e não disse mais nada. Então, sem dizer nada também, a Mia deslizou a sua mão pelo meu braço, caído entre minhas pernas cruzadas no chão, e... e aí segurou a minha mão. Puta merda. O meu coração acelerou na mesma hora. Por que cê faz isso comigo?, suspirei, completamente vulnerável a ela.
 
De um jeito ou de outro, a Mia era a garota que tinha começado tudo aquilo. Aquilo e todo o resto nos últimos tempos. Ela era o meu erro consciente. Uma vontade que eu não podia evitar. Deixei, receosa, que entrelaçasse os seus dedos nos meus. Será que algum dia a minha vida vai sair dessa confusão?, respirei fundo. E o meu peito doeu. Pelos barracos com a Dani e as bebedeiras e as mentiras e traições e as vinganças e os beijos escondidos. Argh. Senti como se tudo que eu fazia fosse um maldito erro.
 
Pouco a pouco, todavia, segurei a mão dela de volta. É.