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maio 31, 2010

Ah, se vou...

“When I was tired of looking around, oh yeah, I found her”, os músicos aceleraram o ritmo do show. Puxei a Mia na minha direção, pegando-a pela cintura, e grudei o meu rosto momentaneamente no seu. E aí no auge da minha pretensão, competindo com as caixas de som, disse em seu ouvido:
 
_Essa é a nossa música...
 
Ela sorriu para mim, confusa. E eu fiz graça, olhando-a de perto enquanto cantava, sorrindo de volta – “she was really one of a kind, I know that so”, a música prosseguiu e eu continuei com as mãos ao redor dela, numa serenata alcoolizada. A minha memória tentava acompanhar as palavras, num charme descompassado na direção da Mia, que ria com cada frase que saía da minha boca. Whenever that old foolish heart of mine was by that little girl, time would stop and kindly give us the way”.
 
_Ficou romântica, é? – ela perguntou no meu ouvido, me zombando – Tem certeza de que é para mim?
 
Revirei os olhos e fiz um gesto para que ela escutasse, rindo, sabendo o que estava por vir. “Well, nothing in my life happens like in the movies”, continuei, fazendo com que prestasse atenção no que eu dizia. E junto com o cantor, expliquei: “she had another guy that loved her just the same”. A Mia começou a rir na mesma hora.
 
_Agora, sim, parece a nossa música! – ela brincou.
 
Dei de ombros e ri, colocando o braço ao redor da sua cintura. Rodei com ela no meio de toda aquela gente. Enquanto confessava: “No, I don’t really like to spoil nobody’s marriage”, cantei, “but I’m caught in the scent that something here is just not right”. A Mia ria, indignada, conforme eu discordava abertamente do seu relacionamento com o meu melhor amigo, na maior cara de pau. “C’mon, woman! I’m the one who’s gonna do you good”, pisquei na sua direção, fazendo graça. E o álcool me convencia de que aquela ceninha ia dar certo.
 
A Mia ria. “I will have no peace until you’re mine”, puxei ela ainda mais perto de mim e ela balançou a cabeça, desacreditada. Enquanto isso, no palco, o Peixoto e o Maxado continuavam animados. A pista inteira balançava de um lado para o outro, conforme eles repetiam a mesma frase – “until you’re mine, until you’re mine, until you’re mine”.
 
Senti que poderia beijá-la naquele momento. Bem ali. E mesmo que todos os olhos fossem se voltar a nós, de repente tinha a impressão de que a Mia não se incomodaria. Mas segurei a sua mão e a virei, abraçando-a pelas costas, possivelmente com mais carinho do que queria demonstrar. Aquela era a primeira vez que nós dançávamos juntas assim e eu estava adorando cada segundo. Completamente bêbada e apaixonada. Movi seu cabelo para frente do ombro, sem pensar muito, e em segredo encostei na sua nuca – num beijo escondido.
 
“I’ll do... I’ll do you. I’ll do... I’ll do you. I’ll do... I’ll do you. I’ll do... I’ll do you good.”
 
Tão logo a música acabou, a Mia se virou e apoiou os braços sobre os meus ombros, me olhando por um instante. E entre toda aquela gente, me beijou mais uma vez.

Recatadas

Voltamos para o bar pelo mesmo lugar que entramos – por baixo da fita amarela. Nos sentindo agora um pouco mais dignas da cena do crime. Andei na frente da Mia, segurando-a atrás de mim pela mão, e fomos direto para o bar de dentro. Todo aquele ar fresco do Itaim havia nos deixado ligeiramente mais sóbrias; e isso era inaceitável. Peguei o menu e comecei a passar o olho pelas bebidas. Nada de tequila, pensei. E por sorte, a Mia concordou. Nem precisamos dizer nada, apenas nos olhamos e rimos, conforme o nome da diaba apareceu sob meu dedo lista abaixo.
 
Preciso de um whisky, concluí.
 
E o meu desejo foi rapidamente concedido, após uma taxa salgada anotada na minha comanda. Tomei coragem e virei meu copo de Jameson assim que chegou, enquanto a Mia colocava aquela boca maravilhosa ao redor de um shot adocicado de B52. No palco, a banda seguia a toda num skazinho gostoso e a pista de dança os acompanhava. Coloquei o copo de volta no balcão e fui em direção à multidão, me enfiando no meio das pessoas e arrastando a Mia para dançar.
 
A ausência de espaço daquele bar lotado e a minha falta de vergonha na cara alcoólica nos empurravam para perto uma da outra. Por outro lado, toda a heterossexualidade ao nosso redor quebrava o clima – para a Mia, isto é. Eu mesma estava pouco me fodendo. Mas, graças àquela plateia toda, não consegui mais beijo nenhum. Esses ficaram lá do lado de fora do bar.
 
Droga.
 
Ao final da terceira ou quarta música que dançamos juntas, a minha cabeça já estava rodando. Com a movimentação, sim, e toda tequila whisky não sei nem mais o quê dentro de mim. A Mia sorria, abraçada no meu pescoço, e deixava a cabeça cair para trás ao som dos amplificadores. Fechando os olhos lentamente. Se perdia no momento e eu achava graça. Então subia o corpo de novo e me olhava, completamente vidrada. Seus olhos nos meus. E tudo o que eu queria era mais. Mais dela. Mais de tudo.
 
E sabe como é, se todo o charme e tequila do mundo não são suficientes para esquecer os arredores, um pouco de Peixoto & Maxado resolve o problema.

maio 27, 2010

Gracinha, gracinha

Dei uns passos para trás, encostando num carro que estava na rua. Nuns beijos assim que, cacete. Joguei o cigarro no chão e coloquei uma mão de cada lado do seu rosto, segurando-a, com os pés espaçados na calçada e as minhas costas apoiadas no vidro da porta. A Mia se encaixava no meio das minhas pernas, abraçada contra o meu corpo – envolvidas demais para sequer reparar se mais alguém passava pela calçada. Perdemos a noção do tempo. Ficamos ali pelo que pareceu mais de hora. Nuns amassos contra um Corsa empoeirado. A cada beijo, eu sentia mais o peso da Mia em mim, o seu quadril ia fazendo pressão entre as minhas pernas – as linhas do meu jeans já marcando a parte de dentro das suas coxas. Caralho.
 
_Por que a gente não fez isso desde o começo? – a Mia comentou, sem fôlego, me beijando logo em seguida.
_Não sei... – respondi, sincera – ...era só o que eu queria, puta merda.
 
A Mia riu. Já estávamos ali há tempo suficiente para o meu amigo achar que eu tinha largado ele no rolê e ido embora sem avisar.
 
_Cê tava querendo isso desde que a gente chegou, né, pilantra?
_O quê? Você?! – segurei firme a sua cintura, numa honestidade bêbada, entre um beijo e outro, falando mais do que devia – Eu te quero o tempo todo, garota.
_“O tempo todo”? – ela repetiu, rindo.
_É, desde sempre.
 
Mal terminei de falar e a Mia me beijou de novo. Eu a virei contra o carro, sem tirar a boca da sua, invertendo nossas posições. Coloquei uma das pernas entre as suas coxas, a agarrando pela cintura. Suas mãos se encaixaram nos bolsos de trás da minha calça, me pressionando contra o seu corpo – nossos beijos, o calor, o vai e vem instintivo, tudo se confundia num movimento só até que eu não conseguia pensar em outra coisa a não ser comer ela ali mesmo. “Cacete”, deixei escapar, baixinho, e a Mia sorriu. “Quê?”. “Vou enlouquecer assim, meu”, sussurrei de volta. E ela me beijou, me puxando ainda mais forte contra ela, na lateral do carro.
 
Podia sentir os seus dedos arranhando o meu antebraço, as minhas costelas – subindo sob a minha camiseta, pelas minhas costas, enquanto eu descia a mão pela sua bunda, aquela raba maravilhosa, meu deus. Naquele vestido curtíssimo. E toda vez que aquele maldito pano acabava, com a minha mão a meio centímetro de onde as suas pernas começavam, a pele na ponta dos meus dedos, a minha pressão subia. E eu tinha que voltar as mãos para sua cintura para não perder a cabeça – em público demais para arrancar aquela roupa toda.
 
_Cê tá ficando abusada, hein? – a Mia sussurrou para mim, numa dessas.
_Desculpa... – tirei as mãos de cima baixo dela, ofegante – Tá difícil aqui.
_Tá? – a Mia se divertia e me beijava mais uma vez, empurrando minhas mãos para baixo.
_Nossa. Pra caralho... – confessei, baixinho.
_Hum...
_Mas, não... – dei uma olhada para as suas coxas entre as minhas, respirando fundo, sem confiar por um segundo no que estava prestes a prometer – ...e-eu, eu vou me comportar.
_Vai?
_Vou.
_Hum... – a Mia murmurou no meu ouvido – Mas e as minhas aulas?
 
Para, desgraça.
 
Olhei para ela e ela riu – “não faz isso, Mia”. “O quê?”, ela me olhava de volta, com desaforo e um sorriso no canto da boca. Aquela garota ia me matar.
 
_Ah, é? – retruquei, a desafiando de volta – Quer brincar?
 
“Então vamos”, coloquei as duas mãos atrás das suas pernas e a peguei no colo. Dei dois passos para o lado e a coloquei sobre o capô do carro, praticamente deitada. Subi em cima dela. E a Mia segurou o meu rosto, me beijando num impulso. Desci a língua pelo seu pescoço e lambi mordi beijei a curva do seu ombro. Então ela me puxou pelo jeans, com metade da mão dobrada para dentro da minha calça – por cima do botão da frente, é. Me segurando ali entre as suas coxas. Subi a boca até a sua e fui descendo as mãos pelas suas pernas até a barra daquele vestidinho, deslizei os dedos pela lateral da sua calcinha e comecei a tirá-la, em meio a uns beijos gostosos.
 
_N-não... – a Mia segurou a minha mão, entre um fôlego e outro – ...aqui não.
_Hum... – eu ri, com a boca ainda na sua e a calcinha entre os meus dedos, subindo-a de volta pelas suas pernas – ...achei que você queria umas aulas.
_E-eu... – me puxou para si, ofegante – ...quero.
_É? – falei baixinho – Então posso tirar?
 
A Mia parou de me beijar e me olhou, indignada.
 
_Cê não vale nada... – riu – ...meu deus.
_Eu?! – sorri também, com as mãos ainda nas suas coxas – Você que começou... Não tava falando aí que queria umas aulas... – deslizei os dedos para debaixo do seu vestido – Vou te dar umas aulas, então.
_Não, não – ela achou graça.
_Ah, não?!
_Era só brincadeira!
_Era? – me fiz de indignada, segurando o riso, e tirei as mãos dela – Vai ficar brincando com os meus sentimentos, então. É isso?
_E os seus sentimentos ficam na sua calça, por acaso?
_Vai à merda...
 
Eu ri e me virei, apoiando o corpo contra o carro, em pé na calçada. “Vem cá! Vem...”, a Mia sorriu e deslizou no capô, me abraçando por trás, com uma perna de cada lado do meu quadril e os braços por cima dos meus ombros.
 
_Eu, não... – fiz graça, dando de ombros.
 
Mas aí, claro, comecei a rir. Então ela me puxou para trás, me beijando sobre o capô.

maio 25, 2010

Inside + Out

I'm the girl
Who loves you inside and out
Backwards and forwards
With my heart hanging out
I love no other way

(Feist)

Itaim Bibi

_PORRA, PUTA CARA MALA!
 
A Mia revirou os olhos e riu, aliviada, se metendo noite afora comigo pelas ruas do Itaim. Colocou o braço sobre o meu ombro conforme a gente virava a esquina, colocando todo peso em cima de mim, nuns movimentos exagerados pela tequila. Caminhando com ares de satisfação pelo escracho que demos no cara. A gente ria e se olhava, caralho. Que mulher. Nem eu conseguia explicar o tesão que me dava. Que se dane. Assim que passamos por um casal que passeava com o cachorro, peguei a Mia pela cintura e a encostei contra o muro de um prédio qualquer. Ela sorriu, me puxando para perto. E nos beijamos. Num desses beijos impulsivos, ainda tomadas pela adrenalina da discussão no bar. “Cê acha que ele vai vir atrás da gente?”, a Mia cochichava e a gente ria, entre um beijo e outro, “não”.
 
Apoiei uma das mãos no muro e coloquei a outra em volta da cintura dela, descendo com a boca pela sua orelha até o seu pescoço. Mas de repente, a Mia se ergueu em pé e tocou o meu ombro, como se indicasse para eu parar. Merda. Olhei para o lado na mesma hora, com a certeza de que era o idiota de novo, mas não tinha ninguém ali – só uma senhorinha na calçada oposta. Por que paramos então? Olhei para a Mia e ela tinha o olhar fixo na velhinha. Em cada passo que ela dava. E então me dei conta de que o problema era ela.
 
Achei graça.
 
Essa é a minha vida agora, pensei com certa ironia, tretando com marmanjo e me escondendo de velhinhas. Comecei a rir. Com as mãos bem longe de mim, a Mia acompanhava cada metro andado. Pois é, logo ela – tatuada da cabeça aos pés, 14 mm de alargador em cada orelha e vestida dum jeito que faria qualquer tio careta se benzer no metrô, mas... isso era o que a constrangia. Estar comigo. Com uma mina. Era quase fofo. Tirei o maço do bolso e me apoiei no muro, esperando pacientemente a senhorinha passar. Ela caminhava vagarosamente do outro lado da rua, já quase de costas para nós. Acendi um cigarro, me divertindo com a situação. “Quê?”, a Mia perguntou. E eu sorri, “nada”.
 
Ela pegou então o cigarro da minha mão e deu um trago, cruzando os braços em frente ao corpo – “aquele babaca ainda me fez perder metade dum cigarro no meio da treta, acredita”, resmungou. “Escroto demais”. “É”. “Cuzão”. “Desgraçado”. “Cretino”. Nos olhamos, entre um xingamento e outro, e rimos. Com já a senhorinha a uma distância segura, a Mia ficou de frente para mim, se movendo mais livremente na calçada.
 
_Então, me conta... – pediu então, colocando os braços de volta ao redor do meu pescoço – ...qual a pior briga que cê já entrou?
_A pior? – eu ri.
 
E balancei a cabeça, achando graça na pergunta.
 
_Não sei... – dei um trago e coloquei as mãos na cintura dela, genuinamente sem saber o que responder – ...acho que só discuti assim quando eu era mais nova, sempre tem uns caras folgados.
_Acontece muito?
_Muito. Uma vez dei um soco num, lá na Bubu...
_Sério?!
_Ah, eu tava muito bêbada. Foi uns anos atrás. Tava pegando uma mina e ele tentou entrar no meio, umas duas ou três vezes. Eu empurrava toda vez que ele vinha pra cima, aí a gente continuava se beijando, mas uma hora perdi a paciência...
_Mano... – revirou os olhos – Não dá. Esses caras são muito nojentos.
_São. Num tenho saco para macho bêbado.
 
Ou sóbrio.
 
_Mas e você... Nunca tomou um?
_Um o quê? – achei graça, abraçada ali com ela contra o muro – Um soco?
_É.
_Não. Soco, não... – ri.
_Mas tapa já, né? Sei bem que tipo de tapa cê levou...
_Ah, meu... – respondi, sem completar a frase, com vontade de beijar ela de novo.
_Espera, espera – se afastou, curiosa – Quero saber. Me conta.
_Não... – eu ri – ...deixa quieto, eu não vou falar disso.
_ME CONTA!
_Não... – me soltei dos braços dela e comecei a andar, querendo mudar de assunto – ...vem, vamos mais para lá.
_NÃO! ME CONTA!
_Sem chance – eu ri, parando na esquina e colocando o cigarro na boca – E escuta, por que só eu tô me humilhando aqui?
_Volta aqui, meu! – a Mia riu também – Cê não sabe nem onde tá indo...
_Sei, sim.
 
Atravessei a rua e a Mia apertou o passo atrás de mim, me alcançando com um abraço pelas costas.
 
_A gente vai se perder, sua louca!
_Claro que não! – tirei o cigarro da boca, ofendida – Eu sei onde a gente tá. Tem um bar sapatão a umas duas ou três quadras para lá...
_Sei.
_Tem mesmo, mano! Cê acha que eu tô inventando? – eu ri – O Vermont, é aqui pertinho.
_Nunca ouvi falar.
_Olha, não sei como, porque só vai umas minas assim cheias da grana... – a provoquei – ...que nem você.
_Vai se foder!
_Quê?! – fiz graça – Eu curto umas princesinhas...
 
A Mia revirou os olhos, indignada. Tentei trazê-la para perto de mim, enquanto ela se desvencilhava das minhas mãos e atravessava a rua de volta, na direção do bar, me mandando à merda. Corri para alcançá-la na outra quadra. Ela já estava a uns cinco metros do limite da calçada quando a segurei pela mão, “vem cá, meu!”. “Não”. Virei o seu corpo e o puxei na direção do meu, colocando os meus braços ao redor da sua cintura, tomando cuidado para não queimá-la com o cigarro. “Idiota!”. Me xingou e tentei segurá-la para que não se soltasse, mas quase caímos no chão, bêbadas. Nós duas não conseguíamos parar de rir.
 
Ou de tropeçar.
 
_Retire o que disse! – ordenou.
_Não falei por mal, e-eu disse que gost...
_RETIRE O QUE DISSE!
_Ok, ok. Você não é cheia da grana... – tentei segurar o riso – ...e nem princesinha, tá. Feliz?
_Babaca...
_Ah, é! – lembrei – E, também, não mora com os pais num prédio imenso de um por andar em Higienópolis...
_Vai à merda!
 
Ela se indignou, de novo. Eu ri mais ainda e ela me empurrou para trás, se soltando dos meus braços. Pôs-se a andar, reclamando bêbada da “impressão errada que eu tinha dela” e o caralho a quatro, mas não chegou a dar nem dez passos adiante. A segurei, de novo, pela mão e a puxei na minha direção. Dessa vez, mais apertada ainda nos meus braços:
 
_Cê é besta, meu? – eu a abracei e a olhei, com seriedade – Você é perfeita, garota.
 
As palavras mal saíram da minha boca e ela me beijou.

maio 24, 2010

O pasto

Desde que a porcaria da Lei Anti-Fumo foi aprovada, a cidade de São Paulo entrou em estado de sítio. Os fumantes viraram uns terroristas em potencial, perdendo seus direitos para o Estado – o que não me incomodava tanto, afinal, sempre curti uma ilegalidade. Dava qualquer desculpa para poder quebrar uma regra.
 
Mas, puta que pariu, esses cercadinhos de vaca são foda.
 
Sair da balada para fumar numa área protegida por grades me fazia sentir a escória da humanidade. Pior ainda é quando o estabelecimento resolve economizar uns trocados e restringir nossos metros quadrados com aquelas fitas listradas de amarelo e preto. Me sentia uma assassina. Assassina serial de tabaco.
 
O bar onde estávamos naquela noite era adepto do estilo homicídio-ao-ar-livre. Em meio à cena do crime, dividindo a calçada com outras vinte pessoas que se espremiam no perímetro demarcado pela fita, estávamos eu, a Mia... e o babaca. Mais babaca do que nunca, aliás. Conforme o tempo passava, a babaquice só piorava. Todo assunto que a gente começava era interrompido por aqueles 1,80m de pura preguiça e vergonha alheia. Que sequer fumando estava. Mas isso não o impediu de se aproximar da Mia e soltar um “acho sexy demais mina fumando” não-solicitado. Jesus, revirei os olhos.
 
_É? – a Mia tirou o cigarro lentamente do meio dos seus lábios e olhou na minha direção – Eu também.
_Pô, me vê um aí – o idiota me cutucou com as costas da mão, pedindo um cigarro.
 
Mas é muita audácia mesmo, eu pensei, enquanto negava o pedido mais absurdo da noite. Ele a cercava como um abutre.
 
_Hm, e esse “Mia”... É o quê? – ele ia falando arrastado, de tão bêbado – Inglês? Russo?
_Italiano.
_“Mamma Mia!” – ele gritou, num xaveco cafona.
 
Nós duas reviramos os olhos imediatamente.
 
_Quer dizer “minha”, não é?
_Não “sua”... – a Mia comentou, levantando as sobrancelhas ironicamente.
 
E eu comecei a rir.
 
_É, colega, acho que tá na hora de você ir arranjar aquele cigarro com outra pessoa... – aconselhei, já de saco cheio da presença dele – ...vai, já deu.
_Já deu o quê? D-do que cê tá falando?
_Só deixa a gente em paz, meu.
_Por quê? – ele perguntou, confuso, se virando para a Mia – Você tem namorado? 
 
É claro. O imbecil não podia ter feito uma pergunta mais desconfortável. Já não basta os caras respeitarem mais um namorado do que um “não” das minas, ele ainda tinha que tocar justo no assunto que nós tentamos evitar a noite inteira. Olhei para a Mia e ela abaixou a cabeça, desviando o olhar, sem saber o que responder na minha frente. Droga. Droga, droga. Eu precisava fazer alguma coisa.
 
_Amigo, vem... – coloquei o braço nas suas costas e o virei para a direção oposta, tentando tirá-lo de lá – ...por quê cê não vai dar uma volta?
 
Mas ele se soltou, incomodado com a minha intervenção, resmungando um “não, tô bem aqui”. Aí se voltou de novo para a Mia, daquele jeito sem limites que os caras ficam quando ouvem um “não”.
 
_Tô conversando com ela – reclamou na minha direção – Dá licença?!
_Colega, vai, tamo pedindo numa boa...
_Não sei por que você tá se metendo! – retrucou – Quem tem que me falar se está interessada ou não é ela!!
_Eu não tô – a Mia rebateu, na mesma hora.
_Aí sua resposta! Agora vaza.
_Espera – ele riu alcoolizado, se virando indignado para a Mia – Cê tá falando sério?!
_Cara, sim. Tamo querendo fumar em paz desde que viemos aqui pra fora.
_Mas a gente tava trocando ideia até agora, qual é! – a pegou pelo braço, como lhe devesse algo.
_Me solta, porra! – a Mia puxou o braço de volta.
_Vai ficar bravinha agora?! – riu do desconforto dela – Que foi?
 
A Mia virou o corpo, tentando evitar o cara. Ele se aproximou ainda mais.
 
_Só um beijo, então, e eu vou embora – insistiu.
_NÃO, MEU!
_Hum. Você é muito bonita, sabia... – a ignorou, pegando no cabelo dela.
_Mano – me enfiei no meio – Cê não tá escutando? ELA NÃO QUER!
_Velho, qual é, NÃO SE METE! – ele se irritou comigo – TÔ FALANDO COM ELA, NÃO COM VOCÊ!
_MAS ELA NÃO QUER FALAR COM VOCÊ, PORRA. JÁ DISSE TRÊS VEZES QUE NÃO!
_Ô Mia... – tentou pegar na mão dela e ela se desvencilhou – Mia, fala para sua amiga que tamo numa boa.
_Deixa ela em paz, mano, CHEGA!
_CHEGA O QUÊ?! – ele levantou a voz, vindo para cima de mim – VOCÊ QUE TÁ CAUSANDO!
_EU?! – ri – SE ENXERGA, VELHO! CARALHO, É TÃO DIFÍCIL ASSIM? A MINA NÃO TÁ AFIM, PORRA, SÓ VIRA AS COSTAS E VAZA! 
_E QUÊ QUE CÊ TEM A VER COM ISSO?!
_TEM QUE EU VIM COM ELA, BABACA! – a Mia respondeu, se metendo.
_E DAÍ?!
_JESUS! – suspirei, irritada – Deixa eu ver se fica claro assim: “comigo” no sentido Cássia Eller da coisa, entendeu? Colar o velcro, colega, lamber carpete, rachar a bolacha, abrir a sapataria... –ele me olhou, confuso – ...fancha, entendida, SAPATÃO.
_N-não... não mesmo. NEM A PAU!
_Cara, só vaza. Não vai rolar.
_Cês tão tirando com a minha cara... – ele balançou a cabeça, completamente bêbado.
_Não tamo, AGORA VAZA!
_Se cês tão junta mesmo, ENTÃO DÁ UM BEIJO AÍ PARA EU VER!
 
E lá estavam elas. As palavras que nenhuma sapatão aguenta mais ouvir – o beija-aí-então é o ápice da escrotice masculina. Aquele misto deplorável de desrespeito, como se a sua sexualidade precisasse ser provada para ser levada a sério – e dá vontade de fazer só para esfregar na cara –, com um asco tremendo de saber que qualquer beijo que você der só vai alimentar uma fantasia punheteira adolescente do cara de ver duas minas se pegando. Me recuso a dar prazer para esse idiota.
 
Antes que eu pudesse retrucar, todavia, a Mia entrou na minha frente:
 
_Dá o quê?! – o encarou, puta da vida – O que você falou??
_Dá um beijo na sua amiga aí!
_Tenho uma ideia melhor, por que eu NÃO TE DOU UM DEDO?? – levantou o do meio na cara dele – E VOCÊ ENFIA NO SEU CU!!! QUEM VOCÊ PENSA QUE É?? CÊ ACHA QUE A GENTE TÁ AQUI PRA SUA DIVERSÃO, SEU BABACA?!
_TIRA A MÃO DA MINHA CARA, VADIA!!
 
Ele a empurrou e, na mesma hora, eu o empurrei de volta. Aconteceu tudo muito rápido. Um cara que estava do lado segurou o idiota antes que ele viesse para cima de mim, me xingando. E a situação saiu do controle. Numa confusão barulhenta, podia ouvir a Mia gritando com o mano por cima do meu ombro, eu o xingava de volta, as pessoas foram se metendo no meio e os seguranças da porta começaram a cortar caminho pela aglomeração da área de fumantes para chegar onde estávamos. Vai dar merda. Olhei para a Mia, em meio ao caos, e a peguei pela mão:
 
_Vamos dar uma volta, eu e você... – eu disse, levantando a fita ilegalmente.
 
Demos as costas e saímos em direção à rua, largando o babaca entre outros fumantes desconhecidos, que se meteram na briga. Não demos nem três passos na calçada e a Mia soltou a minha mão, por um instante, virando-se de novo para o cara na área cercada. E berrou:
 
_APRENDE A RESPEITAR AS MINAS, ARROMBADO!

maio 23, 2010

Mojo

Os primeiros shots foram fáceis. Sal. José. Limão. Colocamos nossos copos vazios de volta no bar e nos olhamos, a Mia arqueou a sobrancelha na minha direção. I m p r e s t á v e l. Os segundos vieram logo em seguida, num impulso irracional – e corajoso – dela. Eu me obriguei a acompanhar. Para não ficar feio, né. Já os terceiros foram sugeridos intimados pelo Gabriel uns quarenta minutos depois, um pouco antes da banda entrar no palco. Eu e a Mia combinamos de dividir o copo, já consideravelmente bêbadas. O nosso plano, todavia, acabou sendo descoberto e o grupo inteiro reclamou da nossa covardia. Merda.
 
_Que se dane, vamos lá... – eu respirei fundo e virei tudo de uma vez.
 
E essas foram as minhas últimas palavras sãs da noite. O que se seguiu foi uma gritaria crescente, competindo com os músicos, Peixoto & Maxado, naquela zona caótica dos bares paulistanos. Entre as cinco ou seis conversas paralelas que rolavam simultaneamente, indo e vindo de um lado para o outro nas rodinhas, me mantive constantemente virada para a Mia – ocupada em entretê-la com as minhas histórias e o meu papo furado. E ela ria. Está funcionando, surpreendentemente. Ou estaria, não é, não fosse pelo babaca parado do outro lado dela. Um idiota que insistia em puxar assunto, interessado nela. Homens e a sua ausência completa de noção.
 
Argh. Não tá vendo que ela veio comigo?
 
Odeio quando pressupõem amizade entre duas mulheres – ou pior, tratam nossa sexualidade como se fosse isca para macho. Aquilo me tirava do sério. Eu só queria que ele vazasse. Ignorando as investidas dele, os olhos da Mia buscavam os meus em meio àquele caos. E ela se movia perigosamente para perto. Espremidas entre tanta gente desconhecida, o calor da multidão e o cheiro de cerveja, de tequila, tudo parecia nos empurrar para mais perto uma da outra. Ela cochichava no meu ouvido, a mão apoiada no meu ombro, e eu podia quase sentir o seu gosto. Mas – tenho que fazer isso direito, pensei. Não sabia quando ia ter outra chance de estar assim com ela. E não queria só a sua boca – queria mesmo era a sua cabeça, entrar nos seus pensamentos, no seu coração. Entrar e ficar, sabe? E isso não era tão simples.
 
Mais ainda com aquele inconveniente empatando.
 
Saco. Não dá para entender essa incapacidade biológica dos homens de notar quando as minas simplesmente não tão afim. Toda a linguagem corporal da Mia o ignorava. O seu corpo estava inteiro voltado para mim. Os seus olhos desviavam toda vez que ele abria a boca. E ela o fuzilava com o olhar cada vez que ele a tocava para falar algo. Mas o trouxa continuava lá, inabalado, se achando a pica das galáxias. Chega. Não tinha mais paciência para aquilo. E como já estava no pique de tirar a Mia dali sair para fumar, sugeri que fôssemos dar uma volta sozinhas lá fora.
 
(...)
 
É. O imbecil não captou a parte do “sozinhas”.

maio 22, 2010

Conspirando

Quadrados, comprimidos e amarrotados – mas chegamos.
 
Até que enfim. Descemos atrapalhadamente, os quatro do banco de trás, um atrás do outro, desesperados por um pouquinho de ar e espaço. O ar conquistamos assim que saímos, aleluia, mas não demorou muito para nos darmos conta que o espaço deixaria a desejar – o bar estava completamente lotado. A fila se estendia até a esquina.
 
Inferno.
 
Destemidos, os garotos e a namorada praticamente muda do meu amigo seguiram em direção à porta, dispostos a enfrentar a muvuca do show. Eu, por minha vez, não estava lá muito animada em perder a liberdade conquistada nos últimos segundos. A Mia hesitou em meio à calçada, meio perdida. Parecia não saber direito como agir naquela situação – um fucking encontro comigo –, mal olhando na minha direção. Eu também estava nervosa, mas certamente já tinha tido mais encontros com garotas do que ela. A rua estava tomada de gente e pelo som abafado da banda passando o som lá dentro. A segurei pela mão:
 
_Vamos dar um tempo aqui fora?
 
Ela me olhou, aliviada, e eu a puxei pela mão até a lateral do bar. Encostei na parede e me curvei, na tentativa de acender um baseado contra o vento. Quando finalmente consegui fazer a brasa pegar, levantei o rosto e olhei para a Mia ali. Em pé, parada na minha frente. O vento cortava os nossos braços, ambas encarando uma à outra em silêncio. No que diabos estamos nos metendo, garota? De repente, aquilo parecia real demais. E eu tentava não pensar no Fer – mas, é, era foda.
 
Respirei fundo, tentando me acalmar. Observando o seu rosto a meio metro de distância do meu. A Mia tinha uma pintinha no canto do olho – logo acima da curva formada pelas maçãs do seu rosto, pequenininha. Deixei escapar um sorriso. E a Mia o devolveu, timidamente. Podia te olhar a noite toda, sabia? A proximidade me dava vontade de beijá-la, mas isso e a ideia de que estava indo longe demais com a namorada do meu melhor amigo, a de que finalmente cruzava uma linha inaceitável, criavam sentimentos contraditórios em mim e o meu estômago embrulhava.
 
Desviei o olhar para o chão, tentando não me precipitar. Seria um beijo público demais para lhe pedir. Traguei mais uma vez. E assim que abaixei a mão novamente, a encostando na parede, senti os dedos dela envolvendo os meus e casualmente me roubando o baseado. Levantei o olhar na sua direção mais uma vez. E sem motivo, tomadas por um nervosismo bobo, nós duas meio rimos.
 
A Mia apoiou então na parede ao meu lado, tragando duas ou três vezes. Ombro a ombro comigo. O silêncio já começava a me incomodar – diz qualquer coisa, é a Mia, porra, eu tentava me acalmar, você fala com ela todo dia naquela droga daquele apartamento. Não entendia por que de repente era tão difícil abrir a boca. Toda a aglomeração de pessoas se concentrava na porta do bar e quase não passava ninguém ali onde paramos para fumar escondidas, numa ruazinha lateral e mal iluminada do Itaim. A fumaça saía da boca da Mia e desenhava curvas espessas no ar frio.
 
Me passou de volta o baseado e eu arqueei a sobrancelha, comentando por fim:
 
_Hmm... E o Florian semana passada, hein?
 
Não. Eu não sabia quem era Florian, não fazia a menor ideia. Duas horas antes, na maior cara de pau, joguei “UFC” e “lutas recentes” no Google para descobrir. E a Mia mordeu a isca – o clima mudou na mesma hora. Ela desembestou a falar sobre cada round que eu não havia visto, com dois caras que eu desconhecia por completo, numa competição que eu mal fazia ideia do que se tratava. E senti como se estivéssemos sentadas no sofá, em casa, numa tarde qualquer. Todo nervosismo sumiu. Ouvi ela descrever todos os movimentos e golpes deferidos com a mesma emoção que fãs de futebol discutem as partidas e suas minúcias. Praticamente num monólogo. Enquanto eu dava mais uma bola, quieta na minha, achando graça.
 
Após alguns minutos e sem ouvir uma só opinião sair da minha boca, a Mia parou de repente de falar:
 
_Você não viu a luta, né? – se deu conta, então.
_Não.
 
Sequer consegui conter o riso. Desculpa, gata. E a Mia me olhou como se fosse a última pessoa ainda segurando as cartas numa partida de porco, quando todo mundo já abaixou as suas.
 
_Você é ridícula, sabia? – ela riu.
_Ih, cê não viu nada ainda. Espera só até a gente entrar e tomar umas... – pisquei na sua direção – Vou te contar tudo o que eu aprendi hoje sobre o “Terror”, “El Conquistador”, o “Aranha”, a internet é uma maravilha.
_Meu deus! – ela revirou os olhos, indignada.
 
A Mia balançou a cabeça, achando graça, como se não acreditasse na minha honestidade. Pegou mais uma vez o baseado da minha mão e se virou na minha direção, encostando a cabeça na parede.
 
_Cê gosta de tirar uma com a minha cara, né...
_Olha... – justifiquei – ...até gosto, mas também acho essa a coisa mais sapatão que tem em você. Então sou 100% a favor.
_Jura. Mais sapatão do que estar aqui com você?
_Não – ri.
_Hum... – a Mia sorriu e falou baixinho, se aproximando do meu ouvido – ...mais sapatão do que o que gente fez lá em casa?
 
Puta merda.
 
Antes que eu pudesse reagir – e digo, eu teria beijado ela contra aquela parede na hora –, a Mia riu e colocou o braço ao redor dos meus ombros, me olhando como se eu não prestasse um centavo. E eu não prestava nem meio.
 
_Vem, vamos entrar... – ela riu.

maio 18, 2010

A agonia dos sem carro

Quinta-feira à noite e o menor ponteiro do relógio da cozinha escorregava vagarosamente para o número 10. Eu o encarava, impaciente, abrindo o quarto maço desde segunda com as mãos ansiosas. Vestia a minha melhor regata preta por cima de um skinny jeans surrado que beirava a piranhagem caminhão, com os braços e as tatuagens de fora. E o cabelo naquele desbotado-grunge feito em casa de qualquer jeito, bagunçado como sempre. Pronto.
 
Na verdade, estava “pronta” já há quase vinte minutos. Cadê a porra do Gabriel, mano?, eu apoiava os cotovelos na mesa e tragava o cigarro, olhando para o relógio na parede. O combinado era que ele passaria com o carro para me pegar às 21:45 e eu, que nunca fui pontual, estava milagrosamente a postos muito antes disso. Agora esperava ansiosamente pela minha carona, a um minuto de distância de um enfarte.
 
O apartamento estava vazio e silencioso. E era bom que estivesse – eu não queria encontrar com o Fer. Nos falamos horas antes, por SMS, e ele avisou que chegaria só mais tarde, mas não disse quando. E “mais tarde” já poderia ser naquele exato momento. Isso não é bom, eu me precipitava. Torcendo com todas as minhas forças para que o Gabriel chegasse antes dele e, assim, me evitasse um encontro constrangedor com o namorado da garota que eu estava prestes a levar para sair. A culpa acabaria com a minha noite – e eu não conseguia evitar senão pensar que, se isso acontecesse, seria um puta de um desperdício.
 
E o prêmio de “Canalha do Século” vai para...
 
...enfim, o meu telefone tocou. Para a minha sorte, era minha carona. Saí com pressa da cadeira, sem gastar mais um segundo naquele apartamento. Apaguei todas as luzes rapidamente, coloquei o celular no bolso e peguei as chaves de casa antes de sair. Eu gostava de andar por aquele corredor sem saber quando iria voltar. Com sorte, na manhã seguinte. Atravessei o meu andar em direção ao elevador, tentando terminar o cigarro antes de chegar na porta metálica.
 
A rua estava quase vazia, ocupada por um vento leve e frio tipicamente paulistano, e o carro do meu amigo se mostrou mais cheio do que o esperado. Dividi o banco de trás com dois colegas de faculdade dele – futuros publicitários, um deles viado – enquanto o Gabriel assumia a direção com a namorada ao seu lado. E ainda faltava a Mia. Como diabos vamos caber todos nesse carro?, calculei. E rapidamente cheguei à conclusão de que só sobrava lugar no meu colo.
 
Vai caber certinho.
 
Não via o Gabriel há uns bons meses. Ele era um amigo meu de alguns anos já e um dos poucos que não tinha em comum com o Fernando. A gente tinha se conhecido ao acaso num buraco indie chamado Atari e desde então mantivemos contato esporádico. Na época, eu estava me separando de uma garota-problema que arranjei, numa das piores decisões da minha vida, para me distrair após o fim turbulento e bem mal resolvido do meu namoro de onze meses com a Marina. O resultado foi um caos. Foram algumas semanas infernais desastrosas atravessadas graças a uma quantidade inacreditável aspirinas, uma ressaca após a outra, atormentada por centenas de ligações psicopatas para o meu celular numa indignação pelo término daquele casinho-de-consolo que mal começou. Quando saía para espairecer não podia nem ver mulher na minha frente e, numa dessas, acabei trombando com um Gabriel extremamente bêbado no Atari. Foi amizade instantânea.
 
Agora, apesar da grande consideração que ele havia adquirido por mim ao longo dos anos e de todas as furadas amorosas que enfrentamos, não estava sendo fácil convencê-lo a buscar minha garota lá em Higienópolis. Sendo que, , o bar ficava pros lados do Itaim. Era até sacanagem fazer um pedido desses. E eu podia sentir o ódio-mudo de cada integrante daquele carro enquanto seguíamos na direção totalmente oposta por longos minutos.
 
_É aqui! – anunciei, assim que avistei o prédio da Mia.
 
Dei um toque no celular dela e ela logo saiu pelo portão, como se já estivesse esperando lá embaixo há algum tempo. A namorada do Gabriel me deu passagem e eu desci do carro, ganhando um sorriso da Mia assim que ela me viu. Ela atravessou a calçada naquele vestido curtíssimo, perfeita, com as pernas me matando lentamente. O meu coração não ia aguentar.

maio 16, 2010

Antecipação

...e pessimismo, é.
 
Pessimismo nada mais é do que a capacidade fenomenal que alguns têm de ver o lado ruim de absolutamente todas as coisas, inclusive as boas. E dentre os muitos dotados de tal habilidade, inclui-se a minha pessoa. O que começou com um “sim” e o sentimento de finalmente ter obtido algum sucesso naquele triângulo amoroso de merda, transformou-se rapidamente num “chega logo” e naquela agonia esmagadora, insuportável de ainda ser segunda-feira.
 
Do momento em que baixei o celular na mesa – satisfeita com a resposta da Mia – em diante, os segundos se prolongaram de maneira terrivelmente cruel e a consciência de que cada minuto tem 60 desses segundos e cada hora tem 60 desses minutos e cada dia tem 24 dessas horas e que pra porra da noite de quinta ainda faltavam três dias inteiros – divididos entre 8 horas de trabalho e uma hora de almoço e algumas horas de sono e mais outras de absolutamente nada além de pensar obsessivamente na porra do meu encontro com a Mia –, digamos, piorava bastante a minha ansiedade. Eu era pura expectativa pelas minhas horas e minutos e segundos sozinha com a Mia. E ainda era segunda-feira. Pois é.
 
Em três dias, adivinha quantos cigarros eu fumei?

maio 14, 2010

R$ 4,10

Dei uma nota de cinco para o tiozinho do caixa e disse que ele poderia guardar o troco. Saí andando pela calçada, sem pressa, com um cigarro numa das mãos e o celular na outra. Nenhuma resposta ainda. Entre uma tragada e outra, caminhando de volta para o estúdio, eu olhava para a tela para me certificar se o alerta de um novo SMS não teria passado despercebido por mim. Mas, nada. Droga. Depois de dez segundos, checava de novo. E de novo. Obsessivamente.
 
Apesar dos passos lentos, cheguei no estúdio antes de terminar o meu cigarro, timing ruim, e fui obrigada a parar na porta por algum tempo. Por fim, joguei a bituca na rua e me preparei para voltar ao trabalho. Quando estava passando pelo corredor, meu celular vibrou e a minha cabeça foi a mil no mesmo segundo. Olhei apressada para a tela e me deparei com um SMS aleatório de um amigo meu, me convidando para um show naquela quinta.
 
Não respondi, só de birra.
 
Trabalho, trabalho, trabalho. Mia, Mia, Mia. Mais trabalho. Quinze minutos de labuta depois e nada, resolvi desistir e parar de encarar meu telefone a cada segundo. Como diria minha avó, “se ficar espiando o forno, o bolo não cresce”. E assim sendo, voltei aos meus afazeres rotineiros. Tentando ao máximo não pensar naquela tela virada para baixo contra a minha mesa. E não demorou muito para a sabedoria da vó se provar verdadeira e o nome da Mia piscar na minha tela, iluminando a superfície ao redor – “eu tb. qria sair qqr dia so eu e vc... pra qqr lugar, vms?”.
 
Sorri na mesma hora, sentindo uma felicidade boba encher meu estômago de borboletas. Ô, se vamos. Coloquei minha cabeça para pensar, urgentemente, em qualquer programa que soasse legal. Não queria pedir que ela desse as cartas, queria mostrar que eu sabia jogar. O problema era que todos os lugares que eu frequentava estavam abarrotados de conhecidos, meus e do Fer. E isso incluía todas as baladas e casas de show e bares próximos do nosso apartamento.
 
Droga.
 
A questão, mesmo que não colocada dessa forma, é que aquele seria o meu primeiro encontro com ela. E era ela. A Mia. E como todas as coisas relacionadas a ela, uma simples mensagem se tornou um grande problema. Sabia que podia levá-la para qualquer lugar, ela não era do tipo que ligava para essas coisas. A Mia estava pouco se fodendo – era capaz de se entreter por horas na sarjeta suja da Augusta, munida só de cerveja barata e uma disposição infinita para encher o saco dos amigos headbangers do Fer que se levavam a sério demais. Não precisava de muito. Mas, sei lá, queria que ela realmente se divertisse. E que quisesse sair comigo de novo – então precisava fazer direito.
 
Um jantar? Sem graça. Sinuca? Não, ela não tá pronta para essa sapatonice toda, me diverti. Cinema? Acaba rápido demais. Barzinho? Não, também não, puta coisa playboy. Boteco? Mano, não é possível que eu não consiga pensar em nada melhor que isso. A tarefa começou a se revelar mais difícil do que o esperado. Até que, de repente, me lembrei da mensagem do meu amigo – a que eu ignorara meia hora antes. É, essa. Ela resolvia todo o problema.
 
Porra, como não pensei nisso? 

maio 12, 2010

Na pausa

O shoot demorou uma eternidade para terminar e só fui finalmente liberada para o almoço horas depois do normal. Antissocial como sempre, ignorei os convites dos meus colegas de trabalho de ir para um restaurante arrumadinho nas redondezas e optei pelo boteco da esquina. Enchi rapidamente o meu estômago com um sanduíche barato trashera e meio litro de Coca-Cola, acompanhados por um ou dois cigarros.
 
Enquanto sentava lá, apreciando aquela refeição orgulho-junkie, olhei para o celular inúmeras vezes, ainda com a Mia na minha cabeça. Não, raciocinei, nada a ver ligar pra ela agora. Não, né? Eu me desdobrava em uma discussão interna comigo mesma, mas a ideia ainda me perseguia e eu sentia uma vontade incontrolável de esquematizar um possível encontro. Terminei o lanche e acendi mais um cigarro, botecos como aquele eram os poucos portos-seguros restantes para fumantes em São Paulo. Além do que, ela provavelmente está na aula a essa hora, retomei meu pensamento. Ou será que não?
 
Dois caras sentados a alguns metros de mim no balcão me olhavam daquele jeito irritante que eles olham para qualquer mina sozinha – me enojando até a morte. Argh. Voltei a focar no celular e nas minhas expectativas improváveis para aquela noite. Desisti da ideia de ligar para a Mia – os limites do nosso relacionamento, do que era ou não natural fazermos, não estavam muito claros. E eu tinha a constante sensação de que qualquer passo em falso podia assustá-la. Ainda assim sabia que precisava iniciar algum tipo de contato, caso quisesse mesmo levar aquilo a diante. E como sempre, a única solução restante me parecia ser um SMS.
 
O problema aí eram as evidências – e, quando se trata da namorada do seu melhor amigo, é melhor não ter nada com o seu nome assinado embaixo. Céus. Ainda vou me ferrar nessa, hesitei, olhando para a tela do celular. Mas conforme o meu cigarro se aproximava do fim, não aguentei.
 
“Ñ consigo parar de pensar em vc e no que vc disse ontem. Qro te ver.”
 
Digitei numa tacada só e mandei.

Olheiras

…e um humor fantástico pra caralho.
 
Me espremi entre os outros assalariados que enfrentavam a superlotação insuportável do metrô naquela segunda-feira de manhã. O aperto me obrigava a entrar em contato físico direto com cinco ou seis completos desconhecidos, causando aquela claustrofobia matinal desprezível. Argh. A situação toda era mais do que suficiente para me deixar rabugenta pelo resto do dia inteiro, mas – a Mia quer me comer. E isso melhora o dia de qualquer uma, não é?
 
Pois sorri o trajeto todo.
 
Aproveito aqui para esclarecer que nunca acreditei muito nessa baboseira de ativa ou passiva. Sempre achei uma puta mentalidade heterossexual – e portanto, limitada. Gostava mesmo era de mina participativa. Não sei, existe certa subversividade em transar com alguém do mesmo sexo que você, uma inerente quebra de regras, e sinceramente nunca vi sentido em limitar isso. Quando ia para a cama, não queria ir por um lado só; gostava de garotas que me acompanhassem pela porra do perímetro inteiro. E mais ainda, as que me levavam para fora dele. Que destruíam todos os padrões. Desrespeitavam todas as regras. E aquela disposição toda da Mia estava me deixando louca desde a noite anterior. As tais aulas me tiraram o sono, transbordando a minha cabeça de sacanagem. Sozinha no quarto e com aquela vontade desgraçada dela, caralho. E o pior nem era isso – era a ausência completa de cansaço. Porque, para quem acordou às cinco da tarde no domingo, não havia chance de eu conseguir dormir cedo. Sendo assim, a tortura se arrastou por horas.
 
Cheguei no trabalho na segunda de manhã, atrasada e nitidamente destruída depois de um fim de semana interminável, seguido por uma madrugada inteira de, hum, antecipação e imaginação. Ainda assim, não conseguia evitar aquele sorriso tonto de um lado ao outro da cara – não pensava em outra coisa que não a Mia. E nem queria. Revivendo os nossos beijos na noite anterior e lembrando a forma exata como a boca dela pronunciou cada palavra na porta. A sua intenção por trás delas. Existem vários tipos de crueldade, mas, meu deus, aquela era a melhor delas.
 
_Hum... – a mina da recepção zombou, ao me ver entrar feliz no estúdio – ...pelo jeito, você continua casada, hein?!
 
A memória indesejada da minha semana com a Dani, àquela hora da manhã, me fez querer retrucar. E mandar à merda. Entretanto, não ia deixar que um comentáriozinho insignificante alterasse o meu humor. Sorri de volta ironicamente e isso bastou. Passei na cozinha e descolei um café, antes de dar de cara com o meu chefe dentro do estúdio. Ele estava furioso. Me puxou imediatamente para um canto e deu bronca por ter chegado atrasada num dia de sessão. Moda, revirei os olhos, quem se importa? As palavras dele atravessaram por um ouvido e saíram pelo outro, a única coisa que continuava na minha cabeça era ela – a Mia. Mil vezes a Mia.
 
Pelo resto da manhã perambulei de um canto a outro do set, obedecendo tudo o que me era requisitado, a fim de manter meu emprego – mas sem prestar muita atenção em nada. Não realmente. Tudo o que eu conseguia pensar era em sair dali às 18h e ir direto para a casa da Mia dar umas aulas bem dadas para aquela mulher. 

maio 10, 2010

OST 1 ♥

Saiu a primeira trilha sonora do blog! Clique nas músicas abaixo para ver onde elas aparecem na história ou clique aqui para ouvir a trilha completa no Spotify.
 

maio 09, 2010

Não é justo

Estávamos metidas, eu e a Mia, nuns erros beijos sem fim.
 
E eu deveria parar. Deveria. Mas cada vez que pensava em recuar, meu corpo já estava puxando-a de volta. Todo o resto desaparecia. Ainda assim, eu me controlava. E é – é difícil se controlar com a mulher que você ama praticamente subindo no seu colo, não é, mas eu não podia arriscar. Não com o Fernando em casa. Um beijo flagrado ainda é mais justificável do que “perdi minha integridade e fui procurar no meio das pernas da sua namorada”. Melhor evitar ideias potencialmente idiotas, pensei.
 
Não que o que quer que estivéssemos fazendo ali fosse muito inteligente para começo de conversa. E a Mia, claro, não ajudava. Suas mãos subiam incertas pela minha nuca, pelos meus ombros, como se não soubessem ao certo o que fazer, até onde ir, mas não conseguissem parar de me procurar. E se ela não parava, eu também não conseguia. Como você impede a sua mente de ter os pensamentos mais sujos? As suas mãos de abrir caminho entre a..., aquelas coxas? Meu deus, não dá. Era tortura.
 
Minhas mãos ensaiavam e abortavam todos os tipos de movimentos mais indiscretos. Detidas sempre pela memória da porta destrancada, ali, ao nosso lado. Quanto mais o tempo passava, todavia, o autocontrole se tornava uma tarefa cada vez mais difícil. Seus lábios não soltavam os meus por um segundo sequer, sentia a sua língua na minha e aquilo me enlouquecia. Foda-se. Perdi a linha e a trouxe para o meu colo.  A Mia colocou uma perna de cada lado do meu corpo, me beijando forte de volta. Numa urgência proporcional ao medo de sermos descobertas. Ia fazendo uns gemidos baixinhos entre um beijo e outro, respirando fundo – sabe, aqueles? Senti que ia perder totalmente a cabeça.
 
E aí a brincadeira começou a ficar perigosa.
 
Enchia minhas mãos com as coxas da Mia e pensava, se o Fer entrar... Sentia o seu corpo oscilar contra o meu. Perto demais. Mano, se o Fer entrar... Deslizava as minhas mãos para a curva entre as suas pernas e o seu quadril, a segurando firme no meu colo. Porra, se o Fer entrar... Ela me agarrava pelo cabelo e me beijava com tesão. Caralho, se o Fer entrar... Eu subia minhas mãos por debaixo da sua blusa, s-se, se o Fer entrar... Filha-da-mãe, a Mia curvava o corpo para frente, pressionando os seios contra minhas mãos e... puta que pariu. Isso vai dar merda.
 
_Melhor... – tirei as mãos da sua camiseta, num lapso de bom senso, antes que fosse tarde – ...m-melhor a gente parar por aqui.
_N-não... vem cá! – a Mia murmurou, sua boca ainda colada na minha.
_O Fer...
 
Argumentei, recuperando o fôlego.
 
E senti o meio molhado das minhas pernas. Cacete. A olhei por um instante, com uma vontade desgraçada. Esfreguei a mão na boca, tentando me forçar ao autocontrole. Porra, mas que merda. Merda! A Mia continuava no meu colo, naquele moletom que tornava tudo mais difícil, como se fôssemos só eu e ela numa noite qualquer no meu quarto, como uma porra de um casal. No nosso próprio mundo. Tinha os cabelos levemente bagunçados, e tudo o que eu queria era ir para cama com ela. Destruir a minha integridade, a minha amizade com o Fer – o que precisasse ser feito só para estar com ela. Sentia o meu corpo inteiro pender na sua direção. Inferno. “Por que isso é tão difícil?”, ela encostou a testa na minha e sussurrou, ainda ofegante. E eu senti o meu coração apertar. 
 
Porra.
 
De olhos fechados, a Mia deslizou o seu rosto no meu, parando perto demais da minha boca. Mas a lembrança do Fer na sala agora nos impedia de seguir em frente – isso e o fato da tranca da porta não estar ao alcance das minhas mãos. Maldição. A Mia ergueu os olhos na minha direção, aqueles seus olhos castanhos que me faziam esquecer de respirar. E eu passei a mão no rosto, de novo, como se acordasse de um sonho, tentando esfriar a cabeça. A Mia achou graça.
 
E então saiu de cima de mim, ajeitando a camiseta de volta no lugar. Eu fiz o mesmo, nos levantamos – agora comportadas –, ela arrumou um pouco o cabelo para não dar bandeira e foi até a porta, já abrindo a maçaneta. Antes de sair, no entanto, se virou para um último comentário:
 
_E você ainda me deve umas aulas, viu?
_Aulas?
_É... Esqueceu sua promessa? – a Mia deixou um sorriso escapar no canto da boca.
_Como assim? Não. Espera! – a puxei de volta para dentro, a colocando contra a parede – Fala direito.
 
Aquilo mudava tudo. Tudo.
 
A Mia riu. Sabia que estava falando da conversa que tivemos no pátio do seu prédio, mas queria ouvir da sua boca. Uma coisa é você querer um doce, outra bem diferente é o doce pedir para você comer ele. Diz, garota, diz pra quê quer umas aulas minhas. Quero te ouvir falar. Um calor subiu pelo meu corpo. Meus dedos apertaram a sua cintura, a sua calça de moletom escorregava levemente no seu quadril, larga e macia, contrastando com o toque da sua pele sob a minha mão. Eu a olhava fixamente.
 
_Me conta o que cê quer aprender... – pedi, descendo minhas mãos.
_Não, não. Num outro dia...
 
De repente, todo o autocontrole de dois segundos antes foi por água abaixo.
 
_Só me lembra rapidinho... – insisti, a subindo no meu colo contra a parede, implorando, com vontade de dar aquelas aulas ali mesmo; e ela se divertiu com a minha mudança de atitude – O que era mesmo, hein?
_Hoje, não...
_Não faz isso...
_Outro dia, outro dia...
 
A Mia riu, me empurrando de cima dela. Não faz essa maldade comigo, vai. Mas ela se virou para sair, determinada a foder com a minha cabeça. A olhei, indignada, conforme ela ia fechando aquela maldita porta. “Cê tá de sacanagem”, contive o riso, falando baixo, “como diabos eu vou dormir hoje, mano?”. Mas a Mia deu de ombros, achando graça no meu sofrimento. E fechou a porta atrás de si.
 
Filha-da-mãe.

maio 07, 2010

Estática

Os olhos dela me encaravam de volta. E o ar parecia pesado demais para caber naquele quarto. Na minha imaginação, aqueles dez ou quinze centímetros ínfimos entre a minha boca e a dela se comprimiam lentamente. Só o tempo que se esticava – conforme o silêncio insistia nos meus lábios. Entre eles, cada respiração brotava curta, como se qualquer som pudesse atravessar a parede fina ao lado. O que eu quero fazer, minha mente repetia perigosamente, mas a minha consciência me impedia de lhe responder, alertando aos berros sobre o Fer. O Fer e a porra da tranca aberta na porta.
 
Ele não vai entrar, o perigo sussurrava no meu ouvido, me puxando na direção dela. E o tempo parou. Os olhos da Mia mal piscavam; o meu coração pulava uma, duas batidas, encarando-a de volta naquela distância cruel. Como um fio invisível tensionado entre nós, prestes a romper. Insuportável. A vontade de beijá-la começava a me dominar por inteiro. O que eu quero fazer, garota, você sabe, suspirei. Mantendo as mãos grudadas no chão. Mas foi então que, num impulso, a Mia se mexeu. Um milímetro. Um milímetro para frente. E a estática se desfez num instante.
 
No fim das contas, nunca fui muito boa de autocontrole.
 
Que se dane. Subi a minha mão no ar e as pontas dos meus dedos deslizaram pela lateral do seu rosto. Como mera desculpa para tocá-la. Não pensei, apenas percorri o contorno da sua face e continuei, pouco a pouco, até os seus lábios. Ela fechou os olhos, num reflexo, os entreabrindo. E eu me aproximei instintivamente, tirando a minha mão e a substituindo com um beijo. Era quase adolescente, um beijo assim.
 
Sentadas no chão, as pernas cruzadas e os pés descalços, o corpo dela sobre o meu, movidas por uma hesitação irresistível, o medo de sermos pegas. Fazia sentido – para a Mia, não para mim. Afinal, é aquele sentimento de primeiro romance, tudo de novo. Mas, e eu? Qual é a minha desculpa? O meu armário já estava aberto e escancarado há tempos, não havia nada de novo ali. Nada que justificasse aquele comportamento impensado. Muito pelo contrário.
 
Mas eu quero você, garota.
 
E queria com toda a minha vontade. Com todo o meu coração – cada pedaço. Não por um dia, por um beijo escondido aqui e ali e só: a queria de verdade. Então, a tomei. Com as duas mãos no seu rosto, uma de cada lado, a beijando inconsequentemente. E ela me buscou de volta, nos movendo juntas. Começou hesitante, mas logo se tornou mais intenso, como se nenhuma de nós conseguisse mais se segurar. Senti o seu corpo contra o meu, mesmo sabendo que não deveríamos fazer aquilo. Mas a essa altura, quem se importa? As circunstâncias nunca estiveram ao nosso favor de qualquer jeito.

maio 06, 2010

Tenso, tenso

Ficar sozinha com a Mia entre quatro paredes era sempre complicado. Mas ficar sozinha com a Mia entre quatro paredes e o Fer no apartamento, ah, aí já era bem mais complicado. Eu podia sentir cada batida do meu coração. Só por estar ali com ela. Os seus dedos entre os meus, a sua pele contra a minha. Frustrada com a saída da Dani, esse era exatamente o tipo de situação que provocava a minha impulsividade. Simplesmente não podia confiar em mim mesma – não com a Mia.
 
Não posso me meter a fazer besteira, pensei. E me segurei para não olhar na sua direção – mas podia sentir os seus olhos em mim o tempo todo. O seu braço junto ao meu. A sua respiração, sua atenção, a situação mal resolvida entre nós. Ficamos em silêncio por alguns minutos. Depois de eu mentir descaradamente sobre “estar bem”, é. Bem ao lado dela. Para a minha sorte, a música tocando ao fundo quebrava todo o possível clima que pudesse se insinuar entre nós. O rádio ecoava pelo quarto, mudando entre faixas gritadas.
 
_Cê sempre ouve isso... – a Mia riu, quebrando o silêncio – ...na fossa?
_Fossa? Olha, cê tá dando muito crédito para a Dani...
_Tô?
_Eu fiquei puta porque ela armou aquela ceninha, não porque ela foi embora... – digamos, parcialmente verdade – E que cê tem contra Stiff Little Fingers, afinal?
_Nada. Mas ouvir punk irlandês na bad é meio nada a ver, né...
_Ah, é?! – me revoltei, rindo.
_Posso? – perguntou, como se pedisse minha permissão para trocar de faixa.
 
Ergui as mãos dando o aval, soltando as dela por um instante. Que erro.
 
A Mia se levantou, ficando de joelhos, e apoiou uma das mãos para lá das minhas pernas cruzadas no chão. Esticou o seu corpo a dois palmos acima do meu, praticamente de quatro em cima de mim, alcançando o rádio com a outra mão – aí começou a rodar a playlist do meu iPod lentamente, bem lentamente. E eu ali, encurralada. Mano, eu juro, ela faz essas coisas de propósito, me estressei, tentando ficar na minha.
 
Não me movia nem um centímetro, grudada contra a parede, tentando a qualquer custo não esbarrar nela. Para não começar nada. É. Esse é o pior sofrimento que uma garota pode passar nessa vida – ver a mina que cê gosta, assim, e ter que se conter no lugar. Cacete. Claro que seria bem menos agonizante se eu não insistisse em ficar a observando daquele jeito, irremediavelmente apaixonada, mas eu não conseguia evitar. Simplesmente não conseguia tirar os olhos daquela curva, sabe aquela, a que as suas costas faziam, subindo para o seu quadril e... puta merda, não. Não tem como.
 
Respirei fundo.
 
Desavisada, a Mia fez qualquer comentário sarcástico sobre a minha lista de músicas e eu forcei um sorriso meia-boca, sem realmente prestar atenção no que dizia – a minha atenção estava toda nos quinze ou vinte centímetros de absolutamente nada que separavam o meu corpo do dela. Caralho, viu. Ela tão perto assim e o Fer, o Fer, ali, no cômodo ao lado. Respirei fundo até que a Mia, por fim, escolheu uma música deprê do Velvet Underground. À medida que começou a voltar para sentar-se ao meu lado, entretanto, a coisa toda desandou.
 
Estava com uma calça cinza de moletom, dessas de ficar em casa, e uma camiseta oversized cortada em um cropped revelando a sua cintura. Notei a sua barriga se dobrar, curvando-se suavemente. E um pedacinho do seu sutiã, sob o tecido mal cortado com tesoura. Deslizando no ar, ela foi voltando diante dos meus olhos, quase em câmera lenta. Apoiou uma das mãos entre as minhas pernas cruzadas, numa ré de desgraçar a cabeça. E eu engoli seco. A Mia subiu os olhos na minha direção e a minha expressão me denunciou. Então ela parou – bem no meio do caminho.
 
_O que foi?
 
Me perguntou, sua respiração a denunciando de volta. Não faz isso, garota, hesitei. A uma distância pequena demais para não querer atravessar aqueles poucos centímetros.
 
_O que cê disse pro Fer?
_Pro Fer?
_O que ele acha que estamos fazendo, Mia?
_Eu disse que ia ver como cê estava... – ela respondeu e eu inclinei a cabeça para trás, tentando me controlar – ...q-que, que talvez cê quisesse conversar.
 
O meu coração já estava prestes a sair pela boca.
 
_Eu não quero conversar...
 
Murmurei, e o olhar dela não se moveu do meu.
 
_E o que cê quer fazer, então?
 
Eu quero arrancar sua roupa e te colocar na parede, porra.