Desde que a porcaria da Lei Anti-Fumo foi aprovada, a cidade de
São Paulo entrou em estado de sítio. Os fumantes viraram uns terroristas em
potencial, perdendo seus direitos para o Estado – o que não me incomodava
tanto, afinal, sempre curti uma ilegalidade. Dava qualquer desculpa para poder quebrar
uma regra.
Mas, puta que pariu,
esses cercadinhos de vaca são foda.
Sair da balada para fumar numa área protegida por grades me fazia
sentir a escória da humanidade. Pior ainda é quando o estabelecimento resolve
economizar uns trocados e restringir nossos metros quadrados com aquelas fitas
listradas de amarelo e preto. Me sentia uma assassina. Assassina serial de tabaco.
O bar onde estávamos naquela noite era adepto do estilo homicídio-ao-ar-livre.
Em meio à cena do crime, dividindo a calçada com outras vinte pessoas que se
espremiam no perímetro demarcado pela fita, estávamos eu, a Mia... e o babaca. Mais
babaca do que nunca, aliás. Conforme o tempo passava, a babaquice só
piorava. Todo assunto que a gente começava era interrompido por aqueles 1,80m
de pura preguiça e vergonha alheia. Que
sequer fumando estava. Mas isso não o impediu de se aproximar da Mia e soltar
um “acho sexy demais mina fumando” não-solicitado. Jesus, revirei os olhos.
_É? – a Mia tirou o cigarro lentamente do meio dos seus lábios e
olhou na minha direção – Eu também.
_Pô, me vê um aí – o idiota me cutucou com as costas da mão,
pedindo um cigarro.
Mas é
muita audácia mesmo, eu pensei, enquanto negava o pedido mais
absurdo da noite. Ele a cercava como um abutre.
_Hm, e esse “Mia”... É o quê? – ele ia falando arrastado, de tão
bêbado – Inglês? Russo?
_Italiano.
_“Mamma Mia!” – ele gritou,
num xaveco cafona.
Nós duas reviramos os olhos imediatamente.
_Quer dizer “minha”, não é?
_Não “sua”... – a Mia comentou, levantando as sobrancelhas
ironicamente.
E eu comecei a rir.
_É, colega, acho que tá na hora de você ir arranjar aquele cigarro
com outra pessoa... – aconselhei, já de saco cheio da presença dele – ...vai,
já deu.
_Já deu o quê? D-do que cê tá falando?
_Só deixa a gente em paz, meu.
_Por quê? – ele perguntou, confuso, se virando para a Mia – Você
tem namorado?
É claro. O imbecil
não podia ter feito uma pergunta mais desconfortável. Já não basta os caras
respeitarem mais um namorado do que um “não” das minas, ele ainda tinha que
tocar justo no assunto que nós tentamos evitar a noite inteira. Olhei para a
Mia e ela abaixou a cabeça, desviando o olhar, sem saber o que responder na
minha frente. Droga. Droga, droga. Eu
precisava fazer alguma coisa.
_Amigo, vem... – coloquei o braço nas suas costas e o virei para a
direção oposta, tentando tirá-lo de lá – ...por quê cê não vai dar uma volta?
Mas ele se soltou, incomodado com a minha intervenção, resmungando
um “não, tô bem aqui”. Aí se voltou de novo para a Mia, daquele jeito
sem limites que os caras ficam quando ouvem um “não”.
_Tô conversando com ela – reclamou na minha direção – Dá licença?!
_Colega, vai, tamo pedindo numa boa...
_Não sei por que você tá se metendo! – retrucou – Quem tem que me
falar se está interessada ou não é ela!!
_Eu não tô – a Mia rebateu, na mesma hora.
_Aí sua resposta! Agora vaza.
_Espera – ele riu alcoolizado, se virando indignado para a Mia –
Cê tá falando sério?!
_Cara, sim. Tamo querendo fumar em paz desde que viemos aqui pra
fora.
_Mas a gente tava trocando ideia até agora, qual é! – a pegou pelo
braço, como lhe devesse algo.
_Me solta, porra! – a Mia puxou o braço de volta.
_Vai ficar bravinha agora?! – riu do desconforto dela – Que foi?
A Mia virou o corpo, tentando evitar o cara. Ele se aproximou
ainda mais.
_Só um beijo, então, e eu vou embora – insistiu.
_NÃO, MEU!
_Hum. Você é muito bonita, sabia... – a ignorou, pegando no cabelo
dela.
_Mano – me enfiei no meio – Cê não tá escutando? ELA NÃO QUER!
_Velho, qual é, NÃO SE METE! – ele se irritou comigo – TÔ FALANDO
COM ELA, NÃO COM VOCÊ!
_MAS ELA NÃO QUER FALAR COM VOCÊ, PORRA. JÁ DISSE TRÊS VEZES QUE
NÃO!
_Ô Mia... – tentou pegar na mão dela e ela se desvencilhou – Mia,
fala para sua amiga que tamo numa boa.
_Deixa ela em paz, mano, CHEGA!
_CHEGA O QUÊ?! – ele levantou a voz, vindo para cima de mim – VOCÊ
QUE TÁ CAUSANDO!
_EU?! – ri – SE ENXERGA, VELHO! CARALHO, É TÃO DIFÍCIL ASSIM? A
MINA NÃO TÁ AFIM, PORRA, SÓ VIRA AS COSTAS E VAZA!
_E QUÊ QUE CÊ TEM A VER COM ISSO?!
_TEM QUE EU VIM COM ELA, BABACA! – a Mia respondeu, se metendo.
_E DAÍ?!
_JESUS! – suspirei, irritada – Deixa eu ver se fica claro assim:
“comigo” no sentido Cássia Eller da coisa, entendeu? Colar o velcro,
colega, lamber carpete, rachar a bolacha, abrir a sapataria... –ele me olhou,
confuso – ...fancha, entendida, SAPATÃO.
_N-não... não mesmo. NEM A PAU!
_Cara, só vaza. Não vai rolar.
_Cês tão tirando com a minha cara... – ele balançou a cabeça,
completamente bêbado.
_Não tamo, AGORA VAZA!
_Se cês tão junta mesmo, ENTÃO DÁ UM BEIJO AÍ PARA EU VER!
E lá estavam elas. As palavras que nenhuma sapatão aguenta mais
ouvir – o beija-aí-então é o ápice da escrotice masculina. Aquele misto
deplorável de desrespeito, como se a sua sexualidade precisasse ser provada
para ser levada a sério – e dá vontade de fazer só para esfregar na cara
–, com um asco tremendo de saber que qualquer beijo que você der só vai
alimentar uma fantasia punheteira adolescente do cara de ver duas minas se
pegando. Me recuso a dar prazer para esse idiota.
Antes que eu pudesse retrucar, todavia, a Mia entrou na minha
frente:
_Dá o quê?! – o encarou, puta da vida – O que você falou??
_Dá um beijo na sua amiga aí!
_Tenho uma ideia melhor, por que eu NÃO TE DOU UM DEDO?? –
levantou o do meio na cara dele – E VOCÊ ENFIA NO SEU CU!!! QUEM VOCÊ PENSA QUE
É?? CÊ ACHA QUE A GENTE TÁ AQUI PRA SUA DIVERSÃO, SEU BABACA?!
_TIRA A MÃO DA MINHA CARA, VADIA!!
Ele a empurrou e, na mesma hora, eu o empurrei de volta. Aconteceu
tudo muito rápido. Um cara que estava do lado segurou o idiota antes que ele
viesse para cima de mim, me xingando. E a situação saiu do controle. Numa confusão
barulhenta, podia ouvir a Mia gritando com o mano por cima do meu ombro, eu o
xingava de volta, as pessoas foram se metendo no meio e os seguranças da porta
começaram a cortar caminho pela aglomeração da área de fumantes para chegar
onde estávamos. Vai dar merda. Olhei para a Mia, em meio ao caos, e a
peguei pela mão:
_Vamos dar uma volta, eu e você... – eu disse, levantando a fita
ilegalmente.
Demos as costas e saímos em direção à rua, largando o babaca entre
outros fumantes desconhecidos, que se meteram na briga. Não demos nem três
passos na calçada e a Mia soltou a minha mão, por um instante, virando-se de
novo para o cara na área cercada. E berrou:
_APRENDE A RESPEITAR AS MINAS, ARROMBADO!