“Tão eu”. É. Era sempre isso que todo
mundo, toda vez, ia pensar de mim. E talvez tivessem razão – eu estava solteira
há tempo suficiente para todos meus amigos agirem como se eu nunca tivesse
levado nada a sério na vida –, mas não era exatamente o que eu queria que
passasse pela cabeça da Mia quando pensasse em mim. Merda. Por que fui fazer esse comentário idiota?, me arrependi, olhando para ela na
minha frente, e então desviei o olhar para baixo. Aquilo me matava. Não queria
tirar ainda mais a segurança da Mia comigo, afinal de contas, o vento já não
soprava muito a meu favor.
Faz alguma
coisa, caralho.
_...é. Mas a-acho que... – respirei fundo, tentando pensar no que
dizer – ...sei lá. Olha, não tô dizendo que não, eu já fiz muita besteira. Mas...
m-mas também não é como se todos meus namoros tivessem terminado assim.
_Não? – a Mia riu, descrente.
_Não. Foi só uma brincadeira...
_Sei... – ela se divertia, em seu moletom velho, segurando o
lanche em frente ao seu rosto – Então cê tá dizendo que não traiu suas
namoradas?
Olha quem fala.
_Não... – hesitei, tentando ser sincera – ...não foi isso que eu
disse. Eu... e-eu traí, sim, traí duas vezes na vida... – senti que me
enrolava mais ainda – ...mas não foram todos meus namoros e eu, e-eu era nova
quando aconteceu. Tinha outra cabeça, meu, já faz tempo...
_Faz? – a Mia achou graça, dando mais uma mordida no seu lanche e
me provocando deliberadamente – Hum, então me beijar enquanto tava com a Clara
não conta?
_Eu não namorava a Clara.
_Ah, não?! – ela riu, levemente indignada.
_Não.
_Olha, num foi o que pareceu aquele dia lá que cê viu ela com
outra...
_Filha da puta... – balancei a cabeça para a Mia, rindo.
_O quê? – ela se fez de ingênua, me olhando do outro lado da mesa,
entre uma mastigada e outra – Só tô checando os fatos aqui...
_Ah! E você é uma santa, então, é isso?!
_Nós estamos falando de você agora...
_Ah, é? – comecei a rir, de novo – Que conveniente...
_Ué. Preciso saber com quem tô me metendo, não?
_Olha, para a sua informação, eu sou uma ótima namorada.
Com certa relutância, a Mia me observava, como se decidisse se acreditava
naquilo ou não. Você se surpreenderia, garota, eu a encarava de volta,
sem abaixar a cabeça. Ela sorriu e então ergueu as mãos até o cabelo castanho,
deslizando os fios entre os dedos e os segurando num rabo meio frouxo. Puxou um
elástico velho do pulso, dando duas ou três voltas e prendeu o cabelo no alto
da cabeça, como fez quando tomamos café-da-manhã na sua casa uns dias antes. Cacete.
Aquilo me deixava muito sem jeito.
_Não sei... – ela disse baixinho, como se confessasse, sorrindo –
...acho que tenho dificuldade de te imaginar namorando.
_Por quê?
_Sei lá. Cê tá sempre saindo com essas minas aí e... Ao mesmo
tempo que tá com todo mundo, parece que não tá com ninguém, sabe?
_Meu, não é assim...
_Não? – arqueou a sobrancelha, achando graça – Então, cê tá
querendo me dizer que não passa esse rodo todo...
_Eu não passo rodo nenhum, Mia. E outra... – argumentei – ...o que
eu faço solteira e o que eu faço quando tô namorando são coisas diferentes.
_Hum, sei. Me conta mais, então, o que cê faz solteira...
Por quê?, achei graça e dei um gole na minha cerveja, tá
com ciúme agora?
_Olha, não é tudo isso aí que cê tá achando, não... – eu ri.
_Não?!
_Ah... É e não é. Sei lá, acho que... às vezes as pessoas fazem
uma imagem da gente por tanto tempo que começamos a agir como se fosse verdade,
sabe?
_Como assim?
_Ah, cê sabe, o povo vê umas minas que nem eu e...
_“Que nem você”?! – a Mia repetiu, me interrompendo, sem entender.
_É... sei lá, mais caminhão.
_Mas o que isso tem a ver?
_Ah, meu, tem que todo mundo acha que eu pego geral. As pessoas
olham para mim e pensam que eu não me apaixono, que eu não levo nada a sério...
que só quero comer umas minas em banheiro de balada, só quero baixaria.
_E não quer?
_Ah, às vezes eu quero mesmo, mas às vezes não. E é só isso que as
pessoas veem. Ficam me tratando como se eu fosse “um dos caras”, sei lá. É
zoado – resmunguei – Até meus amigos, mano, mesmo o Fer vive me tratando assim,
num importa se eu passei a maior parte dos últimos anos entre um namoro e
outro... as pessoas parece que esquecem disso.
_É. Mas cê mesma tava até agora aí brincando que “tropeçou e caiu
na cama” de sei lá quem...
_Eu sei, foi um comentário idiota. Sei lá, às vezes, eu entro na
piada também... Por muito tempo achei que era isso que eu tinha que fazer,
sabe? Que esse era meu “papel”, sei lá, m-mas... – balancei a cabeça – ...é
foda também. As próprias minas me tratam assim, às vezes, mano.
_Assim como?
_Ah, como se eu tivesse lá só pra comer elas... Como se eu não
sentisse as paradas, como se tivesse que tá sempre afim, não pudesse recusar
sexo. E não é assim, velho...
_É. Eu sei como é isso.
_Sabe?
_Ah, meu, não sei. Te ouvindo falar, e-eu... só sei que já senti
isso. Quando era adolescente eu era sempre a mina “livre”, a fácil, a que
dormia com todo mundo no rolê – a Mia comentou e pegou minha cerveja, roubando
um gole – E eu não ligava, real, sempre fiz o que eu queria, mas... sei
lá, tinha cara que achava que podia me tratar de qualquer jeito por isso. E era
escroto demais.
_Que merda, né, meu...
_É...
_Olha, se eu te contasse todas as vezes que me senti uma bosta
depois de transar, cê não ia acreditar... – eu ri, pegando a garrafa de volta,
com o prato já vazio na minha frente – Por culpa da mina ou minha, que fosse.
Já fiz muita merda que não tava afim.
_Bom, não sei se você sabe... – ela fez graça – ...mas, assim, não
tem ninguém com uma arma na sua cabeça te obrigando a continuar fazendo.
_Vai se foder – eu ri – É s-só que...
Baixei o olhar por um instante, segurando a cerveja mais adiante
sobre a mesa, deslizando o dedo nervosamente pelo suor da garrafa. E o meu
coração disparou, prestes a cometer o maior sincericídio da noite:
_Não sei... s-sabe quando não é suficiente? – continuei – Mano, eu
fico tão de saco cheio às vezes que, sei lá... me bate um desespero para sentir
qualquer coisa. Qualquer outra coisa.
E aí faço a primeira merda que vem na cabeça, só que... e-eu não... – suspirei
– ...n-não quero mais isso, saca? E-eu, sei lá... acho que... q-que só não
tinha conhecido ninguém que eu realmente queria antes.
_Mas, e agora?
_Agora, o quê?
_Conheceu?