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outubro 25, 2010

"She wants revenge!"

_Me vê um cigarro... – pedi para a Mia – O meu acabou.
 
Estávamos a menos de um metro uma da outra, no fundo da escadinha, apoiadas em paredes opostas daquele corredor estreito. Frente a frente. A Mia pegou um no maço, já com outro aceso em sua mão. E sorriu, me encarando:
 
_Me diz... – brincou com o filtro entre os dedos, sem me entregar a porra do cigarro – ...quem é “Marina”?
 
Arqueei as sobrancelhas, achando graça.
 
_Eu disse, minha ex-namorada.
_“Ex”? – perguntou, como se não acreditasse.
_É. Ex.
_Que tipo de ex? – continuou.
_Do tipo que não é mais minha – olhei para o cigarro, inquieta.
_Hum. Não sei como funciona... – a Mia retrucou, com um leve sorriso no canto da boca – ...com vocês, lésbicas, né... – o filtro girava entre seus dois dedos e ela prosseguia, maliciosa, sem intenção de me entregá-lo tão cedo – ...mas pro resto do mundo, sabe, não se dorme em casa de ex.
 
Ahh, Fernando, seu desgraçado filho de uma égua.
 
_Olha, eu só falo tanto da Marina pro seu namorado... – tirei o cigarro das suas mãos, sem ceder ao seu joguinho – ...para não falar de você, Mia.
 
Os seus olhos encontraram os meus – era isso que você queria ouvir, não é, encarei-a de volta. E a Mia não conseguiu esconder um breve sorriso, desta vez sincero. Acendi o meu cigarro e ela me observou dar a primeira tragada, depois soltar a fumaça para o lado. Não queria dar muita corda, preocupada com a quantidade de álcool que já circulava dentro de mim e a minha consequente falta de autocontrole. Mas logo não aguentei:
 
_Tava vendo você dançar lá em cima... – eu disse.
 
E traguei mais uma vez, conforme meus olhos percorriam a sua silhueta, parada a poucos centímetros de mim, fumando também. Puta que pariu, mulher, pensei e senti toda a minha imprestabilidade subir até a garganta, sentindo o seu gosto na minha boca.
 
_E? – ela perguntou, com o cigarro aceso nas mãos.
_E nada. Só achei bonito.
_“Bonito”? – ela riu.
_Você e as suas amigas... – continuei, encarando-a com vontade contida no olhar, nitidamente querendo me referir a qualquer outra coisa que não aquilo.
_A gente, o quê?
_Dançando juntas.
_Hum. Prefiro dançar com você...
_Você tá bêbada... – desdenhei.
_Não – ela se aproximou do meu lado da parede, perdendo um pouco a noção do perigo – Eu tô tentando te dizer, pela terceira vez hoje, o quanto gostei que você veio.
_É? E de que adianta?! – ergui o queixo, a encarando – Não é comigo que cê vai ficar hoje, garota.
 
Traguei mais uma vez, agora amarga. Sentia o álcool começar a afetar o nosso diálogo. A Mia encostou de novo na parede oposta, ainda me olhando.
 
_Mas mesmo assim... – deixou escapar um sorriso – Você veio.
_É. Vim.
 
Eu vou para qualquer lugar que você me chamar, garota.
 
Respirei fundo. Seus olhos continuavam fixos sobre mim. Então dei um passo para frente, chegando realmente perto – o suficiente para causar um problema sério caso alguém conhecido resolvesse passar pelo alto da escada e dar uma olhada ali para baixo. A Mia permaneceu encostada na parede. E seus lábios se entreabriram, se insinuando dum jeito desgraçado. Como incitasse uma atitude minha. A iminência do beijo era implícita – e eu me aproximei. Mais ainda, olhando-a de perto. Bem de perto.
 
Quis sentir o gosto da sua boca, desesperadamente.
 
Mas me contive – sabia do risco. Dei um passo de volta. E a encarei por mais alguns segundos, em silêncio. O frio, vindo da porta ao nosso lado, já começava a incomodar. A Mia ainda me olhava, imprestável, e eu tentava não me deixar convencer pelo meu corpo inteiro, que a desejava de volta. Que porra eu vim fazer aqui, traguei mais uma vez. E soltei a fumaça lentamente, inquieta com a minha dificuldade de ficar perto dela. Nisso, de repente, a voz da Brody Dalle invadiu o som da balada:
 
“This is not a love song”.
 
Os olhos da Mia brilharam automaticamente, numa felicidade de bêbado, conforme os alto-falantes nos ensurdeciam com o começo de “Beat your heart out” dos Distillers. Nossa primeira reação foi correr para a pista – jogamos os cigarros no chão, pisando na brasa o mais rápido possível e subimos apressadas pelos degraus. Ao chegar em cima, todavia, a segurei pela mão e a puxei para o lado oposto, na direção da outra escada. Ouvi-a reclamar qualquer coisa, e ignorei, arrastando-a à força junto comigo até a pista escura do segundo andar, onde uma massa não-identificável de pessoas dançava ao som de um hip hop qualquer. Em meio ao escuro absoluto, encostei-a na primeira parede que minhas mãos encontraram, perdidas entre as batidas graves que saíam dos amplificadores.
 
_O QUE DIABOS CÊ TÁ FAZENDO?! – ela brigou comigo, revoltada.
 
Busquei-a no escuro, com as mãos, e segurei o seu rosto perto do meu, aproximando a minha boca do seu ouvido.
 
_Estou roubando sua música favorita.

Heterofobia alcoólica

Entre um gole e outro de whisky, eu observava – os selinhos e as pernas, as coxas entrelaçadas, os cochichos no ouvido e os sorrisos despreocupados; os antebraços de uma apoiados nos ombros de outra, os quadris e os movimentos imersos na música, as mãos em qualquer lugar, em todo lugar, na cintura de quem quer que estivesse à frente, ao lado, atrás. O suor e o calor fazendo com que prendessem o cabelo, improvisando coques mal presos; e as flores da Mia se revelavam pelas suas costas, descobertas numa frente única preta, puta merda, mais linda do que jamais a vi. Enquanto ela dançava e sorria.
 
E eu lá, a poucos metros, babando.
 
_Não é justo – reclamei para a Lê, ao meu lado, prestes a fazer uma análise antropológica.
_O que não é? – ela perguntou, virando mais um gole da sua segunda cerveja.
_Olha aquilo, meu... Não, sério, olha aquilo!
_Que tem? – a Lê riu, acompanhando meus olhos até o meio da pista, onde a Mia e as suas amigas dançavam, alheias à nossa atenção.
_Como o “que tem”? Tem que não é justo, porra! Por que eu não posso ir lá dançar também?
_Mas você po...
 
A Lê pôs-se a responder o óbvio, mas eu a cortei logo em seguida e continuei com o meu raciocínio, completamente embriagada.
 
_Eu tenho certeza, certeza, que se fosse eu lá com elas, o Fer ia me olhar torto dali... – fiz um sinal com os olhos, indicando o meu melhor amigo, que conversava numa rodinha a poucos metros das garotas – Quer dizer... Eu não, né? Eu não posso. Porque se você é sapatão, bi ou o caralho, cê vira uma porra de uma ameaça ambulante. Sabe, isso é discriminação!
_Do que cê tá falando?!
_Dessas minas aí... “héteros”... – fingi aspas com os dedos, irônica, e a Lê riu de novo, antes de dar mais um gole na cerveja – ...que ficam aí, sabe, se pegando na frente de todo mundo e ninguém fala merda nenhuma. É mão para cá, mão para lá, gracinha gratuita, selinho numa, selinho na outra... Vai se foder!
_Acho que cê já bebeu demais, cara...
_Não. Eu acho assim... – fiz uma breve pausa, construindo um pensamento amargurado já com o meu terceiro whisky em mãos – Ou você é sapatão ou não é. Entendeu? Não tem essa de ficar se esfregando na balada, agarrando a coleguinha, se insinuando para Deus e o mundo, e depois ir lá curtir macho.
_Deixa as minas, meu. Foda-se!
_Não. Não! – discordei, séria, e dei outro gole – Se vai ser “das amigas” na balada, tem que ser “das amigas” na cama. Isso é ridículo!
_Que é? Cê tá interessada, quer dormir com alguma delas?
_Quê?! Não! – me indignei – Eu só não acho que é coerente...
_Tá bom, Nietzsche.
_Vai me dizer que cê não fica puta?!
_O mundo é injusto mesmo, amiga... – a Lê concordou, com os olhos nas meninas e a boca novamente na garrafa.
_Muito. E enquanto isso, a gente, as minas que curtem mesmo a parada, nós somos obrigadas a ficar aqui, encostadas na parede, dando uma de cabeça fria e fingindo que não estamos nem aí. Olhando pro outro lado, sabe, enquanto meia ala feminina “se pega” de mentirinha!
_Bom, a gente não tá exatamente olhando pro outro lado, né...
_Que seja – virei o restante do meu copo, já perigosamente imune à bebida.
_Hum, e por falar em hétero... Olha aquela ali...
_Quem?
_Aquela ali, de branco.
_Não tô vendo – disse bêbada, meio confusa – Quem, aquela?
_Não. Mais para lá, a ruiva. Do lado do cara de jaqueta.
_Ahn... sei.
_Que cê acha? Sapatão?
_Ah, sei lá, cara... tenta, ué.
 
E simples assim, perdi minha companhia.
 
Para uma paulistana metida à hippie, vestida com uma blusinha básica e calça de algodão, aqueles ares sáficos de quem cursa Ciências Sociais em universidade pública. Não deu nem cinco minutos e a minha amiga – tentando bater o recorde de bocas por noite – já se encontrava atracada com ela num canto qualquer.
 
O calor da Sarajevo tinha fervido todo o álcool em excesso no meu sangue. Eu estava bêbada demais, começando a tropeçar nas minhas próprias palavras e provavelmente sendo uma companhia bem menos agradável do que a tal garota pela qual fui trocada. Argh, povinho alternativo de merda, resmunguei mentalmente, encostando-me na parede com certa amargura. A verdade é que eu mesma integrava o rolê alternativo-de-merda – mas andava azeda e de saco cheio de todo mundo. Olhei novamente para a pista, voltando à realidade, e me deparei com a Mia vindo na minha direção.
 
Opa.
 
Ajeitei o cabelo, bagunçado pela falta de sobriedade e pelo vento lá fora. E ela sorriu para mim, a poucos metros de onde eu estava, fazendo um sinal com a cabeça para que eu a seguisse. Apoiei o copo vazio no chão e a alcancei a caminho da saída de fumantes, que ficava ao pé de uma escadinha estreita. Ela foi na frente e eu dei uma olhada, sem querer, para o seu quadril naquele jeans justo, imediatamente sofrendo com a minha impotência naquele lugar. Eu preciso parar de beber, porra.
 
A rua ficava um nível abaixo da pista de dança, após uma “cortina” grossa feita de tiras largas dum plástico transparente, como esses de frigorífico, deixando o frio entrar pelos primeiros dois ou três metros do corredor. Paramos a alguns passos da saída, ainda do lado de dentro.
 
Enfim, a sós.

outubro 21, 2010

Quadras pra cima

Meus dedos dedilharam, leves e entorpecidos, passeando pelo contorno dos pôsteres e grafittis que compunham as paredes daquele submundo cool que era a Sarajevo. Entrar ali era como se desligar do resto do planeta – não que eu realmente precisasse de uma forcinha a mais além da minha conta majoritariamente alcoólica de R$ 38 do Vitrine, claro. O contraste repentino do frio na rua com o calor abafado de corpos amontoados sobre cervejas e vibes alternativas e papos intelectuais, misturados em samba e punk rock, me enfiou ainda mais numa ultra percepção de tudo ao meu redor. Vontade de fumar um, pensei logo que entrei. E a Lê quis parar no bar da entrada, me puxando pela mão.
 
_Vamos no de baixo... – disse no seu ouvido, segurando sua cabeça perto da minha boca e competindo com o som ambiente – Vou pegar um whisky.
 
Era sexta-feira e, assim como qualquer outro beco apertado da Augusta, o lugar estava lotado. Muito além da sua capacidade. Nos esprememos pelo meio dos que dançavam qualquer batucada underground na pista em frente ao palco e alcançamos o corredor, onde trombei com um conhecido meu e possivelmente do Fer também. Veio pro aniversário?, olhei bem para ele. Sei lá. Preciso de whisky, concluí e caí fora poucos segundos depois. E gelo – eu precisava era de gelo. Aquela balada era a própria definição de aquecimento global e eu estava derretendo, tão logo pisei lá dentro.
 
Apoiei o corpo sobre meus antebraços, debruçando-me no balcão do bar escada abaixo. Estava tocando alguma coisa do Planet Hemp nas caixas de som. Dezenas de pessoas circulavam atrás de mim e ao meu lado, indo e vindo até o bar, num vai-e-vem caótico, parando para conversar em pequenas rodinhas que se misturavam entre si. A Lê – mais prudente – pediu uma long neck e eu, já com meu whisky em mãos, ria da cara dela sendo cantada pelo barman. Se recusando a lhe entregar a garrafa, fazendo graça, ele disse qualquer coisa no seu ouvido e os olhos dela arregalaram-se indignados na minha direção. Como o cara olha pra uma caminhão dessas e acha que tem chance, meu? Comecei a rir de novo e balancei a cabeça, tomando mais um gole e me apoiando novamente no balcão.
 
_Você veio! – escutei por trás, de repente, e senti dois braços me abraçando por cima dos meus ombros.
 
Virei então, me recuperando do breve susto, e vi a Mia. Nitidamente feliz com a minha presença no meio daquele monte de gente. Olhei bem para ela e, puta que pariu – o meu pulmão procurou desesperadamente por um pouco de ar, imediatamente sem fôlego. Tentei sorrir, para disfarçar a minha cara de apaixonada, desajeitadamente.
 
Assim que ficamos frente a frente uma para a outra, no pouco espaço que a superlotação nos permitia, ela me abraçou mais uma vez e eu comecei a rir do excesso de cumprimentos, mas mantive minhas mãos bem longe do seu corpo – olhando para o Fer, que estava parado logo atrás, achando graça na embriaguez boba-alegre da sua namorada.
 
_Vem, eu quero te apresentar pro pessoal que tá aí... – a Mia me puxou pela mão, animada.
_Não, n-não, espera... – eu ri, segurando-a momentaneamente para trás – Deixa eu te apresentar primeiro. Essa é a Lê e, Lê, essa é a aniversariante. Evidentemente.
 
A Mia sorriu para ela, sendo simpática – sem dar-se conta da analisada de cima a baixo que tomou da minha amiga que sabia demais sobre nós. Ao fim das cerimônias, me puxou de novo pela mão e eu mal tive tempo de alcançar o meu copo no balcão. Furamos o amontoado de gente – com minha mão na dela e um olho no whisky balançando dentro do copo – pedindo para ser derrubado ali no tromba-tromba. O Fer ficou para trás, puxando qualquer assunto com a Letícia em frente ao bar.
 
_Meu, eu tô tão feliz que cê veio! – a Mia segurou minha mão com ambas as suas, com carinho, em meio à multidão.
_Cê já tá bêbada, não tá?!
_Nossa. Sim! – ela arqueou uma das sobrancelhas, fazendo graça, e eu ri – Mas tô feliz, de verdade. Não é só porque voc...
 
Nisso, ela me soltou subitamente. E o Fer chegou, atrás de mim, trazendo dois copos diferentes na mão. Um baixinho de whisky, como o meu, e um outro mais alto que parecia ser de algum drink escuro com destilado. Cuba Libre talvez, tentei adivinhar, mas poderia muito bem ser um Long Island Ice Tea.
 
_Amor, olha... – ele entregou o copo maior para a Mia, como se ela o tivesse pedido momentos antes.
_A Lê ficou no bar? – perguntei, curiosa.
_Ela foi no banheiro, eu acho. E você, hein? Só nos flashbacks aí... – o Fer zombou – É Marina numa semana, Letícia na outra.
_Nada a ver, mano... – contestei, já meio bêbada também – Eu nunca peguei a Lê!
_Quem é Marina? – a Mia nos interrompeu.
_Minha ex...
_"Ex"... – o Fer continuou rindo – ...nas últimas semanas é um tal de ligar pra Marina, ir ver a Marina, dormir na Marina. Tá boa a coisa, viu...
 
Isso, babaca, dei um soco no seu braço para que fechasse a matraca. Me empata nos primeiros cinco minutos.

outubro 18, 2010

Na calçada

Frio do caralho, tomar no cu. Minha mente foi passando por todos os palavrões e insultos que eu poderia esbravejar na direção do clima de São Paulo, enquanto eu acendia um Marlboro amassado – o único que encontrei na bagunça do meu quarto. Instantes depois, a Lê apareceu do meu lado e eu lhe ofereci um cigarro, tão detonado quanto, que ela acabou por aceitar.
 
_Ô. A amiga da Cris quer te pegar...
 
Cris?
 
Comecei a revirar a minha memória. E logo presumi se tratar da dona da blusa pólo e a sua amiga, a loira ao meu lado. Aquela. De quem nem a Letícia, com duas tequilas a menos na conta do que eu, lembrava-se do nome.
 
_...bonitinha ela até, cara.
_Tô de boa.
 
Encarei o chão, tragando mais uma vez. A Lê começou a rir e me abraçou por cima do ombro, tirando o cigarro brevemente da boca. Soltou a fumaça para o lado, enquanto eu a olhava de volta sem entender toda aquela demonstração pública de afeto pela minha pessoa.
 
_Essa menina te pegou de vez, hein?! – ela me observou, sorrindo.
_Ela... – olhei-a de volta, sendo sincera – ...e-ela é demais, Lê.
_Cê quer ir lá ver ela?
_...
_Quer?
_Não.
 
Mentira.
 
_É complicado – retomei, sentindo a necessidade de me justificar.
_Mas, gata, isso sempre é... – ela me olhou, de novo, com empatia.
_Não, é mais complicado. Muito mais.
 
Soltei a fumaça, agora segurando o cigarro apreensivamente entre os meus dedos, prestes a congelar. Não queria ter tocado no assunto. Porra. De uma forma ou de outra, aquilo estava dentro de mim, a noite toda, me incomodando. Até o momento, no entanto, fiz a minha parte: ignorei a droga do sentimento. Falar a respeito já era uma coisa totalmente diferente. Que inferno. A Lê se colocou na minha frente, segurando os meus braços cruzados com as suas mãos, com aquela cara de quem havia bebido demais.
 
_Fala a verdade – insistiu – Cê quer ir?
_Não... – hesitei, mais bêbada ainda – ...sim. Eu... n-não posso.
_Meu, a Sarajevo é na quadra de cima! Eu vou com você, se cê quiser.
_Não, Lê. Não. Não quero aparecer lá – traguei mais uma vez.
 
E não queria mesmo. Os últimos dias tinham concretizado ainda mais o que eu sentia pela Mia e só a ideia de estar no meio de todos os amigos dela, enquanto ela comemorava o aniversário ao lado do Fer, me dava uma angústia tremenda. E medo de que mais alguém se desse conta do que estava rolando entre nós. Preciso tomar mais cuidado. Mas foi então que, por algum motivo, a Marina me veio à cabeça – e a ideia de vê-la contrariada, discursando horas ao telefone sobre como eu era uma cabeça-dura previsível e ela sempre estava certa, me divertiu. Eu devia ter ficado em casa, pensei e ri de mim mesma.
 
_O que foi?! – a Lê riu também.
_Nada...
 
E antes que eu percebesse, o controle começou a escapar de forma gostosa pelos meus dedos, conforme eu soltava o último trago.
 
...

Dez pras doze

_Cê vai beber ou vai só olhar a noite inteira?
_Ahn? – virei para a garota ao meu lado, uma loira de quem eu mal lembrava o nome, sem ter escutado direito.
_A tequila – ela riu – Cê vai beber ou vai só olhar?!
 
Ah... isso. Tirei o copo da mesa e o virei rapidamente, meio rabugenta, enquanto a garota me olhava, flertando descaradamente. Tô velha pra pegar essas minas, refleti, conforme descia o copo de volta à mesa. E não era nem idade a questão, mas o mais puro saco cheio. De toda aquela merda. Sempre a mesma merda. Por aí pegando qualquer mina nada a ver dessas, essas, com quem eu não tinha uma porra duma coisa em comum. É, você mesma, olhei para a garota ao meu lado e ela sorriu, aí tentando puxar assunto com a única pessoa da mesa que não tá te dando bola. Para piorar, ela era irritantemente desinibida – encostando na minha perna toda vez que começava uma porra duma frase, erguendo a voz para o garçom que nem uma babaca. E eu não estava com paciência.
 
_Cê veio sozinha? – aproveitou o embalo, agora que eu não estava mais hipnotizada pelo meu copo.
_Tô com a Lê aí... – resmunguei, incomodada com o barulho de fundo do Vitrine, e senti o álcool correr pesado pelo meu cérebro.
 
Que se foda esse lugar. Virei para o lado para chamar a minha amiga, que se ocupava com a boca e a camiseta Polo de outra garota cujo nome eu também não sabia. De todas ali, numa mesa com talvez quinze sapatonas, só me eram conhecidas a Lê e mais duas – uma eu tinha pegado anos antes e sabia que ela não queria papo com a minha cara de pau; a outra era uma conhecida dos tempos áureos do Setentinha, mas que não estava sentada perto o suficiente para eu engatar uma conversa saudosista. Restava, portanto, eu e a porra da mina do meu lado – que agora não calava a boca depois dos nossos três segundos e meio de contato visual. Inferno.
 
Tentei ganhar a atenção da Lê, entre um beijo e outro de puro consolo pós-pé-na-bunda.
 
_Vamos?! – perguntei, sem paciência.
_Vamos pra onde, meu?! – ela riu, desligada.
 
Vi as mãos da garota puxando minha amiga pela camiseta, numa ânsia de aproveitar aquela noite, e senti que não teria chance alguma de competir com aquilo.
 
_Sei lá, mano... Qualquer lugar, tô de porre de ficar aqui!
 
“Não”, óbvio. Sequer estava com esperanças de dar realmente o fora dali, conforme deixei a última frase escapar da minha boca, por mero capricho. O garçom chegou com mais uma cerveja para a mesa e fiz questão de ser exageradamente simpática – para compensar a desagradável ao meu lado –, deixando uma Original na minha frente. Enfim. Enchi o copo e o levei à boca, me afundando na cadeira, já de saco cheio de ficar na porcaria do Vitrine. Era para eu já estar bem longe daqui a essa hora. O fato é que todos os rolês andavam me entediando – assistia o resto do mundo perder a graça sem a Mia e resistia estupidamente, sentada ali, na minha teimosia alcoólatra.
 
Terminei o copo o quanto antes, ainda ignorando a garota ao meu lado, e apanhei o maço para ir fumar do lado de fora. Qualquer coisa que me tire daqui.

OVINHOS ♥



Gente, antes de lerem os dois posts novíssimos (acabei de publicar!), dêem uma paradinha para ver esse vídeo. É um stop motion que eu e uma amiga fizemos para o projeto "It Gets Better", uma iniciativa muito legal de apoio a adolescentes gays que sofrem discriminação no colégio. Achei válido dividir aqui com vocês e espero que gostem! :)

Tenho outras novidades, que alguns já estão me perguntando, sobre o lançamento do meu livro. Não é nada relacionado ao blog, trata-se de um livro-reportagem jornalístico que escrevi sobre como o tédio e o imediatismo impactaram a juventude atual - esse é um resumo bem cruel e injusto do livro, perdão. Quer quiser ler, está à venda nas principais livrarias do país e aqui.

E por fim, me desculpem pela escassez de posts. Estou num período meio turbulento, mas juro que estou me esforçando para atualizar ao menos dia-sim-dia-não. Tenham um pouquinho de paciência com a escritora, hehehe. Mas posso dizer que tem coisa boa vindo por aí... ;)

Obrigada, do fundo do coração, pelos acessos e comentários. Mesmo. ♥

Mel M.

outubro 16, 2010

Dispensando rolê

Quando o ponteiro menor chegou à nona casa do relógio, de alguma forma eu me encontrava a caminho do apartamento no banco da frente de um carro. Um corsinha detonado que há meses eu não via. Fumando com o vidro aberto e congelando a motorista, conforme atravessávamos a Av. Pompéia em direção a Jardins, ouvindo Stooges no último volume e xingando uma à outra por conta da porra da janela.
 
Eu adorava quando as minhas amigas decidiam parar de namorar e voltavam repentinamente à vida social, dispostas a sair todos os dias e todas as noites da semana, sabe como é. E a Lê tinha acabado de terminar com a namorada mais pé-no-saco de todos os tempos, a mesma lesma morta com quem ela havia se encasulado por longos oito meses – para o meu desgosto. Ou seja, era a companhia perfeita para aquela noite.
 
Chegamos na Frei Caneca tão logo o trânsito nos permitiu – argh, São Paulo – e estacionamos muito mal estacionado em uma vaga estreitíssima a duas quadras do meu apartamento. As quatro Itaipavas divididas no barzinho perto da casa dela, enquanto eu me atualizava prolongadamente sobre o seu término com a garota, já haviam batido no meu estômago vazio e subido consideravelmente à minha cabeça. Contudo, o vento gelado rua acima tratou logo de me deixar sóbria novamente.
 
Entramos no apê com as luzes já acesas e ela fez qualquer comentário maldoso sobre a sala – que, de fato, estava uma zona. Larguei ela lá para tomar um banho rápido e trocar a roupa sem graça do trabalho. Passei pela porta aberta da cozinha e vi o Fer só de bermuda, fritando qualquer coisa no fogão, de costas viradas para o corredor. Puta frio e o outro aí, quase sem roupa. Pedi não muito educadamente para que ele arrumasse a bagunça que havia deixado em cima do sofá para minha visita ter onde se sentar.
 
Nem meia hora de água-toalha-armário-secador-jaqueta-e-tênis depois e eu estava pronta para acompanhar a Letícia até o Inferno se fosse preciso. Digo, figurativamente falando, não a balada a poucas quadras dali. Minha mais recente obsessão era um novo par de Nikes vermelhos que eu usava para cima e para baixo, combinando com uma camiseta velha do Misfits, uma flanela vermelha amarrada na cintura e um skinny jeans rasgado. Saí para a sala exalando caminhoneirice. A Lê não ficava muito atrás – com o cabelo K.D. Lang partido ao meio, butch, coberta de tatuagens. Era filha de japoneses, baixinha e tinha o rosto redondo, os pulsos e as panturrilhas largas; um jeito de vocalista de banda hardcore do começo dos anos 2000. Estava me esperando em pé, lendo uma Rolling Stones que larguei jogada em cima da mesa. E só então, já sem o seu casaco, reparei numa manga fechada ao redor do seu braço.
 
_Que foda, cara... – comentei, pegando na tatuagem para olhar direito – ...quando cê fez?!
_Faz uns quatro meses... não, espera. Cinco.
_Numa sessão só?
_Não, foram duas.
_Nossa... Ficou demais, meu!
_Fiz com a Thaís, mano.
_Puta, aliás, preciso te contar uma parada aí... – eu ri – Cê num vai acreditar.
_Ih. Lá vem... Cês se pegaram, foi?
_Como cê sabe?! – tomei um susto – Ela contou?
_Nem precisa, né? – a Lê gargalhou – Velho, eu sabia que cês duas iam se pegar desde o dia que apresentei. Tava só esperando...
_Ah, meu... Num é assim também!
_Não? E essa sua tatuagem aí... – apontou para a mordida da Mia no meu braço, que já virava um hematoma – ...a Thaís que fez também?
 
Antes que eu pudesse responder, o Fer entrou na sala – agora devidamente vestido –, com cara de quem estava atrasado, e se meteu entre nós para vasculhar a mesa, onde estava a revista e uma tonelada de papéis.
 
_Mano, cê viu minha chave?!
_Não... – murmurei – Não tá na cozinha?
_Não – resmungou de volta, sem me olhar, e passou a procurar pelo sofá – Caralho, viu. Já era pra eu tá passando na Mia... Cê vai hoje, né?
_Meu, nem vou – respondi – A gente vai comer no Vitrine com umas amigas agora e depois... sei lá.
_Tá me tirando?! – ele olhou pra minha cara, interrompendo a busca.
_Não, por quê?
_Por que cê não vai, meu? – se irritou.
_Ah, cara, sei lá... Não tô afim de ir na Sarajevo. Já disse parabéns pra ela na terça, já tá bom.
_Porra, mano... Que sacanagem. A Mia me perguntou mil vezes se eu tinha falado com você essa semana e cê aí fazendo cu doce, velho. Cola lá, meu, nem que seja só pra dar um oi. O Vitrine é ali do lado, a gente vai chegar lá pela meia-noite...
_Ah, Fer... não sei – respondi, relutante, e ele me olhou sem paciência – Vou ver...
_Mancada, hein?!
_Não é, meu. Só não tô afim.
_Tá. Cê que sabe – se apressou – Preciso sair.
 
Continuou procurando e, assim que achou a maldita chave, saiu batendo a porta. A Lê me olhou imediatamente, sem entender o porquê de eu ter mentido três ou quatro horas antes quando liguei desesperada para ela e reclamei por estar absolutamente carente de um programa para sexta à noite – o que não fazia o menor sentido agora.
 
_E-eu... – hesitei para explicar – ...meio que peguei essa mina dele.
_Cara... – a Lê arregalou os olhos e começou a rir – ...cê tá sempre na merda, hein?!

outubro 13, 2010

Hangin’ on the telephone ♫

Aquela sexta-feira chegou excepcionalmente rápido, acelerada pelo tanto de trabalho acumulado que me aguardava no estúdio quando eu finalmente decidi dar as caras por lá. Três horas extras forçadas na quinta-feira, argh, e sossego algum na manhã seguinte. Exploração laboral desumana. É assim que vocês tratam uma funcionária recém-recuperada de uma enfermidade seríssima, seus insensíveis?! Aquilo era absurdo, uma violência contra a minha pessoa. Mas, tá, que se dane, fiz o esforço para perdoar, lá pela terceira xícara de café do dia – sentada na pia da cozinha do trampo numa pausa longa-demais para quem estava reclamando da sobrecarga horária.
 
O fim de semana tá logo aí, tentei me consolar. Estava, na verdade, a uma hora e meia dali. E trabalhando daquele jeito chegaria antes ainda. Argh. O lado bom era que o estresse me impedia de mandar mensagens para a Mia o tempo todo. E considerando a minha mais nova consciência – conhecida como Marcos –, certa ponderação até que caía bem. Isso significava cinco ou seis SMS por hora ao invés de vinte. Já o lado ruim é que, , era chegada a sexta-feira. E isso, por si só, não podia ser boa coisa na minha vida.
 
“Vc vai hj neh? ;)”.
 
Olhei de relance para a mensagem da Mia, com o celular apoiado na pia. E não soube como responder. Preciso de um plano, puta merda. Tentei focar nas bolinhas de ar que se formavam no meu café, numa análise cromática sobre a tonalidade amarronzada que saía do líquido preto. Que coisa esquisita. Mas uma vez que se esgotaram as bolhas e todas as minhas possíveis desculpas para continuar procrastinando ali, sem plano algum, desci as escadas mais uma vez para buscar as provas de uma sessão que deixei imprimindo na máquina do estúdio. Voltei com uma pasta cheia à minha mesa e sentei-me sem vontade alguma de começar.
 
Não demorou muito até o meu celular tocar. Nas últimas horas, o Gui estava empenhado em uma campanha telefônica para que eu o acompanhasse na Bubu naquela noite – o que estava fora de cogitação. Não tô tão desesperada assim.
 
_Só vai ter homem lá, mano! – repeti brava, já na terceira ou quarta chamada que ele me fazia naquela tarde.
_Meu... você me dá bolo atrás de bolo, porra, cê não tem poder de decisão. Foda-se que só vai ter homem! Só vamoooos... – ele cantava ao celular e eu podia imaginá-lo dando pulinhos de insatisfação do outro lado da linha.
_Não, meu! Não quero!
_Cê não tá toda namorandinha aí com a outra, caralho?! Que diferença faz se só vai macho?
_Simplesmente porque não vou pegar ninguém, não quer dizer que quero ficar olhando um bando de homem sem camiseta, Guilherme... – argumentei, segurando o aparelho contra o meu ombro, enquanto minhas mãos se ocupavam com as fotos – ...homem é um negócio muito feio, mano. Tudo amontoado e suado, naquele forninho, se pegando. Credo, não! Não! Não dá.
_Aaai, que exagero, como se fosse tão ruim assim...
_Gui, já fui na Bubu de sexta... Não dá. Sério! – eu enfatizei, indignada com a insistência dele – Vamos em outro lugar, porra.
_Mas eu já vou tá em Pinheiros, vai, meu... É do lado. Que custa, sua piranha?!
_Não. Não, não, não. Não!
_Cê tá sendo injusta, pô, sempre cola umas meninas lá...
_Gui, NÃO!
_Ahh... você vai. Você vai e ponto final.
 
Então desligou. Antes que pudesse ouvir o trigésimo “não”. E eu, por minha vez, redisquei para a Marina, com quem eu havia falado há menos de uma hora – ela já atendeu com aquela voz desagradável de quem não quer nada comigo.
 
_Mas o que cês vão fazer? – insisti.
_Ficar em casa, meu... – ela respondeu, impaciente – Por que você inventa de sair comigo nos piores dias?! Já falei que não dá, hoje não dá.
_Não sou eu que “invento”, meu! É culpa minha que ela meteu o aniversário dela na sexta, porra?! Eu sei lá por que não fez na terça logo de uma vez! Tem balada todo dia em São Paulo! – revirei os olhos – Vai, por favor... Eu preciso de gente confiável do meu lado hoje, Marina, eu não posso aparecer naquela droga e fazer mais merda ainda. Por favor, meu... Qualquer coisa!
_Mas precisa ser comigo?! Que saco, chama outra pessoa!
_Não, cê sabe que eu só confio em você – disse, como se fosse óbvio.
_Eu vou estar ocupada, sinto muito, gata. Procura outra babá.
_Nããão... – eu choramingava – O Gui quer me arrastar pra Bubu, meu... Eu não quero ir, só vai ter marmanjo lá. No-jen-to. Não dá, não dá.
_Mas você também, hein?! Quer sair de qualquer jeito, “oh! pelo-amor-de-deus!”, mas quer ficar escolhendo?
_Não! Não quero! Com você, eu saio. Pra qualquer lugar. Qualquer lugar. É só escolher. Juro. Pode até levar a outra mina aí junto, mas vamos... Por favooor, vamos! Por favor!
_“Pode até levar”... – ela riu, me ironizando – Não, a gente não vai sair... Desencana.
_Mano, é sexta-feira! Porra, Má, sério que cê vai ficar de mimimi?! Vamos fazer alguma coisa!
_A Bia não gosta de dar rolê, meu.
_Como assim não gosta de dar rolê?
_Ela prefere ficar em casa, ver filme, fazer um lance de boa, cozinhar. Sabe? Aí a gente fica juntinha.
_...
_Alô?!
_Desculpa, eu dormi por um segundo.
_Vai à merda.
_“Vai à merda”?! Cê se ouviu falando? Quantos anos vocês têm? Cinquenta?!?! Ah, pelo amor de deus, Marina... ficar “juntinhas”, ver filme, cozinhar, fazer um “lance de boa” em plena sexta à noite... cê parece a minha mãe se fosse lésbica, porra! Que deprimente, mano... Puta que pariu.
_Olha, você não tá conseguindo nada desse jeito...
_Tá, tá. “Perdão”. Mas vamos sair?! Por favor, meu... um boteco, happy hour, qualquer coisa! Vejo até filme com vocês!
_Tá louca?! Eu não vou te chamar para ver filme com a gente! – ela riu, de novo – E outra, a Bia também não gosta quando chama gente, e-ela...
_Mano, essa mina tá te escondendo ou o quê?! – a interrompi – Ela não gosta de nada, porra!
_Não começa. Viu... preciso trabalhar agora, depois a gente se fala.
 
Fim de ligação. Que ódio.
 
Menos de vinte segundos depois, o Gui me liga:
 
_Olha, eu dei uma olhada no site e vai tocar o...
_Gui, eu não vou na Bubu. Não vou e acabou. Escolhe outro lugar.
 
Desliguei o telefone, impaciente, já de saco cheio daquela insistência toda. Respirei fundo e redisquei mais uma vez para a Marina:
 
_Você é uma chata, sabia?! – comecei a despejar no ouvido dela, assim que ela atendeu – Quando eu mais preciso de você, cê vai e faz isso comigo, meu?! Vira as costas e vai lá ver filminho e cozinhar com essa “Bia” aí! Mano, não dá para vocês fazerem isso amanhã?? Ou melhor, faz no domingo! Domingo é que é dia de se entediar até a morte, não sexta!
_Essa conversa já acabou. Quer parar?
_É só hoje, Má... Só hoje. Eu juro. Eu só preciso que passe essa droga desse aniversário. É do lado de casa, mano, eu preciso ir pra bem... bem... bem longe!
_Vai pra Bubu, oras.
_Ah, tá! É só subir a Rebouças, Marina.
_Você não vai subir a Rebouças nesse frio do cacete! Eu duvido.
_Mesmo?! – perguntei com todo meu sarcasmo, ciente da minha capacidade de fazer merda como ninguém.
_Ok, talvez você suba... – ela admitiu – Mas não dá. Hoje não dá, flor, já combinei. Sinto muito.
_Marina, por favoooooooooooor... Por favor! Por favor! – comecei a repetir a fim de vencê-la pelo cansaço.
_Olha, até entendo... – ela seguiu falando por cima da minha voz, me ignorando – ...porque eu sei que não adianta eu falar para você simplesmente não ir, que você vai acabar aparecendo por lá, já que você é uma imbecil mesmo – ela teorizou, enquanto eu a detestava do outro lado da linha – e claro que eventualmente isso vai sobrar para mim, de um jeito ou de outro. Mas, ainda assim, vou te dizer “não” e aceitar o risco.
_Eu te odeio, você sabe que eu te odeio – apertei os olhos, fazendo birra.
_Ahh... Eu te odeio também, meu amor – ela riu.
 
Desgraçada.
 
Quando desliguei o celular, eu continuava sem um plano decente do que fazer comigo mesma naquela noite, a Mia seguia sem resposta e o relógio da parede já se aproximava perigosamente das seis... Ô diabo, viu.

outubro 09, 2010

Adequação

É possível normal saudável aconselhável sentir que tudo finalmente começa a dar certo... justo quando as coisas estão dando tão errado?

outubro 08, 2010

(Des)ânimo

Fechei a porta atrás de mim, sob o risco de encontrar o Fer a qualquer momento, entrando no nosso apartamento com a cara e a coragem – a coragem metida covardemente entre as pernas e a cara amassada de tanto chorar ao telefone.
 
Ou seja, entrei sem nada.
 
Para a minha sorte, o Fer não estava na sala – provavelmente já dormindo. Já passava da meia-noite e ele tinha ficado acordado quase toda a madrugada anterior, fumando com a Mia na sala até muito depois de eu ir para o quarto. E costumava acordar mais cedo que eu – era funcionário de uma empresa nas redondezas da Av. Paulista. Era o programador mais tatuado que eu conhecia e um dos melhores também. Deve estar capotado a essa altura.
 
Não queria trombar com ele, não com aquela cara de quem estava com um problema bem maior do que deveria ter numa quarta-feira à noite. Mas o, o Marcos não vai contar, tentava me convencer, sentindo meu estômago ainda revirar, enquanto trancava a porta da frente do nosso apartamento. Quer dizer, espero que não. Aquela insegurança me tirava a sanidade. De repente, uma situação que nunca esteve lá muito sob controle, saía completamente das minhas mãos e ia parar nas da pior pessoa possível.
 
Ou segunda pior.
 
O que mais me incomodava era toda a rede de mentiras que aquela minha falta completa de integridade vinha criando. Eu odiava ter que mentir para os meus amigos. Ainda assim, garanti para o Marcos que resolveria a situação – seja numa conversa sincera com o Fernando ou deixando a Mia de vez, o que também me parecia pouco provável. Sou uma imbecil mesmo, puta que pariu, eu me xingava, indignada, enquanto deixava as chaves em cima do móvel da sala, sabendo muito bem que não conseguiria cumprir com a minha palavra.
 
E temia a consequência disso também. As chances do Marcos se encher e acabar me delatando por conta própria eram bastante grandes. Eu não ia ter mais um segundo de paz. E que diferença faz agora?, a minha mente protestou contra si mesma, desacreditada. O embrulhar de estômago me acompanhou por cada um dos quarteirões que desci pelas calçadas sujas da Frei até em casa, num desgaste emocional tão intenso que se fazia notar nos meus olhos. E nos meus movimentos pesados ao chegar em casa.
 
Arrastei os meus All Stars surrados – que em algum momento, alguma vez, dois ou três anos antes, haviam sido brancos – pelo chão da sala e atravessei para a cozinha. Estava apática. Sentindo o peso daquela confusão, que acabara de piorar mil vezes mais, esmagar o meu corpo. Puxei uma cadeira, tomada por uma impotência devastadora, e me sentei por alguns segundos no escuro. Que inferno.
 
Tirei o celular do bolso e coloquei-o indelicadamente na mesa, como se me livrasse da própria arma do crime. Maldito, encarei o telefone, com um ódio infantil. Apoiei um dos braços sobre a mesa e reparei na marca que a Mia tinha deixado mais cedo no meu antebraço. Vai ficar roxo. Deslizei os dedos sobre a mordida. E de repente, senti uma necessidade estranha de falar com a Mia. Só avisar, sei lá, que estava tudo bem – ainda que não estivesse. Não queria contar tudo o que tinha rolado depois que saí do seu apartamento. Não ainda. E então, checando dez vezes a porra do destinatário, lhe enviei uma mensagem curta. Descontraída.
 
Depois escorreguei pela mesa, afundando o rosto cansado nos meus braços cruzados ali em cima, ainda ligeiramente gelados do frio que fazia lá fora. Tô fodida, pensei, com pesar. E inspirei. Inspirei fundo e expirei mais uma vez, lentamente, tentando me livrar dos meus fantasmas. Que merda. Senti o celular vibrar então na superfície da mesa. E levantei os olhos por trás do meu braço, esticando-o para alcançar o telefone. Abri a mensagem mais diante, ainda debruçada sobre o tampo.
 
“Hahaha eu disse q vc ia congelar! Da prox vez te empresto meu moletom se vc ñ for tão cabeça-dura ;) e qro ir dormir tbm mas to aqui no chão da sala ainda... ñ consigo parar de ouvir o cd e pensar em vc, sabe..pqp”.
 
Abri um sorriso na mesma hora.

outubro 05, 2010

A porra do alfabeto

Primeiro toque. Nada. Eu subia novamente a Augusta, agora tomada por uma agitação interna violenta, num susto que me fez parar os pés e o coração segundos antes. Droga, droga. O incômodo se misturou com o vazio das ruas e invadiu o meu corpo, me fazendo sentir mal, realmente mal, indo na direção contrária da que eu deveria, me afastando o quanto antes do meu apartamento. Me senti sem saída. Segundo toque. Caralho, atende. Atende, por favor, atende. O desespero começou a tomar conta de mim. Sentia se espalhar pelas minhas veias, arrebentando cada célula arrependida dentro de mim, até apertar a minha garganta. E nada – nenhuma voz do outro lado da linha.
 
Uma letra. Inferno. Uma porra de uma letra. Não conseguia me conformar, como eu sou idiota. Uma puta duma idiota, caralho. Terceiro toque. Quanto mais ele demorava para atender, mais eu me desesperava, por favor. Quarto toque e nada. Parei em frente a um muro abandonado e deixei minha cabeça apoiar-se contra o cimento, assombrada pelo nome do melhor amigo do meu melhor amigo na tela. Não tinha motivo para os meus pés continuarem. Completamente desacreditada, a batalha perdida antes de eu sequer ter chance de me explicar.
 
Quinto toque. E a única opção que me restava agora era torcer, em vão, com os olhos apertados, sentindo o concreto contra a minha testa e a droga daquele celular contra o meu ouvido. Torcer para eu ter tempo. Ele não pode ligar para o Fer, ele não pode, não pode..., eu implorava no frio, sozinha, no meio daquela calçada escura em São Paulo. Não pode, cacete. E por mais que eu quisesse me encher de qualquer mínimo fio de esperança, a demora para atender o telefone e sua escolha nada educada de palavras na mensagem que me mandou me forçavam a aceitar o fato de que agora eu havia fodido tudo de vez. Não tinha justificativa. Eu não tinha desculpa, não tinha argumento algum – o meu SMS expôs tudo, com todas as letras. Não tinha mais o que dizer. A minha mente foi tomada por uma ansiedade dilacerante e lágrimas precipitadas começaram a se formar dolorosamente ao redor dos meus olhos. Merda.
 
Sexto toque – e de repente, o Marcos atendeu.
 
_Fala.
 
Meu coração parou pela segunda vez. Ao escutar sua voz grossa, pesada, sem vontade alguma em me ouvir. Mil vezes merda. Não vai ser fácil, pensei, abrindo a boca para consertar a besteira que eu havia feito, sem saber direito como, sentindo todo o nervosismo entrar no meu caminho.
 
_M-Marcos... e-eu... – tropecei nas primeiras palavras – ...eu, e-eu... v-você não entendeu, a... a mensagem não foi...
_O QUE eu não entendi?! – me interrompeu, puto.
_A mensagem n-não era para você, era...
_Percebi.
 
Me cortou.
 
_Era... e-era para a Marina, mas... – senti minha respiração tremer, perdendo a coragem, falando cada vez mais baixo – ...n-não... não é o que cê tá pensando!
_Não? NÃO?! – ele levantou o tom de voz, me diminuindo mais ainda – Me explica, então, que caralho que é aquela merda!
_Não! N-não tem nada a ver, eu... e-eu sei o que cê deve tá achando, mas... m-mas eu... eu não... – respirei fundo – ...é, é-é uma amiga da Marina... e eu... e-eu tava só contando, não tem nada a ver com... – me enrolava, segurando o choro na garganta – É que essa menina... ela... e-ela...
_Ela o quê?! Chama "Mia", caralho?! – retrucou, nem por um segundo se convencendo daquela mentira deslavada, e as lágrimas começaram a correr involuntariamente pelo meu rosto – CÊ ACHA QUE EU SOU IDIOTA, PORRA?!
_NÃO! E-eu...
_Cê é muito cara de pau, mano...
_Marcos... – eu implorei, com a testa ainda pressionada contra o muro, me sentindo derrotada – ...Má, por favor. Me escuta!
_CÊ ACHA QUE VAI ME FAZER DE TROUXA TAMBÉM?! QUE EU VOU CAIR NESSA SUA CONVERSA, CARALHO?!
_Não, NÃO, p-por favor... – eu chorava, sentindo aquela confusão toda me engolir, sem saber o que fazer – ...Má, ele, e-ele não pode saber, não pode, meu, não assim. Por favor!
_E O QUE CÊ QUER QUE EU FAÇA, PORRA?! CÊ TÁ MUITO LOUCA SE ACHA QUE EU VOU MENTIR PRO FERNANDO, O CARA MERECE SABER A VERDADE!! É A MINA DELE!!
_Por favor, POR FAVOR! EU TÔ TE IMPLORANDO!
_COMO... MANO, COMO VOCÊ FAZ ISSO?? – gritou e eu fechei os olhos, novamente – COMO CÊ VAI E FAZ UMA MERDA DESSAS, CARALHO??
_Eu... e-eu não...
_PELAS COSTAS DO CARA, PUTA MERDA... MEU... PORRA, MANO! CÊS SÃO MELHORES AMIGOS! – continuou, tomando as dores dele – CÊ TEM NOÇÃO?!
_Má, eu... e-eu...
_QUÊ?! – se irritou comigo – FALA, PORRA!
_Eu... m-me apaixonei por ela, eu... – tomei ar mais uma vez – ...e-eu sei que eu não tenho desculpa, que é imperdoável. Eu sei disso, Má, mas eu, caralho, cê tem que acreditar em mim, e-eu realmente gosto dela.
_E NÃO DAVA PRA SER OUTRA, INFERNO? ELA É NAMORADA DO CARA QUE MORA COM VOCÊ, PORRA!! ISSO NÃO SIGNIFICA NADA?? QUAL É O SEU PROBLEMA??
_NÃO! NÃO É ASSIM! Eu... – me desesperei – ...Má, e-eu amo ela. Não foi na sacanagem, eu, eu n-não planejei... por favor... me dá um tempo pra resolver – disse, sem pensar – ...e e-eu vou falar com o Fer, eu vou dar um jeito. Mas não assim, não agora, por favor. Ele não pode descobrir por você, Má, ele não vai me perdoar nunca.
_LÓGICO QUE NÃO!! MANO, OLHA O QUE CÊ FOI FAZER!!
_EU NÃO QUERIA, EU... MÁ, PELO AMOR DE DEUS, CÊ TEM QUE ENTENDER. O RELACIONAMENTO DELES... NÃO É COMO SE...
 
Me segurei por um instante, sem querer trair ainda mais o Fer – mas não via outra saída.
 
_O F-Fer... – acusei – ...o FER TAMBÉM TRAIU ELA! NÃO É COMO SE...
_Ele O QUÊ?!
 
Merda. Fiquei muda.
 
_O QUE CÊ FALOU? REPETE! – insistiu – ELE FEZ O QUÊ?!
_Ele... e-ele traiu ela, Má. V-você... – as palavras saíam involuntariamente da minha boca – ...você tava lá quando começou, na sua festa, ele e a Julia, meu, eles dormiram juntos depois.
_Mano, cê...
 
Hesitou.
 
_Má, por favor... – pedi – ...eu tô te implorando. É mais complexo do que você imagina, para todos os lados.
_Vocês dois se merecem também, hein, puta que pariu...
_Por favor, Má. Me deixa resolver isso sozinha, meu – limpei minhas lágrimas, virando contra a parede e apoiando as costas – Por favor. Deixa eu contar pra ele, deixa a gente se resolver entre a gente. Por favor!
_Não sei, e-eu... – ele suspirou – ...não sei... – e aí levantou novamente o tom de voz, com raiva – ...POR QUE DIABOS CÊ FOI ME METER NISSO, PORRA?!
 
Ficamos em silêncio por um instante. E eu podia sentir o peso dos pensamentos que conflitavam na sua cabeça do outro lado da linha, segurando a minha respiração, angustiada.
 
_Má, por favor?!

outubro 01, 2010

Presta atenção

E então dançamos. Dançamos pelo chão, o resto da tarde toda.
 
"Comi a Mia de novo", digitei para a Marina conforme descia as escadas da entrada do prédio da Mia, “to apaixonada, meu. pqp”. É – eu era a garota mais feliz de São Paulo. Não conseguia parar de sorrir, que nem uma tonta, andando pelas ruas escuras como se fosse mais leve do que o ar. Que dia, porra. Consegui pegar um ônibus em 5 minutos, exatamente no horário que a Mia chutou que ele passaria, o que me fez sentir com sorte.
 
Sentei numa das cadeiras no fundo. Já estava tarde e eu não tinha sono algum, não com aquela empolgação boba que circulava pelo meu corpo inteiro. Estava mais perdidamente apaixonada do que jamais estive. O ônibus dava uma considerável volta para chegar no meu não-tão-longe-assim destino. Me esparramei sem pressa no banco, apoiada confortavelmente contra o encosto, olhando para o lado de fora e para as luzes da cidade que eu tanto amava. O frio e o horário deixavam as avenidas vazias – e bonitas.
 
A imagem da Mia naquela tarde voltou à minha cabeça. Tão viva que eu quase podia senti-la ao alcance dos meus dedos, percorrendo o vidro gelado da janela do ônibus, todo riscado e judiado por recados adolescentes e nomes pichados. Fechava os olhos e a via. A Mia. Observando silenciosamente o cômodo ao redor enquanto fumava um cigarro. Um dos meus. Sentada sem roupa ao meu lado, com os cabelos soltos cobrindo parte das suas costas, num estar junto assim – minha mão corria as luzes de São Paulo, como percorria o seu corpo. Enquanto os semáforos e letreiros refletiam coloridos na janela, eu fechava os olhos e lembrava de como era tê-la tão perto de mim. E como aquilo me fazia feliz, puta que pariu.
 
E era aí que estava o perigo: o vício que eu alimentava. A inevitável abstinência que estava por vir, a necessidade de vê-la de novo cada vez que a deixava – o meu amor por ela, prestes a sair de vez do meu controle. E ia sair, disso eu tinha certeza. O ponto de retorno já tinha sido ultrapassado. Sentia que agora apenas ia, ia sem volta. Sem ter mais como parar. Mas o que eu podia fazer se tudo o que me vinha à cabeça era ela. Ah, ela. A Mia. Ela e aquela tarde e a noite que a antecedeu e todas as outras, a-as outras vezes que vieram antes dessa. Cada beijo. Cada olhar. Tudo o que era nosso.
 
Desci minutos depois numa Augusta abandonada. Sem um carro ou uma alma viva sequer na rua. Para qualquer lado que se olhava, para cima ou para baixo daquela ladeira, o vazio se fazia notar. Era até incômodo ver a Augusta assim – não fazia sentido e também não me parecia lá muito seguro. Então, apertei o passo. Comecei a descer o tanto de calçada que faltava, sentindo o vento cortar os meus braços descobertos, cruzados em frente ao meu corpo, e me encolhendo. Devia ter trazido a porra da jaqueta, pensei pela milésima vez naquele dia, me torturando sem muito propósito. E foi quando o meu celular tocou.
 
Uma só vibração, avisando a chegada de um SMS – Marina, pensei. E criei coragem para esticar o braço no frio e alcançar o aparelho no bolso de trás da minha calça. Assim que li as poucas palavras na tela, no entanto, fui tomada por uma dúvida esmagadora. Não sobre o remetente daquela, que estava escrito logo ali embaixo, mas com o destinatário da que enviei enquanto descia pelas escadas do prédio da Mia. E foi aí, inferno, que eu percebi a merda que fiz.