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setembro 26, 2010

No rádio


...
 
One!
You're biting my tongue.

Two!
I'm kissin' on you.

Three!
Is he better than me?

One!
Two!
Three!
Four!

The word's on the streets and it's on the news:
I'm not gonna teach him how to dance with you.
He's got two left feet and he bites my moves!
I'm not gonna teach him how to...
Dance... dance... dance... dance...

(Black Kids)



*Créditos pela sugestão de trilha sonora ao Fuck Art, Let’s Dance! do Seje Menas.

O conceito

_Quem tá cantando?
 
A Mia veio e sentou em cima de mim, como ela gostava, com uma perna de cada lado do meu corpo. Eu sorri. Ela não ouvia indie. Seu gosto musical se limitava a punk dos anos 70 e 80, alguns pós-punks do fim dos 80, muita banda de mina dos 90 e, graças à influência minha e do Fernando, ska e rocksteady da Jamaica nos 60 e 70. Salvo algumas riot grrrls, raramente algo na sua lista de músicas ultrapassava os anos 2000.
 
_Ah, uma banda aí... – respondi – Black Kids.
_Hum, e o CD é deles então?
_Não, só essa – eu ri, deitada no tapete, olhando-a ali no meu colo – O CD é seu.
_E o que mais tem nele?
_Por que cê não lê o bilhete? – eu sugeri e levantei metade do corpo, me apoiando nos cotovelos com as mãos acidentalmente largadas nas coxas da Mia – Eu expliquei tudo lá, meu, e tem a tracklist e um...
_Hum. Prefiro ouvir você explicando.
_Ah, mano... n-não... – eu ri, envergonhada – Não quero.
_Deixa de ser boba, meu, eu vou ler de qualquer jeito...
_Então lê, uai! Por que eu que tenho que explicar?
_E qual o problema?
_Ah, sei lá... – deixei o corpo cair de novo, escorregando os cotovelos no tapete – ...s-só, só lê lá, vai.
 
A Mia balançou a cabeça, insistente. E eu coloquei uma das mãos sobre o rosto, incomodada, sem querer me expor tanto assim. Mas ela cruzou os braços e me encarou – como quem diz “para de birra”. Argh, mas que inferno.
 
_Tá – suspirei e tirei a mão da cara, me dando por vencida – Não é nada demais, meu, é idiota. Cê provavelmente nem vai curtir...
_Por que não??
_Ah, sei lá! Não é muito as paradas que cê ouve...
_Mas o que é?! Só fala logo!
 
A Mia riu.
 
_É uma compilação das músicas que... q-que eu perdi para você.
_“Perdeu”?!
_É, tipo, músicas que eu gostava antes e que agora não consigo ouvir sem... – hesitei – ...s-sem pensar em você. Ou umas que literalmente eu tive que parar de ouvir no meio – ri.
_Mas por que cê teria que...?
_Ah, de vezes que eu tive que... – me enrolava, ela me encarou com carinho – ...sair de onde a, a gente tava, bem quando começou a tocar alguma música que eu gosto e... e aí eu perdi, sabe?
_Mas isso é horrível! – a Mia riu, abaixando o olhar.
 
Genuinamente chateada com o fato de eu ter deixado de escutar uma música, alguma vez na vida, por sua causa. E eu me encantei com o quanto esse tipo de coisa também era relevante para ela – aquela valorização acima do normal de determinadas faixas. Suas mãos seguravam o encarte ainda dobrado, observando a tracklist escrita à mão no verso.
 
_Foi ontem, não foi? – ela me olhou, então – O Bowie.
_É, foi.
_Eu queria que você tivesse ficado.
_Eu tava muito chapada, Mia. E... e, às vezes, c-com o Fer lá, eu...
_É. Eu sei.
 
Ela suspirou e eu sorri tentando quebrar aquele clima idiota que eu havia começado.
 
_Mas, assim, também não é como se fosse grande coisa... – fiz graça – Só um Bowiezinho sacrificado, aqui e ali, de vez em quando.
_Mas é o Bowie, porra! Cê ama Bowie!
_Ok... – eu ri – É grande coisa, sim.
_Mano, eu... e-eu ia te odiar se cê me fizesse perder uma música que fosse dos Distillers ou... sei lá, Sleater-Kinney!
_Eu jamais faria você perder Sleater-Kinney... – eu ri, de novo, e me aproximei um pouco dela, apoiada novamente nos cotovelos – ...aí já é pecado.
muito pecado, nossa! – ela riu junto, chegando mais perto também – Imperdoável.
_É.
 
Subi as mãos pelas suas coxas, sentindo o seu corpo se inclinar na minha direção. E entre uma palavra e outra, sussurrada, nuns “deixa eu te compensar pela sua perda”, começamos a nos beijar de novo.

setembro 21, 2010

Percepção

O televisor gritava silenciosamente um azul brilhante – a luz invadia o quarto escuro de um jeito grosseiro, indicando o término do DVD e demandando alguma atitude nossa. E nós ignorávamos, é claro. De olhos fechados, para lá e para cá, nuns beijos sem fim, dançando pelo chão e rindo, fingindo não nos dar conta.
 
Tudo com a Mia era meio adolescente, mas de um jeito bom.
 
"Bom" porque eu gostava... dos beijos escondidos, do que era só nosso, do que ninguém podia ver – na casa dos pais dela ou na minha. As segundas intenções subentendidas, a antecipação e aquela demora constante para cruzar a linha. A verdade é que eu já estava desacostumada. A cena lésbica paulistana era uma baixaria. E não me entendam mal – eu sempre gostei de baixaria. A maioria dos meus encontros terminava na cama não por pressa, mas por facilidade. Afinal, os vinte e poucos anos vinham com nosso próprio cafofo e certas liberdades das quais muitas de nós não pudemos desfrutar morando com pais que desaprovavam nossa lesbiandade. Ter meu próprio canto foi uma emancipação dos amassos em boteco e banheiros de balada. E àquela altura na minha vida, eu já mal lembrava qual era o sentido de esperar para tirar as calças.
 
Mas com a Mia eu gostava.
 
Podia ficar horas ali, rolando com ela naquele tapete. Notando como, com o tempo, seu jeito ia se moldando em mim. E o meu no dela. A percebia cada vez mais confortável comigo – com a ideia de estar nos meus braços. Os seus quadris começavam a se soltar mais sob a minha mão, a se desprender de qualquer hesitação – seja por sobriedade ou pelos nossos contextos. Cada beijo nos desligava mais do resto do mundo, nossas peles iam se encaixando. E aos poucos, a Mia vinha. Vinha mais, sabe, mais perto. Mais do que nas outras vezes. E vinha mais certo, também, mais como deveria ir. Eu também ia, aprendendo mais sobre ela a cada segundo juntas. A cada milímetro que meus dedos percorriam, a minha boca. A descobrindo.
 
De um jeito ou de outro, a facilidade das noites paulistanas me roubava isso. Essa percepção mútua da outra pessoa, essa sintonia construída aos poucos – em que seu corpo começa a antecipar o próximo movimento, os sons, as vontades. Nos conhecendo tão bem. O ritmo me forçava a me envolver, a estar presente. Em longas, deliciosas horas desse chove-não-molha que me tiravam do sério. Caralho. E quando quase choveu naquele tapete – claro – a Mia foi lá e cortou a água. Isso é vingança? Secou a fonte. Filha-da-mãe. Quase não acreditei quando ela parou tudo e se levantou.
 
_O que cê tá fazendo? – me contorci no tapete, já com saudade – Volta aquiiii...
_Vou desligar essa luz, meu, tá muito forte – a Mia caminhou até a televisão e a apagou – Fica gastando energia.
 
Ah, você nem imagina a energia que tamo gastando, achei graça. E o pior é que eu gostava. Gostava de sofrer assim. Fiquei deitada no chão, olhando-a de volta. E a Mia veio na minha direção, com ares despreocupados, como se tivéssemos a tarde toda – os seus pais só iam voltar depois das dez da noite e, até lá, tínhamos a casa inteira só para nós.
 
_Ah! –  lembrou de repente – Posso pôr o CD?
_Claro... – eu sorri, me esticando para alcançá-lo a alguns centímetros de mim, jogado no tapete – Deixa eu pegar, pera aí...
_Hum. E o que é, vai me contar?
_Põe e escuta, ué...
_Que misteriosa você... – zombou.
_Não é mistério, besta. Tem um bilhete dentro explicando!
 
A Mia fez uma careta, desaprovando a minha resposta, e pegou a capa das minhas mãos. Tirou então o disco, mas sem abrir o papel que estava dobrado ali dentro. E colocou para tocar no rádio da sala. O som começou a sair, alto, das caixas do estéreo.
 
"You are the girl that I've been dreaming of 
Ever since I was a little girl..."

setembro 18, 2010

The thrill of it all

_Deixa eu ver – a Mia colocou o cigarro na boca, murmurando com o filtro entre os lábios – Dá seu braço.
 
Eu ri alto. Estava deitada no tapete felpudo da sala “de TV” do seu apartamento e a cena – a famosa cena – acabara de passar, incitando um debate intenso sobre mordidas de vampiro serem realistas ou não. Sempre achei que os filmes exageravam. Não pode ser tão fácil assim atravessar a pele humana. Enquanto o filme seguia rolando, a Mia pôs uma perna de cada lado do meu corpo e esticou a mão para frente, repetindo o pedido:
 
_Vai. Dá seu braço!
 
Eu balancei a cabeça, achando graça. E obediente, estendi o braço na sua direção – ela sorriu. Num só movimento, tirou o cigarro dos lábios e aproximou a boca do meu antebraço, fincando os dentes em mim. Com os olhos nos meus. Céus, isso não vai prestar. Coloquei o outro braço atrás da cabeça, me apoiando nele e a olhando de volta. Como se nos desafiássemos para ver até onde eu aguentava. Os seus dentes foram me apertando, cada vez mais. E mais. Desgraçada. Estava doendo pra caralho – mas eu fingia que não, só de afronta. Então a Mia mordia com mais força. Puta que pariu, meus dedos agarraram a sua coxa, num reflexo de dor. Não queria dar o braço a torcer, mas... porra. Uma hora não deu mais.
 
_Para, para! – apertei os olhos, já não aguentando mais de dor, rindo – Para!
 
A Mia afrouxou a boca na mesma hora e escorregou os lábios na minha pele – como quem assopra uma ferida. Então deitou de novo ao meu lado, dando mais um trago no seu cigarro. Vitoriosa. “Você gostou disso, não é?”. Ela acenou em resposta. Meus dedos deslizaram lentamente pela sua barriga, num trechinho descoberto pelo moletom, entre a linha da sua meia-calça e a poucos centímetros do umbigo. Meu antebraço ainda latejava de dor, mas eu não ligava. Observava o caminho das pontas dos meus dedos na sua pele, deitada de lado, acompanhando cada linha, suas estrias, suas curvas, o jeito como seu corpo se dobrava com a posição.
 
O filme rodava na nossa frente já completamente esquecido por mim. Toda vez que me aproximava do plástico que cobria a nova tatuagem, a Mia se esticava preguiçosamente e murmurava qualquer coisa – “assim não, começa a coçar”. E continuava assistindo, enquanto os meus dedos voltavam atrás, refazendo desenhos no decorrer da sua pele. Estar ali com ela, daquele jeito, parecia mais íntimo do que qualquer outra coisa que já tínhamos feito juntas.
 
Deslizei o indicador até uma pintinha discreta alguns centímetros abaixo do seu umbigo. E senti a sua pele se arrepiar e contrair, me arrepiando também. Subi os olhos para o televisor e demorei uns três ou quatro segundos até entender o que se passava no filme, que eu já havia visto dezenas de vezes. A minha sorte é que, apesar do erotismo cafona dos anos 80 em certas cenas, o nosso gênero favorito também era em grande parte o menos sugestivo possível – me servindo como um balde de água fria toda vez que eu chegava perto de cruzar a linha daquela meia-calça dos bons modos.
 
_Olha essa cena... – comentei, empolgada, com a Mia – ...é muito boa, meu!
_Mas o que ela tá fazendo aí?!
_Elas vão se beijar...
_Eu não entendo quem escreve esses roteiros, porra, numa hora ela é toda moralzona e no outro vai lá beijar a outra com a boca cheia de sangue? Não faz sentido!
_Faz, sim. Cê vai ver... Presta atenção!
 
Pude sentir a respiração da Mia suspender, a segurando, enquanto seus olhos encaravam atentos o desenrolar da história que ela mais-ou-menos acompanhou. Entre os risos e conversas comigo. Escorreguei o braço pelo seu corpo, no mesmo trecho descoberto pelo moletom, e me aconcheguei abraçada a ela, apoiando a cabeça no seu ombro para assistir o final.
 
Meus olhos, entretanto, seguiam mais na Mia do que na tela. E a poucos minutos do desfecho, em meio aos gritos de desespero, à iminência de um dos piores efeitos do filme todo, a Mia se virou para mim. Segurou o meu rosto com a mão, como se não quisesse mais assistir, e a ponta do seu nariz encostou no meu. Deitadas no tapete, bem perto uma da outra, os seus olhos pareciam se esconder nos meus.
 
_Ficou com medo? – perguntei, baixinho.
 
Ela balançou a cabeça, “não”, e se moveu suavemente na minha direção – até seus lábios encostarem nos meus e abrirem minha boca para um beijo. Puxei-a para perto do meu corpo, mais ainda, a segurando firme contra mim enquanto as suas mãos me apertavam o rosto. A beijei de volta, com vontade, e nossos olhos não se abriram mais até o final dos créditos.

setembro 15, 2010

As boas intenções mal-interpretadas

Rodamos aleatoriamente pelos corredores da locadora, entre as fileiras intermináveis de DVDs, rindo. A Mia ia na frente, naquele moletom tão grande que sequer parecia ter uns shorts ali embaixo, pegando as piores comédias românticas da prateleira e tirando sarro dos títulos terrivelmente machistas. “Namorada de aluguel”, “Tudo para ficar com ele”, “Procura-se uma noiva”, “As namoradas do papai” – para cada um, uma revirada de olho. Eu ria junto.   
 
Nos divertíamos meio à toa pela loja. E só quando chegamos na seção de desenhos animados, foi que a Mia notou a sua camiseta na minha mão. “Essa aí é a minha?”, perguntou e eu confirmei com a cabeça. Se cê soubesse o problema que esse maldito pedaço de pano me causou ontem, pensei e ri da minha própria desgraça. Ela sorriu e continuou andando, a alguns passos na minha frente. Notei que um dos rasgos da sua meia-calça circulava quase certinho – num acaso charmoso – um pequeno escravelho que ela tinha tatuado atrás do joelho.
 
_E esse CD aí, o que é?! – a Mia olhou rapidamente para trás, na direção da minha mão, indo para o corredor seguinte.
_É seu presente...
_Hum. Então quer dizer que tem mesmo um presente?!
_Tem... – peguei um dos encartes para olhar, logo colocando-o de volta – ...por quê?
_Ah, sei lá... – ela sorriu, por cima da prateleira que nos separava – ...quando eu li a mensagem, eu pensei q-que... o presente era, tipo, você.
 
O meu rosto se iluminou involuntariamente.
 
_Bom, não precisa falar duas vezes... Eu jogo isso fora e problema resolvido! – fiz graça, erguendo o CD, como se fosse largá-lo no chão.
_Nããão! Eu quero ele! – ela contestou na mesma hora, se debruçando sobre a prateleira, tentando pegá-lo da minha mão.
_Não, não, não, não... – me desvencilhei, escondendo-o atrás de mim – ...eu gostei mais da sua ideia.
_Não foi minha ideia! – a Mia deu a volta até a fileira que eu estava – Achei que você tivesse pensado isso. Para!
_Eu?! – forcei um tom de indignada, enquanto ela tentava puxar meu braço de trás das costas pra alcançar o CD – Cê que pensa besteira aí e depois vem jogar pra cima de mim... Eu não falei nada disso! Eu disse que tinha um presente. Pre-sen-te.
_É, mas eu achei que era só uma... – continuou – ...uma desculpa pra... p-pra...
_...pra ver você? – eu ri mais ainda, resistindo aos esforços dela – Tá se achando, hein?!
_Mano... Você que se acha, pra começo de conversa!
_Não o suficiente para me oferecer como presente de aniversário... Isso, assim, só na sua cabeça!
_Besta! – ela riu, desistindo, e cruzou os braços – Deixa eu ver, vai?
_Não.
_Por favor!
_Não, meu, cê vê na sua casa... – balancei a cabeça – Vem. Vamos escolher um filme!
 
A Mia resmungou, contrariada, e eu coloquei meu braço sobre os seus ombros, dando-lhe um beijo na bochecha. E então, sem combinar, fomos juntas para a seção de terror. Eu amava isso nela. Na gente. O jeito como gostávamos das mesmas coisas, numas coincidências que me faziam sorrir. O Fer não era desses – volta e meia a gente gastava horas, às vezes uma tarde inteira para convencê-lo a assistir filme de terror com a gente, já sabendo que provavelmente ele ia vazar no meio. Ele até topava serial killer, zumbi, assassinos mascarados – mas não os de espírito. Esses não. Ao primeiro sinal de possessão ou qualquer coisa paranormal, ele levantava e ia fazer outra coisa. E é, talvez fosse justamente essa a nossa intenção.
 
Agora que estávamos sozinhas ali, escolhendo só para nós, todavia, a tarefa não era tão fácil – considerando o quanto nós duas gostávamos do gênero, não sobrava lá muita coisa que já não tivesse sido vista. Lá pelo oitavo filme que puxamos da prateleira, sem sucesso, decidimos que a melhor estratégia era rever um clássico.
 
_A gente podia levar um de vampiro, né... – a Mia murmurou, deslizando os dedos pelos DVDs enquanto lia rapidamente os títulos – Cê já me falou seu favorito?
_Não sei – tentei lembrar.
_Qual que é?
_Depende. Cê quer a resposta decente ou a sincera?
_A sincera – a Mia riu.
_Tá, mas não pode julgar...
_Não vou, prometo.
_“Fome de viver”.
_Que raios de filme é esse, meu?!
_Ah, aquele péssimo do Bowie...
_Do Bowie?! – estranhou.
_É... – me surpreendi – Espera, CÊ NUNCA VIU ESSE FILME?!?
_Não... – ela riu, de novo.
_Puta merda. Não. A gente TEM que assistir! – comecei a caçar freneticamente nas prateleiras – É um puta clássico gótico dos anos 80, mano, o visual cafona, o Bauhaus, o Bowie. Caralho, eu não acredito que cê nunca viu!
_Nossa, não, nem nunca ouvir falar...
_Como assim?! – eu ri, indignada – Meu, não, para, eu passei a adolescência inteira assistindo esse filme só pra ver a Catherine Deneuve pegando a Susan Sarandon. 
_Hum... – achou graça – Entendi tudo agora.
_Olha, você tá rindo aí porque cê não sabe o que é crescer sapatão vendo só hétero na TV e, de repente, assistir uma cena daquelas. E fora que né, eu já tinha ali uma queda razoável pela Susan Sarandon desde “Thelma & Louise”...
_Quem não tinha, não é?
 
Ela sorriu e eu finalmente encontrei o DVD da prateleira, pegando-o na mesma hora, animada.
 
_Aqui. Achei!

setembro 13, 2010

Ventando

Joguei o cigarro ainda aceso na sarjeta, soltando o último lance de fumaça em direção ao céu cinzento. Eram duas e meia da tarde. Meti a mão no bolso da calça e pus-me a andar novamente. Devia ter trazido um casaco, me arrependi por um instante, enquanto caminhava contra o vento com os braços de fora, numa calçada fria de bairro nobre.
 
A casa da Mia ficava na pior localização possível. Se fosse umas quadras mais para lá do que pra cá, dava para ir de metrô. Se fosse umas mais pra cá do que para lá, dava para ir a pé – mediante a uma certa disposição minha e, claro, aquela colaboração climática. Mas não, não, tinha que ser bem ali, no único ponto que requer manobra em Higienópolis. Pra lá do Samaritano. Daqueles cantos que só se chega de carro, sabe, bem coisa de rico.
 
_Ela disse que vai descer... – o porteiro me avisou, simpático, e me deixou esperar do lado de lá do portão.
 
Entrei e mantive uma das mãos no bolso, numa tentativa frustrada de me manter minimamente aquecida, enquanto olhava os canteiros de flores da entrada do edifício. Sem prestar realmente muita atenção. Na minha outra mão, estava a blusa da Mia, devidamente dobrada, e um CD. O meu cabelo provavelmente se encontrava naquele estado “atraente” pós-ventania e sei-lá-quantas quadras andadas desde o ponto, mas eu estava com frio demais nos dedos para me importar. Deixa pra lá, pensei. E quando dei por mim, a Mia já estava atravessando o pátio de entrada do prédio em seus coturnos surrados. Sorri na mesma hora.
 
_Cê não tá congelando, meu?! – ela riu, num moletom preto que era pelo menos dois tamanhos maiores do que ela e com uma meia-calça preta rasgada por baixo, acidentalmente punk.
_Eu?!
_É, aí toda “verão” com essa blusa. Cê não tá com frio?!
_Pra caralho... – eu ri e ela achou graça, revirando os olhos para minhas escolhas questionáveis de roupa.
_Tá. Então desencana, acho que é melhor a gente subir...
_Desencana do quê?
_Ia falar para a gente passar na locadora, preciso devolver uns filmes e também queria comprar cigarro, mas você tá toda descoberta aí, meu. Vamos lá pra cima e eu faço isso depois...
 _Não, mano, nada a ver... Vamos lá, eu vou com você, de boa.
_Certeza?!
_Claro. Demorou...
 
Eu sorri. E ela fez um sinal para o porteiro para que ele liberasse a porta da frente. A tranca estalou e o portão rangeu ao puxarmos a grade, soando mais cansado do que velho na cabine. A Mia saiu primeiro e eu a segui, indo logo atrás. Na rua, andamos lado a lado e o seu braço se enroscou no meu, me envolvendo naquele tecido fofo e quentinho, confortável contra a minha pele gelada. A locadora não era longe, mas o vento estava impetuoso.
 
Foi só quando paramos no meio-fio para atravessar que eu a olhei com atenção, conforme os seus olhos se distraíam com o movimento dos carros, na direção oposta à minha. E notei o quão linda estava era. O meu coração acelerou, enquanto tudo ao redor parecia mais lento. O vento fazia com que os fios do seu cabelo esbarrassem contra o seu rosto. Aí se prendiam à sua boca entreaberta, sutilmente, até mudarem novamente de posição ou voarem para o outro lado, como se dançassem no ar. Caralho. Observei-a, encantada, pelo que me pareceu uma eternidade.
 
_Vem! Vem! – a Mia me apressou de repente e riu, desenroscando rapidamente o seu braço do meu assim que o trânsito parou, e me puxando pela mão para cruzarmos – Vem!
 
Oportunidade de beijo perdida, droga.

setembro 10, 2010

Expectativa

Passei as horas seguintes sentada em frente ao PC. Tomada por uma energia repentina, numas ideias erradas apaixonadas. Sabia que àquela altura a Mia estava em alguma aula tediosa de arquitetura no Mackenzie e isso me dava tempo para fazer as coisas da única forma que eu sabia – compulsivamente. Lá pelas dez, quando enfim terminei, procurei o celular em meio à bagunça da mesa e digitei para a Mia: “Ontem ñ te dei seu presente, meu... oq vc vai fazer dps da aula? ;)”.
 
E aí esperei a resposta, sentada na cadeira, ainda com os pés sobre a mesa.

setembro 09, 2010

Ócio criativo

Mas não veio. Sei disso não porque me lembro, mas porque quando o frio me acordou e amanheceu do lado de fora, a Mia não estava lá. Não tinha ninguém ali comigo. Minha cama estava vazia – como sempre. Sozinha entre os lençóis, a minha memória custava a recordar como eu havia chegado da porta até ali. Deve ter sido a bebida, pensei, ao abrir os olhos e sentir um enjoo horrível, afundada no meu próprio cabelo com cheiro de cigarro. O meu braço despencava do colchão, descoberto, e a minha cabeça parecia pesar mais do que o normal contra o travesseiro.
 
Ressaca, argh.
 
Tinha preguiça até de me mexer – o restante da cama não estava tão quente quanto o pedaço onde eu estava deitada e isso me tirava toda a coragem de sair dali. Despertar um músculo sequer parecia um esforço desnecessário. Manhãzinha ingrata, resmunguei mentalmente, azeda. Mas, ainda assim, me estiquei. Empurrei o corpo levemente para cima, apoiada no braço direito, e usei o outro para alcançar a coberta amassada ao pé da cama. A colcha estava gelada de tanto tempo jogada ali, às traças, mas só de cobrir aquele tanto de pele exposta – de quem dormiu equivocadamente só de cueca e com a janela aberta –, ah, já me deixou bem mais confortável. Me aconcheguei e fechei o olho por um instante.
 
Daí reabri, de repente.
 
Tive a impressão de que o “instante” – que era para ter durado dez segundos – tinha sido bem mais do que aquilo. Merda. Chutei as cobertas para baixo novamente, pulando apressada da cama. Argh, eu odiava levantar assim tão bruscamente, ainda mais de ressaca e com a cabeça doendo. Inferno. Saí do meio dos lençóis e corri para pegar meu celular no bolso da jaqueta, ainda largada no chão perto da porta. Bosta, xinguei para mim mesma ao ver as horas, bosta, bosta. Apoiei a testa contra a madeira do batente, apertando meus olhos fechados, devia ter saído vinte minutos antes para trabalhar e não estava sequer vestida. Que ótimo.
 
Arrastei-me lentamente até o corredor, abrindo a porta, e fiquei parada por um tempo, observando o silêncio no apartamento. Então atravessei até o banheiro e escovei os dentes para tirar aquele gosto da boca. Ignorando o meu atraso, entrei no chuveiro e liguei a água, fui me deixando tomar por aquele estado contemplativo melancólico de quarta-feira-de-manhã. A água escorria pela minha cabeça e eu me afundava em mim mesma – num cansaço desanimado. Aquela lentidão sem fim. Ao sair, me enxuguei e andei pelo apartamento com o cabelo molhado, pingando pelo chão conforme eu andava.
 
Cheguei na cozinha e parei por alguns segundos em frente à geladeira. Até me decidir pelo ovo – cura-ressaca infalível: torrada, ovo mexido e uma fatia de queijo por cima. Anos de eficiência. O frio arrepiava o meu corpo descoberto. Lá fora, o dia estava cinza – feio e escuro e bem paulistano. Ainda assim, eu me recusava a acender qualquer luz na casa e a interferir no meu mau-humor. Tinha dias em que fazia questão de me afundar na fossa lama. Peguei meu prato e levei-o para o quarto, sem qualquer senso de urgência pelo atraso. Deixei-o em cima da cama, enquanto me enfiava em um moletom-quentinho-de-dormir.
 
E então decidi: não vou pro trampo.
 
Concluí que a desculpa até que colaria, considerando o quanto eu supostamente já não me sentia bem no dia anterior. Liguei e avisei. Que se dane. Coloquei uma meia no pé e subi na cama para terminar de comer. E aí... aí... Bom, aí o dia ficou livre, não é. Droga. Eu tinha horas – horas e horas e horas – desocupadas pela frente e nem um maldito plano do que fazer senão me recordar de que continuava sozinha naquela porra de quarto. Deprimida. Um fracasso amoroso ambulante. Para ajudar, a blusa da Mia continuava junto ao resto das outras coisas largadas no chão. Ali, paradinha, só me incomodando. Que inferno. Tentei ignorar aquele pedaço de pano, enquanto ele me lembrava cruelmente com quem eu não havia dormido naquela noite, e pus-me a pensar no que fazer com o meu dia.
 
Tá. Sentada aqui sozinha não vai rolar, levantei e liguei o computador. Meti o som no último volume, claro, na esperança de que aquilo ocupasse o cômodo vazio. A primeira música aleatória tocava enquanto eu rodava a minha playlist atrás de algo que combinasse com o meu humor. Sabe-se-lá quantos GBs de obsessão musical em pastas e subpastas, arquivos baixados ilegalmente ao longo dos anos, centenas de nomes pequenininhos correndo pela tela. E aí, como quem não estava procurando, achei a música que eu havia perdido. É. A mesma da noite anterior. Coloquei os pés cruzados em cima da mesa e deliberadamente pus “Oh You Pretty Things” para tocar, me sentindo vingada.
 
Foi então que me veio uma ideia de como aproveitar o meu tempo livre de forma mais produtiva – e de repente, o meu mau-humor sumiu.

setembro 05, 2010

Perdendo melodias

Apoiei a lateral do meu All Star direito na borda do esquerdo. Aí deslizei o pé para cima, enquanto empurrava a borracha para baixo, e fui tirando-o – como se tropeçasse na minha própria lentidão emaconhada. Pisei de meia no chão e, em seguida, fiz o mesmo com o tênis direito. Mal havia entrado no quarto. A minha mão continuava na maçaneta, segurando desajeitadamente o meu corpo embriagado.
 
Diferente da sala, o meu quarto estava em silêncio. Me virei no escuro, ainda brisando, e desabotoei a calça nuns gestos pesados. Qualquer movimento parecia me cansar, dada a lentidão com a qual o tempo se passava na minha cabeça. A minha mente estava vazia. Me ocupava somente em terminar aquele lento despir e ir para a cama – mesmo que eu não estivesse, de fato, com o sono que há pouco havia declarado. Comecei a descer a calça pelas minhas pernas, me apoiando contra a porta, e a larguei no chão, empurrando-a com o pé para o lado.
 
Não, não tinha sono. Não de verdade. Aquilo era rotina, era automático. Deslizei o zíper da minha jaqueta para baixo, vagarosamente, até abri-la por completo. E aí deixei cair um dos lados, descobrindo o ombro esquerdo, para depois terminar de tirá-la pelo direito. Preguiça de andar até o armário, pensei, e também a soltei no chão. Então subi meus dedos pelas minhas coxas, sentindo-os ligeiramente gelados contra a minha pele, até encontrar a borda da blusa. Escorreguei o tecido corpo acima, passando pelo meu umbigo, o top e aí a minha cabeça, bagunçando ainda mais o meu cabelo.
 
E foi então que reparei. A
 
Aquela camiseta não era minha.
 
A ideia precisou de alguns segundos, parada ali a encarando, para enfim ser processada. Não é minha, pensei, incomodada. É dela. Era dela e estava ali, estava em mim o tempo todo, e eu tinha esquecido. Agora não sabia o que fazer com ela.
 
Então fiz o que não devia – ao invés de largá-la no chão junto ao resto, deixei os meus dedos se afundarem no tecido. Deixei. Deixei a minha pele correr contra o algodão e a puxei para perto de mim. A Mia. A blusa. E é, era idiota. Eu sabia disso, ou devia saber, mas não estava em condições de refletir sobre qualquer uma das minhas ações. Simplesmente continuei, dando trela para o meu próprio romantismo tonto, e irresponsável, agindo como uma adolescente, com o rosto enfiado no tecido – sentindo o cheiro dela.
 
Inferno.
 
Ainda no escuro, sentei no chão e apoiei as costas contra a porta. Por que eu faço isso comigo mesma? Tinha chegado no ponto mais baixo que poderia chegar, segurando aqueles três palmos de pano amassados contra o peito. Apegada à lembrança dela. Não estava realmente aborrecida, não estava pensando em nada, aliás. Mas as minhas mãos pareciam sentir o jeito da Mia no tecido, o seu toque. Eu queria você aqui, garota. E foi aí que me veio uma, uma “coisa”, sabe? Por dentro.
 
Talvez fosse o horário, não sei, talvez fosse só meu coração – ou o tanto de bebida que eu havia bebido e o tanto de fumaça que eu havia fumado. Ou talvez fosse tudo junto e misturado. Sei lá. Mas o que ficou não era um sentimento ruim. Era estranho. Uma coisa meio conto-de-fadas, uma prepotência quase infantil. De que uma hora ela vinha. De que uma hora a porta abria. De que uma hora – quase que por mágica – a Mia ainda mudava de ideia. E aparecia lá, passava a noite comigo. Não com ele, mas comigo.
 
É. Talvez, pensei sem entender, talvez ela venha.

setembro 04, 2010

Crack in the sky

Pisquei e olhei de novo para frente. A Mia. A Mia continuava lá, exatamente onde eu a havia deixado, nem um milímetro sequer fora do lugar. Ali, irracionalmente disponível para mim – e ah, continuava linda. Tão linda. Mas eu já tinha piscado e isso eu não podia mais desfazer. Não se desfaz consciência, não dá. Uma vez que a realidade volta, assim, em nuances bem menos admiráveis de cor, diante dos seus olhos, quem é que consegue voltar a sonhar com a porra do arco-íris?
 
Eu, não. Sabia que as consequências seriam terríveis. Isto é, caso eu continuasse na direção que estava indo – a dela. Aquela parada brusca me rendeu uma dor de cabeça instantânea. Num susto, me movi automaticamente para trás. Que perigo. Mano, que perigo, repeti para mim mesma, conforme recuava. Inconformada com como me deixei chegar tão perto, caralho. Aqueles dois ou três minutos de inconsequência podiam ter se transformado numa verdadeira catástrofe – ah, se podiam. Arqueei a sobrancelha, sem muita coragem, espiando rapidamente por detrás da Mia, para checar o quanto o Fer havia visto de tudo aquilo – que não foi muito, tudo bem, mas que podia ter sido o suficiente.
 
Nada.
 
Seus olhos estavam dispersos, em outra direção que não a nossa, vagando pelo teto, imersos nos versos que saíam da caixa de som – “oh you, pretty things, don’t you know you’re driving your mamas and papas insane?”, o Bowie cantava. Observei-o deitado a poucos-centímetros-de-Mia de mim, com o pensamento longe. Eu, por outro lado, me encontrava mais ali do que em qualquer outro momento daquelas duas horas ou sabe-se-lá há quanto tempo já estávamos largados ali fumando. Provavelmente mais.
 
Deitei com as costas novamente no chão e subi meus olhos para o mesmo teto que o meu melhor amigo contemplava tão distraidamente. Aí suspirei. Entre nós, a garota que bagunçava todo o cômodo. Escutei por um instante o som que tocava na sala – “what are we coming to? No room for me, no fun for you”. Argh. Eu odiava ter que perder boas músicas.
 
_Eu... e-eu acho que... – disse, interrompendo a brisa na sala, olhando sem querer para a Mia ao passo que me levantava ao lado deles – ...acho q-que vou pro quarto.
_Quê? Agora?! – o Fer me encarou, sem entender – Mas cê adora essa música!
 
Pois é. E advinha o que mais eu adoro.
 
Respirei fundo. A Mia se ajeitava ao lado dele, ainda meio fora de órbita, esticando os braços acima da cabeça, paralelos ao chão, num espreguiçar lento.
 
_Acho que não bateu muito legal, sei lá, meu... – justifiquei, já em pé – Tô cansada também.
 
Tentava não olhar tanto na direção da Mia, mas àquela altura já não tinha muito controle sobre os meus olhos – ou o meu coração. O Fer me desejou boa noite, estranhando. Me virei para juntar as minhas coisas, que ficaram largadas no sofá. E só então percebi o quão fora de mim eu ainda estava. Preciso parar com essas merdas, pensei. Em vão. “Em vão” porque, no fundo, eu gostava daquelas merdas e sabia que não ia desencanar tão cedo delas. A questão é que... o problema – o problema mesmo – sempre está muito mais no seu estado de espírito do que nas substâncias que correm pelas suas veias. E o meu estado de espírito atual não era dos melhores.
 
Que seja. Terminei de enfiar nos bolsos da jaqueta todas as minhas chaves e o celular e o restante que ainda estava espalhado sobre o sofá. Peguei meu lenço com a mão e resmunguei qualquer coisa ao cambalear, sem muita estabilidade, fazendo meia-volta em direção ao quarto. Mal conseguia andar direito. Conforme atravessava o corredor, ouvi a voz do Bowie diminuindo... progressivamente... até desaparecer por completo com o fechar da minha porta.
 
Droga, pensei, segurando a maçaneta, eu realmente gostava dessa música.