Paradas ali, em intermitente contemplação de nós
duas, aquelas paredes. Os livros, as estantes, os papéis com pequenos desenhos rabiscados sobre a
escrivaninha – como se eu nunca tivesse deixado aquele cômodo. O quarto da Mia continuava
o mesmo, o mesmo que meses antes, quando nos tatuamos aos risos de madrugada;
ou quando inventei histórias até que a Mia adormecesse, abraçada em mim; o
mesmo de quando cambaleamos porta adentro, mais bêbadas do que qualquer outra
pessoa que deixou o bar no Itaim aquela noite, e transamos pela primeira vez. É
– o quarto era o mesmo, mas nós não.
Assim que passei pela porta, decidida a fazer aquilo direito, me
voltaram a contragosto – os beijos, as horas passadas juntas, em segredo. Sua
mão entrelaçada à minha no escuro, enquanto todas as suas amigas dormiam nos
colchões ao lado e a nossa respiração acelerava, nos denunciando. O que aconteceu no meio do caminho, garota? Eu
a olhava, agora, ali, tão diferente. Os cabelos presos para trás, morenos e
opacos; os seus olhos tristes. E um sentimento de culpa brotou em mim, incômodo.
O seu corpo não me queria ali, eu podia notar. Havia algo de desconfortável na
minha presença naquele quarto. Deixara de ser natural – e talvez a culpa fosse
minha. Ou dela, já não sabia dizer. Importa?
_E então? – me encarou brevemente, num moletom azul escuro,
cansada.
A nossa discussão parecia continuar na sua cabeça. Afundou-se
contra a parede, sentada no colchão. Evitando me olhar nos olhos, como quem não
queria ouvir o que eu tinha para falar. Como se esperasse o pior. Suas pernas estavam
cruzadas sobre o edredom, a quase um metro de mim. Nós merecíamos mais, eu e você, pensei, vendo-a assim, tão distante.
_E-eu... – respirei fundo – ...queria me desculpar, Mia.
_E por o quê... – murmurou, como se eu lhe devesse mais de uma – ...exatamente?
_Pelas coisas que eu te disse, por como eu disse. Não era pra ter
sido daquele jeito.
_Eu acho que nós duas nos arrependemos... – ela cedeu um pouco, mantendo
os braços ainda cruzados.
_Olha, eu... e-eu nunca quis te magoar, nem agir desse jeito...
e-eu, eu tava magoada, tava irritada... com ciúmes, não sei, e-eu... – lamentei
– ...a verdade é que eu fui apaixonada por você, por muito tempo. Nossa, e-eu,
eu te amei tanto. E isso sempre foi muito confuso. Talvez você não acredite,
mas eu nunca tive no controle do que acontecia entre nós duas, eu nunca
consegui... evitar, sabe? – suspirei, me forçando a dizer de uma vez todas as
palavras que eu ensaiei na minha cabeça, no caminho até a sua casa – E você
pode achar que foi sacanagem, achar que foi culpa minha, como você disse no
telefone. Mas eu tava sofrendo, meu, eu... e-eu não queria gostar assim de você,
não queria te pôr nessa situação. Não queria foder minha amizade com você, com o
Fer. Não queria! Mas eu... te amava, porra, e... e quando tudo terminou, eu...
_Por que você não... – se chateou, me interrompendo – ...n-não me
disse nada, enquanto a gente tava...
Suspirou, pausando antes de dizer. Vai, diz, a encarei, “juntas”.
Diz. Admite o que tivemos, cacete. Mas as suas pálpebras se abaixaram,
olhando para suas mãos apoiadas sobre o colchão. Qual é, Mia?
_Então, você não sabia? – questionei – Você realmente não sabia,
Mia?
_...
Vamos lá. Não posso ter essa conversa sozinha, garota.
_Escuta... Cê tem que entender que, q-que eu também estava lutando
contra aquilo na época e você, v-você tinha o Fer, porra... E-eu... – engoli
seco, me sentindo machucada – ...eu podia perder vocês dois, entende? E mano, você
não sabe, não faz ideia de como eu me odiei depois... – abaixei a cabeça – ...por,
p-por não ter te dito antes. Por ter te levado a, talvez, achar que cê era só mais
uma qualquer para mim. Porque você não era. Você... – a olhei, de novo, sincera
– ...nunca foi. Eu te amei antes de fazer qualquer a respeito, cara, por muito,
muito tempo; eu tinha medo do que podia acontecer se você soubesse. Se qualquer
pessoa soubesse.
Os seus olhos se encheram de lágrimas, marejando, enquanto me
escutava, sentada ali.
_E agora você não ama mais. É isso? – me encarou, como se eu a
magoasse – É isso que você veio me dizer?
_E-eu... – minha voz entalou no fundo da garganta, sem conseguir dizer
aquilo – ...eu vim dizer q-que... – me atrapalhei – ...que, e-eu, não sei, q-que
a gente não pode continuar assim. Sabe? Se machucando, metendo os pés pelas
mãos. Olha, a, a real é que não importa como eu me sinto, como você se sente,
de todo jeito não acho que o que a gente tava fazendo era bom. Pra ninguém! –
argumentei, sentindo meu coração sair pela boca – Não sei, e-eu... eu sofri
tanto, Mia, porra, tanto... para lidar com os meus sentimentos por você, com as
nossas idas e vindas, com a minha desonestidade com o Fer, caralho, e quando terminou...
mano, acabou comigo. Eu sofri demais. E eu sei que não foi fácil para você
também, agora eu sei, e... e porra, cê num sabe como me mata te ouvir falar, sabe,
como você falou no telefone no outro dia... e-eu... eu nunca quis te magoar
assim, inferno, e-eu... – o meu coração doeu, em silêncio – ...eu não quero
mais te ver passar por isso. Eu não quero mais passar por isso. V-você,
você tá com o Fer, você ainda tá com ele, sabe, e eu, e-eu quero tá com a Clara.
Eu quero fazer dar certo, meu.
_Hum, cê tem um jeito muito estranho de demonstrar isso... – retrucou, contrariada, provavelmente se referindo a quando transamos no
banheiro três dias antes.
Mais
alguma coisa, porra?!
_Não faz isso, meu... não fala assim, v-voc... – abaixei a cabeça,
frustrada, e então a olhei – ...você sabe como é difícil pra mim? Te dizer
essas coisas, olhar para você aí? Mas eu... e-eu tô tentando ser sincera,
caralho. Eu acho que a gente precisa conversar direito. E eu sei que eu faço as
coisas sem pensar, que eu posso ser uma completa idiota, às vezes. Mas eu quero
fazer as coisas certo dessa vez! Mano, eu tô tentando aqui, sabe, tô mesmo. Eu
quero ficar bem com você! Não quero ficar brigando, porra... – o meu peito se
esmagava de dor, a encarando – ...você, você é importante pra caralho pra mim.
A Mia deu um meio sorriso, ainda melancólica, quase como se só
quisesse me agradar. Seus olhos, todavia, fugiram dos meus como se eu estivesse falando a coisa errada. Como se não quisesse me perdoar por aquilo, pelo sexo
de madrugada, pelo que tivemos meses antes e que tanto nos machucou – mas, sim, pelo o que veio em
seguida, pelas decisões que eu tentava tomar agora. Como se a conversa fugisse do rumo que achou que teria.
_V-você é importante pra mim também... – respondeu, ainda assim,
forçando um meio sorriso conformado – ...e e-eu, eu entendo. Entendo mesmo... –
respirou fundo, olhando para o lado por um instante, e só depois voltou o olhar
a mim – ...cê tem razão.