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dezembro 30, 2011

"Here I go...

“...and I don’t know why”.
(Patti Smith)
 
Saí do banho com certa folga ainda pras dez e meia – o filme só começava lá pelas onze e tantas da noite. Caminhei de um lado ao outro do quarto, indecisa quanto ao que usar, só de cueca e com o cabelo ainda molhado. Sem decidir nada, voltei seminua para o banheiro para secá-lo. Olhei para a porta fechada do quarto do Fer – ele e a Mia já estavam trancados ali há algum tempo.
 
Liguei o secador e, no meio do barulho e daquele ar quente todo, ouvi chegar uma mensagem no meu celular. O telefone estava largado na pia. Entre os fios bagunçados no meu rosto, abaixei para ler – “oi, ñ sei se seu numero eh o msm. qria ter falado mais com vc hj. foi estranho te ver, fiquei pensando nisso dps... mas enfim, ñ vou falar por aqui. Hj vou com um amigo ai perto, na hot hot. tô indo pra lá daqui a pouco. Se ñ for fazer nd, te devo uma? Bjs, clara”.
 
Fiquei parada por um instante, sem reação. Precisava de algum tempo para processar – direito – todos os acontecimentos daquele dia. Li mais uma vez, em silêncio, e coloquei o telefone de volta na pia, em seguida. Sem responder.
 
De algum jeito, as suas palavras me inquietavam. Me sentia cutucada – só não tinha certeza em que sentido. Não vou fazer isso, pensei. Não ia revirar aquilo dentro de mim, não ia me desgastar respondendo. Liguei de novo o secador, tentando não me distrair do meu objetivo ali, que era só secar o cabelo e voltar para a porra do quarto. Observei os meus olhos no espelho, meio que por inércia, enquanto o ar passava pelos fios sobre a minha cabeça. A inquietude, contudo, continuava lá. Em algum lugar. Baguncei o cabelo para um lado, mexendo-o sob o ar quente. Pouco tempo depois, não o suficiente para já estar seco, baguncei pro outro lado. E então ao oposto, o mesmo de antes, mais uma vez. E aí virei de novo – merda.
 
Senti a ansiedade crescer.
 
Dane-se. Joguei todo o cabelo para a frente, abaixando a cabeça e ignorando o sentimento. Comecei pela nuca, aí desci para a franja e a lateral esquerda, a diagonal da frente. A de trás. A direita. A outra diagonal. A mesma de antes. Voltei à nuca. O lado esquerdo. A franja. Não importava quanto bagunçava meu cabelo, não secava. Deixei o ar correr em cima dos fios por um tempo, depois joguei-os para trás e tornei a secá-los normalmente, mas não ia direito. Parecia que eu estava ali há horas – e provavelmente, tinha ficado menos de 5 minutos. Droga.
 
Peguei o celular e li mais uma vez a mensagem. Apoiei ambos os antebraços na borda da pia, segurando o telefone em mãos e olhando para a tempestade em copo d’água que eu, de repente, estava fazendo com o ressurgimento da Clara. E com o ciúme da Mia na sala. Considerei responder, mas – o que diabos vou dizer? “Já tenho planos”? Por algum motivo besta, eu não conseguia dispensá-la. Passei a mão na nuca, encarando o teto e respirando fundo, me livrando mentalmente daquela situação ridícula. Engoli todas as minhas idiotices e devolvi o telefone à pia, pegando novamente o secador e ligando-o na última potência.
 
Fechei os olhos e dei início à maior barulheira contínua, bagunçando os fios de um lado para o outro com as mãos, abrutalhada. E sem pensar em porra nenhuma. 1... 2... 3... 19... 20... Chega. Larguei o secador sobre a pia do banheiro, dum jeito grosseiro. E apoiei ambas as mãos na superfície fria, irritada. Respirei fundo. Isso não está certo, briguei comigo mesma, não com a Patti. Me forçaria àquilo agora – a ir na porcaria do cinema e foda-se a merda da Clara.
 
Retornei ao quarto, determinada. Vesti a primeira regata branca que vi, uma dessas que ficam soltas ao redor do corpo, tão larga que era quase indecente. E enfiei as pernas numa calça jeans. Peguei o meu maço e isqueiro, pronta para sair. É. Sentia como se não pudesse parar um segundo ou faria, de certo, alguma merda muito grande.
 
Saí do quarto e fui para a sala atrás da minha carteira. O Fer estava na cozinha agora, de samba-canção e descalço. Caminhou até a porta do corredor, apoiando-se de lado na parede e me olhando, enquanto comia um lanche improvisado. Achei a carteira. Peguei-a, esmagada no vão do sofá, provavelmente ali desde que voltei do estúdio de tatuagem. Separei apenas o documento e o dinheiro, colocando-os no bolso junto ao maço e largando a carteira de volta no sofá.
 
_Humm... – o Fer disse, então, me olhando de cima a baixo – ...bom encontro com a namoradinha, hein?!
 
Revirei os olhos, sem lhe dar ouvidos. Ela não é minha nam..., interrompi o pensamento antes que a frase saísse pela minha boca, argh. Deixa pra lá. Me movi em direção à porta, sem intenção alguma de desacelerar, e apanhei a chave na saída. Andei pelo corredor em linha reta, chamei e o elevador chegou. Já no térreo, atravessei a entrada do prédio e desci para a rua. O shopping Center 3 era a uns dez minutos andando, já quase na Paulista. Acendi um cigarro e comecei a caminhar. No entanto, agora, no escuro e perigosamente sozinha, sentia-me estranha. Com um sentimento conhecido no estômago.
 
Merda.
 
Segui em frente, ignorando. Passei pela banca, pelos outros prédios. E atravessei a primeira rua, a segunda. Aí passei a Peixoto, o bar da Aloka. Os jovens bêbados circulavam pela calçada da Frei, escandalosos; podia ouvi-los conversar aos gritos. Caminhei os últimos quarteirões olhando os meus tênis contra o cimento, tentando me distrair, e quando já estava quase lá, encarei o escuro à minha frente por um descuido. E então parei. Inferno. Me virei, a cinco metros de um ponto de táxi, tomada por uma curiosidade masoquista que não deveria estar ali. A última coisa que eu queria era provar o Fer certo em toda a sua análise psicológica barata de mim mesma. Olhei no celular e já eram onze horas, droga. Hesitei ao encostar na porta, querendo voltar ao mesmo lado que estava indo – porra. O motorista me encarava confuso, do lado de dentro de um Palio, com a luz acesa. Entrei.
 
_Sabe onde é a Hot Hot, amigo?
_Lá na Santo Antônio, não?
_É... – afundei contra o encosto do táxi num suspiro desgraçado, já me odiando.

dezembro 28, 2011

Irredutível

_Mas e aí, afinal, o que rolou hoje?
 
O Fer perguntou, ao meu lado no sofá.
 
_Não, nada. A gente só... – desdenhei – ...se cumprimentou na rua e eu, sei lá... disse que tinha ido tatuar lá perto e tal, mas não rolou nada.
_E cê ficou de boa?
_Ah, fiquei... não sei. Foi meio estranho. Num esperava encontrar ela, manja? – bebi mais um pouco da cerveja – Sei lá, acho que me pegou meio de surpresa, fazia tempo que eu não pensava nela...
_Hum, sei...
_E e-ela... – passei a mão no rosto, afundada entre as almofadas – ...ela tava... bonita, meu.
_Ihhh... – o Fer começou rir.
 
A Mia subiu novamente os olhos para mim, com desgosto.
 
_Quê?!
_Vai começar já...
_Vai começar o quê, meu?! – me indignei.
_Você aí... – o Fer fez graça, acendendo um cigarro – ...já vai lá se interessar pela menina de novo.
_Não vou nada...
_Ah, vai, sim. É a sua cara fazer isso, mano... É só cê tomar um fora que cê fica obcecada pela garota – tragou, soltando a fumaça logo em seguida, e a Mia ficou nos observando – Essa Clara aí mesmo, meu! Quanto tempo cê ficou com ela antes?! E depois tava lá, toda mal, sofrendo. Puta bad e vocês nem tinham namorado...
_E daí?! Num posso achar ruim?? – resmunguei, irritada com ele – Eu gostava dela, porra! Cê nunca sentiu nada assim por ninguém que saiu só umas vezes? – revirei os olhos – Ah, vá Fernando!
_Não. Não é isso, é você que não resiste a um pé na bunda! – riu – Se for trocada por outra, então... Nossa! Aí você entra em surto até conseguir a mina de volta... Faça sol, faça chuva, que se dane, cê dá um jeito!
_Cala boca, mano. Nada a ver! – me revoltei – E eu não vou sair com ela, tá, não é nada disso. Tô só te contando o que rolou, porra... Por isso que não te falo mais as coisas, caralho, cê só me enche o saco! Não tem nada a ver, nada a ver... – enfatizei – ...eu tô em outra, meu.
_“Tá bom”... – riu e encostou de volta no sofá, sendo irônico – ...vai ser igual aquela lá, do colegial. A... a Nana!
_O que tem a ver, cacete?!
_Ela não te deu um fora depois que vocês se pegaram no começo do segundo ano e cê ficou toda obcecada com a mina até conseguir namorar com ela no meio do terceiro e foi uma grande merda eterna por sei lá quanto tempo?!
_Não foi uma grande merda... – murmurei, contrariada.
_Velho, cê tem até tatuagem pra porra da mina!
 
A dona do infinito.
 
_Ai, como cê é mala, Fernando... – o empurrei – ...e nada a ver, meu. Eu tô saindo com uma mina agora... e ela é ótima, mano. A Clara nã...
_Ah, é! – me interrompeu, rindo – Porque isso sempre te impediu!
_Não, babaca, eu quis dizer que tô saindo pra valer, caralho.
_Quem, aquela lá do Vegas? Que cê conhece faz três dias?
_É, a Patti...
 
A Mia virou o rosto e voltou a encarar a TV, impaciente com o assunto. Qual é, garota? Sem se dar conta, o Fer começou a me tirar de apaixonadinha e eu fiz questão de retribuir os seus comentários com alguns socos de leve. Acabamos nos enrolando numa pancadaria amigável no sofá, aos risos, o que só piorou o humor da sua namoradinha. De cara feia, sentada no chão.
 
Que seja.   

À toa

De volta ao apartamento, após algumas horas vendo a Lê sofrer e pagar pelo tanto que me zoou, já lá pelas 8 da noite, passei pela porta de entrada e encontrei com o Fer e a Mia sentados na sala. Em meio a uma marofa descomunal, pra variar. Uma travessa de bolo de chocolate parcialmente comida estava sobre a mesa de centro – o clichê do clichê da larica. Achei graça.  
 
Assim que me viu, o Fer quis checar a tatuagem nova. Me acomodei ao seu lado no sofá, roubando um gole da sua cerveja, e puxei a lateral da camiseta para que visse o desenho. Uma caravela em traços old school. Os restos de tinta e um pouco de sangue tiravam um tanto da visibilidade por trás do plástico, então o Fer o esticou com os dedos para ver melhor. Tentando não me machucar. Aquela porra estava inchada e dolorida, mas eu estava orgulhosa por ter aguentado em uma só sessão.
 
Sentada no chão ao seu lado, mais adiante, a Mia levantou os olhos discretamente e observou o desenho por um segundo. Depois tornou a olhar para frente, para a televisão. Fiquei algum tempo lá, afundada no sofá, comentando a ida ao estúdio com o Fer. Já com a blusa devidamente abaixada e um dos pés sobre a mesinha de centro, segurando a cerveja em mãos.
 
_Come um pedaço aí... – o Fer comentou, levantando a travessa de bolo – ...a Mia que fez agora à tarde.
_Não, tô de boa. Acabei de tatuar, meu, nem posso comer chocolate...
_Ah tá, e cerveja pode?!
_Ah, sei lá, né... – ri.
_Nada a ver, mano! Não dá nada! Eu nunca faço essas merdas aí e todas as minhas tão de boa, meu...
 
Tem razão. Olhei para a travessa, coberta com uma calda grossa de chocolate, daquelas visivelmente deliciosas, e aí, claro, mudei de ideia, me esticando para pegar o que chamei de “tá, vai, só um pedacinho”. O Fer riu.
 
_Pô, ficou gostoso mesmo, hein... – comentei, de boca cheia, meio surpresa que a Mia tivesse de fato acertado uma receita na vida – Mandou bem!
 
Mas ela não sorriu, nem agradeceu pelo comentário. Apenas me olhou. E num raciocínio não muito complexo, concluí que ainda me ressentia pela noite do Vegas. Eu é que devia tá brava,, pensei. E aposto que nem eram tão amigas assim. Me afundei no sofá, amarga. Não tinha nada para fazer até as onze – quando ia no cinema com a Patti. Na TV, estava passando um filme qualquer do Stallone.
 
O dia começava a escurecer e a perder aquele calor todo das horas anteriores, tornando-se ligeiramente mais agradável. Ainda assim, o ar entrava abafado pela janela aberta. Queria poder arrancar as calças, que me incomodavam toda vez que chegava em casa, mas a presença da Mia me inibia. Ela estava num mini-shorts jeans e com um sutiã preto, sem blusa, fumando um baseado. O Fer também estava sem camiseta, numa bermuda velha.
 
Só eu com esse pano todo, argh.
 
Tentei compensar com a cerveja gelada, numa preguiça de me mover até o quarto e me trocar. Mandei uma mensagem para a Patti entre um gole e outro, afundada entre as almofadas, e combinamos de nos encontrar na frente da bilheteria do Center 3 – umas boas quadras para cima do apê. Aí larguei o celular e fiquei assistindo o filme com eles. Minha cabeça se encheu de pensamentos aleatórios – entre eles, a Clara.
 
_Ei... – o Fer me perguntou, um tempo depois, me cutucando com as costas da mão – ...que cê tá toda brisando aí, meu?
_Nada, tô pensando só... – tomei mais um gole da minha segunda cerveja – ...rolou uma parada hoje, sei lá.
_O quê?
_Ah, nada demais, encontrei uma... – suspirei, desconfortável – ...uma mina aí, não sei se cê lembra dela, a Clara?
 
Na mesma hora que o seu nome saiu da minha boca, os olhos da Mia se voltaram a mim. Mas logo abaixou a cabeça e não falou nada. Fingiu não prestar atenção. O Fer riu, me zombando –que lembrava dela por causa de todo o escândalo que eu fiz, enfatizou, no dia que a peguei com outra no Vegas e saí chutando as coisas pela sala. Depois desembestou a falar sobre a festa no apartamento que demos para “curar a minha fossa” – a mesma em que eu me tranquei no banheiro com a Mia e demos uns amassos pela primeira vez.
 
Mas desse detalhe ele não sabia.

dezembro 27, 2011

Björk

Me puxou pela mão entre as pessoas e sorriu, ao me encontrar ali no meio – os arredores da Calixto estavam naquele caos dos sábados. Arqueei as sobrancelhas, surpresa, sem saber direito como reagir, e tirei o cigarro da boca por um momento. O segurando para baixo, entre o polegar e o indicador. A Clara estava com uma regata preta e sem sutiã, o cabelo preso em um grande coque improvisado sobre a cabeça. Me olhou de cima a baixo, me deixando sem jeito, e me cumprimentou. Estava bonita – as pintinhas no rosto e os olhos levemente puxados, com ares de boliviana-argentina.
 
_Nossa, o que... – ela sorriu, animada em me ver – ...cê tá fazendo pra esses lados?
_E-eu tô com umas amigas aí... – fiz um gesto com a cabeça e a mão que segurava o cigarro, apontando a direção em que a Lê e a Thaís foram, me sentindo desconfortável em falar com ela, assim, de repente – ...a gente t-tava...
_Cês vieram pra feirinha?! – me interrompeu, interessada.
 
Agia como uma boa conhecida, não sei bem. Pôs uma das mãos na curva que fica entre o ombro e o pescoço, num gesto sutil. Daqueles que a tornavam, filha-da-mãe, realmente sexy. O calor, aquela gente ao redor e a situação toda começaram a me incomodar. Mas, por qualquer motivo imbecil, eu não caí fora na mesma hora.
 
_N-não, eu... e-eu vim tatuar lá no, sabe, aqui embaixo depois da Schaumann. O que vo... – me atrapalhei um pouco, estranhamente confusa – ...o que você tá... – ela me olhava, tentando entender o que eu estava dizendo de forma pouco articulada, aí eu me lembrei – ...ah, é! Você... v-você trabalha aqui, não?!
_Sim – ela riu.
 
E foi só então que me toquei de que estava a um quarteirão da loja onde ela trampava e onde eu a viera buscá-la meses antes, uma vez. Ocasião na qual me encharquei toda de chuva e que fui arrastada até o Glória. Como pude esquecer. Tudo me voltou de uma só vez, as recordações da Clara, o jeito como terminamos, de repente, caindo a ficha da situação em que me encontrava naquele instante, senti um embrulho no estômago – e ela percebeu.
 
_Faz tempo, não faz? – sorriu, meio sem graça.
_Faz. Olha, e-eu preciso ir, minhas amigas já tão lá na frente... – disse, dando sinais com o corpo de que ia sair; a sua presença me deixava inquieta – ...eu, a, a gente... tem que voltar lá pro estúdio, então...
 
O meu desconforto cresceu, merda. Não consegui sorrir, mas por algum motivo tentei ser educada. Quando passa algum tempo, acho, certas coisas perdem a importância. E os erros dela desapareceram.
 
_Tá bem... – ela sorriu e encostou uma das mãos no meu braço, com intimidade – ...a gente se fala, espero.
 
Murmurei um “aham” meio grosseiro, concordando com a cabeça, e coloquei o cigarro de volta entre os lábios, já me virando para descer e sair logo dali. Não dei bola – ou tentei, ao menos. Ela ficou me observando ainda, a menos de um metro na mesma calçada, e eu procurei não pensar naquilo. Desci a rua até encontrar a Lê e a Thaís, já do outro lado da feira, me perguntando quem diabos era aquela.
 
_Ah, uma garota aí... – disse, meio chateada.
 
Não sabia por que me sentia tão estranha. Não queria ter trombado com ela. Acho, não sabia dizer. A Lê insistiu mais um pouco, curiosa, e eu mudei de assunto – preferia não falar daquilo. Voltamos ao estúdio, onde eu ficaria fechada pelas próximas horas. Sã e salva.

dezembro 26, 2011

Pain lovers

Já tinha esquecido de quanto, filha da puta do caralho, aquilo doía. Argh. Minha costela ia se rasgando aos poucos. E a porra da açougueira da Thaís achava graça no meu sofrimento, me chamando de “dramática” durante o processo todo. Meu cu – aquele era o pior lugar que tinha para tatuar, todas as minhas outras tinham doído menos. Algumas deram até gosto. Já aquela estava me matando. A pele na costela é fina e o osso por debaixo aumenta a sensibilidade, é de foder. Tava doendo tanto que quase desisti quando terminou o contorno. Mas a Thaís era rápida – então, decidi engolir e encarar o resto.
 
Cacete. Que dor. 
 
_PUTA QUE PARIU! – xinguei – CÊ TÁ PESANDO A MÃO, CARALHO, NÃO É POSSÍVEL!
_Para de reclamar, mano! – a Thaís ria, debochando – Costela nem dói tudo isso...
_AH, NÃO! IMAGINA! SUAVE!!
_Pois merece, ninguém mandou atrasar... – a Lê me zombou também – ...agora aguenta!
_TOMAR NO CU, LETÍCIA, EU ATRASEI 20 MINUTOS, PORRA!
_Mano, na boa... – reclamou – QUE MERDA cê tava fazendo que cê não consegue chegar às 10:30 aqui NUM SÁBADO?!
_QUE CÊ ACHA?
 
Resmunguei, tentando engolir a dor.
 
_Tava piranhando por aí, essa desgraça... – a Thaís riu, mergulhando a agulha na tinta antes de continuar – ...num tava, cachorra?
_TAVA, CARALHO... – travei os dentes, sentindo a maquininha cortar minha costela – TAVA!
_Hummm, com quem?
_Aquela mina lá do Vegas... – suei frio – ...PUTA MERDA, MANO!
_E valeu a pena, pelo menos?! – a Lê continuou, ignorando minha dor.
_Ah, foi legal.
_Ih. Num senti firmeza...
_Não é, foi bom. É só que a mina... – respirei fundo, suportando a agonia que atravessava o meu torso inteiro – ...a mina, n-não sei. Foi a primeira vez dela com mulher, sabe?
_Sei – a Lê riu, se divertindo comigo – Então cê fez o serviço todo e agora tá subindo pelas paredes? É isso?
_Cala a boca, mano...
_Uai. Achei que cê já tava acostumada... – a Thaís fez graça – ...depois de todo o rolo lá com a Mia.
_Velho, não. A Mia... – me segurei, sem querer entrar no mérito do quanto a Mia me desgraçava a cabeça, de como a gente fodia sem qualquer inibição, cacete – ...a, a Mia e-era diferente.
_Vixi. Deu uma saudadezinha? – a Lê me provocou.
_Claro que não, mano!
_Ó! – a Thaís alertou – Vou continuar aqui. Para de se mexer!
 
Inferno. Assim que a agulha recomeçou, senti a dor reverberar pelos meus ossos como se dilacerasse meu peito por dentro. Mais dez minutos daquela tortura e eu tava prestes a matar a Thaís. Que dor. Que dor desgraçada, mano. Quando enfim terminou, ela limpou todo o sangue da minha pele e a sujeira de tinta preta e vermelha ao redor. E eu me levantei para ver no espelho. Do caralho, sorri recompensada, como se tivesse vencido uma maratona.
 
Foda-se a dor – aquilo sempre valia a pena.
 
Me plastifiquei inteira. E agora, era a vez da Lê de sofrer nas mãos da nossa amiga. Mas antes saímos para “almoçar”, já às quase quatro da tarde. Tínhamos menos de meia hora, o que mal me dava tempo para olhar as câmeras na feirinha da Calixto. Mas fomos mesmo assim. O sol estava de rachar – subimos a Teodoro e pegamos qualquer coisa para comer na esquina, seguindo direto para a feira lotada. Me entretive por algum tempo na barraca de um maluco cheio das polaroids, mas, como toda vez que eu ia na Calixto, percebi que não tinha dinheiro para pagar nem um quinto do que pediam por cada antiguidade ali.
 
Subimos um pouco mais na Teodoro, passando pelas infinitas lojas de novos designers e de instrumentos musicais, até a ruazinha da Choque Cultural, onde trabalhava uma amiga da Thaís. Batemos papo por algum tempo, entretidas, mas aí já era hora de voltarmos. Conforme fomos descendo a Teodoro, me empenhei em acender um cigarro no meio daquela gente toda, um tanto distraída – e foi quando dei de cara com a Clara.

dezembro 23, 2011

Mancadas clássicas

_Hum... – murmurei, enfiada no travesseiro – ...que horas são?
 
Tinha apagado. A Patti estava em pé, apoiada na janela com um cigarro na mão. Nua – como se aquela madrugada a tivesse libertado dela mesma. Abri os olhos e achei graça, sonolenta. Observei uma faixa de sol iluminar a âncora tatuada em sua coxa, me espreguiçando por cima do travesseiro. Repeti então a pergunta e ela sorriu de volta para mim, arqueando as costas para olhar o relógio da parede.
 
_Dez e vinte – respondeu.
_Não! TÁ BRINCANDO?! – dei um pulo, na mesma hora, já pegando a boxer no chão – ...merda, merda... – a vesti rapidamente e comecei a procurar pelas minhas roupas – ...mil vezes merda.
_O que foi? – a Patti se assustou – Cê tem que ir??
_Eu vou tatuar, tá marcado às 10 e meia... – coloquei o jeans, sem abotoar, e fui calçando de qualquer jeito os meus All Stars – ...que merda, puta que pariu. Minhas amigas vão me matar, cara!
_Calma, eu te levo! Onde é? É perto?
_Não, meu. Fica aí! Não precisa se vestir, sair correndo... – coloquei a minha camiseta amarrotada, fechando as calças em seguida – ...deixa, eu me viro. Vai dar tempo!
 
Ah, mas não vai.
 
Beijei-a rapidamente, num meio-selinho apressado. E corri escada abaixo para pegar o primeiro táxi que aparecesse – desgraça. Podia ouvir, na minha cabeça, a Lê me xingando de todos os nomes possíveis. Eu era uma mulher morta. Morta. Droga! Não ia dar tempo porra nenhuma. Olhei meu celular, já no banco de trás de um táxi, enquanto passava as direções do caminho, e só então me dei conta da minha grosseria. Inferno.
 
Só que aí já estava longe demais para reparar o dano. Argh. Fechei os olhos, apertando-os em arrependimento, conforme o taxista descia a Arcoverde. Primeira noite da garota com uma mina e eu largo ela lá, que nem uma cafajeste. Qual é o meu problema? Por um segundo, temi que pensasse mal de todas as lésbicas do mundo – e pior, que ficasse com um pé atrás comigo. Ah, não, isso não.
 
Abri um SMS às pressas e digitei: “Ei, desculpa sair correndo assim... rs, eh q minha amiga vai me matar msm, juro!! Posso te compensar + tarde? ;)”. Assim que enviei, olhei para frente pela janela e notei a porra do trânsito em que estávamos. Um pouco mais abaixo, a Arcoverde estava completamente parada por causa da feirinha da Calixto. Dez pras onze em pleno sábado, revirei os olhos, me sentindo uma burra, é óbvio que ia tá tudo parado.
 
_Deixa, amigo... vou a pé daqui! – toquei no ombro do motorista, já tirando o dinheiro da carteira – Quanto deu?
 
Bati a porta do táxi, descendo a rua entre os carros, com pressa. Já tinha subido na calçada quando a Patti me respondeu – “relaxa, vms sim! <3, ufa. Segui descendo e digitando, atrapalhada, dividindo minha atenção entre a rua esburacada e o visor do celular. Perguntei o que ela queria fazer e, para o infortuno dos meus extintos anos de estudante, ela escolheu ir num cinema de shopping.
 
Ê programinha de hétero, hein?
 
Achei graça, mas não discuti. Aceitaria qualquer coisa que ela falasse. Atravessei a Henrique Schaumann com certa impaciência – o semáforo da avenida não fechava nunca, caralho –, a poucas quadras do estúdio onde a Thaís trabalhava. Tinha em mãos o primeiro cigarro do dia, já pela metade. Sabia que teria que entrar direto assim que chegasse e me preocupava o meu estômago vazio.
 
Andei mais duas quadras e logo avistei a Lê, parada em frente ao estúdio. Revoltada. Estava apoiada contra um poste, com uns óculos escuros e uma bermuda, daquelas bem sapatão mesmo, porque decidiu de última hora que tatuaria a panturrilha. Fumava impaciente. Com cara de quem ia mesmo me matar. Me aproximei, atravessando a rua, já receosa com a bronca.
 
_Mano, tomar no cu você e essa merda da sua pontualidade, cara. Eu vou te esganar... – a Lê tirou os óculos e jogou o cigarro na calçada, me segurando pelo braço como uma criança, me arrastando para dentro do estúdio.

dezembro 05, 2011

Os minutos

Acordei. A posição era terrivelmente incômoda – sentada torta no chão e com a nuca apoiada desconfortavelmente na beirada da cama. Dei um suspiro repentino, saindo daquele estado semiacordado. Cacete, esfreguei a mão no rosto. Lá fora ainda estava escuro. 3:08. Ergui o rosto, olhando para o relógio na parede e então virei para checar o colchão atrás de mim. Ali, igualmente capotada sem intenção, a Patti dormia desajeitadamente. Tinha os pés descalços e as pernas nuns desses shorts de ficar em casa, com uma camisa vermelha de flanela que eu zombei assim que pisei no seu apartamento – perguntando se tinha se fantasiado de sapatão para o nosso encontro.
 
Descemos para a rua assim que eu cheguei. A acompanhei ao mercado na esquina, fazendo graça o tempo todo enquanto ela comprava umas cervejas – andando pelos corredores e a chamando de “amor” toda vez que passava alguém, erguendo qualquer produto aleatório e perguntando se estava precisando “lá em casa”. Como se fôssemos casadas. A Patti ria e então entrava na brincadeira, me chamando de “benzinho”. Me pedia para ir buscar sabão em pó ou algo do tipo. Nunca tirei e pus tanta coisa que não ia levar no cesto.
 
Quando voltamos, conversamos por uma eternidade, sentadas na sacada daquele predinho pequeno em Perdizes onde ela morava com duas amigas. Dividindo cigarros e cervejas. O seu jeito despreocupado me divertia. Falava sobre o seu trabalho, as suas ilustrações, me mostrou a tatuagem que fez com uma delas. Uma sereia com escamas pretas e turquesa. Não a beijei a noite toda. Uma das suas colegas pediu uma pizza lá pelas dez e comemos juntas, sentadas no tapete da sala ouvindo qualquer banda indie que a Patti gostava. Kasabian, Kaiser Chiefs, uma dessas com K no nome. Não sei bem. Lá pelas tantas, fomos para o quarto ver o filme. E em algum momento, sem planejar, nós duas capotamos.
 
Ainda nada de beijo.
 
Agora desperta, sonolenta, arranquei os meus tênis. E apenas com as meias nos pés, subi na cama, passando por cima dos seus joelhos até o outro lado, no maior silêncio que consegui. Para não a acordar. Me acomodei no pequeno espaço de colchão que sobrava entre a Patti e a parede – o quarto estava frio, e ali não. Assim que ajeitei a cabeça ao seu lado, ela se mexeu. Sem realmente despertar. E por um instante, pensei em colocar o meu braço ao seu redor. Mas hesitei. Com receio de ultrapassar algum limite, a observando ali, ligeiramente hétero e dormindo ao meu lado. Dobrei o braço debaixo do travesseiro, então, apoiando o rosto ali. E fechei os olhos.
 
Mas o sono não veio. 3:10. 3:15. 3:20. 3:25. 3:30. 3:35 e nada. Fracassava terrivelmente. Argh. Até que virei o corpo, inquieta, deitando a barriga contra o colchão. E foi então que a Patti acordou, agora pra valer.
 
_Desculpa... – murmurei, baixinho.
_Não... t-tudo bem... – ela sorriu de volta, com sono – ...acho q-que a gente... acabou meio q-que...
_É.
 
Uma calma silenciosa preencheu o quarto. Ela achou graça, se espreguiçando, e então se aproximou do meu corpo, se aninhando em mim para se esquentar. Apoiou a cabeça no meu ombro e eu tirei o cabelo de cima da cara, meio de qualquer jeito. Hum. Afundei os dedos na flanela, a abraçando pela cintura. A Patti me trazia um sentimento nostálgico. E eu me sentia bem ali, com ela. Meus dedos passeavam lentamente sobre as linhas do xadrez na sua blusa, já quase pegando no sono.
 
Mas, aí, foi a Patti que se moveu.
 
Ajeitou o corpo e eu abaixei meus olhos até os dela, no escuro. Sem pensar muito, levantei a mão até o seu rosto, deslizando os dedos pelas suas bochechas, o seu queixo... a sua boca. Havia algo naquela garota que me desconcertava. “Me diz”, ela sussurrou, “tá sendo o pior encontro da sua vida, né?”. Eu ri – “não”. “Sei”, murmurou, num resmungo incrédulo, “amanhã cê vai dizer pras suas amigas que nem um beijo te dei”. Neguei com a cabeça, de leve, e achei graça.
 
Mas ainda dá tempo, garota.
 
E num impulso, ela percorreu os poucos centímetros de pano que ainda tinha entre nós, se movendo intuitivamente na minha direção. Foi ela, não eu. E foram os seus lábios que buscaram os meus. Mas eu a beijei de volta – no breu. Primeiro assim, nuns selinhos curtos. E lentos. Um após o outro. E então meus lábios tocaram o canto da sua boca e os seus se entreabriram, se transformando aos poucos num beijo de verdade. Deixei os meus dedos entrarem nos fios escuros do seu cabelo. E ela subiu em mim, com uma perna de cada lado, me puxando para mais perto. Fechou os olhos, hum.
 
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