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dezembro 23, 2012

Interfone

_Clara! – me curvei na direção do viva-voz, na mesma hora.
_O que cê tá fazendo aqui, meu? – a ouvi suspirar.
_Só me escuta, por favor! Por favor, Bi...

Me senti, de novo, como nos meses finais do meu relacionamento com a Marina – quando diversas vezes implorei para que me aceitasse de volta. Errada, é. E como era frustrante ser a porra do denominador comum em ambas as situações.

_Vai para casa, tá tudo bem, Bo. Tá mesmo, s-só... – a Clara murmurou no interfone, soando indisposta – ...só vai pra casa. A gente se fala amanhã, meu.
_Não! Eu não posso, Bi, eu não consigo, não vou deixar as coisas assim com você. Não vou! Por favor!
_...
_Linda, por favor.
_Vai pra casa, meu. Cê devia ter pensado nisso antes de sair fazendo merda...
_Eu sei! Eu sei, Clara, porra. Mas eu, e-eu não tava pensando... Não mesmo! E-eu não sei que porra eu tava fazendo! – levantei a voz, discutindo ali em pé com o interfone, sozinha no escuro em frente ao seu prédio.
_Mano, cê... c-cê tá transformando isso numa puta cena, meu. Eu não quero isso.
_Só abre a porta, Clá. Conversa comigo. Eu sei que não tenho direito nenhum de te pedir nada, que eu não mereço nenhuma chance de, d-de me explicar... – as palavras saíam da minha boca, irracionais – ...sei que eu, e-eu sou uma babaca, toda vez, mas... caralho, eu... e-eu amo você. Eu amo você demais, porra. E eu nunca fui tão feliz assim. Você, cara, v-você é a única coisa que importa na minha vida. E eu não sei o que diabos eu tava fazendo! Eu juro que não sei! Eu, e-eu tava muito louca, Bi, cê tem que acreditar em mim, eu não tava pensando! Eu não quis... – hesitei – ...por favor. Só conversa comigo. Eu, e-eu não quis te desrespeitar, eu sequer queria ficar com a porra da garota, tô pouco me fodendo pra qualquer mina naquela festa, eu amo você. Você! E-eu só tava muito, muito chapada e, e eu não tinha ideia do que tava falando com ela, com ninguém, do que tava fazendo. E... e eu sei que não é justo você ter que engolir as minhas merdas, sabe, lidar com as, as coisas que eu faço, sem pensar, eu sei. Eu sei disso, Bi. E eu, e-eu não deveria ter gritado com você na rua, me desculpa...
_Não faz isso... – respirou fundo, me interrompendo.
_Me deixa subir, vai, por favor. A, a gente tava bêbada, Clá. Eu, você, sabe... Olha, eu, eu sou uma idiota. E... e e-eu não quero ter que me desculpar mais uma, dez, cem vezes pelas coisas que eu faço. Eu vou tentar, cara. Eu prometo! Eu... – abaixei a cabeça, encarando o chão e começando a chorar, bêbada, com uma angústia entalada na garganta – ...e-eu não sei o que acontece comigo, eu... sabe, pareço me desligar das coisas, não penso na hora. Não penso em nada! Não é por mal, não sei, eu só... s-só sei que não quero te fazer mais passar por isso, por nada disso. Eu não posso te perder, eu, porra, eu não quero deixar as coisas como tão, não quero conversar amanhã. Eu quero resolver agora, linda. Não me manda pra casa, cara, por favor. Me deixa consertar...
_...
_Bi, por favor. Por favor, me deixa subir.
_...
_Por favor, por favor... – murmurei, repetidamente.

E alguns segundos depois, do nada, escutei a porta de entrada destravar.
 
Tirei as mãos da parede no mesmo instante e empurrei a maçaneta, abrindo a porta corredor adentro. Aí subi as escadas num só pique, batendo de leve na porta da Clara. Minha cabeça ainda girava, ainda mais depois de todos aqueles degraus. Escutei-a virar a chave e mal abriu a porta, eu me apressei para entrar e levei as mãos ao seu rosto, a beijando intensamente. Como se não nos víssemos há uma eternidade. Como se pudesse mostrar o quanto a amava com um só beijo.
 
A Clara já estava com o cabelo todo preso para trás e uma blusa de dormir – estava linda, como sempre. E eu me senti uma babaca. Mais completa, sim, ao seu lado, mas uma babaca. Cacete. Desejando que pudesse voltar atrás em todas as merdas que fiz, a torto e a direito. E enxugando as minhas lágrimas, embriagada, lhe prometendo com sinceridade, entre um beijo e outro – “cê é minha mina nesse mundo, porra”.
 
E ela era.

As discordâncias

_Eu vou pra casa – a Clara murmurou.
 
Ainda virada para a rua vazia, numa integridade que eu era incapaz de manter com aquele tanto de álcool correndo dentro de mim. A luz acesa sobre um táxi que se aproximava, à distância, a fez dar alguns passos na direção da rua e sinalizar. Me adiantei – “não”. Não podia deixar que fosse embora sem resolver aquilo, sem mim. E eu sabia que ela iria. Sem sequer olhar para trás. “Não vai, meu, por favor”, pedi então, com o rabo entre as pernas. Numa angústia irracional ao vê-la sentar no banco de trás daquele táxi. Ainda que soubesse que não tinha direito de pedir coisa alguma para ela.
 
_Bi – insisti mesmo assim – Por favor.
_Tá tudo bem. Vai pra casa, cura a ressaca, sabe? Fica sóbria... – me respondeu, com a mão já na porta – Amanhã a gente se fala.
_Clara, n...
 
Fechou a porta antes que eu terminasse e o táxi começou a andar, lentamente. Merda. Merda! Tudo o que eu conseguia pensar era só não, não, não – observando o carro se afastar, impotente. Arrependida. Me sentindo presa a um final que eu não tinha escolhido para aquela noite, ainda que o tivesse provocado. É.  
 
Talvez se eu não estivesse tão fora de mim, como estava naquele momento, talvez eu não tivesse a respondido daquele jeito. Talvez não tivesse sido tão estúpida. Talvez. Talvez se nós tivéssemos deixado pra conversar no dia seguinte, com menos álcool nos fodendo a cabeça, os ânimos, tudo não passasse de uma brincadeira, de uma bronca aos risos – como tantas vezes aconteceu entre nós. E talvez se eu não tivesse metido a porra do meu nariz na primeira carreira que me botaram na frente, talvez eu sequer me achasse no direito de ter sentado ali, que nem uma idiota, que nem uma puta duma idiota, do lado de outra garota.
 
A raiva começou a me dominar. Imbecil. Sou uma porra duma imbecil mesmo. Esfreguei as mãos no rosto numa tentativa vã de trazer qualquer sanidade para a minha cabeça. Ainda chapada e sozinha naquela rua escura, em plena madrugada em São Paulo. A tontura e o ritmo acelerado com que o sangue corria nas minhas veias começavam a me irritar. A situação toda me irritava. Caralho. E lá estava eu, numa calçada vazia de Pinheiros, fodendo tudo com a única garota com quem eu devia me importar.
 
Senti vontade de destruir alguma coisa, de cometer qualquer atrocidade. Ir arranjar briga, chutar a boca do primeiro que aparecesse; de encher ainda mais a cara até vomitar as minhas entranhas e cada grama daquilo que me intoxicava em algum banheiro sujo de boteco; qualquer porra que me fizesse esquecer o desespero que eu estava sentindo. A cocaína confusamente parecia amplificar tudo – o meu sentimento de impotência e a minha capacidade, ao mesmo tempo, de fazer o que bem entendesse. Num impulso idiota. De gritar, não sei. De explodir.
 
Mas o estranho é que eu não o fiz, num impasse desgraçado, que me rasgava por dentro. Eu sabia que minha cabeça exagerava e sentia uma necessidade irracional de ter bom senso, de ser melhor para a Clara.
 
De repente, dei-me conta do quanto precisava dela. E meu coração apertou. Puta merda. Coloquei um cigarro entre os lábios e sentei no meio-fio, em meio à rua escura, sentindo meus pensamentos me machucarem, se revirando dentro da minha cabeça. Burra. O que eu tô fazendo, porra? Agindo feito uma idiota a noite toda, todos aqueles meses, inferno, como quem procura desesperadamente por um motivo, qualquer motivo, mas sem conseguir lidar com as consequências quando a merda finalmente acontece, e é claro que ia dar merda, caralho, o que eu tava pensando, vendo a Clara se magoar e caindo na real, me arrependendo no mesmo segundo, com um medo desgraçado de a perder, puta que pariu.
 
Não posso deixar isso assim, pensei, angustiada por tudo o que eu desperdiçava. Alcancei, então, a carteira no bolso e contei o dinheiro que tinha ali. Não dava nem nove reais. Foda-se, decidi, eu ando pra casa depois. Me levantei e fui até o ponto de táxi na esquina com a Teodoro, ainda sentindo minha cabeça rodar. O motorista tinha um bigode grosso e uma corrente de ouro dessas bem de bicheiro no pescoço. Me levou até o prédio da Clara, a umas boas quadras dali. Ao final da corrida, me restavam menos de dois reais em míseras moedas.
 
Andei até o interruptor do seu apartamento. E toquei. Por favor, por favor, esteja acordada. Esperei pelo que me pareceu uma eternidade, sem resposta. Cheguei tarde demais, suspirei. E toquei de novo, segurando o botão pressionado por mais tempo agora. Nada. Atende, por favor. Respirei fundo, com ambas as mãos apoiadas na parede do seu prédio. Aí toquei uma terceira vez – encarando, bêbada e ansiosa, o viva-voz abaixo dos botões com os números dos apartamentos. Esperando por qualquer sinal. Qual é, Clara, me atende, por favor. Os segundos se prolongavam vazios em frente ao seu prédio, num silêncio desconfortável.
 
Dane-se. Peguei então o celular e tentei ligar para ela – mas a chamada foi direto para a caixa postal. Maldição. Quis jogar o telefone longe. Caralho. Tornei a enfrentar a merda do interfone. Chamei o seu número, pela quarta vez. Nenhuma resposta. Nada. Apoiei a testa contra a parede, sentindo como se estivesse ali há horas, agora pressionando o botão continuamente. Ouvia o zunir da campainha, incessante, e o imaginava cortar o silêncio do seu apartamento. Vez ou outra, deixava o dedo subir alguns milímetros e tornava a pressionar o botão, propositalmente irritante. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende. Atende, cacete.
 
E enfim, escutei o ‘cléc’ do interfone sendo tirado do gancho do outro lado.

dezembro 20, 2012

All babes are wolves

_VAMOS EMBORA!
_O... o que... – a encarei, confusa – ...o que cê tá fazendo, porra?!
_Não me faz de idiota! – a voz da Clara seguiu firme – Veste a roupa e vem!
_Não, mano! Claro que não! – retruquei, bêbada, como se tivesse sido injustamente acusada de alguma coisa – Eu tô conversando e vou continuar conversando!
_Escuta aqui, se eu passar por aquela porta sozinha... – me ameaçou, apontando a entrada enfurecida – ...você pode esquecer o meu número, o meu endereço, você pode me esquecer. Cê tá me entendendo?!? Eu nunca mais olho na sua cara!!
_Mas, gata... – a mina se pronunciou, em minha defesa – A gente só tava convers...
_VOCÊ CALA A BOCA, MARÍLIA! – a Clara a interrompeu, irritada com a intromissão – EU E VOCÊ NÃO SOMOS AMIGAS! E eu não sou obrigada a escutar o que você tem pra dizer. A minha conversa é com ela! Não com você!
_Mas, Bi... – tentei acalmar os ânimos, que pareciam prestes a explodir – ...a gente realmente não tava fazendo nada. Meu, a, a gente só tava conversando numa boa. Ela me perguntou da tatuagem e eu di...
_Ótimo! Já se divertiu, bom pra você! Agora a sua cara de pau tem cinco minutos pra me encontrar lá embaixo! – descruzou os braços, pronta para ir, com o vestido ainda amassado – Cinco minutos, Bo, ou eu vou embora! E se você não estiver na frente daquele elevador, não precisa nem se dar ao trabalho de vir se desculpar depois...
_Clara, e-eu... – tentei apelar, mas ela já tinha virado as costas.
 
Merda. Levantei, numa afobação súbita, e comecei a procurar a droga da minha regata, com os movimentos atrapalhados por toda a bebida que tinha consumido. A minha cabeça não funcionava, não direito. Comecei a me irritar – cadê essa merda?! Me debrucei para ver sob os móveis, ajoelhada naquele chão sujo, e encontrei minha blusa amarrotada no pé empoeirado do sofá. Argh, alcancei o tecido com a mão.
 
Fiquei novamente em pé, vestindo a regata suja às pressas. Não sabia quanto tempo tinha perdido procurando. Caminhei por entre as convidadas igualmente chapadas da festa, sem me despedir da tal Marília, que observava tudo ainda sentada. Fechei a porta atrás de mim, num estrondo. E chamei o elevador, agitada. Apoiei as mãos na parede, pouco acima do interruptor, sentindo meu estômago revirar de ansiedade. Por que porra eu saí de casa hoje?, me angustiei. Entrei no elevador e apertei o térreo. E quando a porta abriu, certamente já tinham se passado mais do que cinco minutos.
 
Mas ela ainda estava lá.
 
_Bi, eu... – ia começar a implorar, no instante em que a vi, mas a Clara saiu andando.
 
Tinha um maço de cigarro nas mãos e continuou, indo para o lado de fora. Me ignorando. Inferno. “Volta aqui”, quis dizer, mas me contive – ela já estava longe demais, não queria arriscar erguer a minha voz. Corri então para alcançá-la. Ela seguiu como se fosse para a Teodoro, talvez para o ponto de táxi mais adiante. Sem olhar para trás. Senti que a corrida me deixou ainda mais embriagada, meio desnorteada. Pedi que me esperasse e ela continuou andando, sem nem me ouvir. Estava a menos de dois metros dela.
 
_NÃO FAZ ISSO, LINDA! – subi o tom de voz – POR FAVOR!
 
Aí ela se virou, enfim, e me encarou. Contendo a raiva nos olhos.
 
_Você... v-você é UMA BABACA! – passou as mãos no rosto, igualmente embriagada – Escuta, eu me segurei para não falar lá em cima, pra não fazer escândalo, mas... VOCÊ É! VOCÊ É UMA PUTA DUMA BABACA! EU TAVA A QUATRO METROS DE VOCÊ...
_NÃO! ESPERA AÍ! – comecei a retrucar, insultada, mas a sua voz sobrepôs a minha, ainda mais brava.
_...E VOCÊ NÃO TEVE A DECÊNCIA DE ESCONDER O QUE TAVA FAZENDO! NA FRENTE DE TODO MUNDO, PORRA! VOCÊ FOI COMIGO NAQUELA FESTA!!!
_MANO! – me irritei com o comentário – O QUE DIABOS EU FIZ?! QUE GRANDE ABSURDO EU COMETI?! HEIN?!
_SÓ FALTOU COMER AQUELA GAROTA!! NA M...
_COMER?!? COMER???!??! – comecei a rir, perdendo a cabeça – CLARA, CARALHO, EU SEQUER BEIJEI A MENINA!!! MAL ENCOSTEI UM DEDO NELA!! CÊ NÃO ACHA QUE TÁ EXAGERANDO?!? CACETE!! A GENTE CONVERSOU POR MEIO MINUTO E VOCÊ ME ARRANCA DA FESTA POR QUE ACHA QUE EU TAVA QUASE COMENDO A PORRA DUMA MINA QUE NUNCA VI NA VIDA?!??
_AH, É, PORQUE SEU CRITÉRIO PRA SE METER NO MEIO DAS PERNAS DE ALGUÉM É REALMENTE “QUANTOS ANOS A GENTE JÁ SE CONHECE”, NÃO É??
_AH, NÃO! – balancei o dedo no ar, indignada – NÃO VEM COM IRONIA PRA CIMA DE MIM, NÃO! NÃO VOCÊ! Você pode, né, chamar fulana pra ir jantar na sua casa, sair com meio mundo quando quer, se agarrar com uma imbecil na merda do Vegas...
_O Vegas?! O VEGAS?!? – me interrompeu, ainda mais nervosa – EU SEQUER SABIA QUE VOCÊ TAVA LÁ AQUELE DIA, PORRA!! CÊ VAI JOGAR ISSO NA MINHA CARA QUASE DOIS ANOS DEPOIS DESSA MERDA DESSA HISTÓRIA?! VOCÊ TAVA PEGANDO A MIA NA ÉPOCA, CARALHO!! ACORDA!!! – começou a berrar de volta comigo, alarmando toda a rua da nossa briga embriagada – Na boa, não entendo, não sei por que o seu ego tá tão ofendido até agora... VAI À MERDA! Isso é ridículo! – sacudiu a cabeça, fumando a dois metros de mim – Eu chamei a mina na minha casa, CHAMEI, SIM! A gente tinha acabado de começar a sair de novo, cacete, isso não é nada. NADA!! Você acha que eu tô vendo alguém agora?! Acha que eu vi alguém nesse último ano?!? Você acha que eu TÔ FAZENDO O QUÊ COM VOCÊ, SUA IDIOTA?! Te trazendo para conhecer minhas amigas, te levando a sério... LOGO VOCÊ!!
_CLARA, A GENTE NÃO FEZ NADA!
_NÃO INTERESSA!!! EU GOSTO DE VOCÊ, CARALHO!! – começou a gritar de novo, magoada – E EU NÃO QUERO VOCÊ DANDO EM CIMA DE OUTRA ASSIM NA MINHA FRENTE, É PEDIR DEMAIS??!? ENQUANTO TÔ LÁ, TOMANDO ESPORRO DA DONA DA FESTA, SABE?? VOCÊ ACHA QUE TUDO BEM FINGIR QUE EU NÃO EXISTO, INFERNO, NA FRENTE DAS MINHAS AMIGAS?!?! VOCÊ SEQUER ENTENDE O DESRESPEITO QUE ISSO É COMIGO?! COM A GENTE?!?!? JÁ IMAGINOU SE EU FAÇO A MESMA COISA NA CASA DA LÊ?? DA THAÍS?? QUAL É O SEU PROBLEMA?!?!
 
Me olhava com uma decepção tão doída que me destruía. Quem larga uma garota como você pra dar atenção pra outra? Puta merda, nem eu me entendia. C-c-c-c-c-come on, babe. A Clara cruzou os braços, injuriada. I never knew that you needed me. E nós duas ficamos em silêncio, por um instante. Naquela sarjeta suja. No que eu tava pensando? Me senti mal. Um lixo. I was born on the wrong side. Eu não queria aquilo. Eu queria a Clara. Caralho. E precisava assumir quando estava errada ao invés de me proteger de qualquer acusação feito uma idiota. The wrong side, the wrong side of everything. Me arrependia violentamente.

dezembro 17, 2012

“Não é o que você pensa”

A sala estava caótica. O rádio tocava Le Tigre no último volume e a voz da Kathleen Hanna gritava “who took the bomp from the bompalompalomp?” vez atrás de outra, ensurdecendo todo mundo, que agora tinha que rasgar a garganta para falar quase tão alto quanto a música. Era um êxtase ruidoso – certamente gente demais para um apartamento de um só quarto em Pinheiros. E eu não conseguia entender de onde saíam tantos copos, garrafas ou marcas redondas espalhadas pelas mesas e cadeiras e pelo chão, cada vez mais imundo.
 
Olhei para trás e a Clara parecia ainda discutir com a Natali, relativamente exaltada, a alguns metros dali – os meus olhos estavam subitamente dispersos e minha cabeça disparava como se lutasse contra o meu corpo imóvel. Não conseguia focar em nada. Em porra nenhuma. Fechei as pálpebras e as reabri, entorpecida, ainda confusa.

_E o que você acha que eu tô pensando? – a garota riu da minha resposta anterior.
_E-eu... – enrolei a língua para falar, meio atordoada, me explicando – ...é um, um cara. O “Fer” é um cara.
_Hum... – sorriu – ...interessante.
_Quê?
_Logo você, hétero.
_Não... – ri.
_Não?
_Ele mora, quer dizer... morava comigo. É um amigo, só.

Ela ergueu as sobrancelhas. Movia-se com certa graça e eu a admirava, numa irracionalidade alcóolica. Seus delicados cachos pareciam formar desenhos suntuosos no ar hype da festa, atrás de nós. Estava com uns shorts dourados, que torneavam suas coxas, sob a camisa preta transparente. Aproximou-se então do meu rosto e disse em tom baixo, colocando a mão na minha perna – “menos mal então”.
 
Não dificulta minha vida, mano. Virei o rosto na sua direção, a encarando com certa inconsequência. De perto. E podia sentir meu corpo, minha cabeça fritar. Outra garota estava literalmente desmaiada no sofá, a menos de dois metros de onde a gente estava. E os minutos pareceram escapar do meu controle, de repente. A ínfima parte ainda sóbria em mim me alertava de que a mina sentada ao meu lado provavelmente era conhecida da Clara. E eu sabia que devia ter saído dali. Entretanto, o resto do meu corpo parecia já ter esquecido o que eu estava fazendo naquela festa.
 
E com quem, o que é pior.
 
Os arredores me invadiam os sentidos – com a cabeça entupida de cocaína, de tequila. Afundada naquela poltrona, sem a porra da minha regata. Suas mãos foram tateando a caravela tatuada na minha costela, no escuro. E eu me diverti, a olhando, sem real intenção de beijá-la. Era só, sei lá, acaso. Sentada ali ao seu lado, sem qualquer traço restante de sobriedade, numa conversa que se desdobrava numas ambiguidades. Não sei explicar. Não tava pensando direito a respeito, caralho.
 
_...e umas flores aqui, algo que flua, sabe? – deslizei as minhas mãos por um dos seus braços, suavemente, tentando persuadi-la a fazer umas tatuagens também – ...ia ficar linda, porra.
_Olha, cê até que é convincente... – ela riu.
_Uma das minhas melhores amigas tatua, meu... – afundei de novo no sofá, acendendo um cigarro meio de qualquer jeito – ...quando cê quiser mesmo fazer uma, me liga. Te levo lá!
_Hum. Então, quer dizer... – ela sorriu com o canto dos lábios cheios e se debruçou sobre a perna que eu tinha cruzado em frente ao corpo, conforme soltei a primeira tragada no ar – ...que eu vou ganhar seu telefone?
_Bom, qu...

E antes que eu pudesse terminar de responder – ou sequer me dar conta –, a Clara veio voando na nossa direção. Empurrou o meu pé para fora do joelho onde estava apoiado, me desequilibrando. A garota também quase caiu do sofá, de tão na ponta que estava. Merda. Olhei para cima e encontrei os olhos enfurecidos da Clara, tão embriagada quanto eu àquela altura e pronta para me chamar de todos os nomes que eu merecia. Me fodi.

dezembro 13, 2012

¡Al centro!

_Vem, porra... – me dizia no ouvido.
 
Já vai. Três horas antes eu não conhecia ninguém naquela festa e agora me entrosava com meia dúzia de sapatonas, em meio àquele caos ensurdecedor. Numa inconsciência alcóolica, os risos exagerados e as trombadas inertes, o ritmo frenético. Com avidez, as mãos da Clara me puxavam pela lateral da regata. E eu tinha os meus dedos entremetidos na parte mais cheia das suas coxas, a sentindo me apertar, enquanto a minha atenção se voltava toda para a conversa.
 
Nos observavam conforme eu tagarelava, merda atrás de merda, como se em duas realidades concomitantes – ali, entre seis, sete meninas e sendo agarrada na lateral. A Clara subia pelo meu pescoço, já fora de si. A música no ambiente aumentava progressivamente e o calor me fazia suar cada dose de tequila que eu virava. Uma atrás da outra, elas continuavam vindo. As perguntas também. Sequer sabia mais o que estava metendo na boca. Ou pelas narinas. A Clara me pedia para desacelerar e eu ignorava. Aí ouvia as garotas gritarem, aos risos, perdendo trechos inteiros da conversa, meio atordoada. Com o foco todo confuso. A verdade é que a decência já havia deixado aquele apartamento há pelo menos duas horas. Minha namorada se apertava contra mim, com os lábios esfomeados e as pernas inquietas. Ia se contorcendo, me tirando do sério – mas eu continuava falando, insaciável.
 
_O câncer de São Paulo são essas porras desses alternativos de merda, cara! Com dinheiro e um bando de piadas internas com os seus coleguinhas de agência, vai se foder! Se acham originais pra caralho... – senti meu coração disparar, conforme vomitava um resmungo atrás do outro e ria, junto com as garotas – ...me dá asco, mano. Asco! Acharem que a Augusta agora é isso, rolêzinho de publicitário hétero, e as baladas aí cobrando setenta na porta, porra.
_Ah, não. Meu! Na agência que eu trampo é uma galera muito sussa... – uma das garotas rebateu.
 
Argh, ela era exatamente o tipo de pessoa a quem eu me referia, bêbada de vodka com suco de morango num vestido de 400 conto da Antix e meia tatuagem em linha fina no antebraço, dessas roubadas do Tumblr.
 
_Mano! – pisquei na sua direção, a provocando – Silêncio aí, vai! Ninguém te chamou pra defender sua classe!
_Cala a boca você! – ela riu.
_São todos uns merdas, cara. Sem exceção... – a interrompi e abaixei a cabeça, no segundo seguinte, sentindo minha pele esquentar de dentro pra fora – ...mano, que porra, tá muito quente aqui.
 
Droga. Começava a sentir a combinação me tirar a consciência. O coração acelerado, o ego disparado. Fazia mais de um ano que eu não pegava tão pesado assim. Inferno. A Clara me persuadia, grudada no meu pescoço, com a mão metida por debaixo da minha regata, enquanto eu falava. E as minhas palavras se atropelavam, perdiam-se confusas, nuns lapsos de puta-merda-essa-garota-sabe-o-que-tá-fazendo antes que eu retomasse a minha linha de raciocínio e conseguisse voltar ao que estava dizendo. O que era mesmo?
 
Uma das garotas me respondia, empolgada, na ponta de um sofá do outro lado. E a namorada dela me encarava com desprezo, afundada amargamente no encosto. Eu não calava a boca. Sequer sabia o que estava dizendo mais, contando casos intermináveis, entre um cigarro e outro aceso, fazendo graça com a minha boca suja, rindo das histórias das outras sapatonas – interagindo meio irracionalmente, assim, sem nos conhecer direito. Os dedos da Clara subiam impacientes, se afundando na lateral do meu corpo. Me beijava a nuca. E então deslizava pelo meu rosto, interrompendo meus lábios com os seus. O que eu...?, me perdi na sua língua, de repente, sem nem chance de pensar a respeito.
 
Aí perdi mesmo a noção do que estava acontecendo. E afundei em seu gosto pelo que me pareceram minutos infindáveis naquela poltrona. O que..., a beijava de volta, caralho. Sentia como se a gente fosse se comer ali mesmo. E tinha a minha regata tirada em meio a desconhecidas numa sala lotada, com as luzes apagadas, a agarrando agora só de jeans naquela poltrona, com os meus peitos de fora e a Clara sentada no meu colo, pressionada contra o meu corpo. Sem sequer saber como tínhamos começado aquilo. Cacete. Saía totalmente do controle.
 
Alguém passou por trás da poltrona e nos deu um tapa na cabeça. A Clara ergueu o dedo do meio, sem ver quem era, me beijando. Incansável. Eu a mordia entre seus beijos, sem dar a mínima para o que acontecia além do alcance das minhas mãos. Erguendo seu vestido até a sua cintura. A segunda pessoa passou, nos provocando, e a Clara revirou os olhos – desmontou do meu colo, de uma só vez, e me puxou pelo passador do cinto através da sala. E até o corredor. Aí nos enfiamos, às agressões, no quarto da tal da Natali. E transamos na cama da garota; sobre a colcha, contra o armário, sabe-se lá. Só restavam flashes na minha memória e hematomas pelo meu corpo. Nuns estranhos espasmos de consciência. E quando deixamos o quarto, eu já não fazia ideia de onde porra tinha deixado a minha blusa.
 
Saímos uns quarenta, cinquenta minutos depois, não sei, descabeladas e amarrotadas. E aí cruzamos caminho com a anfitriã, que nitidamente não ia com a minha cara – e ela segurou a Clara. “Você quer me explicar o q...”, ouvi apenas o começo da frase emputecida, conforme seguia adiante para me sentar no sofá. Com os peitos ainda de fora, sentindo a minha cabeça doer. Não sabia direito o que fazer com as mãos, as pernas. Soltei o corpo todo contra o encosto, afundando-me ali, já fora de mim. Não tinha comido nada o dia inteiro além de meia salada no set e o hambúrguer que a Mia me levou às 5 da tarde. Talvez não tenha sido a melhor estratégia, portanto, encher o cu de pó e bebida – mas sabe quando cê tá meio na merda e começa a implorar pra dar um ruim tão grande que te tire do lugar? É.
 
Peguei o celular em mãos, com certa dificuldade. Eram 2:13. O visor marcava os números numa luz forte, que me incomodava os olhos. Cacete. Tinha uma mensagem não lida, enviada pelo Fernando horas antes quando eu ainda tava no táxi, trocando ideia com ele sobre o lance da Marina. Só que não tinha visto aquela. Então a abri – “mas sdds, mano. Me liga de vz em qdo, porra!”. Terminei de ler e achei graça.
 
_Hum... – comentaram, ao meu lado – ...quem é essa tal de “Fer” aí?
_Hein?! – ergui a cabeça, sem entender, e notei uma das garotas que estava na roda uns tempos antes sorrindo pra mim, com uma camisa quase transparente e um black power – Como é?
_Eu perguntei... – ela riu, repetindo – ...quem é “Fer”?
_Mas... – estranhei a pergunta, ainda chapada e achando graça; aí a observei por um instante e, caralho, preciso parar isso por aqui – ...p-por quê?
_Só curiosidade. De saber quem ganhou esse sorriso aí...

dezembro 12, 2012

Pinheiros

Merda, enfiei minhas coisas no bolso e saí para a rua, em direção ao ponto de táxi, já realmente atrasada. A gravação tinha ido até tarde e eu precisava chegar no Largo da Batata em quinze minutos. Ia na festa de uma amiga da Clara que ainda não conhecia – uma tal de Natali, não sei. Peguei um táxi até Pinheiros e assim que desci, acendi um cigarro. A Clara ainda não tinha chegado. Porcaria. Mantive os olhos abertos, checando os bolsos com certa paranoia, enquanto tragava – tinha sido assaltada a poucas quadras dali, uns anos antes.
 
_Cê não vinha a pé? – estranhei, assim que vi a Clara descer de um táxi também.
_Vinha. Mas, ah... – suspirou, ajeitando os ombros sob o meu braço – ...já tava tarde, achei melhor vir assim!
 
Abraçou o meu corpo, conforme andávamos para a rua da sua amiga, e eu lhe dei um beijo rápido na testa. Estava realmente linda. E é. É verdade que, no caminho até lá, hesitei sobre os meus sentimentos. Sobre quanto era capaz de lidar com aquela nova, ahm, situação. A realidade é que ver a Mia sempre me bagunçava a cabeça, mas falar com a Marina também me fez cair em mim. No caso, bem em meio ao meu caos emocional. Espatifada. E aquele não era o melhor estado de espírito para se estar ao pisar numa festa barulhenta na Sumidouro em que te recepcionam com shots de tequila, não é?
 
Mas que se foda.
 
Virei dois seguidos e decidi que não – não ia me deixar levar pela minha própria confusão. Entretanto, tão rápido quanto a minha garganta parou de queimar, dose atrás de dose, logo percebi que não estava tão no controle assim.

dezembro 11, 2012

Pacaembu

O problema é que também não era como se a Mia facilitasse, não é? Horas depois, lá estava eu, às quase cinco da tarde, me desgastando numa gravação sem fim no estádio do Pacaembu e discutindo com uns quatro incompetentes ao mesmo tempo, quando ela me mandou mensagem. Peguei o celular, estressada, entre um argumento e outro, e olhei para o visor rapidamente – “ei, ñ acha q ta na hr dum cigarro? ;)”.
 
Na minha última pausa, algumas muitas horas antes, eu tinha ligado para a Mia e ficamos conversando por uns minutos. Ela me torturou com a sua vontade de me ver e eu a diverti com as minhas reclamações sobre o buffet contratado pra gravação, que interpretou o meu “precisa ter opção vegetariana” como “vamos picar uma salada murcha de alface com meia rúcula”. Por que diabos não fazem uma porra dum macarrão? Dum queijo quente, mano? 
 
_Ô! – assobiei e chamei uma das minhas colegas, a uns metros dali; aí me virei para a roda de pessoas, ainda em meio à discussão – Gente, ó, resolve com ela aqui. Preciso dar uns 5!
 
E larguei a bucha da vez na mão de outra assistente, indo em direção à saída e já procurando o número da Mia nas ligações recentes, antes mesmo de responder sua mensagem. Bati o maço desajeitadamente na perna, puxando um cigarro com a boca, conforme discava e atravessava o portão de entrada – quando, para a minha surpresa, dei de cara com a Mia.
 
_O que... – sorri, na mesma hora, tirando o filtro ainda apagado da boca – ...o-o que cê tá fazendo aqui?
 
Ela sorriu, de volta. Nos seus shortinhos-com-camiseta-preta-e-All-Stars de quem só saiu pra dar uma volta no bairro e que, puta merda, me davam uma vontade desgraçada de estar em casa com ela, vendo TV e dando uns beijos à toa no sofá, sabe? Ela se aproximou e tirou a franja da cara, segurando o riso. Em uma das suas mãos, tinha um saco pardo desses de padaria.
 
_Bom... – ela riu, chegando perto – ...eu tava com saudade e, né, imaginei que cê devia tá morrendo de fome depois do fiasco da salada mais cedo, então te trouxe um lanche. E umas batatas!
_Cê...
 
Suspirei e deixei escapar mais um sorriso, sentindo meu coração encher.
 
_...cê não existe, meu.
 
Passei a mão no rosto, meio sem acreditar que ela estava mesmo ali. Segurando uma porra dum lanche para mim. E de repente – me senti a garota mais feliz de toda São Paulo. Ou sei lá, do Pacaembu, enquanto os carros começavam a se engarrafar nas ruas ao redor de nós. E a luz do sol ia ganhando um tom alaranjado bonito. Puxei a Mia pela mão e a beijei, com carinho. Daí fomos até a lateral do estádio e sentamos num canto, meio escondidas, onde comi meu hambúrguer vegano e fumamos um juntas.
 
Foram os melhores vinte minutos daquela semana inteira.

dezembro 10, 2012

0800-LESBOFOFOCA

_CÊ TÁ SAINDO COM A MIA DE NOVO?!?! É sério?!?!
_Bom dia pra você também, ô educada! – resmunguei para a Marina, ao telefone.
 
Mal tinha pisado pra fora do chuveiro, oito da manhã, com a água ainda pingando das minhas pernas e a minha ex-namorada já gritava comigo do outro lado da linha. Três dias depois da minha ida ao estúdio. Que diabos tá acontecendo?
 
_Mas espera... – apoiei o telefone na pia e coloquei a chamada no viva-voz – Quem te falou que tô saindo com a Mia?
_Ah, então, É VERDADE?!?
_Você falou com a Thaís, meu?
_Não, não, ela falou com a Lê e a Lê me contou!
_Hum, sei. E foi divertido pra vocês? – resmunguei – Falar da minha vida assim?!
_Ai, flor, a gente tá preocupada.
_Marina, não é como se...
_Meu, você não falou, no começo do ano, que AGORA TAVA COM A CLARA? – me interrompeu, indignada – COMO ASSIM VOCÊ TÁ SAINDO COM A MIA, MEU?? E POR QUE CÊ NÃO ME CONTOU??
_PORQUE SABIA QUE CÊ IA REAGIR ASSIM!
_Sinceramente... – ouvi ela respirar fundo – ...não sei nem o que falar pra você, de verdade. Cansei. Cansei de tentar entender você e essa menina!
_É isso, então? – reclamei, me enxugando com a toalha – Cê me ligou três vezes enquanto eu tava no banho pra me dar bronca?!
_Não! E-eu...
_Não?
_...eu já ia ligar para conversar de outra coisa, mas aí a Lê me mandou mensagem e eu até esqueci o que ia perguntar, meu – argumentou – Eu não acredito que você não me falou!
_Tá, tá. Mas o que cê ia perguntar?
 
Peguei o telefone, já seca, e fui até o quarto. Aí vesti a primeira cueca preta que encontrei, enquanto escutava a Marina na linha.
 
_Era sobre o Fer. Ontem, meu chefe de redação comentou comigo que o cara de T.I. da revista vai sair, perguntou se eu não conhecia alguém. Aí pensei em indicar o Fer! Ele já conseguiu alguma coisa?
_Que eu sabia, não... – disse, colocando uma regata também preta – ...vou mandar uma mensagem pra ele. Mas, porra, ia ser incrível!
_Ia? Não sei... – desdenhou – ...não sei o que você quer da sua vida agora, né, já que você tá COMENDO A NAMORADA DELE DE NOVO.
_Ai, Marina. Dá pra parar?!? – revirei os olhos, irritada – E olha, nem vem, que eu sei que o que realmente tá te incomodando não sou eu, não é a Mia, não é meu relacionamento com a Clara. É eu não ter te contado!
_Não é verdade! – contestou – E não, agora sério, linda, cê tem certeza do tá fazendo?
_Não, Má. Não tenho. Não tenho certeza de porra nenhuma! – respondi, numa sinceridade exaltada – Mas eu também não sei que merda fazer, então...
_Mas você ama a Clara?
_Cê sabe que sim.
_E a Mia?
_...
_Você ama a Mia?
_E-eu...
_Céus. Cê tá apaixonada por ela, de novo, não tá?
_E-eu... – hesitei – ...eu preciso ir, Má. Tô atrasada pro trampo. Escuta, depois a gente se fala melhor, pode ser?
_Flor. Flor! – ela contestou antes que eu desligasse – Olha, cê não pode continuar com isso...
_Depois a gente conversa, tá? Beijo!
 
A interrompi, às pressas. Era cada vez mais difícil falar sobre os meus sentimentos assim, em voz alta. Se sequer tinha contado para a Marina – a Marina! – o que estava fazendo com a Mia nos últimos dois meses, que dirá confessar o que sentia por ela. Ou pela Clara. E todo o rolo emocional em que vinha me metendo deliberadamente. Não. Não dá. Parte de mim sabia que o primeiro sinal de que as coisas andam realmente mal é quando se começa a ocultar informação dos seus amigos – e era exatamente isso que eu estava fazendo. Evitava comentar porque, no fundo, sabia o quanto a situação me destruía por dentro.
 
Argh.

dezembro 08, 2012

I've exposed your lies

“…baby, the underneath’s no big surprise”
(Muse)
 
_Você vem, Bo?
_Não, vão vocês.
 
Pisquei rapidamente para a Clara e ela se virou para acompanhar a Ju do lado de fora, aproveitando a pausa para fumar um enquanto a Thaís trocava a agulha da máquina. Fiquei largada no sofá e minha amiga começou a procurar as tintas e as agulhas de preenchimento na gaveta duma bancada baixa. Já tinha terminado todo o contorno da tatuagem.
 
Àquela altura, fazia umas duas horas desde que a Mia tinha ligado e eu não tinha checado meu celular desde então – só sabia que tinha vibrado mais algumas vezes. Temporariamente sozinha naquele sofá, tirei-o do bolso e vi mais uma chamada não atendida, junto com três mensagens não lidas da Mia. O que acontece?, estranhei. Abri minha caixa de entrada, curiosa, e li um “ME ATENDEEE”, seguido de “PFVRRRR CADE VCCC? PRECISO TE PERGUNTAR UMA COISA KKKK”. E eu sequer pretendia responder naquela hora, sabia que a Clara estava logo ali do lado, mas aí li o terceiro SMS – “É URGENTE! A gnt ja fez rebuceteio???”.
 
Quê?!
 
Comecei a rir na mesma hora. O rádio tocava Muse ao fundo. Me afundei no sofá, sem conseguir me conter, digitando de volta – “ESSA eh sua pergunta importante?? rs”. E nem trinta segundos depois, chegou a resposta dela – “sim!!! :x pq?? vc ja fez???”. “C sabe do q vc ta falando? rs”, achei graça. “Ñ! kkkk to no bar aqui na rua debaixo do Mackenzie e uma mina sapata q estuda cmg tava falando q mandou ver no rebuceteio e eu fiquei curiosa kkkk”. Passei a mão no rosto, já me divertindo. “Acho q vc ta achando q eh outra coisa, Mia, rs”, enviei, aí me pus a explicar. Antes que terminasse a minha mensagem, no entanto, a Mia mandou mais uma – “ñ eh sexo?? ela falou q foi dormir na casa duma mina la!”.
 
Meu deus, pensei, essa é a melhor conversa que já tive na vida

Estava quase gargalhando no sofá, sozinha. “Eh uma gíria sapatao pra qdo vc pega alguem q sua ex ou sua amiga ja pegou”, expliquei. “Ah, tipo talarico?”, a Mia pareceu decepcionada. “Ñ, talarico eh mais na maldade e o rebuceteio eh meio inevitavel, rs. pq a cena lesbica eh um ovo e td mundo ja se pegou, ñ tem como fugir, meu, uma hr c acaba participando”. Passei a mão no meu cabelo bagunçado, o tirando da cara, e logo chegou mais uma mensagem dela – “hum, e c ja participou??”.
 
Comecei a rir, de novo. “Ah, ja :P tipo, q nem, eu peguei a jessica, q pegou a thais, q eu ja peguei, q pegou a le junto cmg, q hj pega a jessica e q já pegou a marina, q eh minha ex, q ja pegou a clara... e por ai vai, rs”, expliquei, achando graça.
 
_Com quem cê tá falando? – a Thaís me questionou, de repente, do outro lado da sala.
 
Ergui os olhos e vi a minha amiga ali, me encarando de volta, como quem suspeita de algo, enquanto separava na bancada as cores que ia usar na tatuagem.
 
_Não, nada... – desconversei, na mesma hora – ...c-com ninguém.
_Sei – retrucou, sem paciência – O mesmo “ninguém”?
_...
_Cê tá falando com a Mia, não tá?
 
Respirei fundo, sem responder à bronca gratuita, enfiando o celular de volta no bolso. E a Thaís me observou, também quieta. Que foi, meu?, me incomodei, se tem alguma coisa pra falar, fala logo. Ela se esticou para alcançar uma cerveja sobre a bancada e, então, continuou:
 
_Olha, eu não vou me meter... – resmungou, abrindo a latinha entre as pernas, com os antebraços apoiados nos joelhos, e aí olhou pela janela para ver se as garotas continuavam fumando – ...mas a Clara é uma puta mina da hora.
_Eu sei, porra, a...
_E eu pensaria bem antes de foder as coisas com ela... – me interrompeu, com certa seriedade – ...ainda mais se for com alguém que já te deixou tão na merda.
_Não é assim, meu.
_Então, como é? – deu um gole, indisposta com a minha desonestidade – Porque até onde eu sei, ela ainda namora seu amigo.
_Mano, a gente só tava trocando mensagem...
_Tá bom, então – se irritou.
_Qual é, Thaís?!
_Velho, só não quero ver você quebrando a cara de novo por essa mina... só isso. E eu sei que você ama a Clara, que não quer magoar ela...
_E-eu... – hesitei, sem saber o que responder direito, e aí esfreguei a mão no rosto – ...eu, eu sei. E eu não quero mesmo, porra, é só que... – me angustiei – ...inferno. Eu gosto dela, Thá. Eu... e-eu ainda gosto dela pra caralho e, e eu não sei o que fazer...
 
Nisso, ouvimos a porta abrir. E a Clara entrou junto com a Ju, rindo, interrompendo imediatamente as palavras que saíam da minha boca.

dezembro 07, 2012

Encontro às cegas

_Escuta... – a Thaís me perguntou, do nada – Cê ainda tá sério com a Clara?
_Do que cê tá falando, mano?!
 
Estranhei, equilibrando o celular contra o ombro, enquanto assinava um orçamento e tentava despachar toda papelada que ainda tinha que entregar antes de ir embora naquela terça. Minha amiga parecia estar na rua, pelo som do outro lado da linha, e eu podia ouvir alguém rindo ao seu lado.
 
_Não é... – respondeu, tentando segurar o riso – ...é só que tava indo comprar comida agora e encontrei uma mina aqui, sem querer. E mano... Puta gata!
_Sei... – comecei a rir.
_Pensei em apresentar vocês hoje, sabe, se cê tiver solteira... Ela fala espanhol, é filha de boliviano, trabalha numa loja de música aqui perto, tem cabelo comprido, assim, um undercut... – foi listando, fazendo graça – ...uma tatuagem na linha do ombro.
_Ahm...
_Ouvi dizer que ela gosta dumas trouxas igual você.
_Vai se foder!
_É sério, velho, ela acabou de me falar que curte umas sapatão ruim de sinuca.
_Olha, Thaís, cê nem vem cuspir no prato que comeu! – eu ri, revirando os olhos, e assinei mais uns papéis sem nem ver direito – Mas, agora sério, onde cês tão? Saio daqui uns quinze, vinte minutos, se pá...
_Tamo voltando pro estúdio, vou tatuar a Ju hoje. Cola lá!
_Bora, bora.
 
Desliguei o telefone ainda rindo. A amizade da Thaís com a Clara era fundamentada quase unicamente em me zombar. A cada oportunidade que surgia. Bestas. Me apressei para terminar o que faltava de trabalho e saí da produtora pouco antes das sete – a semana mal tinha começado e já estava cansada. Pelo menos agora, com o Du dividindo o apartamento comigo, já não precisava mais fazer tanta hora extra. Subi a rua até o metrô e fui em direção a Pinheiros para encontrar o meu date tão misterioso.
 
Quando cheguei no estúdio, uns quarenta minutos depois da ligação, a minha amiga estava debruçada sobre a sua namorada, tentando acertar um decalque nas suas costas. Ao lado delas, com as mãos apoiadas na maca, a Clara se inclinava para acompanhar de perto. Numa regata branca que roubou de mim uns meses antes – gostava de ir trabalhar com ela porque ficava larga e confortável no seu corpo. Seu cabelo estava preso numa trança sobre o seu ombro, revelando o undercut e a tatuagem de cruz andina que ela tinha na nuca.
 
Fechei a porta atrás de mim e a Clara virou o rosto na minha direção, sorrindo ao me ver. Sorri de volta, caminhando até onde elas estavam. O estúdio tinha paredes pretas com desenhos e decalques colados por todo lado, um sofá grande e umas espadas de São Jorge em vasos pelos cantos. Todos os outros tatuadores já tinham ido embora – só restavam as três ali. A Thaís levantou brevemente a cabeça para me cumprimentar, enquanto fazia uns retoques de caneta no decalque, e a Ju ergueu a mão sem poder se mover muito.  
 
_Hum... – me aproximei da Clara, fazendo graça – ...então é você que eu ia conhecer hoje?
_É – ela colocou os braços em volta do meu pescoço – Mas não sei, ouvi um papo aí que cê namora...
_Eu?! Não... – balancei a cabeça, na maior cara de pau – ...cê tá me confundindo.
_Ah, tô?
 
Ela riu e eu deslizei as mãos até suas coxas naquele jeans, a erguendo no meu colo num só movimento. E nos beijamos, ainda rindo, conforme ela cruzava as pernas ao redor do meu corpo. “Olha, se eu soubesse que cê era gata assim...”, cochichei, com a boca a centímetros da sua.  “Hum”, a Clara se divertia, “me diz o que cê ia fazer”. A Thaís revirou os olhos ao longe, gritando na nossa direção:
 
_PODE PARAR. SEM BAIXARIA AQUI DENTRO, VOCÊS DUAS!
 
E nós a ignoramos. Os meus pés encontraram intuitivamente o caminho até o sofá, caindo junto com a Clara sobre as almofadas. E a Thaís começou a reclamar de longe. A gente riu, se agarrando quase de propósito. Subi em cima da Clara e a apertei pela cintura, nuns beijos com gosto. “TEM CÂMERA AQUI DENTRO!”, minha amiga insistia, nos xingando. E a gente fazia que não escutava. Nisso, senti o meu celular vibrando. Tirei ele do bolso, ainda entre as pernas da Clara, rindo, e olhei rapidamente no visor – merda. Era a Mia me ligando. Recusei a chamada, num reflexo rápido, mas senti certo desconforto.
 
Aí guardei o telefone no bolso, de novo.

dezembro 06, 2012

Bons começos

Morar com o Du foi estranho nos primeiros dias. Aquilo era diferente de todas as vezes em que eu e o Fer cedemos o nosso sofá a algum amigo – temporariamente sem teto, brigado com a namorada ou desistente de qualquer perspectiva de vida. Aquilo parecia mais permanente. Meu cérebro precisava dum tempo para o associar à luz acesa quando entrava no apartamento – na primeira noite em que voltei do trabalho, tomei um susto quando trombei com ele no meio da sala. Já o Du precisou de alguns dias para se acostumar com a minha aversão a calças. Ou roupas em geral.
 
Éramos dois estranhos num ninho, dividindo panelas e cômodos. Não demorou muito para que o Du conhecesse a outra garota que frequentava o meu quarto. A Clara veio no domingo e ele a cumprimentou com um sorriso no rosto, na sala, me fitando em seguida. Eu sei o que cê tá pensando, pensei, meio envergonhada, mas juro que não é assim. E implorei com os olhos para que ele não comentasse nada. O Du apenas riu. E no dia seguinte, quando nos encontramos sozinhos na cozinha, ele não me perguntou nada.
 
E tá – era para ter parado por aí.
 
Mas aí a Mia reapareceu na terça. Numa passada rápida por lá, antes de encontrar o Fer em Santo Amaro, sob o pretexto de me deixar a camiseta que emprestou no sábado. E a gente acabou se comendo contra a parede do quarto. De leve. Daí a Clara veio na quinta e ficou até sábado. Pouco antes dela ir para trabalhar, o Du saiu do quarto acompanhado dum cara que devia ter arranjado na Gambiarra. Nos trombamos no corredor. Ele olhou para mim e eu não sabia onde enfiar a minha cara de pau.
 
É. E eu bem queria poder culpar outra pessoa pelo que eu estava fazendo. Pela minha calhordice, meus erros. Mas a verdade é que não tinha nenhuma justificativa. Nenhuma porra de desculpa ou alívio moral. Nada. Era egoísta – e eu sabia. Sabia toda vez que procurava a Mia e sabia, semana atrás de outra, a cada vez que não contava para a Clara. Ou o Fer. Mas que inferno. Era egoísta, sim, mas o egoísmo agora era outro. E não como outras vezes em que traí, anos antes, numa arrogância adolescente e entediada. Desta vez, não. Desta vez, o que eu queria era tempo.
 
Mas também não era para ter durado tanto, eu é que perdi o controle. Passou um mês. Depois outro. E eu continuei, me metendo cada vez mais naquele buraco, já com a lama até o pescoço e sem conseguir parar de cavar. Até chegar ao ponto em que falava com a Mia todo maldito dia, me deixando apaixonar de novo, e já não conseguia sequer imaginar a minha vida sem a Clara. Cacete. O meu coração estava uma bagunça.
 
E eu enrolava, covardemente – mas uma hora o buraco ia começar a desbarrancar.

dezembro 04, 2012

Leves

A Mia balançou a cabeça e se desculpou, escapando da responsabilidade, dizendo que precisava ir ao banheiro. “Isso é um não?” – o Du insistiu, rindo, nos observando juntas no corredor enquanto tragava o cigarro.
 
_Isso é um “bem que ela gostaria” – a Mia me zombou.
_Vai se foder! – ri.
 
Engraçadinha. Entrou no banheiro. E eu me virei para terminar de empurrar o colchão com o Du. Dormi pouco demais pra estar carregando tanto peso assim, cacete. Meu novo colega de apartamento se pôs, então, a organizar as suas coisas no antigo quarto do Fer e eu voltei sozinha para o corredor. Podia ouvir a água correndo na pia do banheiro. Caminhei até a porta entreaberta e espiei a Mia ali dentro, enquanto ela molhava o rosto. Tinha as pernas de fora numa camiseta minha que ela sempre disse que um dia ia roubar – com a capa do “Power Never Die”, do The Comes, estampada e uns furos de traça de tão velha.  
 
_Que foi? – a Mia perguntou, pelo reflexo do espelho, ao me notar ali.
_Nada, é só que... – sorri – ...cê fica bem assim.

dezembro 02, 2012

Uns não-relacionamentos

O som do meu celular me perturbou os ouvidos, o sono. Abri os olhos, sentindo uma dor desgraçada na cabeça pelas horas não dormidas. Uma das pernas da Mia estava entrelaçada na minha, descoberta, e os lençóis estavam contorcidos sob nós, desconfortáveis. O telefone ainda gritava e a Mia se moveu ao meu lado, inconsciente, afundando-se em meio aos cabelos bagunçados e ao travesseiro que dividíamos.

Argh, maldição. O barulho também me incomodava, mas demorei alguns segundos para me situar. Aí olhei para o relógio, sonolenta, e o visor já marcava 8:03. Puta merda. O Du, caralho! Tropecei para fora do colchão, desnorteada – tínhamos dormido invertidas na cama, com o travesseiro jogado onde deveriam ficar os pés e os lençóis soltos. Droga, droga. E aí alcancei o celular na mesa de cabeceira:

_Alô, alô! – atendi, atrapalhada – Pronto. Desculpa!
_Bom dia... – o Du riu – Escuta, tô aqui embaixo. A gente tava tentando o interfone, mas ninguém atendia...
_E-eu, eu sei, desculpa. É que fui dormir tarde ontem e, e não acordei, meu. Foi mal! Pode subir, eu... – esfreguei a mão no rosto, ainda desorientada, atropelando as minhas palavras – ...e-eu vou ligar lá na portaria e liberar, peraí!

Desliguei, num suspiro, ainda meio azucrinada. Já tava quase largando o moleque com toda a mudança no meio da calçada da Frei Caneca. Rainha das primeiras impressões. Tirei a franja bagunçada da cara, tentando me concentrar – tá, o que era mesmo que eu precisava fazer? Respirei fundo, sem uma roupa no corpo, confusa. Interfonar para a portaria, me lembrei, é isso.
 
Fui até a cozinha e liberei a entrada do “Eduardo”. Sabe-se-lá quanto tempo o coitado já estava esperando lá embaixo. Então abri a geladeira e dei um gole ou dois na garrafa de água, sentindo a minha boca seca. Agora, bocejei, preciso de uma cueca. O dia amanhecia ensolarado. Voltei para o quarto e vesti a primeira que peguei na gaveta. A Mia seguia desmaiada na minha cama. Estava de bruços, com o rosto virado pro travesseiro – dum jeito que me dava vontade de afundar no seu corpo, de não fazer mais porra nenhuma naquela manhã.
 
Mas, não. Preciso botar uma roupa.
 
A admirei à distância, então, deitada na minha cama, enquanto colocava uma camiseta larga. Aí a campainha tocou. É o Du. Saí do quarto e atravessei a sala para abrir a porta. Estava afogado em malas e sacos amarrados uns nos outros. O cumprimentei, achando graça, e ajudei a carregar tudo até o quarto do Fer. Aí meti as mesmas calças do dia anterior, largadas no chão da sala, e calcei um chinelo que estava perto da porta para o ajudar a pegar o que faltava no carro dum amigo.
 
Descemos. E o tal amigo me olhou como se eu fosse louca – descabelada e sem sutiã naquela camiseta branca, em plena luz do dia. São só peitos, cara, supera. Tiramos tudo que deu do carro. E antes que o amigo fosse embora, o Du se curvou sobre a janela aberta e o agradeceu com um beijo bem dado.

_E aí... – perguntei, assim que nos esprememos com todas as tralhas no elevador – ...aquele lá é seu namorado?
_Quem? O Caio?! – me olhou, estranhando – Não.
_Não?!
_Bom... – ele riu – ...não exatamente.

E aí eu entendi.
 
_Hum... – me diverti, o ajudando a empurrar o colchão e todo resto para fora do elevador – Então ele é o cara com carro?
_É. Mais ou menos isso...
 
Ele riu, de novo. E aquilo me fez gostar do Du. Pelo que, provavelmente, eram os motivos errados. Carregamos o colchão até o apartamento, tentando não fazer barulho enquanto passávamos pelo corredor. Mas o diabo do colchão insistia em escorregar das minhas mãos e eu dava com ele entre os pés, tropeçando a cada dez centímetros. Desgraça. Quando já estávamos quase dentro do quarto vazio, a Mia abriu a porta do meu.
 
_Te acordei, meu?
 
Ela sorriu, negando com a cabeça, e caminhou até mim, me dando um beijo rápido. Tinha os cabelos desarrumados e as pernas descobertas, vestindo apenas uma camiseta minha. O Du nos observava mais adiante, do outro lado do colchão. A cumprimentou à distância e tirou um maço do bolso de trás da calça, colocando um cigarro na boca.

_É sua namorada?

Comecei a rir e encarei a Mia, arqueando as sobrancelhas. Ela achou graça também.

_E aí, o que eu digo?

novembro 29, 2012

Ininterruptas

O gosto da Mia me contaminava os sentidos. O que você tem, garota, que me desgraça a cabeça assim? Não importava se eram meses ou apenas dias de abstinência dela. Eu ainda sentia a sua falta na minha boca. Nuns estragos à minha pele, à minha sanidade. Fodendo contra o sofá, de novo; na parede do corredor e no chão do meu quarto.
 
E não. Não era nada que faltava à Clara – não sentia que a procurava na Mia e certamente não buscava a Mia nela. Sabia diferenciar as coisas e elas duas, elas eram mundos à parte. Não sei explicar. Não sei como a Mia ainda conseguia encontrar caminhos até mim. Mas as queria de maneiras diferentes, se é que isso é possível. Empurrando a ressaca moral sempre para o dia seguinte.
 
O que não antecipei desta vez, naquela noite, entretanto, foram todas aquelas horas. Na madrugada que se seguiu. Os minutos se passaram, contínuos, sem que precisássemos nos separar – num desenrolar assim, com tempo e para o qual eu não estava preparada. Desde que aquela confusão começou, estávamos sempre nos escondendo, na sua casa, na minha, atrás de portas e em banheiros, pistas escuras.
 
Agora não. A beijava com a intimidade que o apartamento vazio e aquele tempo todo, de repente, nos permitiam. Com calma. Sem me afobar. Ainda que já estivesse exausta, horas depois, caída no meu colchão, mas sem conseguir realmente parar, nos enrolando, com a boca invariavelmente uma na outra. E a porta destrancada.
 
Aquela foi a primeira vez que a Mia deitou comigo para passar a noite, assim, na minha cama. E não no quarto ao lado.
 
Meus dedos denunciavam conhecer os seus contornos. E o sol começou a nascer pela janela do quarto. As nossas pálpebras já pesavam, sonolentas, quando ela encostou o seu corpo despido contra o meu. Quase adormecendo. E eu soube, naquele instante, que estava com um problema. Pude sentir cada centímetro da sua pele, abraçada comigo, enquanto encarava o facho de luz que começava iluminar o teto e o meu coração disparava dentro do meu peito. Eu sabia que aquilo não mudava nada, a Mia ainda estava com o Fer, eu sabia, mas ainda assim a segurei perto de mim. Como se por um instante pudesse ser sempre assim.
 
Algo me parecia diferente, não sei. Tê-la ali na minha cama, nos meus braços. No meu quarto. Numa liberdade que nunca tivemos. E isso me fazia querer ficar. Com medo das voltas erradas que o meu coração dava, meio à beira do precipício, é, mas ainda assim não a queria soltar. Apegada, de repente, à possibilidade do que seria uma vida juntas.
 
Não sei. Não sei, porra. A, a gente sempre estava bêbada demais ou com, com tempo de menos para aproveitar momentos como aquele. E desta vez, não – estava tudo calmo. Sabe? Àquela altura, o suor já secava sobre nossa pele e o cômodo era tomado pela brisa das seis da manhã, que entrava sorrateiramente pela janela. A Mia ajeitou o rosto no meu ombro, também cansada, e apertou as mãos ao redor do meu corpo.
 
_Hum. Isso é gostoso... – murmurou.
_É... – sorri.
_Por que a gente...
_Hum?!
_Por que não fizemos... isso... d-da outra vez?
_Porque... – hesitei por um instante, sentindo meu peito apertar, porque você foi dormir com o Fernando aquela noite e eu acordei sozinha, Mia, pensei; mas sabia que o questionamento pouco tinha a ver com a verdade, não tinha todas as ramificações racionais que normalmente teria, era mais uma vontade inconsciente de estar junta do que de realmente saber, de ouvir o que já sabia da minha boca, e então me segurei; por algum motivo, agora que a tinha nos meus braços, a real é que pouco me importava com quem dormíamos quando não estávamos juntas, porque eu a queria ali, nós nos escolhíamos, de novo e de novo, e não quis lhe responder por impulso, uma vez na vida, notando os seus olhos já quase fechados sobre o meu ombro; olhei por cima do travesseiro e vi o relógio, que marcava 6:07, sabendo que eu tinha que acordar dali a menos de duas horas, aí puxei a Mia mais para perto e a abracei, com um carinho impensado – ...nada, vem. Vamos dormir, linda.

novembro 25, 2012

Vem então, caralho

Puta merda, respirei fundo e esfreguei a mão no rosto, desconcertada.
 
Não fala assim, desgraça, olhei de volta para a Mia. Observando-a colocar aquela sua boca ao redor do cigarro. E caralho, não queria me deixar levar de novo – mas quase conseguia sentir o seu calor ao redor dos meus dedos, numa lembrança nada silenciosa de dias antes. Da sua respiração ofegante contra a mesma porra de sofá onde estávamos sentadas agora, enquanto a música se misturava aos nossos gemidos, ao som do meu coração batendo forte no meu peito. Engoli seco. Senti a temperatura do meu corpo subir – “foi, é?”.
 
E a Mia sorriu. Aí tirou o filtro da boca, me encarando de volta:
 
_Tinha esquecido como era com você...
 
Maldição. Senti meu coração negociar com a minha cabeça e a situação começou a sair do meu controle. Numa curiosidade cretina. E olha, até que eu estava indo bem até então, não tinha intenção de realmente trair a Clara quando abri a porta para aquela desgraça de mulher, não de novo, mas... porra.
 
_Hum – apoiei a cabeça no encosto, virada para ela – E como que é comigo?
 
Perguntei, curiosa. Aí a Mia deixou um sorriso escapar no canto da sua boca. Eu já não conseguia tirar os olhos dela. Coloquei a mão sob minha própria camiseta, a deslizando lentamente pela minha barriga – numa vontade inconsciente de tocar a pele dela. Então a Mia se moveu na minha direção, devagar, deslizando os joelhos pelo sofá. E eu sabia o que ia acontecer a partir daí, inferno, assim como sabia dias antes. Ela subiu no meu colo, com o cigarro aceso entre os dedos. E eu deixei, cacete. Deixei.
 
Se curvou sobre meu rosto, como quem ia me beijar, mas sem realmente o fazer – com os antebraços apoiados no encosto atrás da minha cabeça. E seus lábios se entreabriram, me instigando. Filha da puta. Com a boca a centímetros da minha, naquele ir e vir delicioso, sabe como? Criando tensão. Nuns segundos que pareciam só aumentar a expectativa de um beijo entre nós. Naquele jogo de hesitação. E então respondeu, a meio centímetro de mim, sussurrando no meu ouvido – “você sabe como”.
 
E sem tirar os olhos dela por um segundo, já com um tesão desgraçado, comecei a abrir o meu cinto.

novembro 24, 2012

Ensemble rime avec désordre

_Ah, não quero?
 
Ri e a encarei de volta. Então, a Mia deixou as suas mãos escorregarem de leve pelo sofá, se aproximando casualmente de mim. Fica aí, desgraça.
 
_Não – me provocou.
_Sei.
_Liga lá, vai... – sugeriu baixinho, sorrindo – ...cancela.
_Não posso, Mia.
_Claro que pode.
_Não vou fazer isso, meu.
_Eu faço pra você... – brincou.
 
E eu achei certa graça na audácia dela. “Se aquieta, vai”, resmunguei, ainda determinada em terminar meu jantar e dar o fora dali. Continuei comendo e a Mia se reajeitou no sofá, um tantinho mais perto de mim. Depois mais um tanto. Foi se aproximando e arrancou um sorriso inconformado de mim. Mano, a encarei de volta, essa situação já tá absurda. Ela riu. E eu passei a mão no rosto, tentando manter a sanidade, me virando para continuar comendo. Mas aí a Mia chegou mais perto ainda, claro. E os meus olhos penetraram os seus, involuntariamente apaixonados. Cacete.
 
Comecei a ficar tensa. Então suas mãos ardilosas tiraram o prato do meu colo, sem pedir autorização, e o largaram na mesinha de centro, colocando as pernas em seguida sobre as minhas. Cada vez mais descobertas naquela camiseta preta, puta merda. Comecei a rir de novo e fiz um movimento, então, para pegar de volta o prato, me curvando na direção da mesa – mas suspirei na metade do caminho, bloqueada pelas suas pernas. Não posso nem comer agora? É assim?
 
A Mia arqueou a sobrancelha, me provocando. A minha lasanha esfriava à distância. Maldição. Sem pensar, pousei as mãos em seus tornozelos conforme encostava de novo no sofá. E ela me olhou, ali, com os dedos acidentalmente sobre a sua pele tatuada. Sorriu com o cantinho da boca, quase vitoriosa. E aí se reacomodou mais uma vez, ficando mais próxima ainda de mim. Então se espichou e alcançou o meu celular, que estava largado do outro lado do meu quadril no sofá.
 
_Que cê tá fazendo? – ri dela, sorrateiramente mexendo nas teclas, com a tela virada para si para que eu não visse.
_Avisando que cê não vai...
_Ah, tá! – ri mais ainda, esticando a mão para que me desse o telefone imediatamente – Vai, Mia, pode parar de graça...
_Não se preocupa... – ela sorriu, digitando – ...tá tudo sob controle.
_Mia...
_Relaxa, ninguém vai perceber. Tô escrevendo igual a você, ó!
 
Ah! Essa eu quero ver, me diverti, apoiando a nuca no encosto do sofá. E estiquei mais enfaticamente a mão para que me entregasse a droga do celular. Ela mandou que eu esperasse, disse que já estava terminando. “Cê não vai mandar isso”, a adverti, com uma das mãos ainda sobre suas pernas, rindo, “me dá o telefone, Mia”. E ela me entregou, sem valer um centavo, com a pontinha da língua entre os dentes.
 
_Que absurdo! – olhei para a Mia assim que li, com todo o meu desprezo, e ela riu – Eu não falo assim!
_Claro que fala! Como não? Olha aí... – apontou para a mensagem, ainda aberta nas minhas mãos, se divertindo com os meus modismos – ...“foi mal”, “mano”, “uma parada aí”.
 
Balancei a cabeça, indignada, me divertindo. Besta. E ela deitou levemente o corpo para trás, se apoiando sobre os seus cotovelos no sofá. Encarei as minhas mãos na sua perna e logo, ao lado, a pantera old school que ela tinha tatuada na canela. Uns centímetros de pele acima, vinha uma flor e então um escorpião. Estava com as pernas esticadas sobre o meu colo e a cabeça caída para trás, à toa. Os seus joelhos tinham uns hematomas roxos feios, já meio esverdeados, que só então eu reparei.
 
_E esse machucado todo aí, meu, o que aconteceu?
 
Passei os dedos sobre sua pele, carinhosamente. E ela sorriu.
 
_Hum. Foi a gente, aquele dia lá.
_A gente?!
_É...
 
Tirou as pernas de cima das minhas, achando graça e se curvando para pegar o meu maço sobre a mesa. Aí acendeu um cigarro e soprou a fumaça para o lado, concluindo com a maior naturalidade:
 
_...quando cê me comeu de quatro contra o sofá.