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fevereiro 28, 2013

Latitud 33

Coloquei o meu braço sobre os ombros da Clara, abraçando-a enquanto caminhava ao seu lado. As ruas de Palermo eram encantadoras à noite. Andamos de volta até a esquina onde deveríamos ter virado inicialmente, uma ruela de pequenas casas com paredes coloridas chamada Pasaje Santa Rosa. A Clara tagarelava o tempo todo e eu a ouvia, rindo – observando os contornos de grafitti se fundirem às trepadeiras unha-de-gato que cobriam as construções antigas.
 
_Espera um segundo – me pediu.
 
E entrou numa lojinha meio dessas de conveniência, de repente, me deixando na rua por um instante. Acendi um dos cigarros do maço e me sentei no meio-fio, observando os meus pés sobre os paralelepípedos no chão. A umidade do ar de Buenos Aires entrava fria nos meus pulmões. Fazia tempo que não me sentia tão plena, tão feliz assim. Pouco depois, a Clara voltou com duas garrafas de vinho nas mãos. Mais álcool?, achei graça, ainda embriagada de todas as Quilmes e doses de pisco que tomamos no bar. Sentou ao meu lado na calçada e colocou uma dentro da minha mochila, a outra na sua.
 
_Precisamos de vinho – justificou e eu arqueei as sobrancelhas na sua direção, achando exagero.
_Olha, não sei se...
_Estamos em Buenos Aires – argumentou, muito séria, com um lenço verde-escuro ao redor do pescoço – Acredite, precisamos de vinho.
 
Comecei a rir, colocando o cigarro de volta na boca. Tá bem. Ficamos em pé novamente e continuamos até a casa do amigo dela, um sobrado cor mostarda a algumas quadras dali. A Clara pegou a chave, que estava escondida embaixo de um vasinho, e entramos. O nosso quarto parecia menor que o meu em São Paulo, tinha uma cama de casal e um banheirinho meio claustrofóbico – mas, de alguma forma, não sei, era perfeito.
 
Largamos nossas mochilas no chão. E a Clara tirou uma foto minha, conforme eu abria o zíper da frente, agachada, à procura da garrafa de tinto. Ao contrário de mim, que andava por aí com o mesmo telefone velho há anos, o dela tinha uma câmera decente e já acumulava umas cinquenta fotos inúteis minhas desde que saímos do Brasil. “Para, meu”, eu ri. E a Clara revirou os olhos – “pode reclamar o quanto quiser, vou continuar tirando foto”. Com o vinho numa mão, tirei o celular dela e o larguei em cima da mochila no chão – “sei”.
 
Aí a beijei, demoradamente.
 
Abrimos o vinho com um saca-rolhas que ela roubou da cozinha do amigo. Larguei a rolha sobre a mesinha de cabeceira, ainda enfiada no saca-rolhas. E tomei um gole direto da garrafa – cacete, o vinho é bom mesmo. Então a beijei, de novo, com uma vontade embriagada. Bebi outro gole. Mais um beijo, outro gole. Nossos beijos tintos se tornaram amassos, que logo tornaram-se muitos. Comecei a tirar a blusa dela, os meus tênis, entre goles e mais goles, escorrendo pelo nosso queixo, nosso pescoço, tirando o lenço de ao redor dela, nos agarrando, nuns movimentos cada vez mais desinibidos pelo álcool.
 
Descabelada e só de calcinha, a Clara se sentou na cama na minha frente, abrindo o meu jeans. E as pernas. Dei mais um gole, ainda em pé, a encarando ali. E então lhe entreguei a garrafa, tirando a minha camiseta enquanto ela também bebia do gargalo. Subi em cima do seu corpo, beijando cada centímetro da sua pele. Apanhei a garrafa para outro gole. E me curvei para beijá-la, perigando manchar toda a cama com vinho. Suas pernas me apertaram, agarradas ao redor do meu corpo. Nos divertindo e nos beijando, com uma fome violenta.
 
Alcancei o lenço mais adiante no colchão. Mal intencionada. E fui escorregando o tecido pelo decorrer dos seus braços, conforme os erguia sobre a sua cabeça. Até os seus pulsos. Então os envolvi – uma mão, depois a outra –, a prendendo contra a armação da cama. Dei um pouco do vinho na sua boca. E aí nos beijamos de novo, mais forte. Com voracidade. Fui arrancando sua calcinha e derramando tinto sobre as suas pernas, bebendo direto da sua pele. Lambendo a dobra no alto das suas coxas, manchadas, sentindo-a se contorcer. Então virava mais e o líquido escorria pelas laterais do seu corpo, pela sua cintura. Ia consumindo cada gota nela, sujando toda a cama. Subi para seus seios, mordi sua cintura. A Clara se contorceu, tensionando o tecido. O nó apertava os seus pulsos, marcando a pele ao redor.
 
Ah. Comer a Clara em Buenos Aires ia levar horas. E eu queria que ela prestasse atenção em cada segundo delas.

fevereiro 25, 2013

Como te extraño, Clara

Segurei o meu fôlego. Há vinte e sete horas que esperava por qualquer oportunidade que fosse para soltá-lo. Mas não deu – primeiro eram as mochilas e então os documentos ou os meus pais, as pessoas me ligando, o banco, os extratos, os cálculos, as mil anotações e os horários antecipados no trabalho, era tudo. Eram todas essas coisas e tempo nenhum para respirar. Cacete. Ainda segurava o fôlego e o nosso vôo já chegava ao fim.
 
O alto-falante avisou que o pouso seria em poucos minutos. E o meu estômago se revirou. Merda, merda. Eu estava consideravelmente bêbada – meti goela abaixo todo álcool em que consegui colocar as minhas mãos, sem levantar suspeita nas aeromoças de que estava exagerando, naquelas piores duas horas e meia da minha vida. Fingia com muito esforço para a Clara que não notasse que eu estava com tanto medo. De estar a dez quilômetros do chão, sabe, puta merda. Minha dignidade se desmanchava no desespero de sair logo daquela aeronave, odiando cada segundo daquela descida que não acabava nunca.
 
Argh.

A Clara fazia como se não percebesse, apenas segurando a minha mão e ocasionalmente rindo – e o meu estômago se contorceu por completo nos últimos segundos antes de tocarmos o solo. Sequer dei-me conta de que chegava em outro país. Tudo o que queria era me enfiar em um meio confiável de transporte. Digo, um meio conhecido de transporte. Saímos pelo corredor e observei as vidraças do aeroporto, a noite escura do lado de fora. Passamos reto pela esteira com as malas, já que nossas mochilas tinham ido conosco no avião. Era um pouco estranho ouvir as pessoas falando em outra língua nos anúncios do saguão e ao redor de nós.
 
Fui atrás da Clara, sem ideia do que fazer em seguida. Arranjamos passagens de ônibus para o centro – outra viagem de quase uma hora – e de lá, pegamos um táxi até a Plaza Serrana. Observei as ruas durante o percurso, admirada. Ainda não me ocorria o quão longe eu estava de São Paulo, apenas me parecia um outro lado realmente descolado do universo. Descemos já lá pelas onze, com as mochilas ainda nas costas, em frente a uma calçada cheia de mesas, onde argentinos barulhentos bebiam num certo caos ordenado. Era excitante.
 
Meu deus, logo soube, eu vou me apaixonar insanamente por essa cidade.

Só então comecei a sentir um formigamento, dando-me conta de onde estava – e com quem. A Clara me puxou para dentro de um bar, meio boêmio e alternativo, com as paredes sujas e garotas com mullets ou cabelos presos sobre a cabeça, meio desarrumados. Tomamos a nossa primeira dose sem nem ter visto coisa alguma de Buenos Aires. “Amanhã vamos ter tempo”, a Clara riu e nos pediu mais duas cervejas portenhas, direto no balcão. Tudo o que saía da sua boca para os atendentes me confundia, rápido demais para que eu acompanhasse, numa associação fajuta com o português.
 
Eu ainda segurava o fôlego.
 
Bebemos alguns copos. E ela falava, animada, me ensinando diferentes expressões para dizer “sapatão” por toda a América Latina – chonga, tortillera, torta, camiona, lencha, machorra, fleta, arepera, marimacho, pata, lela, maricona, cachapera, bollo, bollera, tijetera, lechuga e até waffle, a lista não acabava nunca. E por algum motivo, que eu achei realmente maravilhoso, metade das traduções tinham a ver com comidas.
 
_É que nosotras, sabe, las lesbianas da América Latina... – a Clara fez graça, piscando para mim – ...nos gusta comer.
_Ah, é?
 
Puxei ela na minha direção, rindo, num beijo com gosto de Quilmes. As pessoas ao nosso redor tinham ares de intelectuais, meio de artistas incompreendidos, sabe, desses que ouvem coisas como Bonobo. A Clara fazia sentido ali. Notei logo nos primeiros minutos, com os olhos admirados voltados para ela, enquanto ela puxava assunto com três caminhoneiras na mesa ao lado. Explicou que eu não falava espanhol, mas uma delas tentou falar comigo mesmo assim, me perguntando qualquer coisa num ritmo bastante lento – e eu olhei para a Clara, meio sem jeito. Me ajuda, implorei com os olhos.
 
A Argentina parecia me tornar mais comedida. E bem menos cara de pau.
 
Ficamos até a uma. Uma-e-alguma-coisa. As garotas nos chamaram pra uma balada a algumas quadras dali e a Clara me perguntou se eu queria ir, respondi que não – preferia ir conhecer o colchão da casa em que íamos ficar. Nunca tinha transado fora do país e estava louca pra levar ela pra cama. “Te ensino todas as sacanagens que sei em espanhol”, a Clara sussurrou, me puxando pela jaqueta, assim que nossas novas amigas foram na outra direção.
 
Começamos a andar pela calçada. A casa do amigo dela ficava a poucas quadras e estava vazia – ele era barman, à noite. Chegando na primeira esquina, no entanto, a Clara me puxou pela mão e fez atravessar noutra direção. “Vem cá”, sorriu, “quero te mostrar uma coisa rapidinho”. O ar estava úmido. As ruas eram iluminadas com charme e preenchidas por fileiras de árvores, o que deixava o ambiente ainda mais frio. A Clara se adiantou alguns passos e tive que correr para alcançá-la.

_TÁ LOUCA??! – a abracei, num apego bêbado – Me larga aqui e eu não volto pra casa nunca mais, meu. Não sei falar nem o nome da rua que estamos!

Ela riu e parou em frente a outro bar, erguendo os braços abertos sobre a cabeça.
 
_Aqui, olha! – anunciou, empolgada.
_Mano, cê quer beber mais?!
_Não – riu – O nome do bar!
_Como t...
_Como te extraño, Clara – ela corrigiu, enquanto eu lia o letreiro numa pronúncia desajeitada – Quer dizer “como sinto sua falta, Clara”.
_Esse é o nome do bar??
_É – sorriu, acendendo um cigarro do maço que compramos na saída do aeroporto – Fiz uma festa aqui, uma vez. Eu brinco que é o “meu” bar em Buenos Aires.
_Porra... – sorri, numa felicidade boba de conhecer todos os cantos da cidade que ela amava – ...que animal.
 
Deu dois passos na minha direção, me oferecendo o cigarro aceso. E me olhou nos olhos com uma desinibição natural, me assistindo dar um trago com todas as suas más intenções. Quis beijá-la na mesma hora – mas só sorri, com as mãos ao redor da sua cintura, fascinada pela forma como era capaz de olhar tão dentro de mim.
 
_Quer dizer, então... – falei baixinho, chegando perto da sua boca – ...que cê nem foi ainda e eu já tenho que sentir a sua falta?
_“Ainda”? – ela riu.
_Nunca.

fevereiro 21, 2013

01 nova mensagem

Me dsclp, ñ qria brigar... fiquei meio atravessada :( qria te ver no seu aniversario, meu, mas tb entendo. me perdoa?” – li a mensagem da Mia no meio do set, enquanto falava com uma das assistentes de produção no rádio, me perdendo por um segundo no que estava dizendo. Não queria ir viajar com aquela discussão idiota na garganta. Sorri.

fevereiro 19, 2013

O telefone sem fio

Eu soube minutos depois, quando me preparava para sair para uma locação. “Vc vai pra argentina com a clara???”, a Mia me mandou por SMS e eu suspirei, lendo a mensagem de canto de olho, enquanto finalizava a papelada da gravação. Saí para a rua uns vinte minutos depois, ainda sem ter respondido. E aí outra mensagem chegou, já nos primeiros passos que dei na calçada – “valeu, hein, c ñ vai nem me responder??”.
 
Merda.
 
Puxei o maço do bolso, desconcertada, e acendi um cigarro na busca de um pouco de coragem. Aí disquei o seu número, conforme cruzava a Manoel da Nóbrega. Soltei uma tragada, ouvindo o telefone tocar do outro lado da linha. Qual é, garota, eu sei que você tá perto do celular. Mas ela só atendeu na segunda vez que liguei, uns cinco toques depois.
 
_Fala.

Parei a alguns metros da entrada do metrô, sem querer perder o sinal. E apoiei a mão livre no vidro do lado de fora da estação Brigadeiro. “Mia” – falei meio desajeitada, com o cigarro ainda na boca. “Fala”, repetiu, nitidamente irritada. Suspirei. Soltei a mão do vidro, me virando para encostar a lateral do corpo ali, e tirei o filtro dos lábios.

_É só uma viagem, Mia...
_Não é “só uma viagem”! – me interrompeu, ríspida.
_Cara, nã... – respirei fundo – ...não faz assim.
_...
_Mia.
_Foda-se. Eu não ligo, pode ir viajar com a merda da Clara, fica à vontade!
_Para com isso, meu. Eu... e-eu nem sei por que cê tá brava, eu sequer planejei a porra da viagem! Não tava sabendo de nada, descobri hoje. Não é como se...
_Você não me deve uma explicação – me cortou, de novo.
_Linda, por favor.
_Não, quer saber?! DEVE, SIM! – aumentou o tom de voz, mudando de postura de repente – COMO VOCÊ VAI ENTRAR NUMA PORRA DUM AVIÃO COM ELA, COM TUDO O QUE TÁ ACONTECENDO ENTRE A GENTE?? NÃO SEI, MANO, NÃO SEI O QUE CÊ ACHA QUE TÁ FAZENDO!
_COMO “O QUE EU ACHO QUE TÔ FAZENDO”? É SÓ UMA PORRA DE UMA VIAGEM! – me irritei – NINGUÉM TÁ CASANDO, CACETE, EU VOU E EU VOLTO! É SÓ ISSO!
_AH! É ISSO QUE VOCÊ ACHA QUE É?! “SÓ” ISSO??
_E O QUE TEM DEMAIS?! – retruquei e aí respirei fundo, tentando me acalmar – Mia, escuta, ela me deu de presente a parada, meu. Eu vou fazer o quê?! DIZER NÃO?!
_Não. Não, não, você tá certa mesmo... – disse, com ironia – ...vai lá. Se diverte!

Àquela altura, eu sequer sabia por que estava brigando, passando as mãos compulsivamente no rosto, esfregando os olhos em agonia. Bem na frente da estação do metrô, com o celular no ouvido e com o cigarro entre os dedos. Traguei mais uma vez, nervosa, soltando a fumaça em seguida. E aí tentei argumentar, com paciência:

_Eu não tô fazendo de propósito, Mia.
_...
_Não faz isso comigo, vai...
_EU QUE TÔ FAZENDO?? – ela se ofendeu – EU???  
_Mano, eu ganhei as passagens! Não foi planejado! Fiquei sabendo hoje de manhã, meu... E eu quero ir, Mia. Eu quero. Eu nunca fui, cara!
_E VOCÊ NÃO SE SENTE MAL EM ACEITAR, ENTÃO? – me provocou, perdendo um pouco a mão na discussão – É ISSO? CÊ VAI MESMO VIAJAR COM A PORRA DA CLARA ENQUANTO ME COME DIA SIM, DIA NÃO?! NÃO SE SENTE NEM UM POUCO CULPADA??
_CLARO QUE ME SINTO CULPADA, MIA! CLARO! COMO VOCÊ ACHA QUE EU ME SINTO? – comecei a me irritar de verdade, brigando de volta – MAS EU AMO A CLARA, PORRA. E SIM, EU QUERO VIAJAR COM ELA! QUERO! CÊ QUER MESMO ENTRAR AÍ? PORQUE SE QUER FALAR DE RELACIONAMENTO, A GENTE PODE FALAR DO SEU TAMBÉM, INFERNO!
_Cê é muito cara de pau, puta merda.
_“Eu”, né? – retruquei, irônica – “Eu”.
 
Traguei duas últimas vezes – a segunda um tanto mais demorada –, já terminando o cigarro. E aí joguei a bituca na calçada, pisando na ponta ainda acesa, irritada. As pessoas passavam atrás de mim na rua e entre nós seguia o silêncio. Aquela discussão estava me tirando do sério. Cacete. Meti a mão no bolso, procurando pelo meu bilhete. Precisava chegar logo na locação, tinha mil coisas para fazer, ainda mais se ia pedir para sair mais cedo no dia seguinte, mas não queria desligar sem antes me resolver com a Mia.
 
Então, tentei me acalmar. Abaixando a cabeça para falar:
 
_Linda, por favor. Você sabe que não é de propósito... – repeti, suspirando – ...não tô tentando te machucar.
_Eu, e-eu não disse que tá me machucando, não é isso...

De repente, me diverti com a sua hesitação, eis que surge o orgulho.

_...eu só não sabia que, q-que você ia. Foi inesperado. Só isso.
_Tá – ri quieta, achando graça.

fevereiro 11, 2013

Vinho & alfajores

_Não, mãe... mãe, escuta... – interrompi seu monólogo que já durava uns bons minutos, fumando um cigarro em frente à produtora com o celular colado no ouvido – Preciso falar com vocês. Escuta, eu vou tá fora no fim de semana.
_Como “fora”? Fora de onde?
_De São Paulo.
_Pra onde você vai? Você não vem mais no domingo?
_Não. Eu e a Clara, a gente... v-vai viajar. Desculpa não ter avisado, é que foi surpresa, só fiquei sabendo agora.
_Mas viajar pra onde? Eu já combinei com a sua avó, a gente encomendou o bolo, seu pai chamou a família inteira pra vir. Vocês não podem ir no outro?
_Não dá – e naquele instante, dei graças aos céus que a Clara me tinha dado a desculpa perfeita para não ir àquela reunião sem sentido de almoço com a minha família, tragando o cigarro já quase acabado na calçada suja da Brigadeiro – As passagens já tão compradas, mãe. Mas eu passo aí durante a semana e a gente janta ou faz alguma outra coisa, sei lá.
_Eu não acredito nisso! – bufou do outro lado da linha e então se recuperou, perguntando pela terceira vez o que eu estava evitando responder – Mas, finalmente, cês vão pra onde?
_A gente... vai... pra Argentina.
_O QUÊ?!
_É. Buenos Aires – murmurei, já de olhos fechados, à espera do surto.
_VOCÊ PERDEU A CABEÇA?! NÃO!! VOCÊ NÃO VAI VOAR PRA FORA DO PAÍS, MINHA FILHA, SEM NEM SE PROGRAMAR DIREITO, ONDE ESSA MENINA VAI TE ENFIAR??? NEM PENSAR! E VOCÊ LÁ TEM DINHEIRO PRA ISSO?!?
_Mãe...
_VOCÊ NUNCA SUBIU NUM AVIÃO NA SUA VIDA! ESSAS COISAS TÊM QUE SER PENSADAS ANTES, FILHA. NÃO É SIMPLESMENTE PEGAR E IR, É OUTRO PAÍS! E SE ACONTECE ALGUMA COISA ENQUANTO VOCÊS TÃO LÁ? AS DUAS, SOZINHAS... – ouvi-a afastar-se do telefone e chamar aos berros pelo meu pai, inconformada.
_Mãe... mãe! Calma.
_Me passa o telefone dessa Clara.
_Cê não vai falar com a Clara, sossega o facho! – eu ri, revirando os olhos – Não tem nada demais, meu. A Clá já foi um bilhão de vezes, todos os amigos dela são de lá! Olha, vai ficar tudo bem, a gente vai amanhã direto do trampo e volta no domingo. Vou fazer uma mochila hoje à noite...
_Ah, não sei. Não sei, não. Vê lá onde você vai se meter, hein, minha filha...
_Relaxa, mãe. Escuta... – soltei a fumaça e joguei a bituca adiante na calçada – ...preciso entrar aqui na produtora.
_Tá. Me liga hoje à noite, quero saber melhor dessa história...
_Tá, tá. Vou lá, tá? Beijo.
_Não vai aprontar você, hein?
_Não vou, meu – ri.
 
Ouvi sua voz diminuir, já afastando o celular do ouvido. E desliguei o telefone, entrando na produtora. Aí mandei uma mensagem para a Marina e então para o Fer – que, como todo ano, tinha ignorado meus pedidos e organizado alguma comemoração com nossos amigos no fim de semana. A Clara me contou que foi convidada uns dias antes e ficou na dúvida se comentava sobre a viagem com ele, com receio de estragar a surpresa. Sendo justa, o Fernando era meio maria-do-bairro – tinha amigos demais e uma tendência inocente à fofoca. Ele me respondeu quase imediatamente naquela manhã, depois do meu SMS, rindo e admitindo a culpa pela festa.
 
E antes de eu sequer chegar na minha mesa, o meu celular começou a vibrar com várias mensagens da minha ex também. “Ñ acredito q vc vai viajar!! alias q VCS vao viajar JUNTAS! Q LINDO!!!”, ela me escreveu de volta, já empolgada, emendando um SMS que dizia “assim, achei uma afronta? achei. pq vc ñ mexia essa bunda pra ir nem na padaria cmg, sabe. c eh uma ridícula. To mto feliz por vc, mas vc é uma ridícula, rs”, meio em tom de revolta, meio brincando, e depois um “ai, mas BUENOS AIRES, flor! Nossa, ñ acredito!! Vai ser incrível d+”. E por fim, completou com um: “boa viagemmmm pra vcs! :)” e eu ri sozinha do escândalo todo.
 
Era apenas uma questão de tempo agora para que a Mia ficasse sabendo – o que eu queria postergar o máximo que pudesse. Mas sabia que o Fer ia acabar contando, a não ser que eu especificamente pedisse para que não o fizesse. E eu obviamente não podia dar tanta bandeira assim. Melhor contar eu mesma, decidi. O problema é que, logo que me respondeu e antes que eu pudesse sequer terminar a minha lista de tarefas do dia, o Fer ligou para meia São Paulo avisando sobre o cancelamento da festa.
 
E a linha inevitavelmente cruzou Higienópolis.

fevereiro 04, 2013

¡Yo la tengo!

E então, eu li.

_Não posso aceitar isto, Bi... – levantei o corpo, um pouco séria, sentando-me no colchão com ela ainda no colo.
_Deixa de ser besta, claro que pode!
_Não. Não posso, porra. É muito!
_Mano, não é muito... – a Clara riu.
_Cê ganha menos do que eu, Clá, tá louca? Como cê vai pagar por isso trabalhando naquela loja? – me preocupava, com os olhos nela e o papel dobrado em mãos, sentindo meu coração acelerar.
_Relaxa, eu peguei a mais barata de todas. Faz um mês que tá pago! E nem paguei a minha, meu, tô indo com as milhas dos meus pais.
_Ainda assim, linda! É muita coisa!
_Não é. Vamos ficar na casa dum amigo! É só um fim de semana, vai...
_Mas, meu...
_Não é muita coisa, Bo – ela segurou o meu rosto e riu – Eu sei que parece, mas é porque você nunca foi. Cara, eu cresci indo pra lá nas férias... e sério, não tem nada demais!
_Clara... – eu ri, meio nervosa – ...tem, sim.
_Não tem. Para! Só aceita a merda do presente logo!
_...
_Eu quero ir, Bo – me deu um selinho, ainda rindo – Eu quero ir com você.

Observei-a por um instante, com a absoluta consciência de que aquilo que “não era nada” para ela também era possivelmente a maior de todas as coisas que eu já tinha feito com alguma garota. E normalmente, eu seria a primeira a pegar minhas tralhas e cair na estrada com ela – eu amava aquele seu jeito. Mas a Clara já tinha ido até Machu Picchu de carona, fugido para o Uruguai só para ficar com uma mina e eu adorava escutar as suas aventuras porraloucas por noites inteiras, com suas mãos nas minhas e nossas pernas entrelaçadas no sofá da sala – mas eu nunca tinha saído do estado de São Paulo. Do estado, caralho. É claro que ela achava normal.
 
Mas o meu estômago foi até a boca.

fevereiro 01, 2013

Impressões

O problema é que terminar com a Mia, ou a Clara, estava fora de questão – amava as duas demais para isso. E seguia perigosamente arrastando a situação, implorando para que ainda tivesse mais uma semana. E outra, antes de dar merda. E assim os dias foram passando nos arredores da Frei Caneca, entre gravações cansativas na produtora e fodas contra a parede do quarto e os mesmos erros emocionais, até chegar o dia em que fui acordada aos pulos pela Clara.
 
Era uma quinta-feira de manhã. E ela literalmente pulou em cima da minha barriga, com tudo, enquanto eu ainda dormia, passando uma perna de cada lado do meu corpo. Argh. Tinha passado a noite comigo no apartamento e agora se jogava empolgada sobre o meu corpo ainda desacordado. Abri os olhos, num puta susto, e a vi só de camisetão, num trapo velho meu, toda animada às fucking 7 da madrugada. Mas que diabos de bicho te picou?, fiz uma careta, desnorteada, esfregando o rosto com o antebraço.
 
Aí senti a sua mão me tirar o braço da cara e a olhei, atordoada. Eu não tinha um vestígio sequer de roupa sobre o meu corpo e percebia agora, com frio, que ela tinha empurrado o lençol para o pé da cama. Devooolve, tateei a mão pelo colchão, fazendo certa manha. E a Clara riu, indiferente a todo o meu sofrimento magistralmente expresso naqueles poucos segundos de interação matinal. Meu deus, respirei fundo, que sono do cacete.

_Bom... – tirou de trás das costas um pedaço de papel dobrado ao meio, numa das suas mãos – ...feliz aniversário, Bo!

Ergui parte do corpo, apoiando os cotovelos no colchão. Espera.
 
_Mas cê sabe que é só no domingo, não? – ri.
_Sei, besta. Mas isso precisa ser hoje!
 
Precisa? E a Clara me entregou a folha de sulfite, curvando-se para me dar um beijo conforme eu pegava o meu presente dobrado entre seus dedos. Eu tinha aversão a aniversários. Fosse pelo meu azar recorrente na data ou por toda interação social a que me via obrigada, atendendo o telefone a cada cinco minutos para agradecer parentes que eu não via há anos pelo simples fato de existir um dia a mais do que o anterior. Não via motivo para comemorar – a não ser que fosse o dos outros.
 
Mas lá estava a Clara, plantada sobre a minha pessoa, assim que levantou, com um sorriso sincero no rosto e aguardando a minha reação. Isso eu podia apreciar. Presentes, presença. Ela. Era o que fazia sentido naquele circo todo. Então sorri de volta, achando certa graça na sua ansiedade, e abri o papel na expectativa de encontrar um cartão rabiscado naquela mesma manhã ou algo assim.

_O que é isso? – perguntei, sem entender, vendo um monte de informação impressa em inglês.
_Lê aí.