Segurei o meu fôlego. Há vinte e sete horas que esperava por
qualquer oportunidade que fosse para soltá-lo. Mas não deu – primeiro eram as mochilas
e então os documentos ou os meus pais, as pessoas me ligando, o banco, os
extratos, os cálculos, as mil anotações e os horários antecipados no trabalho,
era tudo. Eram todas essas coisas e tempo nenhum para respirar. Cacete. Ainda
segurava o fôlego e o nosso vôo já chegava ao fim.
O alto-falante avisou que o pouso seria em poucos minutos. E o meu
estômago se revirou. Merda, merda. Eu
estava consideravelmente bêbada – meti goela abaixo todo álcool em que consegui
colocar as minhas mãos, sem levantar suspeita nas aeromoças de que estava
exagerando, naquelas piores duas horas e meia da minha vida. Fingia com muito
esforço para a Clara que não notasse que eu estava com tanto medo. De estar a dez quilômetros do chão, sabe, puta merda. Minha
dignidade se desmanchava no desespero de sair logo daquela aeronave, odiando
cada segundo daquela descida que não acabava nunca.
Argh.
A Clara fazia como se não percebesse, apenas segurando a minha mão
e ocasionalmente rindo – e o meu estômago se contorceu por completo nos últimos
segundos antes de tocarmos o solo. Sequer dei-me conta de que chegava em outro
país. Tudo o que queria era me enfiar em um meio confiável de transporte. Digo,
um meio conhecido de transporte. Saímos pelo corredor
e observei as vidraças do aeroporto, a noite escura do lado de fora. Passamos
reto pela esteira com as malas, já que nossas mochilas tinham ido conosco no
avião. Era um pouco estranho ouvir as pessoas falando em outra língua nos
anúncios do saguão e ao redor de nós.
Fui atrás da Clara, sem ideia do que fazer em seguida. Arranjamos passagens
de ônibus para o centro – outra viagem de quase uma hora – e de lá, pegamos um
táxi até a Plaza Serrana. Observei as ruas durante o percurso, admirada. Ainda
não me ocorria o quão longe eu estava de São Paulo, apenas me parecia um outro lado
realmente descolado do universo. Descemos já lá pelas onze, com as mochilas ainda
nas costas, em frente a uma calçada cheia de mesas, onde argentinos barulhentos
bebiam num certo caos ordenado. Era excitante.
Meu deus, logo soube, eu vou me
apaixonar insanamente por essa cidade.
Só então comecei a sentir um formigamento, dando-me conta de onde
estava – e com quem. A Clara me puxou
para dentro de um bar, meio boêmio e alternativo, com as paredes sujas e garotas
com mullets ou cabelos presos sobre a cabeça, meio desarrumados. Tomamos a
nossa primeira dose sem nem ter visto coisa alguma de Buenos Aires. “Amanhã
vamos ter tempo”, a Clara riu e nos pediu mais duas cervejas portenhas, direto
no balcão. Tudo o que saía da sua boca para os atendentes me confundia, rápido
demais para que eu acompanhasse, numa associação fajuta com o português.
Eu ainda segurava o fôlego.
Bebemos alguns copos. E ela falava, animada, me ensinando diferentes
expressões para dizer “sapatão” por toda a América Latina – chonga, tortillera,
torta, camiona, lencha, machorra, fleta, arepera, marimacho, pata, lela,
maricona, cachapera, bollo, bollera, tijetera, lechuga e até waffle,
a lista não acabava nunca. E por algum motivo, que eu achei realmente
maravilhoso, metade das traduções tinham a ver com comidas.
_É que nosotras, sabe, las lesbianas da América Latina... – a Clara fez graça, piscando para mim – ...nos gusta comer.
_Ah, é?
Puxei ela na minha direção, rindo, num beijo com gosto de Quilmes.
As pessoas ao nosso redor tinham ares de intelectuais, meio de artistas
incompreendidos, sabe, desses que ouvem
coisas como Bonobo. A Clara fazia sentido ali. Notei logo nos primeiros minutos,
com os olhos admirados voltados para ela, enquanto ela puxava assunto com três caminhoneiras
na mesa ao lado. Explicou que eu não falava espanhol, mas uma delas tentou
falar comigo mesmo assim, me perguntando qualquer coisa num ritmo bastante
lento – e eu olhei para a Clara, meio sem jeito. Me ajuda, implorei com os
olhos.
A Argentina parecia me tornar mais comedida. E bem menos cara de
pau.
Ficamos até a uma. Uma-e-alguma-coisa. As garotas nos chamaram pra
uma balada a algumas quadras dali e a Clara me perguntou se eu queria ir, respondi
que não – preferia ir conhecer o colchão da casa em que íamos ficar. Nunca tinha transado fora do país e estava
louca pra levar ela pra cama. “Te ensino todas as sacanagens que sei em espanhol”,
a Clara sussurrou, me puxando pela jaqueta, assim que nossas novas amigas foram
na outra direção.
Começamos a andar pela calçada. A casa do amigo dela ficava a
poucas quadras e estava vazia – ele era barman, à noite. Chegando na primeira esquina,
no entanto, a Clara me puxou pela mão e fez atravessar noutra direção. “Vem cá”,
sorriu, “quero te mostrar uma coisa rapidinho”. O ar estava úmido. As ruas eram
iluminadas com charme e preenchidas por fileiras de árvores, o que deixava o
ambiente ainda mais frio. A Clara se adiantou alguns passos e tive que correr
para alcançá-la.
_TÁ LOUCA??! – a abracei, num apego bêbado – Me larga aqui e eu
não volto pra casa nunca mais, meu. Não sei falar nem o nome da rua que estamos!
Ela riu e parou em frente a outro bar, erguendo os braços abertos
sobre a cabeça.
_Aqui, olha! – anunciou, empolgada.
_Mano, cê quer beber mais?!
_Não – riu – O nome do bar!
_Como t...
_Como te extraño, Clara – ela corrigiu, enquanto eu lia o
letreiro numa pronúncia desajeitada – Quer dizer “como sinto sua falta, Clara”.
_Esse é o nome do bar??
_É – sorriu, acendendo um cigarro do maço que compramos na saída
do aeroporto – Fiz uma festa aqui, uma vez. Eu brinco que é o “meu” bar em
Buenos Aires.
_Porra... – sorri, numa felicidade boba de conhecer todos os cantos
da cidade que ela amava – ...que animal.
Deu dois passos na minha direção, me oferecendo o cigarro aceso. E
me olhou nos olhos com uma desinibição natural, me assistindo dar um trago com todas
as suas más intenções. Quis beijá-la na mesma hora – mas só sorri, com as mãos ao redor da sua cintura, fascinada pela
forma como era capaz de olhar tão dentro de mim.
_Quer dizer, então... – falei baixinho, chegando perto da sua boca
– ...que cê nem foi ainda e eu já tenho que sentir a sua falta?
_“Ainda”? – ela riu.
_Nunca.