...
...abri os olhos, sentindo um chuvisco respingar gelado na
minha cara, amassada contra o jeans do Fer. Caralho, o que aconteceu?
Suas pernas estavam largadas num chão imundo e eu senti minha cabeça
densa, apoiada no seu colo. Estava morrendo de frio. Como se todo sangue
tivesse sido drenado das minhas veias, deitada na calçada suja da rua paralela
da Trackers, com o braço contra um concreto que provavelmente já tinha sido
mijado incontáveis vezes. Argh. Senti a repulsa correr sob minha pele, num
impulso de me levantar dali, mas não conseguia mover um músculo sequer sem toda
aquela tequila e sei-lá-mais-o-quê se revirar dentro de mim. Prestes a sair pela
minha garganta, de novo.
De novo?
É. Não fazia ideia. Era como se uma parte da noite
tivesse sido apagada da minha memória – inferno, eu não lembrava de
porra nenhuma. Meu corpo doía por dentro e minha boca estava amarrada, com
gosto de vômito. Eca. Ainda me sentia embriagada, completamente chapada.
Apoiei a mão na perna do meu amigo, me erguendo com muito esforço até encostar contra
a parede pichada, me sentando. O Fer me observou com um olhar preocupado, se
esforçando para se manter minimamente sóbrio consciente. Deve ter me
arrastado até aqui para, não sei, pensei, com certa dificuldade, para eu,
e-eu vomitar? Sei lá.
Ele estava igualmente fora de si – provavelmente tinha
vomitado junto. Colocou o braço ao redor dos meus ombros e eu apoiei a cabeça
nele, sentindo um vento gelado soprar a garoa pra cima de nós. O breu da
madrugada já começava a se clarear aos poucos, no trechinho de céu que dava
para ver entre os prédios antigos da República. Ficamos sentados ali num estado
quase contemplativo, bastante bêbados. Metidos nas nossas próprias viagens. Me
passavam pensamentos aleatórios pela cabeça, dispersos, se confundindo com as
luzes que dançavam refletidas no prédio em frente à Trackers, deslizando pelos
meus olhos em meio aos graffitis.
_V-você... – respirei fundo e perguntei, sem pensar – ...você sente
falta dela?
_Hum?!
_...sente?
_De quem?
_Da Mia... – murmurei, confessando o seu nome em meus pensamentos – ... cê... n-num pensa nela?
O Fer se virou para mim, largando a cabeça contra a parede, e me
encarou por um instante, como se não entendesse por que diabos eu estava
falando daquilo naquele momento. Tinha os olhos exaustos.
_Não.
Fiquei encarando ele, acima de mim, ali, ainda com o rosto apoiado
em seu ombro. Então a expressão nos seus olhos mudou e ele suspirou, com as
pálpebras pesadas.
_Sei lá, a, a real é que... – falou baixo, arrastado – ...q-que sim,
sinto. Pra caralho.
_Hum.
Voltei o olhar para os pôsteres colados na parede à frente. Lambes
de festas. Cartazes rasgados de lojas de ouro. Adesivos desbotados. E pixos. Não
quis falar nada. Para não confessar que talvez eu, no fundo de toda aquela
bagunça dentro de mim, também sentia. Senti o meu interior vazio. Num lapso
indesejado de consciência, bêbada demais para lidar com aquilo. Podia ouvir o
Fer respirar ao meu lado, com o seu braço ao redor de mim, repentinamente introspectivo.
Ambos quietos.
É... então
é assim.
_Hum?!
_...sente?
_De quem?
_Da Mia... – murmurei, confessando o seu nome em meus pensamentos – ... cê... n-num pensa nela?
_Hum.
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