O som agora estava mais baixo. E o cômodo parecia tomado pela imobilidade
da madrugada. Seguíamos, porém, no mesmo ritmo – rindo e embriagadas. Eu e a
Mia conversávamos lado a lado no chão. Entrincheiradas frente ao sofá, que dava
de costas para a porta do quarto do Fer. Ao final do corredor. Em suas mãos, a
Mia enfileirava os vinis, sentada sobre os próprios pés enquanto falava e eu a
escutava, rindo às vezes. Tinha a minha cabeça apoiada no assento do sofá e os
olhos distraídos pelo teto branco, completamente chapada. Nos divertíamos, não sei explicar, falando uma asneira
atrás da outra. E eu fechei os olhos, em lassidão.
_Não queria que a noite terminasse... – ela disse.
Aí senti o tecido do sofá franzir, fazendo notar a sua presença ao
meu lado. A minha mente girava, a esmo, com as pálpebras coladas em si; meio no
escuro. O que eu tô fazendo, meu deus.
A Mia seguiu falando, um tanto emocional. As mangas da minha camiseta estavam
enroladas sobre os meus ombros e, de repente, o seu braço tocou a minha pele. Sabe
quando a sua percepção fica aguçada? Os sons e as sensações pareciam uma
viagem à parte – dentro de uma brisa particularmente boa, largada no chão da
sala. Percebi as pontas do seu cabelo moverem-se, sutis, ao meu lado. E a Mia divagava
ainda, tão bêbada quanto eu.
_...não quero que chegue amanhã, sabe. Não quero! Argh... mano,
por quê?! – se chateava – Por que o Fê tem que se mudar?! Que inferno. Não vai
ser a mesma coisa mais, vai ser estranho... vir para a Augusta, sabe, sem vir
aqui. O apê é a minha segunda casa, pô. Eu gosto tanto dessas quatro paredes, tanto...
_Mas você não precisa deixar de vir, meu – intervi, alcoolizada –
Cê pode me visitar quando quiser, porra. Só passar aí...
A real é que eu estava tão preocupada
com a saída do Fer que sequer tinha me dado conta de que aquilo
também tirava a Mia do meu apartamento. Puta merda. Silenciosamente, aquilo
me abalou um pouco. Não sei bem. Era como se tudo o que eu conhecia,
tudo a que tinha me acostumado naqueles anos, estivesse mudando. E me dava uma vontade
irracional de me segurar ali, no presente, por quanto tempo pudesse.
_Ah, é! – a Mia riu, irônica – Porque a Clara vai achar, assim,
“lindo”... né?
_A Clara não tem que achar nada, o apartamento é meu.
_Tá. Mas...
_Mia, na boa, vem aí quando quiser.
_Mesmo?
_Lógico, besta... – inclinei a cabeça para o seu lado, abrindo os
olhos por um instante, e sorri – ...assim... é só não vir com esses shorts aí,
que estamos bem.
Ela riu, dando-me um tapa de leve no braço, elogiada. Depois te tanto tempo, garota, e eu
ainda gosto de te ver sorrir. A
Mia afundou mais ainda o corpo ao lado do meu, encostada contra o sofá com um
cigarro apagado em mãos. Estava completamente fora de si. Deixou que o filtro
lhe escapasse por entre os dedos, sem sequer dar-se conta, conforme deslizava
os pés mais adiante no chão, acidentalmente ou não esbarrando a sua perna na
minha.
_E a propósito... – disse, com um ar meio de entrelinhas – ...como
vai... – prosseguiu, escorregando sutilmente a mão no decorrer da própria coxa,
de forma que alguns dos seus dedos ficassem sobre o meu jeans, descendo até
quase a altura do joelho – ...a Clara?
A acompanhei com os olhos, sem me mover. Me diverti. Os seus dedos
continuaram, como se por casualidade, para o vão entre os meus joelhos. Isso não pode estar mesmo acontecendo,
ri, em silêncio. E virei o rosto para ela, também embriagada.
_Me diz você... – respondi, arqueando a sobrancelha – ...”como vai”
o Fer?
_Hum. Tem certeza de que
quer entrar aí?
_Cê que começou... – achei graça na situação e ela sorriu, imprestável.
_Tá. Do que cê quer falar, então?
A sua mão continuava parada nas minhas pernas. E é – talvez tenha sido o rum; ou talvez
tenha sido toda a maconha dentro de mim. Ou ainda, os shorts de menos nela. Não sei. A sua presença inegável, maldita, em qualquer cômodo que ela ocupava.
Algo causava a minha falta de filtro, de reação naquele momento. Ou talvez
tenha sido a descomplicação incomum daquela noite toda, daquelas conversas, que
me remetiam ao primeiro ano de namoro deles. À época em que os meus sentimentos
por ela não pesavam tanto. Não sei.
Mas a verdade é que eu sabia, sabia,
onde aquilo estava indo – e sabia desde o instante em que o Fer levantara para
ir dormir, sabia desde o começo. Desde o rum, desde as suas pernas sobre as
minhas. Mas ainda assim não me movia, eu ficava. Irredutível e interessada. “Do
que você quiser”, respondi então. Os seus olhos estavam presos aos meus. As
pontas dos seus dedos começaram, então, a subir suavemente pelas minhas pernas,
numa brincadeira perigosa, puta que pariu
– e as minhas pupilas deixaram as suas para observar o que as suas mãos faziam.
_Bom, e se você... – a Mia sugeriu, quase sussurrando – ...me
contasse o que... – eu seguia atenta – ...era naquela mensagem, na outra semana.
_Que mens...? Ah! Ahn-ahn, não. Nem fodendo... – eu ri, com a voz
já arrastada.
Você não
espera mesmo que eu te conte em que eu estava pensando enquanto comia a Clara,
né? Nem a pau.
_Por que não?! – ela achou graça, de repente.
_Não. Agora não.
_Ah, me conta, vai...
_Não, meu.
_Por quê?! Você tava... – sugeriu, quase tão lenta quanto os seus dedos,
que ela agora também acompanhava com os olhos sobre minhas coxas – ... pensando
em mim?
_E se eu tava?! – respondi, a encarando.
E ela sorriu. Estava mesmo, a mensagem
tinha sido clara quanto a isso, de que adiantava mentir? A Mia
levantou o olhar e o cruzou com o meu, sorrindo de novo ao notar que eu a
observava – o meu coração, embriagado, parou por um instante. Você não, relutei em pensamento, v-você,
puta que pariu, você é linda demais.
Um som ritmado de cítara começou ao fundo. E eu a olhava, a uma distância ainda
segura. Com os meus reflexos lentos, afetados por toda a fumaça, por todo o rum.
“I
once had a girl...”, o Lennon cantou baixinho no rádio, “...or should I say, she once had me?”. E a
nostalgia me foi embalando a cada verso de “Norwegian
Wood”. Parte da minha consciência dizia-me, sóbria, “não faz isso” – enquanto
todo o restante considerava ignorar o aviso.
Cacete. Os seus dedos seguiam subindo vagarosamente,
apenas as pontas, pelas minhas pernas. E eu podia sentir cada movimento.
_Não começa, garota... – suspirei, hesitante.
Fechei os olhos, por um segundo. E senti as suas mãos, enfim, me tocarem.
Desgraçada. Não me aguentei. E abri novamente os olhos, observando-a se
mover. Os seus dedos foram subindo. Lentamente para cima – a minha respiração
começava a pesar, impulsiva, e eu ia ficando realmente desconfortável, sentada
ali. Não me movia. Não fazia nada. O meu coração, todavia, acelerava, instável
com tudo aquilo, com o que eu poderia cometer se ela não parasse – com cada
milímetro que ela continuava e continuava, puta
merda.
Aproximou-se de mim, do meu corpo. A sua boca agora parecia ainda
mais perto. A poucos e perturbadores, irrelevantes centímetros da minha. Meu deus, só, só para com essa merda. A
ponta dos seus dedos atravessou, entretanto, a linha da minha calça, deslizando
pela minha pele descoberta num arrepio. Debaixo da camiseta. Subiu pelo centro
e veio descendo depois, contornando lentos arabescos imaginários pela lateral,
acompanhando então a cintura baixa do meu jeans. A esta altura, eu já estava
perdendo a cabeça. Me sentia tomar por toda irracionalidade do álcool das horas
anteriores – queria empurrá-la contra a primeira parede do apartamento que ela tanto,
tanto gostava. Mas não me movia.
Os seus dedos se colocaram acima dos botões da minha calça. O
primeiro, num tranco. Não faz isso, por
favor. Eu não podia beijá-la ali, como
não podia. E eu não devia – mas sentia
os seus dedos contornarem o segundo botão, sem qualquer intenção de parar.
Tinha os seus olhos fixos nos meus. E eu ainda não deferira um movimento sequer.
A sua boca, todavia, testava cada gota de autocontrole em mim. Completamente
passiva às suas intenções, como nunca ficara antes. Inebriada. A cada toque
inconsequente seu. E a cada decisão das suas mãos. Porra. Sentia os seus dedos desabotoarem já não tão sutilmente a minha
calça. E a sua boca se aproximar, ali, tão perto, ansiando por um beijo.
O momento começou a me consumir, num fogo egoísta e – que se dane.
Me movi para frente e a alcancei.