(Pulp Fiction)
Girei a maçaneta. E com suas mãos apoiadas no batente de madeira, lá
estavam eles – os meus incontáveis meses de erro consciente, agora batendo à
minha porta. Literalmente. A Mia sorriu para mim, num camisetão preto do Misfits
que ela cortou as mangas para transformar em regata. Meio vestido. Sem
perceber a inconveniência da sua presença ali, naquele instante – com as pernas
de fora naquela desgraça e com seu coturno surrado nos pés, os cabelos
castanhos soltos –, enquanto minha lasanha queimava no forno e eu metia a
carteira no bolso de trás da calça, já pronta para sair.
_Mia? – ri, surpresa – O que... cê tá fazendo aqui?
_Tô atrapalhando?
_Não. É que, ahm...
_Bom, cê disse que eu podia vir te visitar... – ela arqueou as
sobrancelhas, com um sorriso imprestável, e os meus olhos se perderam por um
segundo ali, indefesos – ...quando eu quisesse, não?
Droga.
Eu tinha mesmo dito. Dias antes, alcoolizada como um gambá e sem
um pingo de autopreservação, no chão da sala, tagarelando sobre o quanto
“claro” que ela podia “aparecer” quando bem entendesse. Mas que inferno.
Eu tinha causado aquilo na minha
própria vida. Comecei a pensar em como ia me livrar daquela cilada. Tinha
passado a semana inteira com a Clara e queria fazer as coisas direito – mas
também sabia o que meu coração tinha sentido naquela madrugada na sala com a
Mia e não confiava inteiramente em mim mesma para ficar sozinha, assim, com ela.
Cacete.
_Na real, e-eu... – passei a mão na nuca e a olhei, parada
espontaneamente na porta do meu apartamento numa sexta à noite – ...tava pra
sair, ia... só jantar ant...
_Ah, tudo bem... – ela piscou para mim, como quem não vale um
centavo, e foi entrando – Te faço companhia!
Merda. Empurrei a porta de volta e fechei a
maçaneta, enquanto a Mia caminhava sala adentro. Isso não tá acontecendo,
argh. Ela largou a mochila sobre o sofá, como se tivesse vindo direto de
algum outro lugar, e foi em direção ao corredor. Assim que pisei na cozinha,
logo atrás dela, o meu celular apitou em cima da mesa. Peguei-o rapidamente e
chequei a mensagem no visor – “é o Gui”, murmurei, “preciso me apressar”. Larguei
o telefone de novo e fui até o fogão, abrindo a porta do forno.
_Hum, então cê tava mesmo de saída... – a Mia fez graça, sondando.
_Ainda tô – me agachei na frente para checar a lasanha.
Ela me olhou, abaixada a alguns metros
dela, e riu. Podia senti-la no cômodo, movendo-se milimetricamente atrás do meu
ombro. Caía a minha ficha agora de que, sem o Fernando no apartamento, as
minhas desculpas para fugir da Mia se tornavam escassas. Fechei a porta do
forno e coloquei a travessa quente sobre uma das bocas do fogão, erguendo-me do
chão. A Mia me observava, apoiada contra a mesa da cozinha. Perguntei se tinha
fome e ela disse que já tinha comido, que estava vindo da casa da Michelle.
_Hum – ri e alcancei um prato no armário sobre minha cabeça –
Aquela sua amiga que me adora?
_Essa.
_E você contou... – a olhei de relance, colocando um pedaço no
prato – ...que tava vindo aqui?
A Mia sorriu, sem responder, arqueando as sobrancelhas com os
braços cruzados em frente ao corpo. Isso é um sim ou um não?, achei
graça. Caminhei até a geladeira para pegar uma garrafa de Coca. E quando virei
de novo, notei que a Mia tinha desviado o olhar para os próprios pés, ainda sem
me responder, então comecei a rir. “Está certo”, disse para ela, balançando a
cabeça, antes de sairmos para sala.
Nos sentamos no sofá, numa cumplicidade de quem nunca realmente se
afastou. Em todos aqueles anos. E eu comecei a comer – mas por trás de toda
aquela conversa jogada fora, uma garfada atrás da outra, a sua presença me
inquietava. Era estranho. É. Tê-la sentada ao meu lado, ali, tão
abertamente, em plena sexta-feira à noite. No meu apartamento vazio. E como
alguém que ainda sente coçar uma mão ou perna que perdeu, sentia que a qualquer
momento o Fer entraria naquela sala. E nos veria. Ainda que o seu quarto
estivesse vazio e todas as suas coisas tivessem sido levadas, era difícil me
sentir totalmente confortável.
E não é nem como se estivesse fazendo qualquer coisa errada – estava
só comendo meu jantar. Já a Mia, sentada a certa distância de mim, comentava revoltada
sobre uns colegas de classe que tinham virado discípulos dum professor babaca no
Mackenzie e eu ria da sua indignação. Nada acontecia ali. Mas a questão, com
nós duas, é que sempre estava lá. Algo. Nas entrelinhas. Eu
simplesmente não podia baixar a guarda.
O problema foi que, aí, ela levantou as pernas. Abraçou os joelhos
em frente ao corpo e pisou com os coturnos sobre o sofá. E o meu olhar escapou
para o lado, num reflexo, a vendo ali, naquele pouco pano todo – é. O
tecido da camiseta escorregou pelas suas coxas e juro, não tinha porra
de shorts nenhum embaixo. Me arrependi imediatamente de tê-la deixado entrar.
Céus.
Foi um descuido que durou só um segundo. Nem isso. Mas os
olhos da Mia cruzaram com os meus, conforme eu desviava da porra das suas pernas,
como se nada tivesse acontecido. E ela sorriu, meio em silêncio, interrompendo o
que estava dizendo. Se dando conta. Merda.
_Hum... – se divertiu – ...tô achando que você não quer sair, não.