...há duas horas e sem nem ter saído de São Paulo ainda.
Cidade de merda.
Estávamos fritando naquele sol. Ninguém se movia naquela porra de rodovia.
E pra piorar, o carro da Marina não tinha ar condicionado – é claro.
Já nos primeiros minutos de trânsito, eu e a Thaís tiramos a camiseta, ficando só
de top e bermuda no banco de trás. Minha ex ia na frente com a atual. Tirei o maço
do bolso e acendi um cigarro, segurando-o para o lado de fora da janela. Não tinha
uma brisa sequer.
“Come with me”, a Cat Power começou a cantar lentamente no rádio.
Fechei os olhos e arrastei a voz junto com a dela – “myyyy loooove”. Podia
sentir o suor escorrendo do meu pescoço para dentro do top. Cacete, tá calor
demais. A Thaís se escorou na janela aberta, do outro do banco, se abanando
com o próprio boné e acompanhando a letra comigo – “to the sea, the sea of...”.
E foi quando, do nada, a porra da Bia trocou a faixa.
_Mano... – me inclinei para frente, indignada, sem entender – ...por
que cê tirou?!
_Ah, velho, puta música chata...
_É Cat Power!!
_E daí? Que merda mais deprê... – bufou no banco do passageiro, de
saco cheio, e se virou para a Marina – Que mais tem nesse CD aí que cê fez?
_Ah, e-eu... – a Marina hesitou, meio constrangida – ...eu coloquei várias músicas, que... q-que
tem a ver com mar, com praia, não sei.
_Tá, mas não tem uma MPBzinha, sei lá?
Ouvi a Bia reclamar e afundei de volta no banco, deixando o rosto cair
pro lado da Thaís e revirando os olhos. Ela riu. “Ah, tem ‘Segundo Sol’ da Cássia”,
a Marina sugeriu no banco da frente, tentando agradar a namorada. E a idiota desdenhou
na mesma hora – “nossa, mas cê foi escolher justo a mais chatinha? Não tem nada
mais animado?”. Eu vou matar essa garota, juro, me irritei, tentando respirar
fundo. A Thaís franziu as sobrancelhas na minha direção, confusa, sem entender
por quê a droga da Bia estava insistindo naquela discussão.
_Só volta na que tava – me intrometi – Tava boa, meu!
_É! – a Thaís resmungou também.
_Por favor, vai, amor – a Marina murmurou – Tá todo mundo ouvindo
junto.
E a infeliz se viu obrigada a voltar a faixa. Me afundei no banco de
trás, com ranço. Babaca. Não basta ter atrasado a viagem, ainda quer ficar
decidindo a trilha por todo mundo. Não entendia como diabos a Marina ainda
estava com aquela garota. No rádio, a Cat Power já tinha começado a cantar de novo
– desta vez, todavia, sozinha. A atmosfera ficou estranha no carro. A Thaís pegou
o cigarro da minha mão e tragou, silenciosamente, soltando a fumaça rapidamente
pela janela antes de o devolver. Nos entreolhamos, como cúmplices daquele
climão.
E de repente, numa tentativa de mudar o assunto, a Marina me chamou.
_Meu... – disse, animada, com as mãos no volante – ...podemos
falar 5 minutos sobre a Mia?
Ah, não. Ela me olhou pelo retrovisor, certificando-se
de que eu a estava escutando, e então se virou brevemente para mim, olhando
para o banco de trás, com entusiasmo. E eu me preparei psicologicamente para
aquilo.
_Nossa! Meu, ela não é nada como eu imaginava...
_Como assim?
_Ah, não sei... – ela riu – Sempre achei que ela fosse mais, m-mais
padrãozinha.
_Mano, né, nove da manhã e... – a Thaís comentou, do meu lado – ...a
mina já tava com cara de que ia jogar molotov em vidraça de banco.
_Total! O dia que te levei lá na casa dela, fiquei com a impressão
de que ela fosse uma dessas patricinhas, com cara de fresca, magra, sei lá.
Sabe? – a Marina continuou e eu me afundei ainda mais no assento, tragando o cigarro
– Acho que foi culpa de Higienópolis...
_Mas é gata, hein? Puta que pariu.
_Cala a boca, Thaís – resmunguei.
_Quê?! – riu – Ela é. E mano, na boa... sapatão.
_É, verdade! Ela tem cara de que curte umas minas...– a Marina concordou,
se divertindo com o meu desconforto – ...e meu, ela ficou olhando pra você o
tempo todo que a gente tava lá!
_Claro que não!
_FICOU, SIM! – as duas gritaram juntas, em coro.
_Tá. Que seja – me enchi – Chega, vai. Cortou o assunto!
_Ihhh.... Não pode nem falar nada mais!
_Falar pra quê, meu? Que importa agora?! – pistolei – Já acabou, porra,
ela escolheu o Fer e eu superei, vida que segue.
Cruzei os braços e olhei pela janela, tragando mais uma vez. Foda-se
a Mia. Não tinha disposição para ficar ouvindo minhas amigas se impressionando
tardiamente com a garota que tinha tornado a minha vida um inferno por meses. Puta
conversa desnecessária. Soltei a fumaça para fora do carro e senti as duas me
observando, silenciosamente arrependidas, enquanto a Bia se mantinha quieta no
banco do passageiro.
_Ei... – a Marina retomou, com a voz baixa – ...e como você tá?
_Tô bem, Má. Só não quero ficar falando disso...
_Mas... – continuou, preocupada – ...como cê tá com ela lá, tipo, no
apê o tempo todo? Não te incomoda, flor?!
_Ah, sei lá, meu. Que vou fazer, não tenho que achar nada... – mantive
os olhos no asfalto entre os carros mais adiante, expressando o meu mais
sincero desinteresse – ...na boa, eu já tô tão de saco cheio dessa história que
só quero ficar em paz. Pra mim, já deu.
_É. E acho que se ela não fica te procurando, também facilita...
Facilitaria,
né.
_Na real... – traguei mais uma vez o cigarro, já quase no fim –
...ela me procurou dias desses. Veio com um papo estranho pra cima de mim, que não
queria que as coisas ficassem assim, que queria ser "minha amiga"...
_Mas você quer ser amiga dela?!
_... – olhei para a Marina, pelo retrovisor, com minha melhor cara
de “é óbvio que não, né, porra”.
_É, meio complicado mesmo...
_Meu, sério... – a Thaís colocou a mão sobre meu ombro – ...cê tá melhor
sem essa mina.
_Bem melhor! E outra... – a
Marina ajeitou os óculos no nariz, me olhando de volta – ...quem tem paciência pra
ficar correndo atrás de mulher hétero, não é?
_Nossa, sim – revirei os olhos – Chega, meu. Só quero pegar sapatão
graduada daqui pra frente...
_Mas que ela tem bom gosto pra tatuagem... – a Thaís me
provocou, piscando na minha direção – ...isso ela tem.