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maio 31, 2012

Velhos amigos

_E aí, rockstar... – o Marcos me zombou, acendendo o próprio cigarro, e eu revirei os olhos na mesma hora – ...relaxa, meu, não vim aqui para te encher.
_Sei.
_Cara... – ele riu da minha amargura – ...cê gosta mesmo dessa mina, hein?
_E-eu nã... – suspirei – ...eu não vou discutir isso com você.

Balancei a cabeça e fechei os olhos por um instante, apoiando contra a parede. Por favor, só me deixa em paz. Nem era como se o Marcos estivesse sendo escroto – pelo contrário, estava mais de boa comigo do que o vira ser em meses. Suas intenções não pareciam ruins, mas o meu julgamento já não estava lá dos melhores, sob a influência dos infindáveis comentários idiotas dos meus amigos, nas últimas horas, e de todo álcool que corria pelas minhas veias. Tudo o que eu queria naquele momento era esquecer da Mia e daquela porra de beijo.

_Olha, num vim te atazanar, mas cê é foda também... – deu um trago, ao meu lado – Não sei como o Fer não percebe, na boa...
_Não tem o que perceber – soltei a fumaça, sem paciência, e apaguei a bituca do meu cigarro no chão – Não tem mais nada entre nós duas.
_Não?! E aquilo na sala foi o quê, então?!
_”Aquilo” o quê, mano?!
_Como “o quê”?! – levantou a voz para mim, no meio do corredor – Cê beijou a porra da mina na frente de todo mundo!
_Ah, Marcos, vai à merda! – respirei fundo, sem vontade de ter aquela conversa – Era só brincadeira. Brincadeira, caralho!
_Cê vai mesmo me dizer que AQUILO foi uma brincadeira?
_Claro que foi, porra! A gente não teve nada a ver com isso!! – gesticulei, indignada – Foi outra mina que desafiou!!
_Quem? – ele riu, agora sim, com a mesma atitude de merda dos últimos meses – A amiga da Mia?! Tá bom, então.
 
Para quem não veio me encher, até que tá enchendo bastante, né?
 
_Olha, eu não preciso ouvir isso, na boa... – me irritei – O que é agora?! Hein? A porra da teoria da conspiração??
_Teoria da consp... – ele mesmo se interrompeu, rindo – ...cara, cê tá com a culpa estampada na sua testa! Se toca!! Só o jeito que, q-que cê OLHA para ela, meu... Nem a pau que vocês não tão se pegando mais!!
_Não, sinto muito. Acabou! – respondi, nervosa – Ela escolheu ele. E eu, e-eu tô feliz com outra.

Ele me olhou, descrente, com uma expressão arrogante de dar nos nervos. Eu já estava tão bêbada, tão fora de mim, que tive vontade de acertar bem no meio daquela sua cara babaca. Entretanto, me segurei.
 
_Olha, eu não espero que você entenda... – resmunguei – ...não mesmo, Marcos.
_E o que tem pra entender?! – ele retrucou, levemente exaltado – Meu, como você consegue?! Morar com o cara assim, olhar na cara dele todo dia, mano, escondendo uma parada dessa!
_Fala baixo, porra! – murmurei de volta, já puta – E cara, quem você acha que é para falar da minha vida assim?! Já disse que não tem nada rolando, mano.
 
Na mesma hora, escutamos a porta se abrir. Virei para trás e vi o Benatti cambaleando para fora do apartamento, acompanhado de uma garota que eu tinha pegado na época de colégio, provavelmente indo juntos para a saída de incêndio – onde a Thaís também tinha se metido com a crush dela. Eita. Me preparei para levantar também e o Marcos resmungou, falando baixo, antes que eu pudesse sair.
 
_Olha, acho bom mesmo não tá rolando nada... – deu mais um trago, sem me encarar – ...porque o Fernando gosta mesmo da Mia e cê tá ligada.  
 
Revirei os olhos e dei as costas para o Marcos, entrando de novo no apartamento. Quem ele pensa que é para me dar esporro? Uma olhada rápida na sala, em meio àquele caos barulhento, e me irritei imediatamente com aquela droga de festa interminável. Foda-se essa merda também. Andei até o meu quarto, num mau humor desgraçado, me trancando ali. E em algum momento, eu apaguei.

maio 25, 2012

Os valores modernos

Ainda que os meus estivessem fechados, podia sentir todos aqueles olhos em nós. Expostas, pela primeira vez, ali. Em meio aos sons da festa, ao rádio tocando alto e às pessoas que nos rodeavam, bêbadas. Atentas a cada gesto nosso. Surreal. Foi quando, acidentalmente, as nossas mãos se encontraram sobre o piso de madeira – as pontas dos nossos dedos se tocaram, de leve. E a minha pressão caiu, na mesma hora. Não posso encostar nela assim; não, nada de, de mãos; nada de segurar o rosto dela, não posso enc... argh. Dei-me conta, ali de repente, de que não sabia como beijá-la assim. Tão em público.

Não sabia o que não fazer.

Confusa com o quanto devia ou não bancar na frente de todo mundo. Pois se por um lado não queria me conter demais, dando a entender que aquilo me afetava; por outro, também não podíamos demonstrar qualquer intimidade na forma como nos pegávamos. Tudo aquilo, em milésimos de segundo, passou pela minha cabeça; milhares de pensamentos revirando meu cérebro. Argh. Embriagada e ainda com os olhos fechados, podia sentir a Mia sorrir a milímetros do meu rosto. Tá se divertindo, desgraça? Fui me aproximando lentamente, mais lentamente ainda. Estava nervosa. Cacete. Até que os nossos lábios, enfim, se tocaram. Puta merda, isso tá acontecendo mesmo. Foi então que a sua boca, o seu gosto se fundiu tão naturalmente em mim. E de repente, tudo era como sempre fora.
 
Fácil, instintivo. Nosso.

Durou quatro, seis segundos no máximo. O suficiente, no entanto, para empurrar a Mia de volta à minha realidade – e me lembrar de todos os beijos que eu ainda tinha guardados para ela dentro de mim. Quando acabou, reabrimos os nossos olhos e nos encaramos rapidamente, rindo da situação. Como é difícil te negar, garota. Inferno. Tentei não a olhar por tempo demais, todavia, para não dar bandeira. Abaixei logo a cabeça e forcei uma expressão de constrangimento – “eu vou matar todos vocês por isso”, resmunguei, em voz alta. Nós nos afastamos, engatinhando ao revés até voltar para os nossos devidos lugares. Num teatro convincente.

_Quer dizer... – o Fer comentou como se achasse graça, tragando um cigarro e me olhando, assim que sentei de novo – ...que agora eu posso dar uns beijos na Clara?!
_V-você... – eu o ameacei, rindo – ...não ouse, babaca!

E no segundo seguinte, um copo plástico voou na sua direção, das mãos da Mia, com um resto qualquer de bebida. Ele riu e se curvou, sendo acertado na altura do ombro. Todo mundo riu também. A situação parecia que seria esquecida logo, passando despercebida dentre os demais desdobramentos da festa – mas é claro, claro, que não passou. Não. Os idiotas dos nossos amigos não iam deixar tão barato assim. E pelas horas seguintes, madrugada afora, fizeram questão de me atazanar incansavelmente por causa daquela porra de beijo.
 
_Mandou bem, hein... – um dos nossos amigos, o Igor, comentou por cima do meu ombro, me alcançando no corredor.
_Mano. Cala a boca!
_Quê?! – se surpreendeu com a minha reação, ainda achando graça.
_QUAL O SEU PROBLEMA?!?
 
Desviei dele, encerrando por conta própria a “conversa”, e entrei pela porta da cozinha. Mas não importava aonde eu fosse, eu parecia não conseguir fugir – em todos os cantos daquela merda de apartamento, tinha algum engraçadinho com um comentário a respeito do maldito beijo. Santa paciência. E se não eram os meus amigos cara-de-pau, era a Mia – quem eu pretendia, sim, evitar pelo restante da festa para não levantar mais suspeitas.
 
Céus.
 
Lá pelas tantas, saí no corredor do prédio para respirar em paz por um segundo. E vi a Thaís mais adiante, perto do elevador, conversando com quem presumi ser a Ju. Uma butch gorda, forte e toda tatuada que tinha um undercut com topete, desses meio anos 50. Puta merda. Rapidamente entendi todo o nervosismo da minha amiga em falar com ela – a mina era gata, nossa. Sorri ao ver as duas ali e sentei ao lado da porta do apartamento, com as costas apoiadas na parede. Aí acendi um cigarro e estiquei as pernas, embriagada, aliviada por ter um momento tranquilo.
 
E foi quando ouvi alguém abrir a porta do apê, a um metro talvez de mim, deixando o som da festa escapar para o corredor. Virei o rosto para cima, para ver quem era, e dei de cara com o Marcos com a mão ainda na maçaneta, fechando a porta atrás de si.

_Ah, que maravilha... – murmurei – ...era só quem me faltava mesmo, inferno.

Ele riu, tendo ouvido parte do comentário, captando toda a minha “empolgação” no momento. Bati as cinzas do cigarro no chão, sem paciência para ouvir sermão nenhum. E ele se sentou ao meu lado, me olhando ali, rabugenta. Por que diabos eu fui aceitar esse desafio?

maio 24, 2012

Coação

Fiquei sóbria na mesma hora. Merda.

_O, o q-quê? – o meu coração congelou – Nã... n-não!
_Vai. Beijo de verdade! – a loira riu – Num é pra vir com selinho!
_NÃO, MANO!
_SÓ BEIJA LOGO, MEU! – alguém gritou no meio da roda.
_N-não... – me atrapalhei, já suando frio, inferno – Não, gente, e-eu...
 
Não conseguia me mover, sem saber como diabos agir. Puta merda. Olhei para a Mia e ela sorriu descaradamente – argh, eu sabia que aquilo tinha dedo seu. Maldição, garota. Mas não, eu não podia. Agora foi longe demais, porra, senti um desconforto subir pela minha espinha. Olhei então para o Fer, um pouco atordoada, procurando qualquer resposta de que merda eu deveria fazer naquela situação. Mas ele estava chapado demais para sequer registrar o que realmente estava acontecendo – e me preocupava que tivesse um lapso de consciência no dia seguinte.

_Meu, n-não dá... – retomei, ansiosa, encarando a droga da mackenzista – ...isso é, é sacanagem, mano.
_É só um jogo, porra! – ela riu e a Mia achou graça, ao seu lado, se divertindo com a minha hesitação – Só beija!
_N-não.
_Que tem?!
_Como o que tem?! É... A, A... NAMORADA DO MEU AMIGO, CARALHO!
_AH, QUAL É... – o Benatti resmungou, sentado ao lado do Fer, e riu também – ...vai dizer agora que nunca passou pela sua cabeça?
_Nossa, NÃO! Claro que não! Eu n-nunca, e-eu.... – gaguejei, forçando uma expressão séria.
_AAAAHHHHHHH, TÁ! – a festa inteira gritou junto.
 
Era só o que me faltava.

_QUÊ?! – olhei de volta, puta – Cara, não é assim. NÃO MESMO!
_VAI LOGO, CARALHO... É SÓ UM BEIJO!
_É. É só um beijo, cara... – a Thaís falou baixo, me empurrando com o ombro – Se enrolar, é pior. Só vai lá!
_Não! E-eu... – traguei o baseado, angustiada, sentindo meu estômago embrulhar – ...e v-você não vai fazer nada, porra?!

A Mia me olhou de volta, rindo, e balançou a cabeça para a minha indignação com ela. É claro que não. Desgraçada. O meu coração acelerava rapidamente, confusa e mais chapada que o aceitável – não tinha como fugir. Inferno. Todo mundo me olhava ali, esperando.

_N-não sei, e-eu... – tropecei nervosamente nas palavras, de novo, e aí olhei para o Fer, quase como se lhe pedisse permissão – ...e você? Vai me matar amanhã ou o q-quê?!

Ele riu, em negação, balançando a cabeça e erguendo as mãos – como se dissesse “vai em frente”. Bêbado de merda. Então era carta branca, agora não tinha mais volta. Passei o baseado para a Thaís segurar. E sentindo as minhas mãos tremer, as coloquei no chão e comecei a engatinhar roda adentro, ainda insegura. Droga. E a Mia se aproximou também, engatinhando até mim, na frente de todos nossos amigos. Nos encontramos no centro da roda e eu a olhei com toda a indignação que podia, apertando as pálpebras, com ódio pelo que ela tinha feito. Todo mundo nos observava. Filha-da-puta. Ela fechou seus olhos, ainda rindo. E eu os meus, com o meu coração prestes a sair pela boca.
 
Puta que pariu.

maio 23, 2012

Caos

Aconteceu nem duas horas depois, me pegando de surpresa. Estava distraída, molhando o dedo na ponta da língua. Um lado tá indo mais rápido que o outro, notei. Mas aí algum amigo imbecil passou e tropeçou nos meus pés, largados adiante, atrapalhando todo procedimento.
 
_OLHA ONDE PISA, PORRA! – resmunguei e tornei a me concentrar.
 
Estava completamente bêbada, deitada no chão da sala, com a cabeça no colo da Thaís. Com o indicador ainda úmido, percorri meio perímetro do meu baseado, logo abaixo da linha que queimava, tragando e tentando corrigir a trajetória da brasa. Estava todo mundo meio frito. Outras pessoas estavam sentadas ou caídas à nossa volta, a maioria envolvida num jogo idiota.
 
Alguma coisa, de repente, vibrou na parte de trás da minha cabeça.

_Cara... – minha amiga, cuja perna me servia de apoio para a nuca, me cutucou – ...olha isso, mano.

Olhei para cima e vi a tela do seu celular com a mensagem da Ju, a tal da mecânica, com quem ela estava flertando há dias. O SMS perguntava se a Thaís estava acordada. É, às 3 da manhã, mano. Mas nenhuma das duas tomava a iniciativa. Não é possível, revirei os olhos, já irritada com aquele lenga-lenga. Dei mais um trago, acertando por fim a linha da brasa, e segurei a fumaça por bem mais tempo do que o recomendável com aquele tanto de álcool no sangue. A combinação não me fazia bem. Só então me levantei, sentando ao lado da Thaís e em frente à roda que se formava aos poucos no chão da sala, e estiquei a mão para que ela me passasse o telefone.

_Deixa eu responder, dá aí! – pedi, com o baseado ainda na boca.
_Nossa, nem a pau! – ela riu, enquanto eu tentava tirar o celular das suas mãos; as duas bêbadas – Para, mano, cê vai foder com tudo!
_Cala a boca! Não vou, não! – argumentei, ofendida, e ela continuou se esquivando – Me dá!
_Não! Sai pra lá!
_Velho, CHAMA ELA PRA VIR AQUI!
_Assim?? No meio da madrugada?!?
_ELA QUE TE MANDOU MENSAGEM, THAÍS, PORRA! – consegui pegar o telefone, finalmente – Vai. Confia em mim, meu, deixa eu fazer!  
 
A Thaís esfregou as mãos no rosto, nervosa, enquanto me deixava digitar. “Me passa isso aí”, pegou o baseado de mim, como se estivesse prestes a se arrepender. Troquei quatro ou cinco mensagens com a mina e, em menos de três minutos, já estava passando a porra do meu endereço para ela vir. “Frouxa”, zombei a Thaís, devolvendo o celular, depois de fazer todo o serviço por ela.  
 
Apoiei as costas de novo na parede e olhei rapidamente para a Mia, num impulso inconsciente. Ela estava sentada do outro lado da sala, perto de duas amigas suas do Mackenzie. Já tinha descalçado os coturnos e estava com o cabelo bagunçado, dum jeito inesperadamente atraente. Dei mais um trago lento no baseado, a observando ali. E bem nesse instante, o olhar da Mia cruzou com o meu. Ela sorriu, com os olhos vermelhos, chapada, e balançou a cabeça – como se ainda não acreditasse no que tinha rolado na área de serviço.
 
Com raiva?, me diverti, arqueando as sobrancelhas para ela.

Uma movimentação no meio da roda, no entanto, nos distraiu. O Benatti desafiou o primo a virar quase um quarto duma garrafa de vodka. Esse jogo é uma imbecilidade, puta merda. Meus amigos estavam se provocando aleatoriamente – inventando um desafio mais estúpido que o outro – e o da vez era beber aquela vodka barata, que circulava de mão em mão ali, até atingir a marca do logo impresso na garrafa. Ah, pronto, me alarmei, vamos mandar o povo pra casa de ambulância hoje.
 
_MANO, NÃO. DEIXA DE SER IDIOTA! – me intrometi na roda, enquanto todo mundo opinava ao mesmo tempo – CARA, CÊ VAI PASSAR MAL ASSIM!

Mas “o cara” levantou, se metendo a macho, e todo mundo começou a encorajá-lo a virar logo. Aos gritos. Homens. O infeliz meteu o gargalo na boca, virando verticalmente a garrafa e bebendo de uma só vez. A vodka descia como água em galões de bebedouro, dava para ver as bolhas de ar subindo. Balancei a cabeça, desistindo dos meus amigos. Essas brincadeiras sempre começavam com besteiras – eu mesma fui obrigada a dar em cima de um cara, desavisado da minha sapatonice, uns minutos antes.

O álcool ia progressivamente piorando o nível das apostas. O Fernando, por exemplo, sempre acabava abaixando as calças em algum momento. E agora lá estava ele, uns metros mais para lá na roda, enchendo a cara, lata atrás de lata, e incentivando o primo do Benatti a dobrar a porra da meta. Sem chance. O cara mal conseguiu chegar na marca do logo sem cuspir metade da vodka para fora. Na boa, qual é o propósito da nossa geração?
 
Todo mundo entrou em surto, berrando que não tinha valido, enquanto o cara brigava com o Benatti, dizendo que tinha chegado até a marca, sim. Um empurrava o outro, num desaforo amigável. E eles riam. Eu assistia aquele caos, na minha, tragando o meu baseado ali, enquanto todo mundo estava fora de si. E foi quando uma das garotas que estavam perto da Mia me chamou, na frente de todo mundo, fazendo com um gesto com a cabeça:

_Ei, você! – a loira do Mackenzie falou, alto, do outro lado da sala – Duvido você beijar a namorada do teu amigo. Beija aí a Mia!

maio 20, 2012

Kiss me now that I'm older

“I won't try to control you
Friday nights have been lonely
Take it slow, but don't warn me”
(The Strokes)
 
_Suficiente para quê? – sorri e perguntei, em tom de desafio.

Ela sorriu de volta para mim. O seu vestido se amassava contra o meu tênis e o tecido formava curvas ao redor. Forçou o corpo suavemente na minha direção, com as pernas naquela meia-calça rasgada. Desgraçada. E com os seus olhos ainda fixos em mim, foi se movendo em milímetros quase imperceptíveis, distribuindo o seu peso contra o meu. Nuns avanços sutis no chão. Parte de mim se divertia em vê-la ali. Eu sorria – não podia evitar – e cedia, para ver até onde ela iria.

_”Para quê”, hum... – fingiu pensar e seguiu me olhando, deslizando os dedos pelo meu jeans – ...o suficiente para deixar você... – fez graça – ...fazer o que você quiser.
_Ah, é? – eu ri.

Ela acenou com a cabeça, tinha os gestos propositalmente lentos e insinuantes. Então a empurrei mais firmemente para trás com a perna, fazendo com que recuasse um passo, de repente. Aí coloquei o pé de volta ao chão, apoiando-o novamente, e andei na sua direção. A Mia me encarou e eu encostei nela, segurando-a de leve no ombro. Aproximei o meu rosto da lateral do seu.

_E quem disse... – disse, baixinho – ...que eu quero fazer alguma coisa?

A soltei. E a Mia riu, em silêncio, desacreditando e sabendo que não acabava ali. Então deixei a lavandeira e voltei para a festa. Já ela ficou e provavelmente me odiou um tanto, é claro – mas não o quanto eu estava prestes a odiá-la.

maio 19, 2012

Revide

_Eu?! – a Mia riu, ofendida – Por quê?
_Porque eu, e-eu não... me c-confio... com v-você... – continuei apoiada contra a parede, quase atropelando as palavras de tão embriagada, e ela achou graça – ...e, e você s-sabe, Mia.
_Hum. E você acha que eu me aproveitaria de alguém no seu estado? – disse, sem acreditar nas próprias palavras, sorrindo.
 
Atrás dela, a porta entreaberta dava visão para algumas pessoas conversando e se movimentando na cozinha, bêbadas, e deixava que o som da festa entrasse, barulhento. “Vai à merda”, respondi. Ela riu e aí deu mais um passo proposital na minha direção, fazendo graça. Não começa isso, garota, porra. Eu a observei, parada e sem vontade alguma de controlar os meus impulsos. Podia ver os seus pés se mexendo milimetricamente no chão. Não, não começa. E por algum motivo, a sua desobediência era realmente instigante.

Olhei-a fixamente, cada vez mais perto, e então ri. Desgraçada. Aí subi um dos meus pés, naquele All Star imundo, até o meio do seu vestidinho preto e a segurei ali, mantendo a distância entre nós. A Mia começou a rir, indignada. Ergui o queixo e ela forçou a barriga contra a sola do meu tênis, como se testasse que minha perna estava de fato lá, erguida, a impedindo de avançar. Olhei-a como se vencesse a batalha. Se comporta aí, diabo de mulher. A Mia mordeu os lábios frustrada, me observando, absolutamente linda. E eu estiquei a perna, a afastando ainda mais de mim. Parecíamos duas crianças no meio da lavanderia.

_Cara, isso é ridículo... – ela constatou, rindo.
_...ah, eu n-não ligo...
_...patético...
_...não dou a m-mínima, Mia...
_...vai, me solta...
_...n-não...
_...escuta aqui, achei que cê tava toda segura aí, que sabia o que queria, que agora era diferente... – me provocou – ...que não gostava mais de mim.
_...pode falar o que quiser, vou continuar com o pé aqui, n-não tô nem aí...
_...não?! – se forçou na minha direção e eu cedi um pouco a perna, deixando-a dobrar; então a Mia se aproximou e, puta merda, como ela era bonita – ...e me conta, hein, quem é que tava tirando a roupa pra você hoje, lá no quarto?
_Não é da sua conta, garota.
_Ah, não?!
_Não – estiquei de novo a perna, afastando-a mais uma vez de mim, e a Mia riu, contrariada.
Tudo nela parecia me tirar a concentração. Filha da mãe.
 
_Hum... – se divertia – ...aposto que era a Clara, não era?
_Não é da sua conta... – pisquei na sua direção, a provocando de volta.
_Quanto você já bebeu hoje?
_E quanto você bebeu?
 
Me encarou, imprestável, com certa coragem alcóolica, e respondeu.
 
_O suficiente.

maio 18, 2012

12:51

Desde que prometi para a Marina que ia pegar leve, beber significava só uma cerveja aqui e outra ali. O problema é que, toda vez que eu decidia virar um pouco mais do que isso, eu acabava tremendamente bêbada com bem, bem pouco – era quase um fenômeno. E apesar de não ter bebido nem metade do que costumava em outros tempos, àquela altura na festa eu já estava completamente fora de órbita. O meu jeans já tinha secado e ganhado novas manchas úmidas de cerveja incontáveis vezes, num misto de descoordenação embriagada com a capacidade absolutamente lotada do apartamento.
 
Meu deus. Cortei caminho entre as pessoas que se acumulavam entre nossas paredes até alcançar a nossa cozinha igualmente cheia. Inferno, quando foi que convidamos tanta gente? Então roubei uma garrafa de whisky da mão de uma garota que eu desconhecia totalmente. Dei dois goles bem espaçados e a tal da menina arregalou os olhos, surpresa com a minha falta de limites com a propriedade alheia.

_E você é...? – ela riu, esticando a mão para que eu lhe desse a garrafa de volta.
_A dona da casa... – devolvi e sorri para ela – ...prazer. E você, hein?
_Hum. A namorada dela – fez sinal com a cabeça para uma outra menina, a alguns metros de nós, e desviou de mim, levando consigo a garrafa.
 
Droga.

Não ligava a mínima para qualquer uma daquelas garotas – mas que deixasse a porra do whisky, . Dei mais alguns passos cozinha adentro, cansada de só beber cerveja pela última meia hora, numa tentativa enjoada de cortar os efeitos dos shots de duas horas antes. Não aguento mais, meu, preciso tomar outra coisa. Cambaleei com certa dificuldade até a geladeira, sem muitas esperanças, para ver se o meu rum seguia intacto ali. Nada feito. Maldição.
 
Fechei a porta novamente, apoiando a testa na parte de cima do refrigerador. E senti a minha cabeça girar, desacostumada a beber assim nos últimos tempos. Então, no segundo seguinte, meu estômago nauseou e me deu vontade de mandar todo mundo embora para poder ir abraçar a privada em paz. Me virei e, no entanto, dei de cara com a Mia, parada atrás de mim como se quisesse falar algo. Ela sorriu, mas não disse nada.

_V-você acredita... – comentei, indignada, já falando arrastado – ...que tem umas s-sapatão nessa festa que, q-que eu não conhecia?
_O quê?! – ela riu.
_É! Sabe, q-quando você... a-acha que já... “viu” ou, s-sabe, com... c-com todo mundo...
_Meu, você não tá fazendo o menor sentido! – a Mia achou graça na situação e eu me apoiei nela para ir até a lavanderia, guiando o caminho desajeitadamente.
_N-não... – concordei, já quase caindo – ...não tô mesmo.

Dei alguns passos tortos na direção da área de serviço e ela me seguiu, trombando em algumas pessoas até chegarmos lá. O seu ombro me servia de apoio, apesar de ela estar quase tão fora de si quanto eu. Abri a porta daquele cubículo-com-máquina-de-lavar, nos livrando-nos daquela multidão caótica, e aí me soltei da Mia para segurar as beiradas do tanque. Deixei minha cabeça pender, inclinando o corpo. Os fios do meu cabelo escorregaram pela minha testa, soltos no vão entre eu e aquele ralo largo de plástico. Nada. Respirei fundo, tentando assumir conscientemente o controle do meu corpo, e expirei com calma. Preciso vomitar, vai. A minha cabeça rodava por dentro. Cacete.
 
A Mia achava engraçada a minha determinação e eu fechava os olhos, me esforçando para gorfar e a ignorando. Já fiz isso mil vezes, qual é, porra, tentava me concentrar. Mas... não, não consigo. Ergui o corpo novamente, dando-me por vencida, e larguei as mãos das bordas frias do tanque. Aí dei um passo para trás, meio instável, e me virei na direção da Mia.
 
Apoiei-me na parede, a olhando ali – pela primeira vez, de fato, naquela noite toda. Minha respiração oscilava, um tanto desnorteada. Ela sorriu, mais segura do que o usual. Segura de quem era para mim. Estava com o mesmo vestido preto que usou no dia que fomos no show no Itaim, na primeira noite que dormimos juntas. Só que, dessa vez, com uma meia-calça toda rasgada por baixo daquela barra curtíssima – dessas punks desfiadas. Tinha o cabelo solto e os pés metidos no seu coturno surrado, que eu tanto gostava quando ela usava.
 
Estonteante pra caralho, merda.

_Ok, v-você... – apontei o dedo para ela, desconfiada – ...você p-precisa sair.

maio 17, 2012

Batgirl '97

_Quê que tá pegando aqui? – o imbecil do Benatti enfiou a cara no vão da porta, bêbado, esbarrando no Fernando.
 
Eu mereço isso.
 
_Tá rolando strip, cara... – o Fer riu.
_E tá de roupa por quê?
_Não tá rolando nada! – revirei os olhos imediatamente – CAI FORA, VAI! OS DOIS!
_Não, seu idiota. Ela tava assistindo outra mina aí! – o Fer explicou, se recusando a sair, achando graça e me olhando – É por isso, né, que cê não vai lá com a gente, cachorra!
_Eu não tava assist...
_PORRA, E NEM CHAMA OS IRMÃO! – o Benatti me interrompeu, falando alto.
_Não, é sério... – me dirigi então ao meu “melhor amigo”, já puta da vida – ...agora olha aí o que você fez, Fernando!
_Quê?! – ele riu, chapado – CÊ TAVA MESMO!
_Mano... OS DOIS, FORA! JÁ! SAI!! Vai, vai...

Nesse momento – porque, claro, a situação não poderia ficar melhor –, a Mia se juntou aos dois babacas, passando pelo corredor, e colocou a cabeça dentro do quarto para ver o que acontecia ali. Me olhou em pé na frente do computador, com o jeans encharcado de cerveja, e perguntou qual é que era de toda a movimentação.

_Meu, nada, não é nad...
_Nada?! Ela tava vendo outra mina tirar a roupa na webc...
_Fernando! PORRA!! – o interrompi.
 
Eu te odeio.
 
_Ela, o quê?! – a Mia se assustou com a resposta, despreparada para aquilo.
_Num tá vendo... – o Benatti me zombou, num comentário anatômico estúpido, e riu – ...tá até molhada!
_CHEGA, VAI. SAI! – encerrei o assunto antes que saísse algo muito pior da sua boca – VAMOS, TODO MUNDO PRA FORA!

Merda. Para a minha sorte, a minha webcam não tinha áudio. Mas eu estava certa de que a Clara já tinha deduzido tudo àquela altura do campeonato. E eu só queria poder sair da frente do monitor e conseguir me desculpar direito. Pelo inconveniente – no caso, o Fernando. Meu amigo fechou a porta atrás de si, ainda rindo, mas não antes de se permitir um último comentário – “vou dar privacidade pra vocês duas”. Meu cu. Revirei os olhos e sentei novamente na cadeira, às pressas, para me desculpar com a Clara. Preciso urgentemente começar a usar a merda da tranca na porta. Maldição.

A Clara já tinha desligado a câmera. E agora só a minha cara de pau aparecia na tela, me sentindo na quinta série – quando eu babava secretamente pela Alicia Silverstone vendo clipe do Aerosmith e tomava susto toda vez que meu pai entrava na sala. “Dsclp, gnt bebada aqui”, digitei. Alguns segundos depois, a Clara riu e disse que não tinha problema – mas que precisa mesmo sair para a festa na casa da amiga. Não! Não vai!, me angustiei. Não me deixa sozinha agora, justo agora, pensei covardemente. Surgir naquela festa depois do incidente ia ser um desastre.
 
Mas não teve conversa, nem chance. E ela desligou.

Santeria

.   diz (22:19):
Eei... c tiver aí me avisa

Me encostei contra o apoio da cadeira do quarto e abri uma long neck com as mãos, largando a tampa na mesa do computador. Coloquei os pés contra a beirada de madeira e tomei o primeiro gole. Aí fechei a janela do MSN, minimizando-a, e comecei a ler as notificações do meu Facebook. Tinha roubado a cerveja da cozinha quando cheguei – algum amigo nosso lotou a geladeira. Dei outro gole, sem pressa de voltar para a sala. E coloquei o álbum de 96 do Sublime para tocar, aumentando no máximo o volume e colocando os fones no ouvido para tentar competir com o som alto da festa.

Clara diz (22:23):
to sim
 
.   diz (22:23):
ta td bem?
 
Clara diz (22:23):
vc sumiu
te mandei msg

Clara diz (22:24):
oq acontece?

.   diz (22:24):
nada, só tô sem cel
aí ñ tinha seu numero... te mandei msg no fb
 
Clara diz (22:24):
ñ entrei la
 
.   diz (22:24):
qq vc tinha mandado?

Clara diz (22:24):
nd, era sobre o fds

.   diz (22:25):
mas oq? quero saber, po :-)

Clara diz (22:27):
nd... deixa pra lá
achei q c tava brava cmg
 
.   diz (22:27):
claro q ñ, meu
 
Clara diz (22:27):
vc ta bem? ta td bem?

.   diz (22:27):
to, ta tendo uma festa aqui..
ia te chamar pra vir ;)

.   diz (22:27):
to com sdd, meu
 
Clara diz (22:28):
rs, eu to indo
pra um outra na casa da lu
*uma

Ah, não, implorei, instantaneamente frustrada, não vai, meu. Fica aqui comigo até a décima festa dessa porra de semana acabar. Dei mais um gole na cerveja e enviei um pedido de webcam. A conexão estava baixa, então demorou alguns segundos até ela aparecer numa regata branca do outro lado. Sorri. Estava bonita, senti sua falta apertar no meu peito como se o meu corpo pudesse sentir na pele todo o tempo que não nos víamos. Tinha os cabelos presos, meio de qualquer jeito, como se não fosse a lugar nenhum. “And what I really wanna know, ahh, baby”, o som dos meus fones estourava meus ouvidos. Ela sorriu de volta ao me ver ali, sentada no meu quarto, fumando. E tudo pareceu bem entre a gente, mais uma vez.

.   diz (22:31):
sabe, vc ñ parece pronta...
 
Clara diz (22:31):
Q? C acha q eu tô mentindo?
rs

.   diz (22:32):
eu acho q vc quer ficar aqui e me fazer cia...

Clara diz (22:32):
numa sexta a noite? ñ
só ñ me troquei ainda

Clara diz (22:32):
hm, vc podia me ajudar a escolher

.   diz (22:33):
ta bonita assim

Clara diz (22:33):
besta
ñ vou assim, vê essa..

Ri do seu “besta” instintivo para mim, tomando o meu próximo gole. E aí coloquei a garrafa apoiada no meu colo. A Clara levantou da cadeira e saiu do alcance da tela, sumindo por um instante. A minha mão segurava a long neck, enquanto a outra levava o cigarro mais uma vez à minha boca. “Daddy's got a new Forty-Five”, meus dedos batucavam de leve contra o vidro da garrafa. Traguei demoradamente.
 
E então ela reapareceu, ao fundo do quarto, perto da sua cama bagunçada – agora sem as calças. Afundei-me na cadeira, a observando fazer graça e tirar lentamente a regata. A sua cintura ia se descobrindo e as suas curvas me arrancavam do sério, pouco a pouco. Puta que pariu. Sorri e ela riu, dando uma voltinha antes de começar a colocar um vestido que tinha largado sobre a cama, numa sacanagem meio à toa.

_MANO, QUE CÊ TÁ FAZENDO AÍ AIND... – o Fer abriu gritando a porta atrás de mim, do nada, e eu pulei da cadeira derrubando toda a cerveja na merda do meu jeans.
_PUTA SUSTO, FERNANDO!! CARALHO!

Gritei de volta com ele já em pé, tirando os fones e tentando ficar o máximo na frente da tela do computador. Tarde demais, droga. Ele começou a rir, obviamente tendo visto mais do que eu gostaria, inferno, e eu quis me enfiar num buraco bem fundo, já prevendo a encheção de saco que se seguiria a noite toda. Por quê? Por que comigo?

maio 16, 2012

Na prática, porém...

A real é que não demos. Não demos jeito nenhum. Nos primeiros dias que se seguiram à notícia, a única coisa que demos foi uma festa.
 
E quer dizer, a intenção até que era boa – mexemos no currículo do Fer, cadastramos em diferentes sites e até enviamos uns e-mails. Todavia, bastou uma resmungada sobre o recém-desemprego no Facebook e o perfil dele se encheu de propostas de e “te pago uma, foda-se o sistema, bora comemorar sua liberdade”. E logo as doses viraram rodadas inteiras de cerveja, que viraram visitas em plena tarde ao apartamento, que viraram amigos bêbados ocupando nosso sofá toda noite, que viraram festa. Pois é.
 
Agora que o Fer não tinha nada que fazer durante o dia todo, o seu tempo era gasto na companhia dos nossos amigos desocupados. Um a um. E quando passou a ter todo tempo livre do mundo, imaginei que a Mia seria a primeira a ir para lá – mas ela não foi. A semana passou voando. E eu trabalhei como uma condenada, pegando o máximo de horas extras possíveis para tentar juntar dinheiro.
 
Lá pelas nove e tantas da sexta-feira, saí apressada da produtora para comprar salgadinhos na padaria perto de casa, que fechava às 10 – os mesmos que evitariam que metade dos nossos amigos vomitassem no nosso chão naquela noite. Peguei o maço e a carteira sobre a minha mesa e saí. Cheguei na padaria quando faltavam 5 minutos para fecharem os caixas. Merda. Praticamente joguei 6 ou 7 sacos de salgadinho e uns outros 4 de amendoim sobre a esteira – o que me rendeu uma olhada feia da atendente.
 
Deixei quase toda pouca grana que tinha nos bolsos ali e desci a Augusta com os pacotes em dois sacos plásticos imensos. Assim que passei pela porta do apartamento, me dei conta de que minha compra não ia ser suficiente – a quantidade de álcool e de gente superava todas as minhas contas. Droga. Todo mundo resolveu aparecer e se embriagar no meio da porra da nossa sala, com o som no último volume. Do primo do Benatti a uma ex do Fer, que ele namorou no colégio e que eu não via há pelo menos uns três anos.
 
Ah é, e a Mia.

maio 04, 2012

Cumplicidade

_O que diab... – puxei-o para o lado na calçada e ele se levantou – ...FILHOS DA PUTA, MANO! Como assim te demitiram?! Sem aviso??
_E-eu... eu fiz merda... – balançou a cabeça, angustiado – ...n-no dia da festa do Benatti lá, e-eu capotei quando cheguei em casa, t-tava muito louco. Não apareci no trampo e não avisei. Fodi as coisas com um cliente, eles ligaram lá reclamando. Tomei esporro no outro dia, quando fui, mas n-não... – se frustrou – ...não achei que ia dar em nada.
_Puta, Fer, que merda. Mas foi só uma vez! Cê é o cara mais dedicado que eu conheço, porra! Como eles podem fazer isso??
_Num sei... Cheguei lá hoje e o chefe do setor me chamou e... – soou desesperado, passando a mão repetidas vezes na cabeça – ...eu tô fodido, mano. Fodido. Cê não tem noção!
_Calma, meu. Não é o fim do mundo também, a gente vai resolv...
_COMO NÃO É?! EU TÔ ZERADO, CARALHO! – me interrompeu, entre uma tragada e outra, nervoso – Zerado, mano. Zerado! Não tenho dinheiro pra nada! Acabei de gastar o que tinha sobrado do último salário na porra da tatuagem... – uma old school que quase fechava seu antebraço, feita na semana anterior – ...mano, como eu posso ser tão burro assim?!
_Fer, calma! Cê não tinha como sab...
_Meu pai vai me comer vivo! – me interrompeu – Se descobrir que perdi o emprego. E-eu tô fodido, cara...
 
É, de fato. Naquilo eu não podia discordar – era melhor deixar a notícia bem longe do velho. O pai do Fer era difícil. O relacionamento dos dois era péssimo. E o temperamento de ambos também não ajudava, especialmente a forma “educada” do meu melhor amigo de falar umas verdades na cara do pai. Melhorou um pouco quando o namoro com a Mia começou. O pai enxergava a família da Mia como algum tipo de progresso para o Fer, os encorajando a casar e a porra toda. Mas, no geral, os dois não se davam. E as discussões eram barulhentas – as maçanetas e móveis do nosso apartamento sofriam terrivelmente.
 
Tudo era motivo para descer o pau no filho. E perder um emprego de anos colocava o Fernando à mercê das duras críticas paternas. O velho era um idiota. E além de tudo, não ia muito com a minha cara. Se não fosse tão amigo do meu pai, nem a mãe do Fer tão amiga da minha, provavelmente não ia me tolerar. Aos olhos dele, eu não passava de uma “lésbica suja”. E sim, essas foram as palavras exatas dele em meio a uma briga com o Fernando, no fim da nossa adolescência.
 
Eu era a razão de todo mal. O motivo pelo qual o filho dele tinha se tornado um maconheiro tatuado, que vivia no antro imundo da “Gay” Caneca e só andava com vagabundo. Mal sabia ele que o Fer tinha arranjado a primeira maconha que fumamos na vida – num rolê de skate quando a gente tinha uns treze. Mas, assim, sendo bem justa, a minha má fama tinha uma leve parcela de culpa nossa também. Quando éramos mais novos, a gente costumava culpar toda encrenca na qual nos metíamos um no outro. E não por sacanagem, era um acordo. Isso nos resultava bem menos bronca e conseguíamos voltar para a rua para aprontar mais, torcendo para ninguém cruzar as informações em algum churrasco de domingo.
 
E outra, como diabos a gente ia saber que dez anos depois estaríamos morando juntos e ainda tendo que lidar tão intensamente com a família um do outro, né?
 
_Fer, meu, a gente vai dar um jeito... – apoiei a mão no seu ombro, tentando animá-lo – Olha, eu te ajudo com a grana, cê pega a rescisão, pede seguro-desemprego, a gente revê seu currículo no fim de semana. Vai aparecer alguma coisa, meu...
_Não sei... – abaixou a cabeça, por um momento – ...é, sei lá, talvez cê tenha razão.
_Mano, vai ficar tudo bem. Cê vai ver...
_E velho, por quê cê num atendeu o telefone mais cedo?
_Te falei, meu, tá no conserto!
 _Mas por quê? Que que deu?
_Ah, eu quebrei ele ontem... – murmurei – ...meio que perdi o controle e joguei pra fora da cama, fodeu o visor. Não tá ligando...
_Puta, mano, mas você também é outra...
 
Ele começou a rir, me olhando em descrença. Empurrei o seu ombro e roubei seu cigarro, dando um trago rápido. Aí devolvi – mas o Fer seguia me zombando pela façanha de quebrar um celular indestrutível. “É a única vantagem desses telefones antigos, porra!”, argumentou, indignado. É. Agora que o Fer não tinha emprego talvez fosse prudente eu parar de destruir as coisas assim. Demos alguns passos adiante e sentamos na calçada, lado a lado, em frente ao estúdio, para terminar o cigarro. Faltava pouco para eu ter que voltar. Apoiei a cabeça no seu ombro e ele me olhou ali, num suspiro.
 
_Escuta, você não precisa ficar toda bicha aí... – ele riu – ...só porque eu tô desempregado, viu?
_Quê?! Tô de luto pelas minhas economias, não por você!
_Ah, tá! – retrucou com ironia, fazendo graça – Que economias?!
 
O olhei com todo o meu desprezo, tentando não rir.
 
_É, vai nessa. Vai fazendo gracinha, vai... – ameacei – Te deixo no olho da rua, rapá!
_Pior que é, né? – ele riu e abaixou a cabeça, logo se deixando abater pela realidade; eu sabia o quanto aquilo era realmente difícil para ele – Cara... – ele me encarou, de novo – ...eu preciso arranjar outra coisa, meu. Se eu tiver que voltar pra casa dos meus pais, mano, não vai dar. Aguentar o velho todo dia ia ser foda...
_Calma, a gente vai dar um jeito.