Algo de nostálgico transpirava por aquelas prateleiras empoeiradas
de madeira. Conforme o meu dedo deslizava, indeciso, pela capa do Mario Benedetti.
Um gosto secreto – meio de amor. E eis um sentimento perigoso para se deixar
corpo adentro, para se permitir que invada a mente assim. Mas lá estava – uma
vontade irracional de pagar por aquelas linhas. E levá-las comigo. É. Para
a garota que me confundia o coração.
Estar na Argentina, de certa forma, também me confundia. Não posso seriamente estar pensando na Mia,
olhei para o livro, agora com certo desgosto. Não. Os arredores pareciam subtrair das letras o cheiro dela,
sumindo sorrateiros com os seus olhos castanhos na minha mente. Eu tô aqui, não lá. Não preciso disso, porra – repetia na minha
cabeça como um mantra, me convencendo. Tenho
que aprender a deixar toda essa confusão pra trás.
Respirei fundo. E espiei mais uma vez sobre a prateleira, a Clara
caminhava lentamente de volta, distraída pelos títulos da pequena livraria de
sapatonas. Tá – encarei o livro do escritor
uruguaio em minhas mãos, decidida a deixá-lo na mesma cesta onde o tinha encontrado.
E o fiz. Não vou foder minha cabeça,
me convenci, indo em direção à Clara, esse é o meu fim de semana com você, porra.
_Olha o que eu achei! – ela segurou um Quino na minha frente, toda
feliz.
A capa amarelada indicava ser antigo, eu sorri.
_Perfeito.
_E você, viu alguma coisa?
_Não.
Quer dizer, meio que sim. Caminhar até o caixa da livraria foi
uma tarefa exaustiva. E um tanto difícil de se realizar sem dar bandeira. Pronto.
Agora nunca mais vou encontrar a merda do
poema, me angustiei, de repente. Parte de mim, ainda queria levá-lo. E
com certo nervosismo, eu dedilhava a mão direita sobre o balcão. Ruidosamente. Devia ter tirado uma foto da página – será
que posso fazer isso aqui? Eu divagava mentalmente. A Clara me cutucou, repetindo
em português o preço que a velhinha caminhoneira tinha dito, num espanhol enrolado.
Puxei a minha carteira do bolso, com pesos trocados horas antes. Por que eu sequer tô cogitando cenários?!
Não vou levar o livro, caralho, me
dissuadi. Só o Quino e pronto.
A senhora agora contava o meu troco, com certa demora. Tinha o
cabelo grisalho, cortado bem curtinho, e uma tatuagem velha no antebraço com as
linhas já vazadas. Não vai fazer falta
também, insisti na minha cabeça, a Mia não tá esperando presente nenhum. É.
Mas talvez por isso mesmo que seja tão legal, digladiei comigo mesma.
Argh. Peguei a alça da
sacola, já com o livro pago dentro, e nos despedimos da sapatão argentina.
Já estava escuro do lado de fora, na rua. A Clara parou em frente
à porta da livraria para acender um cigarro. “Você quer?”, ofereceu um Marlboro
aceso. E eu aceitei. Não. A Mia não
precisa de um livro meu, de poema nenhum, resmunguei para mim mesma. Tinha
deixado São Paulo com ela ainda meio brava. ‘Me desculpa’, sei. Devolvi o cigarro para a Clara. E por que ela se incomoda tanto, afinal? Se
vou viajar ou não? Ela tem o Fer, sempre teve, porra. E é, admito – às
vezes, eu pensava coisas estranhas.
Fomos andando pela calçada, juntas. Mas meus pensamentos seguiam acelerados. Começava a ficar rabugenta. A verdade
era que eu queria dar aquele livro para a Mia. Fazer caso do acaso. Numa ânsia
que me tomava a cada passo em que nos distanciávamos da esquina da livraria. E por que eu me incomodo tanto também? Sério
mesmo que tô tão apaixonada que não consigo ficar um dia sem pensar na porra do
nome dela? Aparentemente tô, né – revirei os olhos. Inferno.
Senti, de repente, como se traísse a Clara em pensamento. Mas, se amo ela assim, por que não consigo dizer? E o que, que merda eu
tô fazendo aqui?, me irritei
comigo mesma.
Aquilo era ridículo. É só um
poema, cacete.
Mas já dei
todo resto, não é, concluí,
angustiada, eu posso muito bem dar um poema pra
Mia. E num impulso como quem arranca um band-aid sem rodeios, pedi para que a Clara me esperasse e corri
meia quadra de volta para comprar a droga livro. “É para a Marina”, menti ao
retornar, já levemente arrependida, de cabeça baixa.
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