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março 31, 2013

Puerta de embarque 6

Ela estava em pé à minha frente, em silêncio. Entregou a sua passagem e eu a minha, logo em seguida. Andei uns metros atrás dela. Estávamos sentadas no par de cadeiras 14 C-D. Tinha a bota sobre os jeans, uma jaqueta por cima. Observou a janela durante a viagem toda. Recusou a comida. Continuava quieta, o rosto encostado no vidro frio. “Fala comigo”, toquei a sua mão. Quarenta minutos haviam se passado. Ela cruzou os seus braços. E não disse uma palavra, o voo todo até São Paulo.

...
But it was not your fault but mine
And it was your heart on the line
I really fucked it up this time
Didn't I, my dear? Didn’t I?
(Mumford & Sons)

março 30, 2013

Derradeiro

Ah, então nós ainda estamos discutindo, pensei. E enfiei tudo de qualquer jeito na mochila, incomodada – não com a pergunta em si, mas com o fato de ainda não ter me livrado dela. Dezenove horas depois do seu nome ter acidentalmente escorregado pela minha boca, a Mia continuava ali. Entre nós. Inferno.

_Clara... – virei mais uma vez para ela, vendo-a vestir uma camiseta meio de qualquer jeito – ...não começa isso de novo, por favor.
_“Não começa” o quê?
_Por que cê faz isso, mano? Por que entra nessas... – murmurei, a um metro de onde ela estava – ...cê só vai se deprimir, cara, só vai entrar num ciclo d...
_E por que eu vou me deprimir?! – me encarou, séria.
 
Tinha uma tristeza escondida no fundo dos olhos, como se soubesse a resposta que eu tanto segurava atrás dos meus dentes. Me arrependi do que tinha implicado.

_Não... não é isso... – abaixei a cabeça.
 
E ela repetiu, agora mais firme:
 
_O que tem entre você e a Mia?
_...
_Só fala.
_Nada.
_“Nada”?
_É. Nada! Não tem nada que cê precise saber... – me ergui do chão, aborrecida.
_Não. Não assim!
_“Não assim” como? – levantei a voz e ela ficou em pé também, se aproximando de mim sem muita paciência.
_EM CÓDIGO, PORRA! ASSIM! Ou você acha que eu sou idiota? – me encarou, muito segura do que dizia – Que já não ouvi isso antes? Que já não falei isso antes? “Nada que precise saber” não responde a minha pergunta! Não responde nada! E cada segundo que você demora pra responder direito só me machuca mais, você sabe disso.
_Por que cê tá surtando, Clara, caralho?! – passei as mãos no rosto, inquieta – Por que agora, porra? Por que de novo?! Por q...
_QUE DIFERENÇA FAZ?! – me interrompeu, de repente aos gritos –PÁRA DE DAR VOLTA!!
_EU SÓ MENCIONEI O NOME DELA!
_ESSA NÃO FOI A MINHA PERGUNTA!
 
Ela me encarou, com os olhos subitamente marejados. E eu fiquei em silêncio. Droga. Por alguns instantes, tudo o que se ouvia era a nossa respiração – a dela estava ofegante. Parecia ter pensado naquilo por mais tempo do que demonstrava agora. Talvez aqueles meses todos, não sei. Sentei na beirada da cama, angustiada. Isso não tá acontecendo, repeti na minha cabeça, tentando fugir da gravidade da situação em que nos encontrávamos. A Clara continuava em pé, com os braços agora cruzados. Parecia magoada.
 
Minutos depois, tornou a falar, sem me olhar diretamente:

_Você dormiu com ela, não dormiu?
_Dormi.

Respondi num impulso sincero, sem pensar.

_Quando?

Ouvi a sua voz, então, ganhar peso, perdendo contidamente o fôlego. Me arrependi na mesma hora.

_...
_Fala.
_Não intere... – suspirei.
_Não me diz o que interessa. Interessa!
_NÃO! NÃO INTERESSA! QUE DIFERENÇA FAZ, CLARA?! – levantei da cama, aflita – NENHUMA! EU TÔ AQUI, NÃO TÔ? EU TÔ COM VOCÊ. COM VOCÊ, PORRA! – lhe implorava, tocando seu braço – Eu vim. Eu vim, mano, ATÉ AQUI! EU TÔ AQUI! Vim, não vim? Como eu tenho vindo, cacete, todos esses meses! TODOS ELES! DO SEU LADO. SEU! Você acha que eu não gosto de você?! Que eu não te amo?!? QUE CARALHO IMPORTA A MIA?! O que a gente construiu não tem nada a ver com isso! Eu vi uma merda de um livro ontem e me lembrei dela e foi só isso, porra. SÓ ISSO! O que eu tenho com você é completamente diferente! Não tem nada a ver com essa, essa porcaria toda! É o que eu QUERO ter! Você entende isso? ENTENDE?! QUE UMA VEZ NA VIDA, EU SEI O QUE EU QUERO?!? E QUE O QUE EU QUERO É VOCÊ??
_NÃO! NÃO! – ela gritou e as lágrimas passaram a escorrer pelo seu rosto – EU NÃO QUERO OUVIR ISSO!
_LINDA, NÃO CH... POR FAVOR! MERDA! – chutei o colchão, desajeitando-o fora da cama, com raiva de mim mesma; e então abaixei a minha voz, segurando o seu rosto perto do meu, desesperada – Não chora. Por favor, não chora. Não chora... – me angustiei, beijando as suas lágrimas – ...Bi, não faz isso. Por favor. Eu...
_VOCÊ É UMA COVARDE, CARA! COMO? COMO CÊ TEM A CARA DE PAU DE VIR AQUI?!
_Linda... – os seus olhos, encharcados, pareciam diluir toda a minha existência; era a primeira vez que a via assim, que a deixava assim, e todo o drama da noite anterior parecia ainda pesar em nossas palavras, desgastadas, exaustas; senti o meu coração apertar, como nunca antes – ...por favor, não faz isso.
_EU SABIA! NO SEGUNDO EM QUE EU TE PERGUNTEI, EU SABIA! E... e você, VOCÊ... VOCÊ TEM A CARA DE PAU DE MENTIR! PRA MIM! PRA MIM!!! EU, PORRA! ME DIZ, QUANDO? QUANDO, CARALHO, EU TE DEI MOTIVO PRA ME TRATAR ASSIM??
_Não fala assim...
_VOCÊ PODIA TER ME CONTADO, TODOS ESSES MESES! – me interrompeu, ofendida – UMA A UMA, CACETE, EU TE DEI TODAS AS OPORTUNIDADES DO MUNDO PRA ME CONTAR NUMA BOA!! EU NUNCA TE PRESSIONEI COM ISSO! NUNCA! E VOCÊ ME FAZ DE IDIOTA, PORRA, VEM ATÉ AQUI COMIGO! VOCÊ, V-VOCÊ É UMA EGOÍSTA!! VOCÊ ME DEIXOU GOSTAR DE VOCÊ, ME DEIXOU MUDAR TUDO! TUDO O QUE EU PENSAVA, TUDO O QUE EU QUERIA PRA MIM! TUDO! ME DEIXOU ENTRAR NESSA MERDA DESSE RELACIONAMENTO COM, C-COM VOCÊ E... E, E NÃO ABRIU A BOCA! TODO ESSE TEMPO!!
_MAS NÃO TINHA O QUE CONTAR! O QUE EU IA FALAR, CARALHO?!? NÃO TINHA O QUE CONTAR AT...
_“Até”? ATÉ? É ISSO QUE CÊ IA FALAR? – ela me cortou, aos berros – ISSO FOI... FOI AGORA????? – ela começou a me empurrar para longe dela e as suas lágrimas se tornaram raivosas – SUA FILHA DA PUTA! SUA... CANALHA!

Merda.

_Quando... – hesitou – ...QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ?!
_Clara, eu nã...
_VOCÊ, v-você... você comeu ela essa semana, não comeu? – ela me encarou, como se a ficha caísse – COMEU, NÃO COMEU?!?
_Por favor, não faz isso...
_FILHA DA PUTA!! SUA FILHA DA PUTA!!

Me xingou. E voltou a chorar, sentando na beira da cama desarrumada. Me senti terrivelmente mal comigo mesma. “Uma pergunta...”, murmurou entre seus soluços, “...você não consegue me responder uma pergunta direito, cacete”. E foi como assistir todas as expectativas dela para aquele fim de semana irem por água abaixo. Graças à minha boca grande. Ao meu ego imenso, idiota. À minha incapacidade de ser sincera e feliz com a única porra de garota com quem eu deveria me importar. Eu sou uma estúpida mesmo, senti minha garganta fechar, eu não mereço nada do que tive com você, puta merda. Então me ajoelhei em frente a ela, com os olhos cheios de lágrimas. E toquei nas suas pernas, quase implorando.

_Por favor, me perdoa – beijei os seus joelhos descobertos, envergonhada – Por favor, Clá. Eu não... e-eu não sei o, o que eu faço, eu não sei. Eu sou uma idiota. Por favor. Por favor, meu. Eu, e-eu preciso de você. É egoísta e estúpido, mas eu preciso. Eu quero você na minha vida, por favor, eu te quero comigo. Não c... – encostei a face molhada na sua pele, onde as suas pernas se juntavam – Não me deixa. Por favor, me perdoa.
_Tira a mão de mim.
_Clara...
_Escuta aqui. Nós vamos subir naquele avião... – continuou, firme, como se se protegesse da minha pele, da minha existência ali, ao seu lado – ...e no segundo em que a gente chegar em São Paulo, eu não quero mais te ver. Você vai sumir da minha frente.
_Clara, por favor. Não faz isso. A gente tá cansada, linda, nós duas falamos cois...
_Não! VOCÊ FALOU! Você falou, não eu. Agora assume as consequências.

março 27, 2013

(...)

Dormimos entrelaçadas. E o dia amanheceu sobre os nossos olhos fechados, iluminando os nossos corpos desacordados. Aquelas eram as nossas últimas horas juntas em Buenos Aires. E elas atravessaram o nosso sono, caladas, como quem não quer perturbar uma quietude recentemente conquistada. As gargantas ainda arranhadas, as olheiras secas, a ressaca. Mas acordamos, inevitavelmente – com o celular da Clara tocando aos gritos quando já eram quase 16h.
 
A minha cabeça doía. Os meus músculos pareciam ter sido esmagados por um caminhão. E a Clara aparentava se incomodar com um torcicolo – provavelmente por ter dormido com o pescoço desajeitado sobre o meu braço. Deslizava a mão pela própria nuca e apertava os olhos em desconforto. Já em pé, eu a observa a alguns metros de onde estava sentada na cama, admirando-a – eu te amo, garota. E senti um impulso apaixonado de beijá-la, a sua pele. Mas a Clara estava quieta.

_Quanto tempo temos?

Perguntei e logo me abaixei para arrumar a mochila no chão, agachada de costas para o colchão. Minhas roupas estavam largadas ao redor. E como não ouvi resposta nos segundos seguintes, me virei para ela.

_Clara?
_... – os seus olhos não me encontraram, cabisbaixa, encarando as próprias mãos; e aí murmurou, pensativa – ...alguma, a-alguma vez você já mentiu para mim?
_O quê? – eu ri, sem entender a pergunta.
_Mentiu? – insistiu.

Respirei fundo. Soltando as roupas sobre a mochila.

_Por que isso, meu? – me angustiei – Por que cê quer...
_O que... – me interrompeu – ...o que tem entre você e a Mia?

março 25, 2013

3 Bit Blues

A madrugada se desenrolou complicada, numas brigas e reconciliações regadas a álcool. Nos perdoamos contra a parede suja do banheiro. E nos desentendemos na saída, numa calçada cheia de garotas e moleques de uns 20 anos, que não entendiam uma palavra do que dizíamos. Durou dez minutos. Fizemos as pazes no táxi de volta. A sua mão entrou na minha calça, no escuro do banco de trás. Ainda assim, a Clara se deprimiu ao chegar no quarto, fumando um baseado que descolara com um dos amigos. Estava silencioso demais. Entrou numa brisa errada, numa paranoia embriagada, numa dessas crises de ansiedade – e me culpava, falando irracionalidades induzidas por toda a bebida e aquela bad trip.

_Não, vem – eu sussurrava, a segurando em meus braços.

Sentia-a se desvencilhar e a Clara levantava da cama, em um desespero alcoolizado de fazer algo. “Senta aqui, vai”, eu tentava argumentar. Lutando contra o sono e a minha própria bebedeira. Sequer sabíamos por que discutíamos – não se tratava mais da Mia. A Clara sequer se lembrava do ocorrido. Se agitava. Por outros motivos, mais abstratos. Eram frustrações, pequenos instantes transformados em angústias, desacordos; amplificados pelos arredores e bem desproporcionalmente pelas substâncias em nossas veias. E cada curva que a madrugava dava parecia assumir uma forma completamente nova, nuns dimorfismos carregados. O sol quase nascia e ainda estávamos alucinadas, acordadas em plenas 6 da manhã naquele quarto claustrofóbico.

_Vem pra cama, linda.
_Eu não m-me, me sinto bem – choramingava, ofegante, curvada em pé contra a parede.
_Cê tá bêbada, vai, vem. Cê vai se sentir melhor amanhã! Eu prometo.
_Eu n-não... quero.
_Não quer o quê? – eu perguntava, sentada no colchão; os meus olhos quase fechando de tão pesados.
_Me sentir melhor, eu... e-eu não quero.
_Não fala assim, Bi. Vamos!
_...
_Bi... – me levantei também e a abracei pelas costas – ...vamos, vai. Não faz assim.
_E O QUE VOCÊ SABE?! – se irritou.
_Clara...
_VOCÊ NÃO SABE DE NADA! DE NADA, PORRA!
_Clara, para... – ela se agitava e eu a segurava ainda mais forte, tentando fazer com que se acalmasse – ...eu tô aqui, vamos lá. Não começa com isso de novo.
_TÁ TUDO ERRADO. TUDO. Eu sou uma estúpida!
_Não é. E não é assim. Vamos, vai... cê tem que deixar a brisa passar, meu. Cê já sabe como funciona, linda, vai passar. É só a gente dormir... vai ficar tudo bem.
_Eu n... e-eu não quero, Bo. Eu não posso. EU NÃO QUERO FICAR AQUI! ME TIRA DESTE QUARTO! POR FAVOR! Eu não consigo ficar aqui...
_Consegue, sim. Vem. Deita comigo, a gente conversa até o sono chegar.
_EU NÃO QUERO! Eu não q... – começou a chorar, bêbada.
_Não pensa nisso, linda. Tá tudo bem, vem.
_...

Um instante de silêncio se seguiu. E eu lhe tirei aos poucos a blusa, os shorts, os largando no chão. Aí a coloquei debaixo do lençol, com todo cuidado que a minha falta de sobriedade permitia. E deitei então ao seu lado, virada na sua direção. “Você me acha louca?”, ela indagou num cochichar baixinho, quase constrangida. “Nem um pouco”, garanti. E me pus a contar todos os meus surtos de outras madrugadas, pela Augusta afora em São Paulo. A Clara esboçou um sorriso. 
 
Se divertia com as minhas histórias, com o mais podre de mim. Porres homéricos, brigas alucinadas. Horas e horas de autopiedade na cozinha vazia, entornando um copo de rum atrás do outro. Contei da vez em que impedi que a Dani tomasse remédios demais, depois de uma madrugada bêbada, completamente deprimida e fora de si. A Clara segurou o meu rosto, com carinho. E em seguida, descrevi a noite em que eu mesma misturei mais do que devia, alguns anos antes. Tive a certeza de que ia morrer, gritei e chorei incansavelmente; o Fernando ficou horas acordado ao meu lado, no chão do apartamento.

_Sempre passa. E aí cê jura que nunca mais vai beber... fumar, fazer porra nenhuma.
_Até a semana seguinte... – ela sorriu, por um instante.
_É.

O clima agora estava mais calmo, mais sóbrio – em todos os sentidos. O seu nariz tocava desavisadamente a ponta do meu. Numa lentidão cansada. Um milímetro mais para cá. E outro milímetro para lá, num deslizar bobo. Nuns vai-e-véns inconscientes. Sonolentos. Aquelas nossas conversas e o toque da sua pele me faziam sentir em casa. Havia uma cumplicidade genuína entre nós, um ser e falar absolutamente livre de julgamentos. De certa forma, o relacionamento que tinha com a Clara era o mais sincero que eu já tinha tido. Mas de outras formas, não. Sabia que aquele era meu mundo – ali, com ela. E havia conforto em saber disso. Na certeza de que nos encaixávamos. Movi o meu corpo mais para frente e a encontrei adiante, num beijo instintivo. Num desencadear.
 
Estávamos exaustas.

março 19, 2013

Então é guerra

E até aquela altura eu estava perdendo. O jantar com os amigos foi um desastre – atravessada, a Clara fez questão de falar espanhol a noite toda e deve ter dado a entender que eu estava de castigo, ou algo assim, porque todo mundo naquela mesa me olhava com desprezo. Ou talvez fosse a hospitalidade portenha. Vai saber. Os amigos eram um casal de caras já na casa dos 30 e uma sapatão um pouco mais nova, além do dono da casa – o Ignacio. Tagarelavam animados entre si. O único momento em que falaram comigo foi para perguntar se eu ia beber algo, quando o garçom estava à beira da mesa.

E sim – comecei a me encher de álcool.
 
Argh. Essa noite vai ser longa, resmunguei para mim mesma, virando uma dose de pisco. Que opção eu tinha? Dali fomos para uma balada, chamada Amerika, e só piorou. Durante a primeira hora, a Clara sumiu na pista com os amigos, enquanto eu abraçava o bar e fazia amizade com o garçom. Segundo ele, brasileiro era o que não faltava em Buenos Aires. Eu já estava na terceira dose, quando a Clara e os amigos encostaram ao meu lado na bancada, completamente suados, pedindo algo para tomar. Os drinks chegaram rápido. E sem parecer sincera, a Clara me perguntou se eu queria me juntar a eles na pista – eu declinei. Podia ver os seus olhos revoltados com a minha resposta, ainda que soubesse que ela não me queria lá de fato – “tá bom”.
 
Sabia que estava piorando as coisas, mas não conseguia simplesmente ir dançar e fingir que ela não tinha me ignorado por horas. Sequer me virei para ver onde estavam indo quando decidiram voltar para a pista. Que se fodam eles, que se foda a Argentina toda. Fingi que a culpa não era minha. E pelos minutos seguintes, comecei a virar tequilas. Já tinha passado da meia-noite e o meu aniversário de 25 já estava começando errado. Então decidi perder o juízo, descontei no meu fígado. O que nunca dá muito certo, não é? Nem quarenta minutos depois e eu estava amiga de um grupo de chilenos que encontrei perdidos por ali, já completamente torta. O meu espanhol estava mais fluente do que nunca. Apoiava-me num deles para contar uma história que agora sequer lembro qual era, enquanto eles gritavam de volta e riam, entretidos. Eram simpáticos. Decidi, então, que não gostava de argentinos e que eles, os chilenos, eram simplesmente mais legais.
 
Minhas pernas já estavam trançando quando decidi que era hora de resolver a situação com a Clara. E entrar na pista foi uma experiência alucinada e confusa. O som estava alto, as pessoas completamente molhadas, tinha espuma de sabão para todo lado e as luzes mudavam freneticamente de cor. Eu estava embriagada. Realmente embriagada. Prestes a piorar ainda mais a situação. Via os corpos dos outros passarem por mim, tomada por uma vontade irracional de empurrá-los para longe. Entre aquele caos de espuma e gente com a roupa ensopada, vi um dos amigos da Clara ao longe. Comecei a ir em sua direção, cambaleando e sem enxergar direito; as pessoas gritavam umas com as outras, à minha volta, rindo. Estavam todos lá quando cheguei e a Clara dançava, encharcada, atracada com outra garota.
 
Filha da mãe.

Fiquei furiosa. Ela me viu, a cinco passos de onde estavam, e eu virei as costas na mesma hora. Saí em disparada, emputecida, sem vontade de ouvir uma palavra que tivesse para me dizer. Um dos amigos dela veio atrás de mim, a Clara sequer se deu ao trabalho. Comecei a mandar o cara calar a boca, conforme ele gritava qualquer coisa na minha direção – parecia tentar explicar a situação por ela. Mas eu não queria ouvir. Comecei a perder o controle. Debati os braços, me soltando dele, e segui andando – mas ele insistiu, grudado à lateral do meu rosto, como um parasita, berrando no meu ouvido.
 
Voltei para o bar e pedi um whisky. O cara seguia falando “¡no pasa nada!”, se repetindo, e eu o mandava à merda. Virei a dose assim que chegou. E já pedi logo outra. O argentino me segurou o braço, falando um “ê, ê” cauteloso, como se me pedisse para ir devagar, implorando para que eu fosse lá resolver direito. Eu não preciso resolver porra nenhuma. Virei o outro copo inteiro. E na décima resposta estourada minha, ele deu de ombros e voltou para a pista, deixando de se importar.

Inferno. Empurrei a droga do copo adiante na bancada e me virei também, voltando para onde eles estavam. Quando revi a Clara, a garota estava ao seu lado, ambas com espuma até quase a cintura. Os amigos também, todos ali, em pé, comovidos pela nossa ceninha de uns minutos antes. A Clara me encarou, ressentida, como se tivesse vontade de fazer pior. Marchei na sua direção e a puxei para fora da rodinha de amigos, demos dois passos adiante. Mas aí ela se recusou a ir – sem falar nada. Só se soltou de mim, com raiva, como quem quer sair de perto. Peguei na sua mão de novo e ela me empurrou. Começou a andar no sentido oposto, de volta, completamente embriagada.
 
_CÊ NÃO VAI FALAR COMIGO, PORRA? – gritei, competindo com o som alto.
 
Foi o suficiente para a Clara se virar na minha direção, nervosa, mandando eu me foder. E do nada, a situação toda explodiu. A tal garota se aproximou. Um dos amigos entrou no meio de nós duas e começamos a discutir. Virei para a Clara, a encarando e falando na sua direção – “SÉRIO? CÊ VAI MANDAR EU ME FODER? É ASSIM QUE A GENTE VAI RESOLVER AS COISAS?!?”. “NÃO QUERO FALAR COM VOCÊ AGORA!”, ela gritava. “AGORA?”, me irritei, “FAZ TRÊS, QUATRO HORAS QUE CÊ NÃO FALA COMIGO!”. Fiz um gesto para o cara me largar, me irritando com as suas mãos em mim. O Ignacio saiu detrás do balcão do bar, me empurrando, querendo que eu me afastasse da sua amiga. Empurrei ele de volta. A garota começou a falar qualquer coisa a dez centímetros da minha cara. “MANDA ELA CALAR A BOCA!”, eu gritava para a Clara. E o barraco foi ganhando proporções gigantes, saindo do controle.
 
_ESCUTA – puxei a Clara pela mão mais uma vez, chegando próxima do seu ouvido – A GENTE NÃO PRECISA FAZER ISSO AQUI. SE CÊ QUER FICAR BRAVA COMIGO, FICA BRAVA COMIGO. QUER PEGAR A PORRA DA MINA, PEGA! – argumentei, bêbada – EU VOU FICAR LÁ FORA. E QUANDO CÊ TERMINAR, EU VOU TÁ TE ESPERANDO. FAZ O QUE QUISER, CLARA.
_É?? – me ameaçou – POIS EU DEVIA FAZER MESMO!!
_QUAL É O SEU PROBLEMA, CARALHO?! É A MIA?? UMA FRASE QUE EU TE FALEI?!? É ISSO??
_NÃO. NÃO É A PORRA DA MIA. É VOCÊ! VOCÊ!!
_ENTÃO FICA BRAVA COMIGO, CACETE! FALA! – berrei na direção dela, com os olhos já marejados, sentindo que tinha fodido tudo – FALA QUE EU SOU UMA IDIOTA! EU SOU, EU SOU MESMO! UMA PORRA DUMA IDIOTA! MAS EU NÃO TAVA TENTANDO TE MAGOAR, SÓ QUERIA PODER CONVERSAR, INFERNO! POR FAVOR, NÃO ME IGNORA! SÓ FALA! ME XINGA! FAZ QUALQUER COISA! – esfreguei a mão no rosto, fora de mim – EU AMO VOCÊ, DESGRAÇA!
_AH, AMA? O QUE ISSO QUER DIZER?!? – apontou o dedo na minha cara, nervosa – QUE VOCÊ VAI VIR ATÉ AQUI COMIGO PARA FALAR SOBRE A PORRA DA MIA? PRA FICAR PENSANDO NELA??!?
_CLARA, CARALHO, EU SÓ...
_VOCÊ O QUÊ? – me interrompeu, pistola – HEIN, VOCÊ O QUÊ?? PORQUE SE VOCÊ ACHA QUE PODE FAZER AS COISAS ASSIM, QUE EU VOU FICAR PARADA ESCUTANDO, CÊ TÁ MUITO ENGANADA!
_NA BOA, FAZ A MERDA QUE CÊ QUISER, CLÁ... QUE SE FODA!

Saí andando, largando das suas mãos. E dez minutos depois, a gente estava se comendo no banheiro.

março 14, 2013

Littorina littorea

_Vou daqui a pouco – murmurei.
 
E não entrei no chuveiro com a Clara. Estava acabando de guardar ambos os livros na minha mochila – o que ela pegou para mim e o que eu peguei para a Mia, num movimento que me fazia sentir mais culpada do que provavelmente parecia.
 
Uns minutos antes, assim que entramos na casa, cruzamos com o amigo da Clara pela primeira vez desde que nos hospedamos ali. Era uma bicha franzina, bem afeminada, o tipo de cara que seria meu amigo na Augusta. Nos convidou para ir jantar com uns amigos e depois ir para balada onde ele trabalhava, disse que conseguia nos colocar para dentro de graça. Ótimo, pensei, já que gastei o que não tinha com tatuagem e esse maldito livro.
 
O plano era só tomar um banho rápido e sair. Mas conforme a Clara ligava o chuveiro, deitei meu corpo no colchão. E fiquei afundada ali por um instante, com a cabeça ainda cheia, me atormentando com como diabos eu tinha deixado a situação chegar naquele ponto. O peso se arrastava dentro do meu peito. Argh. O que eu tô fazendo?!, deslizei as mãos pelo rosto, atordoada. Não conseguia entender como uma porra de um poema tinha força assim para me desestruturar. E como a Mia, mesmo a 2.000 quilômetros de distância, conseguia estragar a minha viagem com a Clara.
 
Mas conseguia, desgraça.
 
Meu coração estava pesado. E não era de agora – angustiada, me peguei de repente pensando no porquê da Mia ter surtado tanto com a viagem. Em como estavam as coisas entre nós nos últimos três meses. O que invariavelmente me levou a questionar o que ela sentia por mim – uma linha de pensamento que nunca foi muito fácil de desenrolar. Dava voltas dentro do meu peito, me emaranhava, puta que pariu. E eu queria estar lá, queria estar com a Clara, porra, estar por inteiro. Mas a verdade é que não importava quão longe eu fosse, nem se eu saísse da droga do país, não conseguia fugir de como me sentia. Já estava no limite daquela confusão.
 
_E essa brisa aí, hum? – a Clara riu, saindo do banho e me olhando ainda ali – ¿Qué pasa?

Estava encostada contra o batente da porta que dividia o quarto do banheirinho. Nuns shorts desses soltinhos de linho, num tom queimado bonito; com o cabelo molhado pingando sobre a sua barriga. “Nada”, sorri amarelo, de volta. Ela andou até a cama, deitando ao meu lado. Tinha um caramujinho minúsculo de menos de um centímetro tatuado sobre as costelas, meio na altura dos seios. E que de tão pequeno me dava vontade de tocar na sua pele, toda vez que o avistava, sob pretexto de averiguar se não era uma pintinha.

_Não é “nada”, Bo...
_Ah, tô meio, sei lá... – respondi então, escorregando o polegar sobre as pequenas linhas.
_Hum...
_Foi um dia esquisito.
_Esquisito, por quê? – deitou com a cabeça virada para o meu lado, fazendo carinho no meu rosto – Achei que cê tava gostando daqui...
_Eu tô, meu. É só que eu... – murmurei e quis, por um segundo, poder lhe contar, poder conversar sobre tudo com ela – ...fiquei meio, não sei. Pensando, sabe?
_“Pensando”?
_É. Na... – meu coração afundou – ...Mia.

Merda. Tão logo pronunciei o seu nome e antes que pudesse me explicar, sem ter pensado direito, a Clara se levantou irritada. “Vamos”. Não disse mais nada, não brigou comigo. Simplesmente ficou em pé e vestiu uma regata preta, numa pressa quase rude. E aí a batalha começou.

março 08, 2013

O caso do acaso

Algo de nostálgico transpirava por aquelas prateleiras empoeiradas de madeira. Conforme o meu dedo deslizava, indeciso, pela capa do Mario Benedetti. Um gosto secreto – meio de amor. E eis um sentimento perigoso para se deixar corpo adentro, para se permitir que invada a mente assim. Mas lá estava – uma vontade irracional de pagar por aquelas linhas. E levá-las comigo. É. Para a garota que me confundia o coração.
 
Estar na Argentina, de certa forma, também me confundia. Não posso seriamente estar pensando na Mia, olhei para o livro, agora com certo desgosto. Não. Os arredores pareciam subtrair das letras o cheiro dela, sumindo sorrateiros com os seus olhos castanhos na minha mente. Eu tô aqui, não lá. Não preciso disso, porra – repetia na minha cabeça como um mantra, me convencendo. Tenho que aprender a deixar toda essa confusão pra trás.
 
Respirei fundo. E espiei mais uma vez sobre a prateleira, a Clara caminhava lentamente de volta, distraída pelos títulos da pequena livraria de sapatonas. – encarei o livro do escritor uruguaio em minhas mãos, decidida a deixá-lo na mesma cesta onde o tinha encontrado. E o fiz. Não vou foder minha cabeça, me convenci, indo em direção à Clara, esse é o meu fim de semana com você, porra.

_Olha o que eu achei! – ela segurou um Quino na minha frente, toda feliz.
 
A capa amarelada indicava ser antigo, eu sorri.
 
_Perfeito.
_E você, viu alguma coisa?
_Não.
 
Quer dizer, meio que sim. Caminhar até o caixa da livraria foi uma tarefa exaustiva. E um tanto difícil de se realizar sem dar bandeira. Pronto. Agora nunca mais vou encontrar a merda do poema, me angustiei, de repente. Parte de mim, ainda queria levá-lo. E com certo nervosismo, eu dedilhava a mão direita sobre o balcão. Ruidosamente. Devia ter tirado uma foto da página – será que posso fazer isso aqui? Eu divagava mentalmente. A Clara me cutucou, repetindo em português o preço que a velhinha caminhoneira tinha dito, num espanhol enrolado. Puxei a minha carteira do bolso, com pesos trocados horas antes. Por que eu sequer tô cogitando cenários?! Não vou levar o livro, caralho, me dissuadi. Só o Quino e pronto.
 
A senhora agora contava o meu troco, com certa demora. Tinha o cabelo grisalho, cortado bem curtinho, e uma tatuagem velha no antebraço com as linhas já vazadas. Não vai fazer falta também, insisti na minha cabeça, a Mia não tá esperando presente nenhum. É. Mas talvez por isso mesmo que seja tão legal, digladiei comigo mesma. Argh. Peguei a alça da sacola, já com o livro pago dentro, e nos despedimos da sapatão argentina.
 
Já estava escuro do lado de fora, na rua. A Clara parou em frente à porta da livraria para acender um cigarro. “Você quer?”, ofereceu um Marlboro aceso. E eu aceitei. Não. A Mia não precisa de um livro meu, de poema nenhum, resmunguei para mim mesma. Tinha deixado São Paulo com ela ainda meio brava. ‘Me desculpa’, sei. Devolvi o cigarro para a Clara. E por que ela se incomoda tanto, afinal? Se vou viajar ou não? Ela tem o Fer, sempre teve, porra. E é, admito – às vezes, eu pensava coisas estranhas.
 
Fomos andando pela calçada, juntas. Mas meus pensamentos seguiam acelerados. Começava a ficar rabugenta. A verdade era que eu queria dar aquele livro para a Mia. Fazer caso do acaso. Numa ânsia que me tomava a cada passo em que nos distanciávamos da esquina da livraria. E por que eu me incomodo tanto também? Sério mesmo que tô tão apaixonada que não consigo ficar um dia sem pensar na porra do nome dela? Aparentemente tô, né – revirei os olhos. Inferno. Senti, de repente, como se traísse a Clara em pensamento. Mas, se amo ela assim, por que não consigo dizer? E o que, que merda eu tô fazendo aqui?, me irritei comigo mesma.
 
Aquilo era ridículo. É só um poema, cacete.

Mas já dei todo resto, não é, concluí, angustiada, eu posso muito bem dar um poema pra Mia. E num impulso como quem arranca um band-aid sem rodeios, pedi para que a Clara me esperasse e corri meia quadra de volta para comprar a droga livro. “É para a Marina”, menti ao retornar, já levemente arrependida, de cabeça baixa.

março 06, 2013

Corazón coraza

Na manhã seguinte, senti doer cada músculo do meu corpo – num lento despertar dos sentidos. Minha cabeça era devorada pela ressaca. Por que diabos inventei de tomar tanto vinho? Ao contrário dos destilados, com porre de vinho eu não tava acostumada. Me destruía completamente. E para piorar, sentia minhas pernas fracas de toda a atividade na madrugada anterior, a pele calejada de hematomas e mordidas nas costas, chupões no pescoço, roxos nas pernas e marcas do lenço torcido nos pulsos – de quando a Clara resolveu se vingar.
 
A sensação geral era tinha sido atropelada por um caminhão. Tô ficando velha, lamentei, passando as mãos no rosto sentada à beira da cama. Caralho. Me bateu uma crise um dia antes de fazer 25. Uns outonos antes, pensei, teria levantado só com uma ressaca leve e ido contabilizar as marcas no espelho, achando graça. Olhei para o lado, para a Clara adormecida ali. É. Mas uns outonos antes, sorri, eu não tinha você. E virei para frente, colocando o rosto entre as mãos novamente. Essa garota vai me matar, puta que pariu.
 
Me enchia o peito duma felicidade boba estar assim com ela, viver as coisas ao seu lado. Juntei forças para me levantar. E fui até a mochila largada no canto do quarto, pegando uma cueca qualquer e a vestindo, após um banho rápido naquele chuveiro gelado. Então coloquei o único jeans que tinha levado e uma regata branca. E deixei o quarto, à surdina. Saí na rua, andando algumas quadras até encontrar o que parecia ser um café.
 
Gesticulei. Fiz mímica. Gastei o todo meu espanhol fajuto para comprar un café de la mañana. E a atendente riu – repetindo desayuno algumas vezes. Finalmente entendi que era a mesma coisa. Comprei o que deu com uns pesos que a Clara tinha, apontando o que pareciam ser uns sanduíches e pegando dois cafés para viagem. Fiz o que pude para garantir que não tivesse carne nos lanches, mas saí sem muita certeza de que a garota realmente tinha me entendido. O bairro era ainda mais bonito durante o dia. Voltei observando as ruas, tentando não me perder. E a Clara ainda estava dormindo quando cheguei, vinte minutos depois.
 
Sorriu ao abrir os olhos e me ver parada ali, com dois cafés na mão – “vou ficar mal acostumada assim”, murmurou. Comemos em cima do colchão e ela se divertiu, implorando para eu repetir como tinha pedido tudo aquilo no café. Achando graça, me escutando balbuciar aquele espanhol ruim. E em menos de meia hora, estávamos saindo pela porta. Tínhamos muito para ver – de uma estranha flor de metal a um palácio não tão rosa, uma avenida muito larga.
 
Andamos o dia inteiro. Os meus favoritos foram os murais de artistas de rua dedicados ao Quino e a estátua da Mafalda, ao lado da qual sentei e pedi pela primeira vez na viagem toda que a Clara tirasse uma foto. Almoçamos num restaurante em San Telmo e como já beirava as 16, tomamos mais vinho. “Estamos na Argentina”, justificamos o tempo todo, que se dane. E aí pedi para a Clara me levar em algum estúdio de tatuagem – queria um rabisquinho internacional. Entramos no primeiro que achamos e eu fiz um “33” quase nas costas da mão, em homenagem ao vinho, em cima do pulso ainda marcado daquela madrugada.
 
Nem uma hora depois, movida pelo meu entusiasmo com a Pequena Notável mais cedo, a Clara me arrastou até uma livraria alternativa do bairro, com pilhas caóticas de livros empoeirados por toda parte e que era administrada por um casal de caminhoneiras. Que animal. Absolutamente todos os lugares que a Clara me levava me empolgavam, numa vontade de ver, de viver tudo que podia ali.
 
_Eu gostava de vir aqui... – me contou, baixinho, cumprimentando de longe uma das sapatas – ...quando era nova, com uns 11, 12 anos. E minha mãe, em negação, achando que eu era hétero.
 
Olhei para ela, achando graça. Aí peguei um livro que estava numa grande cesta de palha no chão, em promoção. Parecia meio de sebo, com as bordas detonadas. Era de poesias. A Clara seguia adiante, buscando pelas prateleiras mais ao fundo para ver se me achava um Quino original – em espanhol. Folheei as páginas com certo interesse em ver quanto daquilo eu conseguia entender.
 
Inicialmente, os poemas eram curtos e simples. Me pareciam o tipo de coisa que a Marina ia gostar de ler. E pensei em levá-lo de presente para ela. Até que, na página 79, as linhas finais de um dos poemas me prenderam, estranhamente.

Diziam:
 
“Porque eres mía
Porque no eres mía
Porque te miro y muero y peor que muero
Si no te miro amor, si no te miro

Porque tú siempre existes dondequiera
Pero existes mejor donde te quiero
Porque tu boca es sangre y tienes frío

Tengo que amarte amor, tengo que amarte
Aunque esta herida duela como dos
Aunque te busque y no te encuentre
Y aunque la noche pase y yo te tenga
Y no

E não sei bem por que, mas meu coração acelerou. Fechei o livro, em silêncio. E olhei por cima das prateleiras, a Clara estava ao longe. Pensei em devolvê-lo ao cesto – mas parte de mim queria levar. Não para a Marina, nem para mim. Cacete. Relutei, subitamente apegada àquelas páginas.