Ah, então nós
ainda estamos discutindo, pensei. E enfiei tudo de qualquer jeito na mochila,
incomodada – não com a pergunta em si, mas com o fato de ainda não ter me
livrado dela. Dezenove horas depois do seu nome ter acidentalmente escorregado pela
minha boca, a Mia continuava ali. Entre nós. Inferno.
_Clara... – virei mais uma vez para ela, vendo-a vestir uma
camiseta meio de qualquer jeito – ...não começa isso de novo, por favor.
_“Não começa” o quê?
_Por que cê faz isso, mano? Por que entra nessas... – murmurei, a
um metro de onde ela estava – ...cê só vai se deprimir, cara, só vai entrar num
ciclo d...
_E por que eu vou me deprimir?! – me encarou, séria.
Tinha uma tristeza escondida no fundo dos olhos, como se soubesse
a resposta que eu tanto segurava atrás dos meus dentes. Me arrependi do que tinha
implicado.
_Não... não é isso... – abaixei a cabeça.
E ela repetiu, agora mais firme:
_O que tem entre você e a Mia?
_...
_Só fala.
_Nada.
_“Nada”?
_É. Nada! Não tem nada que cê precise saber... – me ergui do chão,
aborrecida.
_Não. Não assim!
_“Não assim” como? – levantei a voz e ela ficou em pé também, se
aproximando de mim sem muita paciência.
_EM CÓDIGO, PORRA! ASSIM! Ou você acha que eu sou idiota? – me
encarou, muito segura do que dizia – Que já não ouvi isso antes? Que já não falei isso antes? “Nada que precise
saber” não responde a minha pergunta! Não responde nada! E cada segundo que você demora pra responder
direito só me machuca mais, você sabe disso.
_Por que cê tá surtando, Clara, caralho?! – passei as mãos no
rosto, inquieta – Por que agora, porra? Por que de novo?! Por q...
_QUE DIFERENÇA FAZ?! – me interrompeu, de repente aos gritos –PÁRA
DE DAR VOLTA!!
_EU SÓ MENCIONEI O NOME DELA!
_ESSA NÃO FOI A MINHA PERGUNTA!
Ela me encarou, com os olhos subitamente marejados. E eu fiquei em
silêncio. Droga. Por alguns instantes,
tudo o que se ouvia era a nossa respiração – a dela estava ofegante. Parecia
ter pensado naquilo por mais tempo do que demonstrava agora. Talvez aqueles
meses todos, não sei. Sentei na beirada da cama, angustiada. Isso não tá acontecendo, repeti na minha
cabeça, tentando fugir da gravidade da situação em que nos encontrávamos. A
Clara continuava em pé, com os braços agora cruzados. Parecia magoada.
Minutos depois, tornou a falar, sem me olhar diretamente:
_Você dormiu com ela, não dormiu?
_Dormi.
Respondi num impulso sincero, sem pensar.
_Quando?
Ouvi a sua voz, então, ganhar peso, perdendo contidamente o
fôlego. Me arrependi na mesma hora.
_...
_Fala.
_Não intere... – suspirei.
_Não me diz o que interessa. Interessa!
_NÃO! NÃO INTERESSA! QUE DIFERENÇA FAZ, CLARA?! – levantei da cama,
aflita – NENHUMA! EU TÔ AQUI, NÃO TÔ? EU TÔ COM VOCÊ. COM VOCÊ, PORRA! – lhe
implorava, tocando seu braço – Eu vim. Eu vim, mano, ATÉ AQUI! EU TÔ AQUI! Vim,
não vim? Como eu tenho vindo, cacete, todos esses meses! TODOS ELES! DO SEU LADO.
SEU! Você acha que eu não gosto de você?! Que eu não te amo?!? QUE CARALHO
IMPORTA A MIA?! O que a gente construiu não tem nada a ver com isso! Eu vi uma
merda de um livro ontem e me lembrei dela e foi só isso, porra. SÓ ISSO! O que
eu tenho com você é completamente diferente! Não tem nada a ver com essa, essa porcaria
toda! É o que eu QUERO ter! Você entende isso? ENTENDE?! QUE UMA VEZ NA VIDA, EU
SEI O QUE EU QUERO?!? E QUE O QUE EU QUERO É VOCÊ??
_NÃO! NÃO! – ela gritou e as lágrimas passaram a escorrer pelo seu
rosto – EU NÃO QUERO OUVIR ISSO!
_LINDA, NÃO CH... POR FAVOR! MERDA! – chutei o colchão, desajeitando-o
fora da cama, com raiva de mim mesma; e então abaixei a minha voz, segurando o
seu rosto perto do meu, desesperada – Não chora. Por favor, não chora. Não
chora... – me angustiei, beijando as suas lágrimas – ...Bi, não faz isso. Por
favor. Eu...
_VOCÊ É UMA COVARDE, CARA! COMO? COMO CÊ TEM A CARA DE PAU DE VIR
AQUI?!
_Linda... – os seus olhos, encharcados, pareciam diluir toda a
minha existência; era a primeira vez que a via assim, que a deixava assim, e todo o drama da noite anterior
parecia ainda pesar em nossas palavras, desgastadas, exaustas; senti o meu
coração apertar, como nunca antes – ...por favor, não faz isso.
_EU SABIA! NO SEGUNDO EM QUE EU TE PERGUNTEI, EU SABIA! E... e
você, VOCÊ... VOCÊ TEM A CARA DE PAU DE MENTIR! PRA MIM! PRA MIM!!! EU, PORRA!
ME DIZ, QUANDO? QUANDO, CARALHO, EU TE DEI MOTIVO PRA ME TRATAR ASSIM??
_Não fala assim...
_VOCÊ PODIA TER ME CONTADO, TODOS ESSES MESES! – me interrompeu, ofendida
– UMA A UMA, CACETE, EU TE DEI TODAS AS OPORTUNIDADES DO MUNDO PRA ME CONTAR
NUMA BOA!! EU NUNCA TE PRESSIONEI COM ISSO! NUNCA! E VOCÊ ME FAZ DE IDIOTA, PORRA,
VEM ATÉ AQUI COMIGO! VOCÊ, V-VOCÊ É UMA EGOÍSTA!! VOCÊ ME DEIXOU GOSTAR DE
VOCÊ, ME DEIXOU MUDAR TUDO! TUDO O QUE EU PENSAVA, TUDO O QUE EU QUERIA PRA MIM!
TUDO! ME DEIXOU ENTRAR NESSA MERDA DESSE RELACIONAMENTO COM, C-COM VOCÊ E... E,
E NÃO ABRIU A BOCA! TODO ESSE TEMPO!!
_MAS NÃO TINHA O QUE CONTAR! O QUE EU IA FALAR, CARALHO?!? NÃO TINHA
O QUE CONTAR AT...
_“Até”? ATÉ? É ISSO QUE CÊ IA FALAR? – ela me cortou, aos berros –
ISSO FOI... FOI AGORA????? – ela começou a me empurrar para longe dela e as suas
lágrimas se tornaram raivosas – SUA FILHA DA PUTA! SUA... CANALHA!
Merda.
_Quando... – hesitou – ...QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ?!
_Clara, eu nã...
_VOCÊ, v-você... você comeu ela essa semana, não comeu? – ela me
encarou, como se a ficha caísse – COMEU, NÃO COMEU?!?
_Por favor, não faz isso...
_FILHA DA PUTA!! SUA FILHA DA PUTA!!
Me xingou. E voltou a chorar, sentando na beira da cama
desarrumada. Me senti terrivelmente mal comigo mesma. “Uma pergunta...”, murmurou entre seus soluços, “...você não consegue
me responder uma pergunta direito, cacete”. E foi como assistir todas as
expectativas dela para aquele fim de semana irem por água abaixo. Graças à
minha boca grande. Ao meu ego imenso, idiota. À minha incapacidade de ser
sincera e feliz com a única porra de garota com quem eu deveria me importar. Eu sou uma estúpida mesmo, senti minha
garganta fechar, eu não mereço
nada do que tive com você, puta merda. Então me ajoelhei em frente a ela, com
os olhos cheios de lágrimas. E toquei nas suas pernas, quase implorando.
_Por favor, me perdoa – beijei os seus joelhos descobertos, envergonhada
– Por favor, Clá. Eu não... e-eu não sei o, o que eu faço, eu não sei. Eu sou
uma idiota. Por favor. Por favor, meu. Eu, e-eu preciso de você. É egoísta e estúpido,
mas eu preciso. Eu quero você na minha vida, por favor, eu te quero comigo. Não
c... – encostei a face molhada na sua pele, onde as suas pernas se juntavam – Não
me deixa. Por favor, me perdoa.
_Tira a mão de mim.
_Clara...
_Escuta aqui. Nós vamos subir naquele avião... – continuou, firme,
como se se protegesse da minha pele, da minha existência ali, ao seu lado – ...e
no segundo em que a gente chegar em São Paulo, eu não quero mais te ver. Você
vai sumir da minha frente.
_Clara, por favor. Não faz isso. A gente tá cansada, linda, nós
duas falamos cois...
_Não! VOCÊ FALOU! Você falou, não eu. Agora assume as consequências.