- »

julho 31, 2012

Diálogos quietos

_Outros quinhentos, Fernando... – a Marina riu.
_Quinhentos a mais ou a menos?!
_Argh, não é assim. Besta.

Os dois começaram então a discutir e a trocar comentários que, de um jeito ou de outro, rodeavam o meu desempenho sexual. Que agradável. Por educação ou sinceridade, a Marina me defendia das provocações do Fernando. “Boa coisa não pode ser, né”, ele dizia, “essa aí não segura uma!”. Ele se divertia, entre uma tragada e outra do beck, brincando com ela. “Mas você também nunca me ouviu falar! Nem dela, nem de ninguém...”, a Marina argumentava, numa tentativa diplomática, ainda um tanto acanhada pelo tema. Eu me abstinha. E foi quando, num intervalo de poucos segundos, enquanto eles discutiam, os meus olhos cruzaram com os da Mia, agora apoiada no braço da poltrona onde o Fer estava. Me diz você. Ela me observava de volta, com um riso escondido no olhar, como quem detém uma informação que não pode revelar. Arqueou as sobrancelhas para mim, bem de leve – e eu achei graça.

julho 29, 2012

Por inteiro

Naquela quarta, meu martírio foi interrompido inesperadamente pela Marina.
 
_Oi! – ela sorriu e arregalou os olhos, assim que abri a porta – Nossa... Cê tá bonita, flor!
_É? – ri, com os braços de fora numa regata butch preta, apoiados no batente – E você tá mais de uma hora atrasada, o que acontece?
 
Umas duas horas antes, tinha me mandado um SMS um tanto dramático. Um “vms jantar? PRECISO te ver agora!!” que me soava como se ela tivesse algo para me contar. Se eu bem conheço a Marina, não é. A real é que eu andava um tanto ausente nas últimas semanas, engolida pela situação no apartamento – da qual ela sabia meio por cima. Mas aquele seu atraso incomum me deixou curiosa. Algo tem aí.
 
_Hein? – insisti.
_Já te conto... – ela foi marchando apartamento adentro, daquele seu jeito – Como tão as coisas com você? Já achou alguém pra dividir?
_Não. Nem fui atrás...
 
Me olhou, apreensiva, por trás dos seus óculos pretinhos. E me repreendeu imediatamente – “flor, você não pode ficar adiando isso!”. “Eu sei”. “É sério, linda, você vai se afundar em dívida assim”. “Me deixa, Má”, resmunguei, “vou lidar com isso no meu tempo”. Ela se limitou a revirar os olhos e seguiu andando pelo apartamento, em direção à cozinha. Estava estranhamente acelerada.
 
Se serviu um copo de água gelada da jarra na geladeira e aí logo voltou para a sala – eu a seguia como uma barata tonta –, depois sentou no sofá e descalçou os sapatos para cruzar as pernas em frente ao corpo. Estava com uma saia mostarda dessas meio cults, abaixo do joelho, e uma blusa preta de alcinha metida por dentro da cintura alta. Ah é, e com o cabelo solto – o que era tão raro quanto o atraso.  
 
O que tá rolando?
 
Não era tão explícito. Mas sabe quando você conhece alguém bem demais para se deixar enganar pela aparente normalidade? Pois é. Algo tinha. Estava com um ânimo diferente, não sei. Observei-a tomar um gole da água, enquanto me juntava a ela no sofá e abria uma cerveja que peguei na nossa rápida passagem pela cozinha. Achei certa graça na agitação toda.
 
_E então?
_Ai... – cobriu o rosto com a mão, meio se contendo – ...eu conheci alguém.
_Ah, jura? – ri – Dá para perceber, né, Marina.
_Dá?
_Vai, me conta...
_E-ela... – sorriu, mal se aguentando de felicidade, mordendo a ponta do dedo – ...chama Vivian. E, e a gente saiu quatro vezes.
_Hum...
_Não, cinco! – corrigiu e confessou – Vi ela rapidinho antes de vir pra cá.
_Ah, entendi tudo agora... – comecei a rir, de novo – ...mas e aí? Cê já tá apaixonada assim?! Fala mais.
_Flor, você não tá entendendo. Eu nunca, nunca saí com ninguém assim. E-ela... – suspirou – ...ela é tão, tão linda e, e inteligente. Ela é advogada de direitos humanos, a, a gente se conheceu n-numa... – se enrolava para falar, nitidamente emocionada – ...coletiva. E ela me chamou pra tomar uma cerveja depois, a gente conversou a noite toda e d-depois ela me... m-me beijou contra o carro, quando a gente tava indo embora. E e-eu... meu, não sei nem explicar!
_Eita – sorri.
_Não. Cê não tem ideia! Sabe tudo o que eu passei com a Bia? Não tem nada daquilo. Sabe quando você não tem que ficar indo atrás? Quando vocês duas se querem do mesmo jeito? – apoiou a cabeça no encosto do sofá por um instante, meio boba-alegre – Mano, a gente troca mensagem o dia todo, e-ela se interessa pelo que eu falo, pelo o que eu faço, me liga para saber minha opinião toda vez que surge algum debate interessante no trabalho dela. A gente, meu, a gente fica horas no telefone!
_Ok. Oficialmente é o amor da sua vida – fiz graça – Nossa, Má, mas ela parece maravilhosa.
_Ela é! – sorriu também – Linda, juro, e-eu nem sabia que podia ser assim. Sempre me senti tão insegura nos meus relacionamentos, você sabe... dava tudo de mim e ficava recebendo migalhas em troca. E a Vi, mano, ela parece que me enxerga, sabe? Fora que, né, a diferença absurda que faz estar com outra mina negra. A gente tem conversado muito sobre isso, meu... E para ela tá sendo a mesma coisa, não sei, sinto como se a gente fosse construindo tudo juntas. É tão bom, flor!
_Não. Espera. Como assim? Cês já tão construindo uma porra dum relacionamento e eu só tô ouvindo sobre essa mina agora? Olha, Marina, sinceramente, achei que a gente fosse mais próxima do que isso... tô meio ofendida... – ri – ...e incrivelmente feliz por você, meu. Puta merda.
_Ai, não, e eu nem contei de ontem!
 
Me pegou pela mão, empolgada.
 
_Ontem?
_É. A Vi dormiu em casa.
_Hum... – arqueei as sobrancelhas – ...e?
_E foi intenso. Nossa, f-foi como... – se ajeitou no sofá, cruzando os braços em volta das pernas – ...não sei, o jeito que ela me pegou, que ela me olhava enquanto a, a gente... mano. Juro. Tô desconcertada até agora. Foi muito perfeito. O beijo dela... e-eu não sabia nem quem eu era mais, de tão, tão intenso, tão em sintonia que a gente tava...

_Hum, quem é essa aí? – ouvi, de repente, o Fer perguntar.

Olhamos para trás e ele vinha pelo corredor, rindo da descrição entusiasmada da Marina. Ver o Fer andando assim, só de jeans, pela casa fazia parecer como se ele fosse estar sempre ali – e era difícil encarar a realidade. Argh. A cumprimentou com um beijo no rosto, por cima do encosto. E a essa altura, a Marina já estava toda vermelha, muda, retraída no sofá. Eu ri do seu susto, pega desprevenida falando tão apaixonadamente sobre uma mulher. Aí desviei os olhos e vi, vindo alguns metros atrás, a Mia. Com o mesmo moletom e shorts jeans de umas horas antes.
 
_Quem é quem?! De quem cês tão falando? – ela chegou, desavisada, enquanto prendia o cabelo, e notou a Marina ali – Ah, oi!
_Oi... – a minha ex murmurou, querendo cavar um buraco no chão pra se esconder.
Eu ri ainda mais. O Fer sentou na poltrona ao nosso lado, curioso, acendendo um baseado.
_Num é, é que a Marina tava aqui me contando sobre um encontro que ela teve essa semana – comentei, fazendo graça – Não sei se você reparou, né, no calor todo que fez ontem em São Paulo...
_É, pelo jeito, devia tá bom mesmo... – ele deu um trago – ...porque, olha, nunca ouvi ela falar assim de você, não.
 
Ah, vá. Idiota.

julho 25, 2012

Baque

Foi como se me roubassem o tempo. Quando se vive junto assim por tantos anos, sua cabeça nem cogita qualquer outra possibilidade – aquela era a minha realidade, o nosso apartamento, porra. Sempre foi. Do segundo em que saímos da casa dos nossos pais, sempre fomos eu e ele. Nunca tinha morado com outra pessoa. E a ideia de deixá-lo ir me partia o coração.
 
Aos poucos, conforme os dias foram passando, fui me dando conta de que ele não ia mais estar no quarto ao lado. De que ia perder o meu companheiro de tantas conversas no sofá, de tantas cervejas e ressacas, abraçando a porra da privada juntos e nos metendo em encrenca, voltando para casa cambaleando de madrugada, desperdiçando domingos inteiros jogando videogame. É o Fer. É o Fer, caralho. E o que diabos eu ia fazer sem ele?
 
Inferno.
 
Cada vez mais, a situação ganhava a devida dimensão. E a ansiedade invadia o meu sono, as minhas madrugadas. Aí fumava dois, três cigarros na beira da cama, desperta. Sem conseguir pregar os olhos. Depois deitava ao lado da Clara, ainda sem solução para o que estava sentindo. Para aquela angústia. E ela me abraçava, me beijando carinhosamente os olhos – “vocês ainda têm tempo, linda”. Mas não o suficiente. Já era metade de dezembro. E com a proximidade do inferno das festas em família, combinamos que ele só se mudaria em janeiro. Por insistência minha, para o poupar de passar a pior época do ano metido numa casa com os pais.
 
Ao mesmo tempo, eu me recusava a achar alguém para entrar no seu lugar. Sentia como se aquilo, de alguma forma, fosse tornar “real demais” a sua saída. E então postergava. É. Fui ignorando, o máximo que pude. E o Fer foi fazendo o mesmo – não empacotava uma só coisa naquela casa. Nada. Eu tava triste. Puta merda, mano, como eu tava triste. Mas sabia que ele também estava e não o queria chatear ainda mais. Então a gente ria. E quando chegou a semana antes do Natal, a nossa nova tradição era virar noites inteiras, fumando maconha na sala e tagarelando.
 
Como se pudéssemos compensar o que estava por vir. Ou evitar que as horas rodassem no relógio, que mais um dia virasse. E que o meu melhor amigo fosse embora do nosso apartamento. Cacete. Existe vida sem Fernando ao meu lado?

O prólogo

Quando voltamos para o apartamento, todavia, o clima era outro. O Fer estava sentado com a Mia na cozinha, depois de buscá-la em Higienópolis. Entrei e os vi ali, conversando em tom de enterro. Tiramos nossos sorrisos da cara imediatamente, a Clara e eu, passando pela porta. A decisão já estava tomada – o Fer me comunicou, não teve conversa.
 
_Vou mesmo lá pros meus pais... – anunciou, com desgosto na voz, e passou a mão pela cabeça raspada.
 
Merda.

julho 24, 2012

Discretas

_Come, linda. Vai derreter tudo!
 
A Clara segurou minha mão sobre a mesa, me olhando com aqueles seus olhos bonitos. Meio bolivianos, meio argentinos. Seu cabelo preto caía sobre as bochechas, na lateral do rosto – e elas se erguiam de leve, num sorriso carinhoso. Eu estava sendo a pior companhia naquela tarde de sábado. Perdi a fome, com a cabeça cheia, e mal falei uma só palavra no restaurante. A situação com o Fer estava me consumindo por dentro.
 
Agora estávamos sentadas numa sorveteria no fim da Augusta, a Soroko, dividindo um pote enorme que já ameaçava virar poça. Olhei para a Clara ali, ao meu lado, e me forcei a sorrir de volta.
 
_Desculpa – murmurei, melancólica – Não quero estragar o dia, é só que... sei lá, meu, tô preocupada com... c-com o lance do Fer.
_Eu sei, Bo.
 
Sua mão continuava na minha. Então ela se curvou suavemente, me beijando.
 
_Vai ficar tudo bem – sussurrou, assim que nossos lábios se afastaram, segurando o meu rosto com carinho – Cês vão dar um jeito, meu.
 
Nisso, para a minha surpresa, um cara duns 50 e poucos anos que estava na mesa ao lado, tomando sorvete junto com o filho e a esposa, resmungou um “pouca vergonha”. Na nossa direção – é. Porque aparentemente consolar a porra da sua mina com um selinho e as mãos dadas é depravação. Eu e a Clara nos encaramos na mesma hora, sem entender, e então olhei por cima do meu ombro – para a cara feia dele, ali, sentado a dois metros de nós, nos repreendendo publicamente. E aí senti o meu sangue ferver.
 
Escolheu o dia errado, babaca.
 
_Puta merda... – respirei fundo e passei a mão na cara, falando baixo para a Clara – ...eu vou arranjar briga com esse desgraçado, juro.
_Não, Bo. Calma. Cê só vai se irritar mais se cê for lá...
_Mas quem esse mano acha que é, porra?!
_Eu sei.
_Filho da...
 
Fiz que ia levantar e a Clara me segurou, me interrompendo e me fazendo sentar de volta, com as mãos no meu rosto. Me solta, me frustrei, com o esporro que ia dar nele ainda entalado na minha garganta. Mas aí ela me beijou. De novo. Uma, duas vezes. E eu esqueci o que ia fazer – o que era mesmo? Mais para lá, podia ouvir o idiota se incomodar, cada vez mais, bufando e se reajeitando na cadeira, sem tirar o olho de nós. E eu a beijei de volta, num impulso, como se o nosso amor fosse capaz de calar a boca de outros mil como ele.
 
_Vem... – a Clara sorriu, cochichando para mim – ...vamos mostrar o que é pouca vergonha.
 
Ai pegou a pazinha cheia de sorvete na mesa e, antes que eu pudesse me dar conta do que estava acontecendo, espalhou metade na minha cara. Desceu com a colher da minha bochecha até passar por cima da minha boca, pelo meu queixo. Desgraçada. Comecei a rir. E então, do jeito mais afrontoso possível, me lambeu a cara toda, sob os olhares indignados da mesa ao lado. Imediatamente vingativa, roubei a pá da sua mão.
 
_É?! – achei graça, inteira babada.
 
E deslizei aquela colher pelo seu pescoço, seu ombro, a lambendo logo em seguida. Pra quê, né? Deu-se início a um contra-ataque cada vez pior que o ataque anterior. Olha, se o macho achou ruim um selinho, agora... Agora a gente ria e ia se sujando, se lambendo inteira – meu joelho, minha bermuda, os shorts da Clara e as suas coxas, meus braços, o decote dela, nossa cara toda. Aí perdi a paciência e meti a mão direto no pote. Desci numa linha reta da testa da Clara até a pontinha do seu nariz, a pintando de sorvete de flocos; três pontinhos sob cada um dos seus olhos. Ela riu. E então lambeu cada um dos meus dedos.
 
Puta merda.
 
A puxei mais para perto, num beijo melado, sentindo minha mão lambuzar seu pescoço, a segurando, enquanto as nossas peles iam se grudando. A gente meio se agarrava, meio ria. Perdendo a noção de quão em público estávamos. Até o lesbofóbico de merda finalmente se levantar, resmungando qualquer grosseria e marchando para fora da sorveteria com toda a família. E ainda deixaram para trás metade dos seus potes cheios. Que pena.  

julho 23, 2012

7 meses em 20 minutos

Vem, pensei, tá demorando demais. O conserto do vazamento na lava-roupas chegava ao fim e nada do Fernando passar por aquela porta. Merda, cadê você? Terminei de rosquear o cano na torneira, vedando com um pedaço de fita isolante. E a minha preocupação cresceu, arrependida de ter falado qualquer coisa para ele.
 
O relacionamento dos dois era uma catástrofe – o pai do Fer era do tipo que nunca tinha dito uma só palavra de carinho pro filho a vida toda, menos ainda de orgulho. Também não media insulto para criticar, sempre que queria impor a sua própria moral. O Fer passou a infância toda mudo e, na adolescência, começou enfrentar o pai, a retrucar. Mas ainda era o seu pai e a opinião dele ainda importava. O velho conseguia destruí-lo como ninguém. E era isso que me preocupava.
 
Vem logo, porra.

Levantei de joelhos no chão e virei a torneira, testando o sucesso da minha gambiarra. Não vazou nem uma gota. Toma essa! Largado sobre o tanque, o meu celular vibrou com um SMS da Clara. Já estava na porta do prédio. Pedi que subisse, ganhando tempo para tomar um banho e para esperar o Fer sair do telefone. Queria estar lá quando a briga dos dois terminasse. Limpei mais uma vez as mãos nos shorts e olhei para o relógio da cozinha – a ligação já durava mais de vinte minutos. Ugh. Molhei o rosto no tanque e lavei as mãos brevemente, as enxugando numa toalha qualquer que pendia no varal.

E então fui para a sala, abrindo a porta antes que a campainha tocasse. Alguns metros adiante, apoiado contra a parede do corredor do prédio, vi o Fer com a cabeça baixa e o celular ainda no ouvido. Sua orelha já deve tá quente, puta merda. A mão segurava a nuca, parecia abalado. Me cortou o coração ver ele ter que se submeter a aquilo – a pedir dinheiro para o pai. Por que cê foi pedir demissão, moleque?! Mas que droga. Não sabia o que fazer para protegê-lo daquela situação. Foi quando ouvi o elevador chegar no andar. E aos poucos, o Fer começou a discutir de volta com o pai, assim que a porta do elevador se abriu.
 
A Clara veio na minha direção. E o tom da briga aumentou, o Fer tinha os olhos vermelhos e molhados – como se estivesse prestes a chorar. Podia vê-lo frustrado. Secava o rosto nos antebraços, com raiva, e continuava argumentando. A Clara o notou ali, a uns metros de nós. Aí me cumprimentou, estranhando a situação toda, e perguntou o que estava rolando. Quis saber se tinha algo a ver com a Mia. E eu disse que não, atenta ao que o Fer estava dizendo – sem explicar direito. Ele já tava fora de si, discutindo de volta.

_E EU SOU O QUÊ? FALA! – gritou com o pai no telefone, irritado – E EU SOU O QUÊ, PORRA?!

Coloquei a Clara pra dentro do apartamento, falando baixo – “vem”. A última coisa que o Fernando precisava era de plateia. Então entramos. Ela ficou esperando no meu quarto e eu fui tomar o meu banho. Não demorei muito. Tornei a entrar no quarto e me troquei rapidamente, já com fome. A Clara mexia no meu celular, meio à toa. Saímos para a sala nem cinco minutos depois. E ao passarmos pelo sofá, vi o Fer sentado, fumando um baseado e já sem o celular nas mãos. “Espera um minuto”, pedi para a Clara, “deixa eu falar com ele”.
 
_E aí? – sentei ao seu lado, preocupada – Quão ruim foi?
_Ah, foi uma bosta – resmungou – Já sabia que ia ser...
_O que ele disse? Não vai emprestar?

O Fer tinha os antebraços apoiados nos joelhos, sentado com as pernas espaçadas. Tirou o baseado da boca, o segurando na ponta dos dedos e soltou a fumaça. Tinha colocado a camiseta de novo e as tatuagens apareciam sob as mangas enroladas nos braços. Passou a mão pela cabeça raspada, frustrado, com um ar de derrota.
 
_Ele quer que eu volte, né... Quer que eu vá morar lá com eles, não sei – abaixou de novo a cabeça – Ia ajudar não ter que pagar aluguel e a comida, posso pegar uns freelas e ir me virando com o resto, com o carro e tal. Mas, sei lá... – suspirou – ...ia ser foda. Mesmo que fosse só por uns meses, cara, não me bico com o velho. Não dá.
_Você não precisa sair, Fer...
_Como não?! – se exaltou – Ele não vai dar a grana, não vai emprestar nada! É UM FILHO-DA-PUTA! ELE NÃO TÁ NEM AÍ! – chutou a mesa de centro à sua frente – Cê sabe disso, velho! Ele só quer mostrar que eu sou um bosta, provar que eu não sei fazer porra nenhuma!!
_Não, meu. Calma. Eu vou pegar com os meus pais este mês, fica pelo menos mais um aí e a gente...
_DE QUE JEITO?!? EU NÃO TENHO GRANA, MANO!!
_Não sei, mas... – hesitei, aflita – C-cê não precisa sair agora, porra, a gente vê um j...
_Não, mano. Não. Não vou ficar te atrasando a vida também! Já te devo pra caralho, meu, para! Cê já fez até o que não podia, já fez demais. Não quero que cê comece a se endividar também, mano.
_Não é assim, meu.
_Não, já tá decidido – me cortou – O aluguel tá aí, cê precisa correr atrás de alguém pra dividir. Nem que seja só por uns meses. Depois eu volto, a gente vê o que faz. Não sei...
_NÃO! NADA A VER! – senti um aperto no peito, de repente – Eu moro com você, porra! Não vou dividir com outra pessoa! Nem deixar você ir morar com o sociopata de merda, caralho, nada a ver. Nada a ver mesmo! – o contrariei – A gente se resolve, foda-se, mas você fica, Fer.
_Meu, não vai ser tão ruim... – ele forçou um sorriso, ainda abatido, e brincou – Pensa, divide aí com a Clarinha...
_Deus me livre!

Ela logo recusou, do outro lado da sala. Engraçadinha.

_Não, nem a pau... – retruquei, mais uma vez – Fer, esquece essa ideia! Sério. Mais tarde eu tô aí e a gente pensa em alguma coisa. Cê num inventa de levar suas tralhas pra lugar nenhum... Tá me ouvindo?!
_Tá. A gente vê, vai lá, vai. Vão almoçar... – ele sorriu, sem muito ânimo – ...eu vou pra Mia também. A gente se fala mais tarde...

julho 22, 2012

A cor do fim do poço

Para baixo, joguei a franja para fora da cara, mais um pouco. O isqueiro já me queimava o dedo, perigando derreter de vez o tubo. E eu fazia uma força enorme. Um pouco para direita, isso, assim. Acontece que uns dias depois da noite lá do SWU, a nossa lava-roupas começou a vazar. A rosca estava péssima e, passada uma semana de inundações na área de serviço, decidi trocar eu mesma a peça só para não ter que pagar pelo conserto.
 
Me encontrava, então, sentada na área de serviço e rodeada por ferramentas. E o que deveria ser uma simples, porém cara, troca de cano – logo se tornou uma barata e complicada empreitada contra o plástico do tubo de saída. Por que fazem essas porcarias tão duras assim? Argh. O meu polegar já estava vermelho, tentando lacear o furo com o calor do fogo. E estava quase dando certo – fui empurrando a boca de ferro para dentro do cano, usando toda a minha força. Concentrada em resolver de vez aquela merda. E foi quando ouvi a porta da frente bater.
 
Mas, que porra...?
 
Não pode ser o Fer, pensei. Era sábado de manhã. A muito contragosto, uma semana antes, ele descolou um emprego temporário, como vendedor numa loja de skate no Shopping Morumbi. Quase uma hora para chegar lá e o contrato acabava logo depois do Natal, mas pelo menos pagaria parte das nossas contas atrasadas. No último mês, sem muito sucesso, ele tentou mais alguns freelas para cobrir os gastos, até discotecou numa festa de rocksteady de um amigo nosso no Centro – mas o dinheiro ainda era pouco. Da minha parte, eu já tinha emprestado até o que não tinha e daqui a pouco ia começar a dormir na produtora de tanta hora extra que pegava. É. Tava foda.

Olhei para o relógio. Faltavam quinze minutos para meio-dia. Limpei a mão na bermuda – com os dedos sujos de poeira, que soltava daquele tubo imundo e do plástico queimado – e me levantei. Meia hora no chão ao lado da máquina e a minha testa já estava molhada de suor. Preciso tomar um banho. Fui até a sala para ver de onde vinha o barulho. Talvez eu tenha deixado a porta aberta, calculei, imaginando que a Clara tinha chegado antes da hora para irmos almoçar. Sei lá. Mas saí da cozinha e dei de cara com o Fernando, largando a mochila com raiva sobre o sofá e tirando a camisa meio de qualquer jeito.

_Mas o... – o encarei, confusa – ...q-que cê tá fazendo aqui?!
_Nada – resmungou, puto.
_Fer! – insisti – Seu horário não vai até as três hoje?
_Vai.
_E...??
_E EU PEDI DEMISSÃO, PORRA!
_O QUÊ?!?
_Pedi. Caí fora, meu! Aquele cara é um babaca! – se exaltou, se apoiando com ambas as mãos no sofá – Ele acha que pode falar e fazer o que bem entende com os funcionários, mano! Desgraçado! Acha que eu sou obrigado a aguentar essa bosta de emprego, o filho da mãe nã...
_Não. Cê tá me zoando que você... – comecei a aumentar o tom de voz, interrompendo-o, nervosa – ...LARGOU A PORRA DO PRIMEIRO EMPREGO QUE VOCÊ CONSEGUE EM MESES, PORQUE VOCÊ NÃO GOSTA DO SEU CHEFE, MEU?!
_“NÃO GOSTO”, NÃO! NÃO FAZ SOAR COMO SE FOSSE FRESCURA MINHA, CARALHO! O CARA TÁ ME TESTANDO A PACIÊNCIA DESDE O PRIMEIRO DIA QUE EU PISEI NAQUELA PORCARIA DE LUGAR!! TRATA TODO MUNDO QUE NEM LIXO!!
_E VOCÊ NÃO PODIA SEGURAR A PORRA DA SUA BOCA?!?
_O CARA É UM ESCROTO, MANO!!
_FODA-SE! PRECISA IR LÁ E BRIGAR COM ELE?? CÊ NÃO SE SEGURA TAMBÉM, CACETE! VOCÊ ACHA QUE É O ÚNICO COM UM CHEFE DE MERDA NO MUNDO?!
_Ah, tá – revirou os olhos para mim – Falou a que não vê a hora de ir pro batente pra ficar vendo a chefe gostosona...
_NÃO VEJO A HORA?! – me irritei – EU NÃO AGUENTO MAIS PEGAR HORA EXTRA NAQUELA PORRA DAQUELA PRODUTORA, POR SUA CAUSA, E VOCÊ VAI ME DIZER QUE EU GOSTO DE IR TRABALHAR?! POR QUÊ? POR QUE A MINHA CHEFE, PELA PRIMEIRA VEZ NA VIDA, NÃO É UMA FILHA-DA-PUTA?! AH! SE LIGA, FERNANDO!! QUANTO CHEFE BABACA EU JÁ NÃO TIVE QUE ATURAR NA MINHA VIDA, PORRA! A GENTE ENGOLE ATÉ ACHAR OUTRA COISA, TODO MUNDO FAZ ISSO! CÊ ACHA QUE É ESPECIAL, CACETE?!?
 
Aí o Fernando ficou quieto, puto da vida, com os braços cruzados e o corpo apoiado contra o encosto do sofá. Não me respondeu. E o meu argumento ficou ali, solto no ar. Aquela era a primeira vez que ele conseguia alguma coisa em meses e ele foi lá e jogou tudo pela janela. É de foder. Não podia acreditar, a gente não tinha como arcar com aquilo. Naquele mês, eu já ia precisar pedir grana emprestada para os meus pais de qualquer jeito, com ou sem o emprego do Fer. Não tínhamos mais um puto.

_Escuta... – encostei contra o sofá também, ao seu lado, e baixei a voz – ...eu sei que é foda, meu, ouvir merda e engolir, ficar quieto. O cara é folgado pra caralho mesmo, mas... – hesitei – ...n-não sei, Fer, eu não sei o que mais a gente pode fazer, meu.
 
Cruzei os braços também. E ele abaixou a cabeça, ainda quieto. O clima na sala ficou pesado. Não sabíamos mesmo mais o que fazer. Cogitamos tudo, tudo o que podíamos. Desde vender o carro dele, que ainda acumulava algumas parcelas para ser quitado, até pedir para os pais da Mia – por grana ou vaga no sofá. Tudo. Argh. Odiava quando as coisas saíam do controle assim. E por mais que a gente andasse discutindo, não queria ver o meu amigo naquela situação. Inferno. Sem muita alternativa, então, o Fernando desencostou do sofá e foi em direção ao corredor do prédio.

_Vou ligar pro velho... – disse, desistindo.

julho 21, 2012

Bis

E ah, só para constar – o Hole não tocou “Awful”.

julho 20, 2012

SWU

VC TINHA Q TA AQUI!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!”, a Mia me escreveu, bem assim, num exagero de exclamações. E eu ri, deitada meio à toa na minha cama. A sua primeira mensagem foi seguida quase imediatamente por outras duas – “PQP EH A COURTNEY!! <3 <3” e “MT FODA.. C TA ASSISTINDO DAI???”. Esfreguei o rosto, então, me livrando daquela preguiça de fim de domingo, e me levantei para ir até a sala.
 
As luzes do apartamento estavam todas apagadas. O Fer fazia horas que estava trancado no quarto, fumando maconha e ouvindo ska. Liguei a TV e me esparramei no sofá, procurando algum canal que estivesse passando o show. Assim que aquela deusa grunge desbocada surgiu na tela, larguei o controle ao meu lado. E sorri. Aí peguei o celular para responder – “acabei de ligar aqui... q inveja, meu. qria mto ter ido! :(“.  
 
Pois é. Não tive dinheiro para comprar o ingresso, meses antes. E agora assistia a Courtney Love xingar todo mundo de cima do palco e achava graça, imaginando a empolgação da Mia, que devia estar sendo esmagada entre milhares de pessoas em algum lugar daquela plateia. Por que, inferno, essas coisas custam tão caro? Puta merda.
 
Toda vez que a infame vocalista do Hole pausava as músicas para tagarelar – e não foram poucas –, mais dois ou três SMS piscavam no visor do meu celular. Conversamos durante todo o show. Até que a banda saiu do palco para fazer aquele suspense irritante que sempre antecede o bis. “Ñ!!! Ñ!!”, a Mia me mandou, “PORRA..Ñ, ELES TEM Q VOLTAR E TOCAR AWFUL!!!!”. E aí, sem pensar, me escapou um sorriso no canto da boca.
 
É.
 
Essa era uma das duas músicas do Hole que estavam no CD que dei para a Mia, um ano antes. Aquela cafonice apaixonada, sabe, com todas as músicas que “perdi” para ela. Pois é. Esfreguei a mão na cara, achando certa graça. E aí digitei de volta – “Ah, tem? rs”. Olhei para a TV e a câmera sobrevoava aquele oceano de gente no festival. O bis ainda não tinha começado. Dali a pouco, vibrou meu celular. “TEMMM :3”.
 
Li sua mensagem e me afundei ainda mais no sofá, tirando um sarro de volta – “mas essa musica eh mo chata, meu”. Ao que a Mia prontamente me respondeu com um “CALA A BOCA”. Comecei a rir. “Eles ñ vão tocar essa, mano”, digitei, a provocando. “TEM Q TOCAR!!”. “ñ vai, quer apostar?”. “QRO. OQ EU GANHO?”. “Nd :P”. “CREDO MEU..ESSE EH O MELHOR Q VC PODE OFERECER?”. Balancei a cabeça e, assim que a Courtney Love voltou para o palco, respondi – “vai se acostumando, rs”.

julho 19, 2012

Perfekte Welle

_Ah, porra, cês tão aí... – a Flavinha disse ao nos achar na lateral da casa – ...tô saindo daqui a pouco, cês vão querer a carona?

Me recuperei quase instantaneamente, sem um puto no bolso, desapoiando ambas as mãos da casinha de tijolos e erguendo o corpo, ainda um tanto zonza. A Clara estava ao meu lado, preocupada, e as duas me perguntaram sequencialmente se eu estava bem. “Aham...”, acenei, mentindo, “só vamos”. Fechei as calças e peguei o maço no chão. O vento gelado agora se fazia sentir duramente no meu corpo debilitado, argh.
 
Entramos e nos despedimos das garotas que restavam na sala, sem muitos rodeios. Abracei a Lê já na porta e nos metemos no banco de trás do carro da Flávia. Minha cabeça doía, embriagada, e o caminho de volta pareceu durar uma eternidade. Colocadas por cima das minhas, as pernas da Clara aqueciam o meu colo no banco de trás. Estava gostoso, mas as luzes de São Paulo me machucavam a vista. Inferno.
 
Subimos as escadas do seu prédio com dificuldade, eu apoiada nela e ela cambaleando, às vezes, contra o corrimão. O seu apartamento estava silencioso e, como de costume, tinha certo charme naquela bagunça toda. Sentou-se na beira da janela do quarto, descalçando os tênis, e me observou admirá-la. Dividimos a cama, então, e dormimos sob diversas camadas de lençóis emaranhados, quase o dia todo.
 
Só voltei para casa quando já era noite do dia seguinte.
 
_Recebi seu “bilhete” – o Fernando resmungou detrás do sofá, assistindo TV na sala, assim que passei pela porta.
 
Ótimo. Revirei os olhos e fui direto para o corredor, em direção ao quarto. Só de birra, não nos falamos direito por uma semana. Já a namorada dele, numa certa contradição, lotou a minha caixa de entrada no domingo seguinte. Tinha ido com uma amiga para um festival de música no interior de São Paulo, o SWU. E assim que o Hole entrou no palco – ou a Mia virou sua vigésima cerveja da noite, né, vai saber – as notificações começaram a chegar.

julho 13, 2012

Meio fim de festa

Logo nos interromperam. Já estávamos no segundo cigarro e no milésimo beijo, amassadas contra a parede e testando os limites da boa conduta na casa dos outros. “Ei, vamos parar de baixaria aqui?”, a Thaís falou bem alto, rindo, assim que nos encontrou ali, na lateral da casa. E a Clara rapidamente a mandou tomar no cu – numa intimidade conquistada nos últimos meses. De tanto me acompanhar na casa da Thaís para fumar uns, já que eu andava evitando rolê para economizar dinheiro, as duas acabaram se tornando amigas.
 
Voltamos para a sala logo depois dela, levemente descabeladas e guardando os nossos maços nos bolsos. Ainda sentia as minhas bochechas levemente vermelhas de tanto, ahm, calor. Sentamos na mesa e nos pusemos a comer aquele “jantar” atrasado, que estava começando à 1 da manhã. Pelas horas seguintes, pratos e tigelas amontoados, com apenas restos, foram se acumulando à nossa frente. Mesmo quando acabou o jantar, continuamos à mesa e as taças de vinho seguiram fluindo tão bem quanto a conversa.
 
Propus um brinde ao aniversário da Jéssica – que, a essa altura, já estava sentada no colo da Lê nuns beijos embriagados. O álbum do Uh Huh Her tocava sem parar. Malditas lésbicas. Ficamos todas tão bêbadas, de uma garrafa chilena atrás da outra, que eu e a Thaís nos debruçávamos sobre a mesa, rindo, sem nem saber de quê. Até a Clara estava tagarelando com a Marina, agora sentada ao seu lado. E é verdade, eu devia tá ouvindo aquilo – mas já não conseguia prestar atenção em mais nada.

Outra meia hora e aquela era a 3ª vez que escutava “I'm better than the other one, you're a harder chase” sair do rádio. Mais dez minutos, outras duas taças. E eu discutia, aos gritos, com a Camila na outra ponta da mesa. Entre um verso e outro da música alta, fora de mim, enquanto a Clara me puxava pela camiseta e me mandava sentar de novo, que parasse de fazer cena.
 
_CÊ TÁ OUVINDO O QUE ESSA IDIOTA TÁ FALANDO?! – bati na mesa, indignada, e comecei a atacar a Camila – CÊ TÁ MUITO LOUCA, MANO!!
 
Alguns minutos antes, ela defendeu que a versão traduzida de “Starman” era melhor que a do Bowie. E eu perdi a cabeça em meio segundo, . Não satisfeita, a minha amiga tomou as dores do rock nacional e começou a gritar de volta comigo, irritada, me acusando de ser uma fã chata. A Thaís me forçou de volta à cadeira, sentada, e encerrou de vez a briga.

“You're fast against mine, I will tear you from the...”, quarta vez. Pazes feitas, todas amigas de novo. Rodamos uma garrafa vazia, deitada, no centro da mesa e nos desafiamos a contar nossos piores podres umas para as outras. A Clara se divertia com os meus. E a Marina, já quase sem fôlego de tanto rir, confirmava tudo com a cabeça. Seus óculos já estavam abandonados sobre a mesa. Deus, eu me afundava na cadeira, cobrindo a minha cara de pau, ainda bem a Clara não vai lembrar metade disso amanhã.

_Vem – disse, então, no ouvido dela – Vamos cair fora um pouco.
 
E aí escapamos, enquanto as meninas tentavam descoordenadamente abrir a sei-lá-qual rolha da madrugada. Já tinha perdido a conta. Cês são loucas de beber mais vinho, porra. Rindo, trombamos na porta da lateral e fugimos com sucesso para o nosso cantinho de antes. O quintal continuava escuro – o sol ainda não tinha nascido e uma umidade meio fria das 5 e pouco se alastrava no ar. Nos escondemos atrás da casinha onde ficava o botijão de gás, acoplada à lateral da casa. Beijei a Clara com uma vontade embriagada, incontrolável.

Aí nos enroscamos. Os seus braços subiram até os meus ombros, eu desci as minhas mãos. E a empurrei contra a parede. Não conseguia me concentrar em nada. Eram momentos desconexos, uns lapsos de memória que, de alguma forma, faziam sentido quando fluíam, sucessivamente. Cada beijo, cada chupão, as mãos dela, a pressão nos meus lábios, as mordidas, o seu corpo pesando no meu, nossos toques indelicados – como se eu fechasse e abrisse os olhos, o tempo todo, repetidas vezes. A minha cabeça rodava.
 
Ela tinha as mãos metidas no meu jeans. Roubava-lhe um beijo e nos contorcíamos, juntas. Aquela era a quinta vez – “tell me I’m the only one, the only one”, soava ao fundo. Ri sozinha ao reparar e a beijei logo em seguida. Enfiei as minhas mãos no seu cabelo, a segurando com vontade enquanto a beijava, esquecendo até de respirar. Desci um dos meus braços até os botões da sua calça. Um. Dois. O zíper, o lance todo. Apoiei a testa no seu ombro, por um segundo, buscando um pouco de estabilidade – tentando voltar à realidade, ao mínimo de consciência. Numa tontura alcóolica, meio desnorteada.
 
Caralho.
 
A Clara encostou a boca no meu ouvido, “vamos voltar pra casa, quero você me comendo de quatro”. E foi deslizando os dedos para dentro de mim, me falando cada obscenidade que estava com vontade de fazer e não podia. Puta merda. Tudo o que eu queria era uma cama, porra – e sobriedade. Senti que ia passar mal. Nem pensar, se controla, era o único pensamento que a minha cabeça conseguia formular.
 
Aceleramos então, a intensidade, tudo. Os beijos se multiplicaram, o calor, nossos corpos arrastados, tudo. Tudo confuso – e gostoso. Sentia como se estivesse prestes a explodir. “Tell me I'm the only one, the only one...”, ouvia Uh Huh Her cantar, repetidamente. Nuns orgasmos quase simultâneos. Perdi o fôlego por um instante. A Clara beijava o canto da minha boca, entreaberta, sentindo cada pedacinho das nossas peles se tocando. Cacete. E assim que caí de novo em mim, me senti realmente mal. Dei dois passos para trás no breu e me virei rapidamente, apoiando a mão nos tijolos da casinha do gás.

_Cê tá bem, Bo? – a Clara se assustou, vindo na minha direção.

Colocou a mão no meu ombro, preocupada. E tão logo respondi “não muito”, engasgada e com falta de ar, foi o que bastou para o meu estômago se revirar por completo. Vomitei duas vezes, todo o maldito vinho.
 
Gran finale.

julho 09, 2012

[ GRUPO NO FB ]

Grupo oficial no Facebook

Meninas (e meninos!)

Queria convidar, a quem ainda não entrou, para participar do nosso super movimentado e divertidíssimo grupo oficial do Fucking Mia no Facebook. As postagens são fechadas para membros, apenas, e o nome é bastante discreto – em consideração às leitoras(es) nativos de Nárnia. São um bando de garotas que lêem o blog falando sobre os posts e sobre música, MMA, relacionamentos, o que seja. E me xingando sempre que demoro (como agora) para postar, rs.

Seria legal ter vocês todas(os) lá! :’)

Aproveito para deixar o meu obrigada pelos comentários, sempre sempre, e por acompanharem a história com tanto carinho e paciência! Adoro saber que tem gente aqui há uma eternidade, mas também novas (e muito bem-vindas) leitoras. Obrigada mesmo! 

Um beijo enorme,
Mel M.

Tautologia

Qual foi o tamanho da merda que falei pra Clara?, me angustiei, a observando no meio da sala, com uma taça de vinho entre os dedos. Estava conversando animadamente com a Lê, a Thaís e a Ju, entre sorrisos e o trincar da garrafa na borda das taças, que eram constantemente enchidas antes mesmo de esvaziar. Droga.
 
Corajosamente, entrei na sala e a Clara sorriu ao me ver aproximar da roda que elas formavam, ali em pé. Apoiei suavemente a minha mão nas suas costas e ela me olhou, ao seu lado, me oferecendo um gole. Aceitei. Conforme bebia, a encarei em busca de qualquer indício de que tinha escutado a declaração que deixei escorregar da minha boca, minutos antes, sem intenção. Ela percebeu? Percebeu ou não percebeu?! Será que me ouviu?
 
Tentava ler cada milímetro dos seus gestos, em vão, analisando o seu comportamento. Era estranho não saber – aquilo me deixava ansiosa. Mas as suas expressões permaneciam enigmáticas. Enquanto eu me torturava, a Thaís tagarelava incessantemente com a Lê na nossa frente. A Clara me encarou de volta, dando um gole no vinho. E assim que abaixou de novo a taça, sorriu discretamente na minha direção.
 
Ah, sim, ela ouviu.
 
_Sabe... – a Clara se aproximou então do meu ouvido, cochichando, sem atrapalhar a conversa das meninas – ...eu quis te matar lá dentro.
_Desculpa – murmurei baixinho, rindo.
_Você é muito panaca!
 
Referia-se à minha ceninha com a Marina na cozinha. Já tinha quase esquecido daquilo de tão preocupada que estava com a porra do “eu te amo” que soltei sem querer. , pensei, talvez ela sequer tenha ouvido. Uma pausa de milésimos de segundos do seu olhar no meu, todavia, fez com que a dúvida ressurgisse. Oscilando a cada sinal incerto. Isso é ridículo, me irritei com a minha inquietação involuntária, eu devia só perguntar logo de uma vez. E num impulso, toquei de leve no seu braço.

_Ei, escuta, quer sair pra fumar ou algo assim?
_Vamos.
_Tá – sorri – Vou só pegar o meu maço, espera aí... Já volto!

Voltei uns passos até a cozinha, onde tinha largado o meu cigarro. No caminho, trombei com outra amiga nossa, a Flavinha, que saía lá de dentro. Estava com uma regata preta e jaqueta de couro por cima – o que, junto com o cabelo Joãozinho, a deixava mais caminhão do que nunca. Assim que cruzou comigo, me segurou pelo braço por um instante:

_Cara, é sério que a Marina saiu com essa mina aí que cê trouxe? – falou baixo, como se fofocasse, e eu a encarei, surpresa – Cê já sabia? Faz tempo isso?!?
 
Como diabos vocês trocam esse tipo de informação em menos de cinco minutos, mano, me irritei com a boca solta das minhas amigas, puta merda.
 
_Sim. Não. E sim – respondi, impaciente – Quem te falou?!
_A Camila... – riu e eu fiquei ainda mais confusa, como a Camila já sabe? – ...mas e aí, mano, ela expulsou mesmo a Má depois de ter comid...?!
_Escuta – a interrompi, grossa – Não é da sua conta, é?

Larguei ela falando sozinha e continuei até a cozinha. Minha ex-namorada estava encostada no balcão, com as pernas cruzadas em frente ao corpo e a mão beliscando um pote de amendoins, enquanto falava com a Paula. Uma fofoca dessas, jura, logo você? Lancei um olhar indignado para ela. E peguei o maço que tinha esquecido sobre a mesa. Saí de novo para a sala e fiz um gesto para a Clara me seguir. Passamos por uma porta que dava na lateral da casa, numa espécie de quintal estreito. Alguns vasos com temperos, meio malcuidados, ocupavam o chão de ladrilho. Encostamos na parede e acendemos, cada qual, um cigarro.

_Cê já tá oficialmente conhecida entre as minhas amigas... – murmurei com o filtro ainda na boca, colocando o isqueiro de volta no maço – ...já virou a “mina que deu um fora na minha ex”.
_Nossa, hein... – a Clara riu, irônica – Valeu!
_Quê?! Não fui eu que espalhei a notícia, meu... – achei graça – ...só tô te contando, porque vieram me falar.
_Ai, merda.

Colocou a mão no rosto, soltando a fumaça para baixo, frustrada. E nós rimos juntas. Estava meio frio e escuro ali, do lado de fora. Conforme tragava o meu cigarro, a observei sorrir e senti verdade em cada palavra que escapou da minha boca naquela noite. Então tomei coragem e desencostei da parede, pegando na sua mão, com carinho.

_Meu... – senti meu estômago embrulhar de levinho, ficando na sua frente – ...eu q-queria... falar com, com v-você.
_Hum, sobre?
_Ah... – eu ri, envergonhada, e os meus tênis esbarraram nos seus – ...sobre uma coisa aí que... eu... m-meio que falei... antes.
_Ahm... – a Clara riu, de volta – ...e o que foi que você “meio” falou antes?
_Ah... cê sabe...
_Não, não sei. O que era?

A desgraçada sabia. Agora eu tinha certeza – levantei a cabeça e vi Clara, com seus olhos espertos e debochados, mordendo os seus lábios à espera da minha resposta e, ah, ela sabia.

_Nada – respondi, a contrariando de propósito.
_Hum, sei... – ela riu junto e me encarou, sorrindo – ...eu te “nada” também.

julho 02, 2012

A petulante

_E aí, meu... tá bonita!
_Mas, m-mas você disse que não vinha! – a Marina sorriu, surpresa – O que aconteceu?!

Dei-lhe um beijo no rosto, afastando-me em seguida e ela logo voltou os seus olhos para a Clara, na sua camiseta do Billy Idol e jaqueta larga, em pé ao meu lado. “Mudei de ideia e resolvemos vir...”, respondi, a encarando. Ela agia normalmente, ainda que a reconhecesse – eu podia perceber. Sorri então e as apresentei, como se não soubesse de nada:
 
_Essa é a Clara, aliás!
_Oi...
_A... a gente se conhece – a Marina tentou disfarçar, virando-se com certo constrangimento para ela – E aí, tudo bem?
_Tudo. E você?
_Claro.
_Mas... – interrompi-as, com um grande sorriso involuntário no rosto – ...vocês se conhecem de onde?

A Clara imediatamente me lançou um olhar indignado, me repreendendo, como se fosse me matar por aquilo. Quê? Atrás de nós, as garotas seguiam cozinhando o que eu agora confirmara ser mesmo um molho de tomate bastante cheiroso. Uma travessa de lasanha descansava, crua e com muitas camadas diferentes, sobre um balcão próximo de nós. Cumprimentei a Jéssica com um gesto por cima do ombro da minha ex, gesticulando um "parabéns" silencioso com a boca e sorri.
 
A Marina fechou os olhos, confusa.

_A, a gen... – ela hesitou, atrapalhada na própria explicação, e eu me diverti – ...quer dizer...
_Hum?
_É que... a, a ge...
_Ela é amiga da minha melhor amiga – a Clara se adiantou e respondeu por ela, grossa.

Ah, jura, a olhei de volta, com um sorriso no canto da boca, não acaba com a graça.

_É. A, a gente saiu, uns anos atrás.
_Quê?! – me fiz de surpresa, ao ouvir a minha sempre honesta ex-namorada falar sobre o que eu já tinha descoberto dez minutos antes – Mas vocês duas, mano?!
_Foi u-uma vez.
_Nossa... Sério?!
_A, a gente... – a Marina se enrolou, de novo – ...só se v-viu...
_Ela já sabe.

Silêncio, Clara.

_Eu contei assim que te vi – continuou, cortando meu barato – Agora há pouco, na porta.
_Ah! Claro que você sabe... – a Marina então revirou os olhos para mim, suspirando aliviada.
_Enfim, bom te ver... – a Clara disse e se virou para mim – ...olha, eu vou buscar mais vinho, tá?
_Não. Bi, espera...
 
Droga. Ambas me deram simultaneamente as costas, cada uma indo para um lado, me ignorando. Por que estragar o momento? A Marina deixou de lado um pano com o qual limpava as mãos durante a conversa, o apoiando sobre a pia e indo em direção à geladeira; e a Clara retirou-se novamente para a sala, fugindo para bem longe da minha inconveniência. Ah. Qual é, gente?! Mantive o meu espírito esportivo, de bom humor, ainda rindo conforme retomava o assunto. Corri uns três passos para alcançar a Marina no outro canto da cozinha, encostando o antebraço no alto da Cônsul antiga da Lê e a encarando.

_Quer dizer, então... – sorri – ...que vocês duas, hum... hein?
_Você tá adorando isto, né. Eu já devia saber... – desviou o olhar de mim, abrindo a porta da geladeira, revoltada com a forma como as minhas pupilas brilhavam incontidas – ...é a sua cara mesmo, se divertir com uma coisa dessas.
_Ah, vai...
_Quieta!
_O quê?! Eu não posso achar nada? Nem um pouco... – ri – ...interessante?!
_Não. Você tá imaginando nós duas na cama, que eu sei. E isso é ridículo!
_Olha, não tava... – achei graça – ...mas agora que você disse.
_É. “Agora”, né.

Fechou a porta da geladeira com uma peça pequena de parmesão nas mãos, se voltando para a mesa bagunçada ali ao lado. A Paula tinha uma faca em mãos, ao nosso lado, picando framboesas para o que parecia ser uma possível calda, cortando-as na mesa e enchendo uma panela. Hum, vai ter sobremesa então. A Marina se acomodou logo ao seu lado, colocando o queijo entre os ingredientes do molho. Eu ainda me divertia com a situação.

_Mas, e aí? – insisti, a perseguindo pela cozinha – O que aconteceu entre vocês?!
_Nada. Você já sabe o que aconteceu...
_Tá, mas...
_”Mas” nada, chega!
_Mas eu quero saber o quê, como, a sua opinião. Sei lá!
_Eu não vou dizer a minha opinião, foi anos atrás. E meu, que diferença faz agora? Você gosta dela, cara, eu não vou ficar aqui falando da menina.
_Gosto. Gosto mesmo.
_Então, pronto!

A Marina virou o rosto, como se encerrasse o assunto com aquela frase. Tá, tá. Não tá mais aqui quem falou, ergui as mãos e me abstive de qualquer outro comentário, ainda rindo. Achava graça em como a Marina apertava os olhos toda vez que estava irritada, o fazia com frequência na minha direção. Que drama, viu. Tentou se concentrar então em ralar o parmesão dentro de um pote. As raspas caíam finas e delicadas, com leves curvas nas pontas, umas sobre as outras.
 
Bati os meus dedos sutilmente na superfície de madeira. E foi quando, do nada, dois segundos da minha conversa com a Clara voltaram, frescos, à minha memória. Mas o quê...?, apoiei a palma da mão sobre a mesa, confusa.

_Na verdade, e... – o meu cérebro só então processou a lembrança e eu murmurei, atordoada – ...eu acho que, q-que eu... d-disse alguma... coisa. Merda. Já volto!