_Come, linda. Vai derreter tudo!
A Clara segurou minha mão sobre a mesa, me olhando com aqueles seus
olhos bonitos. Meio bolivianos, meio argentinos. Seu cabelo preto caía sobre as
bochechas, na lateral do rosto – e elas se erguiam de leve, num sorriso
carinhoso. Eu estava sendo a pior companhia naquela tarde de sábado. Perdi a
fome, com a cabeça cheia, e mal falei uma só palavra no restaurante. A situação
com o Fer estava me consumindo por dentro.
Agora estávamos sentadas numa sorveteria no fim da Augusta, a
Soroko, dividindo um pote enorme que já ameaçava virar poça. Olhei para a Clara
ali, ao meu lado, e me forcei a sorrir de volta.
_Desculpa – murmurei, melancólica – Não quero estragar o dia, é só
que... sei lá, meu, tô preocupada com... c-com o lance do Fer.
_Eu sei, Bo.
Sua mão continuava na minha. Então ela se curvou suavemente, me beijando.
_Vai ficar tudo bem – sussurrou, assim que nossos lábios se
afastaram, segurando o meu rosto com carinho – Cês vão dar um jeito, meu.
Nisso, para a minha surpresa, um cara duns 50 e poucos anos que
estava na mesa ao lado, tomando sorvete junto com o filho e a esposa, resmungou
um “pouca vergonha”. Na nossa direção – é. Porque aparentemente consolar
a porra da sua mina com um selinho e as mãos dadas é depravação. Eu e a Clara
nos encaramos na mesma hora, sem entender, e então olhei por cima do meu ombro –
para a cara feia dele, ali, sentado a dois metros de nós, nos repreendendo publicamente.
E aí senti o meu sangue ferver.
Escolheu o dia errado, babaca.
_Puta merda... – respirei fundo e passei a mão na cara, falando
baixo para a Clara – ...eu vou arranjar briga com esse desgraçado, juro.
_Não, Bo. Calma. Cê só vai se irritar mais se cê for lá...
_Mas quem esse mano acha que é, porra?!
_Eu sei.
_Filho da...
Fiz que ia levantar e a Clara me segurou, me interrompendo e me fazendo
sentar de volta, com as mãos no meu rosto. Me solta, me frustrei, com
o esporro que ia dar nele ainda entalado na minha garganta. Mas aí ela me
beijou. De novo. Uma, duas vezes. E eu esqueci o que ia fazer – o que era
mesmo? Mais para lá, podia ouvir o idiota se incomodar, cada vez mais, bufando
e se reajeitando na cadeira, sem tirar o olho de nós. E eu a beijei de volta,
num impulso, como se o nosso amor fosse capaz de calar a boca de outros mil
como ele.
_Vem... – a Clara sorriu, cochichando para mim – ...vamos mostrar
o que é pouca vergonha.
Ai pegou a pazinha cheia de sorvete na mesa e, antes que eu pudesse
me dar conta do que estava acontecendo, espalhou metade na minha cara. Desceu
com a colher da minha bochecha até passar por cima da minha boca, pelo meu
queixo. Desgraçada. Comecei a rir. E então, do jeito mais afrontoso
possível, me lambeu a cara toda, sob os olhares indignados da mesa ao lado. Imediatamente
vingativa, roubei a pá da sua mão.
_É?! – achei graça, inteira babada.
E deslizei aquela colher pelo seu pescoço, seu ombro, a lambendo logo
em seguida. Pra quê, né? Deu-se início a um contra-ataque cada vez pior
que o ataque anterior. Olha, se o macho achou ruim um selinho, agora... Agora
a gente ria e ia se sujando, se lambendo inteira – meu joelho, minha bermuda, os
shorts da Clara e as suas coxas, meus braços, o decote dela, nossa cara toda. Aí
perdi a paciência e meti a mão direto no pote. Desci numa linha reta da testa
da Clara até a pontinha do seu nariz, a pintando de sorvete de flocos; três
pontinhos sob cada um dos seus olhos. Ela riu. E então lambeu cada um dos meus
dedos.
Puta merda.
A puxei mais para perto, num beijo melado, sentindo minha mão
lambuzar seu pescoço, a segurando, enquanto as nossas peles iam se grudando. A
gente meio se agarrava, meio ria. Perdendo a noção de quão em público estávamos.
Até o lesbofóbico de merda finalmente se levantar, resmungando qualquer grosseria
e marchando para fora da sorveteria com toda a família. E ainda deixaram para
trás metade dos seus potes cheios. Que pena.
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