Naquela
noite, ainda que bem acompanhada da Clara, eu não consegui dormir. Algo me
mantinha acordada. Fecha os olhos, inferno, eu me revirava na cama.
E por mais que lutasse contra a ideia, sabia que uma parte significativa da
minha insônia tinha os dedos da Mia. A sua presença ao meu lado, o teatro; os seus beijos na garota da festa. Merda. Encostei cuidadosamente
a porta do quarto, saindo para o corredor, buscando silêncio na ponta dos pés.
Esqueci o cigarro lá dentro, mas deixa... tarde demais. Na cozinha,
o relógio marcava quase três da manhã e os ponteiros ecoavam ritmadamente seus
tics-e-tacs pelo cômodo vazio.
Todos,
exceto eu, dormiam.
A
luminosidade daquela madrugada na Frei Caneca entrava à surdina pelos vitrôs
abertos sobre a pia, me dispensando de acender o interruptor. Caminhei no
escuro, apenas eu e os meus pensamentos angustiados – no breu. Abri a geladeira
e a luz forte me doeu os olhos. Observei as garrafas colocadas aleatoriamente
na porta até uma de rum, quase cheia, que estava esquecida ali. Fazia alguns
meses que não a bebia. Tá, peguei, vamos lá... E
voltei à mesa da cozinha, sentindo o vidro gelar entre os meus dedos no percurso.
Com os gestos sonolentos, acendi a luz na parede e empurrei a cadeira, sem
muita delicadeza.
Me
sentei ali, com a garrafa em frente a mim, e enchi um copo. A Marina
vai me matar, pensei. Mas virei de uma vez – e o primeiro gole
desceu gelado, esquentando a minha garganta em seguida e me invadindo assim, aos
poucos. A minha cabeça ia e vinha nos acontecimentos daquela noite, daquela
semana, perturbada. A Clara tinha reclamado no quarto, horas antes, incomodada
com a atitude da Mia, ainda que não tivesse percebido todos os desdobramentos.
“Essa garota só quer tanto sua atenção porque você não é mais dela”,
disse antes de deitarmos, ao tirar as calças. E sou sua?, me incomodei.
Mas sabia que ela tinha razão – e a Mia não.
Não?
A
ideia me incomodava. Era o que me mantinha acordada. Respirei fundo, angustiada
– não queria a Mia de volta. Não queria a confusão, não queria trair o Fer, de
novo. Mas não conseguia agora, insone, tirar o meu pensamento das suas mãos. Do
atrevimento silencioso dos seus dedos. Podia senti-los, tão reais, tão
intencionados, na minha pele. Ali mesmo, sozinha, sentada na cozinha.
Deslizando em mim, numa destas memórias sensoriais. Sem intenção ou
controle. Ah, não, não faz isso, cacete. Mas ainda assim seguiam, o
indicador e o do meio, encostando na minha mão. E eu escorregava meus dedos
pelo copo suado, gelado, sobre a mesa da cozinha. E lembrava, perigosamente, de
todas as vezes em que as mãos da Mia correram assim por mim. Pelos contornos do
meu corpo, pela minha boca. Nuas, descobertas, as duas no chão frio do banheirinho
na sua casa, na cama do seu quarto. A sensação ia me tomando, lentamente. Insólita.
A sua memória, o seu toque, arrebentando cada centímetro de mim.
Não. O meu peito apertou,
doído. Por que, por que eu faço isso?, apoiei os braços na mesa e
pressionei as mãos contra a minha cabeça, arrependida. Caralho. Bagunçava
sem querer o meu cabelo. Ela nunca lutou por você, me convenci, com
rancor, nunca. Nas madrugadas, às vezes, era pior; aquela
nostalgia burra e meio impensada do peso dela dentro de mim, do amor que eu lhe
tinha me ocupando, sabe, denso e em todo o coração. Nem sempre o
seu corpo quer a leveza que conquista, entende? Mas não, você não, n-não
tem direito, garota. De me tirar isso, de me roubar a paz.
O meu
copo se esvaziava, me embriagando aos poucos. O que me incomodava mesmo era a
proporção. Do quanto ela, de fato, tentara naquela noite e o quanto de tudo
aquilo era apenas eu quem permitia. É, “permitia” – essa era a
palavra –, pois permitia que entrasse de novo em mim. Parte da culpa era minha,
sim. Ainda que não tivesse movido um milímetro em sua direção naquela
noite. E como poderia? Agora que não te quero, agora que não me
importa mais. Puta merda, né, virei o segundo copo, agora você vem. Não
quero isso, Mia. Seu drama, suas incertezas, suas idas e vindas com o Fer,
comigo, não é mais problema meu. E eu não quero – agora que me livrei de você,
eu sei, sei o quanto me faz mal. E não quero, porra.
A
mera ideia de perder a amizade com o Fer ou o que eu tinha com a Clara me
embrulhavam o estômago, me fazendo arrepender de sequer olhar na sua direção. Não vale a pena. Enchi mais uma vez o copo, começando a perder a conta. E balancei
a cabeça, já com o copo vazio em mãos, instantes depois de beber – não, não
vale a pena. Mas, ainda assim, não conseguia tirar da cabeça seus beijos com
a desgraçada da festa. Ou pior. Num refluxo de emoções, fui tomada por
uma angústia. Diabo de garota. E senti que precisava reassumir de vez o
controle da situação, da minha vida.
Já
estava no meu quarto, quinto copo? Não sei. Com os olhos secos,
insones. Chega. Já se passavam quase uma hora ali, sentada.
Suspirei então, empurrando o último gole, com uns dois dedos restantes de rum no
copo – e me levantei, cansada. Desgaste emocional, dor de cabeça, tudo
junto, sei lá. Preciso parar com isso. Com aquela mania de
confusão, aquela dependência de caos, numas obsessões recorrentes demais de
madrugada. Sozinha na cozinha, sem saber parar.
Peguei
a garrafa em mãos, já não tão fria quanto antes, e a devolvi à geladeira. Voltaria
aos lençóis que compartilhava com a Clara. Mais uma tentativa de dormir, uma
última. Talvez o álcool ajude, pensei. É. Apaguei a luz
da cozinha, ficando no escuro. Aí saí para o corredor e, quase simultaneamente,
a lâmpada ali se acendeu. Como...? Do outro lado, saindo do
quarto e ainda com a mão no interruptor, a Mia se assustou ao me ver parada
ali.
Como
que...?
Terminou
de fechar a porta atrás de si, em silêncio. E os meus pensamentos demoraram
alguns segundos para assimilar, já um tanto bêbada, e inconsequente,
que ela estava acordada. E ali. Seus olhos, grandes e castanhos, me
olhavam de volta, com a respiração suspensa. Tinha as pernas descobertas, num
blusão branco e velho, emprestado do Fer. E me encarava, imóvel. A minha expressão
logo mudou, se tornando séria. E todo o meu rancor por ela me subiu, de
repente, de uma só vez, à cabeça. Aí os instantes de silêncio se esgotaram, tão
rápido quanto surgiram.
_Sabe,
eu queria saber... – disparei sem pensar, meio bêbada e estúpida – ...QUE MERDA
que passou pela sua cabeça pra cê sair por aí pegando mina.
Para
minha surpresa, ela me encarou de volta. Sem se abalar ou responder.
_Que
é?! – continuei, arrogante – Tá com saudade de beijar mulher agora?!
_Você
sabe o que é... – retrucou, à altura, irritada com a minha atitude – ...o que
eu quero.
Comecei
a rir, indignada.
_Não.
Quer saber, não, não sei... – passei as mãos no rosto, perdendo a cabeça –
...eu não tenho IDEIA de, de PORRA NENHUMA, Mia! Porque ainda é com ele
que você vai dormir toda maldita noite, NÃO É?! – senti umas lágrimas me doendo
a garganta, de raiva, embriagada – Então, não, não sei! Não sei nada do que se
passa nessa MERDA da sua cabeça! Não tenho ideia!!
_TEM!
– me encarou, mais segura do que a jamais vira – TEM, SIM!
E eu
perdi o controle. Tenho?!?, me revoltei. E o que é?!? Eu?! Sou
eu, porra?! A minha respiração pesava, cada vez mais. De
repente, eu valho a pena?! É isso?! De repente, você quer ficar comigo? Os
meus pensamentos gritavam tão alto que a Mia quase os ouvia. Simples
assim, né?! De repente, não tem problema?, sentia meu coração
disparar. De repente, não te importa mais o Fer?! De repente, tudo
bem colocar tudo a perder na frente dele, da Clara numa porra de um
teatro... numa festa inteira cheia de gente?! Que se foda, né?!,
caminhei na sua direção, num impulso. É isso, Mia?!
E
fui, sem pensar. Por todos os seus nãos, as suas meias palavras. Por toda
aquela merda do caralho, os seus erros, os meus. Todos eles. Os acertos. Por
tudo. Pelo tanto que eu a quis, desgraçada, e pelo tanto que a
queria naquele instante. Pelas suas pernas descobertas naquela droga de
corredor; pelo seu gosto na minha memória. Pelo desgosto também. Pela dor que
eu nunca realmente deixei de sentir. Pela saudade que tinha dela. Então tá,
garota, a empurrei para dentro do banheiro, batendo a porta atrás
de nós duas, quer ser sapatão?!
Então,
vem.