Era sábado, quase onze da manhã. O Fernando saiu para tirar a
segunda via de um dos seus documentos que perdeu enchendo a cara na madrugada
anterior. Enquanto isso, eu morria deitada só de camiseta do Sleater-Kinney na
sala, deliberadamente me torturando com os meus próprios pensamentos. O calor
parecia impregnar todo o nosso pequeno apartamento, vencendo a luta contra um
ventilador velho de chão que girava lentamente e ia empurrando o ar quente.
Passou algum tempo, não sei bem quanto, até que a Mia
saiu do quarto no fim do corredor e apareceu detrás do sofá. Nitidamente de
ressaca, arrastou os pés usando o mesmo vestido da noite anterior – tão
amassado quanto seu cabelo. Estava sem os alargadores e com olheiras enormes sob
os olhos. Os esfregou com as costas das mãos, como quem acaba de acordar, e
então olhou para frente. Aí riu, levemente indignada.
_Mano. O que diabos cê tá assistindo?
Olhei para a televisão e vi um monte de cavalos correndo com
uns homenzinhos montados em cima. Mas que porra é...?
_Nossa – estranhei – Não sei. Quer dizer, à TV
Jockey aparentemente...
_Cê não tava vendo?
_Não... t-tava brisando.
_Ah, é? Sobre o quê?
Ela pulou o sofá e sentou ao lado dos meus pés, esperando a
resposta. Lá estava aquele olhar de novo. Sobre
você, pensei. Ali, a poucos centímetros daquela encrenca toda que eu
definitivamente não devia comprar, puta
que pariu. E é, era patético. Acho que não ficava tão idiota
por alguém assim desde quando ainda levava lancheira para a escola e tinha uma
queda mal resolvida pela minha amiguinha de sala, lá na 3ª série B. Agora, em
pleno 2010, ali estava eu, me segurando para não me declarar para ela com um
bilhetinho tosco escrito a lápis.
O que cê quer de mim, garota? A mera proximidade era suficiente
para me deixar desconfortável. A Mia tinha uns ares de porralouca – uma dessas
garotas que, com treze ou catorze, se trancavam no quarto ouvindo riot
grrrls e se tatuavam com agulha, isqueiro e tinta de caneta. Bem o tipo de
garota que eu costumava pegar escondido no banheiro da escola. O problema é
que, naquela época, a Mia não se ocupava de garotas como eu – tinha passado a
adolescência toda em estacionamentos de supermercado, enchendo a cara de vinho
barato e se agarrando com caras como o Fer. Argh. Nada de tão bom
assim pode ser hétero, refleti. A heterossexualidade é sempre meio brega e a
Mia... A Mia ainda me olhava. O silêncio entre nós começou a crescer.
_Nada... – desconversei – ...sei lá, pensando na vida.
Mentira.
Ela sorriu e eu levantei um pouco o corpo, apoiada nos cotovelos.
A observando. Suas tatuagens caseiras da adolescência agora tinham sido
substituídas pelas de estúdio. As minhas favoritas eram umas flores de
cerejeira que desciam do seu ombro pelas suas costas e acompanhavam as suas
curvas até o alto da sua coxa. Eram bonitas. Meio distraída, observei os traços
na sua pele, conforme se escondiam sob o seu vestido, e ela pareceu se
constranger. Dei um sorriso amarelo. E mudei bruscamente de assunto, perguntando
se ela não queria alguma coisa da cozinha.
_Não, mas te acompanho – respondeu – Acho que o Fê ainda
vai demorar...
_Ah, certeza. Esse Poupa Tempo aí é na puta que pariu e não poupa de
tempo nenhum.
Ela concordou, revirando os olhos como se já tivesse passado por aquilo,
e nos dirigimos até a geladeira. Peguei um pedaço de lasanha que tinha sobrado
do jantar e acendi uma das bocas do fogão com o meu isqueiro, jogando aquele
resto de comida lamentável numa frigideira. A Mia observava todo o processo,
recriminando a minha estratégia.
_Cê vai mesmo esquentar isso assim?!
_Que tem, meu? – respondi, rindo da sua cara de horror, e usei o
isqueiro para acender um cigarro – Nem. Puta preguiça de pôr no forno, demora
muito!
A Mia deu com as mãos para cima. E eu podia sentir o julgamento
pairando no ar. Coloquei uma tampa consideravelmente maior do que a frigideira
por cima, para aprisionar o calor, e encostei na pia para fumar. A Mia se
sentou na mesa – e digo, literalmente em cima da mesa. Apoiou os pés numa das
cadeiras e a barra do vestido desceu pelas suas pernas. Aos pouquinhos, é,
como se tudo no mundo existisse só para me torturar. Cacete.
Imediatamente cansei de esperar, desconfortável. Que se foda, tirei a
lasanha daquele jeito mesmo da frigideira. E a Mia riu, assim que me sentei na
mesa.
_Na boa, isso aí parece horrível!
Coloquei uma garfada na boca, como se a afrontasse, fazendo graça,
e mastiguei aquela inhaca mal requentada. Credo, tá horrível mesmo, rapidamente
me dei conta.
_Pô, qual é – me recusei a dar o braço a torcer, argumentando entre
uma mastigada trágica e outra – Não é como se todo mundo comesse bem todo
dia...
_Tá. Mas essa sua refeição aí é realmente triste...
_Ah, vá! – resmunguei, de boca cheia – Falou a que desce às 4 da
manhã pra ir comer salgado de procedência duvidosa no boteco aí da esquina toda
vez que damos festa no apartamento. É ou num é?! Agora vem achar ruim o meu
ranguinho honesto...
Eu e ela nos olhamos e rimos. Não sei nem por que tô defendendo
essa gororoba. Contei a ela a minha teoria sobre como o dono do boteco provavelmente
colocava droga nas coxinhas. E logo iniciamos um papo empolgado sobre as
melhores laricas para se comer chapada de madrugada. Fiquei olhando, encantada,
enquanto ouvia a Mia falar sobre sucrilhos com requeijão, muffins com batata
palha e qualquer outra besteira sem pé nem cabeça. O meu coração silenciosamente
acelerou, é, isso não vai acabar bem.