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dezembro 26, 2009

El Infierno

Desci a Augusta, enfrentando todo o caos degradante de sábado à noite. Em direção ao Inferno. Vestia um All Star surrado, uma calça skinny e uma regata preta; sentia o frio arrepiar a pele sob as minhas tatuagens no braço. O vento bagunçava ainda mais o meu cabelo – uns fios meio curtos, repicados por mim mesma e descoloridos de qualquer jeito, como eu usava desde a adolescência, quando ouvia Alice in Chains no último volume no fundo da casa dos meus pais.
 
Agora tentava ultrapassar os tarados e todos aqueles malditos hipsters que lotavam a calçada rua abaixo. Argh. Homens são definitivamente piores bêbados e em bando. Descer a Augusta era sempre uma odisseia. Entrei no Inferno e o lugar estava tão cheio quanto o lado de fora. Mal dava para andar. A primeira coisa que meus olhos encontraram foi a Mia, em pé ao lado do Fernando – ambos encostados no bar. Me aproximei, cumprimentando todo mundo na roda, e tentei não olhar muito para ela. O Fer agia normalmente, discutindo qualquer coisa com o cara ao seu lado enquanto a Mia ria da conversa. Talvez esteja tudo bem, afinal?
 
Tratei logo de virar uns shots, num ritmo bem pouco saudável. E logo estava fritando na pista, completamente chapada. Numa inconsciência coletiva ensurdecedora que rapidamente me distraiu dos acontecimentos daquele dia. Graças a Deus pelo Inferno. As horas se foram voando e todo o nosso juízo também. Numas gritarias descompensadas, aos risos. Encontrando meio mundo no rolê, dançando, tomando fora duma mina atrás da outra, enchendo a cara, trocando ideia, a cabeça rodando. Lá pelas tantas da madrugada, vi o Fer acendendo um cigarro disfarçadamente em um canto da balada. E com certa dificuldade, cortei caminho até ele e a Mia.
 
_Mano, cê VAI SER EXPULSO!
 
Gritei, competindo com o som ridiculamente alto.
 
_Cala a boca, vou nada... Conheço todo mundo nessa porra! – se gabou, bêbado, e eu revirei os olhos – Quer?!
 
Eu ri e peguei o cigarro da mão dele, tragando duas vezes, o máximo que pude, e então soltei a fumaça para baixo na tentativa de encobrir nosso pequeno delito. Levantei a cabeça de novo e aí olhei para a Mia, encostada ali no canto. Me desgraçando a vida inteira sem o menor esforço. Mano, não. Não dá, porra.
 
_Vem dançar comigo... – pedi, bêbada, colocando minhas mãos em volta dela – ...vai ficar parada com esse idiota a noite toda?
_Vai se foder! – o Fer me empurrou.
 
 
E riu, colocando o cigarro de novo na boca. O ignorei.
 
_Vem... – sorri para a Mia, insistindo – Vem se divertir um pouco!
 
A Mia sorriu de volta, levemente constrangida. E negou o pedido. Estava mais quieta do que o normal, mal falou comigo a noite toda – e eu sabia bem por quê. Argh. Nem mesmo vai-saber-lá-quantas doses eram capazes de apagar a vergonha da minha memória. Fiquei olhando para ela por uns segundos, apaixonada e sutilmente rejeitada. Então puxei o Fer grosseiramente de lado e sugeri que ele fosse dançar com a sua namorada.
 
_Ela tá entediada, meu! – argumentei, numa tentativa de disfarçar minha falta de inibição alcóolica.
 
Aí saí.
 
Voltei para a pista, trocando uns olhares com a Mia por alguns instantes. Era mais forte do que eu e a bebida juntas – acreditem. Ela me observava de volta, com aquele seu jeito impossível de decifrar. Qual é a sua, garota? Até que o Fer colocou o braço ao redor dos seus ombros e ela sorriu para ele, distraída e... que se dane, virei o rosto. Decidi me distrair também. Deliberadamente. E foi quando os meus olhos encontraram alguém muito mais interessante com quem se ocupar – uma mina meio argentina e meio boliviana, me explicou com sotaque no meio da pista, falando alto no meu ouvido. Chamava Clara.
 
Ah, é você mesmo.
 
E olha, em minha defesa, eu estava totalmente bêbada. Mas não é como se fosse a única com dificuldade de ficar em pé ali – então nos empurramos, as duas, aos trancos e tropeços, contra a parede. Muy interessadas. Minhas mãos puxaram a Clara para perto e o jeito que aquela mina me beijava me fazia querer agradecer de joelhos naquele chão imundo pela sorte de não ter nascido hétero. No maior amasso que o Inferno já viu. Como eu amo ser sapatão. Pelo resto da noite não consegui mais tirar a boca, nem os olhos dela. Sem perceber que outra pessoa também não conseguia desviar o olhar.

dezembro 25, 2009

Sábado à noite, e daí?!

Melhor assim, tentei me convencer.
 
Sentei em frente ao computador e, por algumas horas, procurei me distrair com as mesmas coisas de sempre. Os mesmos sites, as mesmas conversas, as mesmas pessoas. Uma amiga tentava insistentemente me convencer a sair, afinal, segundo ela, era “sábado à noite”. E a possibilidade de eu ficar em casa sozinha parecia um absurdo – pelo menos para a Thaís e as pessoas que surgiam no meu MSN, perguntando o que raios eu estava fazendo online àquela hora.
 
“Contenção de danos”, pensava em escrever e logo desistia, zombando da minha própria capacidade de fazer merda dada a mínima oportunidade. Argh. Quando eu já estava prestes a ceder ao convite da minha amiga, o de acompanhá-la numa festa dumas sapatonas da USP, no Butantã, o meu celular tocou. É a Roberta, pensei. E ignorei. O telefone continuou tocando até cair. Na segunda vez que começou, tirei a bunda da cadeira, já levemente irritada, e fui procurá-lo na sala. A-há. Lá estava o infeliz, largado no sofá. Mas a tela não indicava mais nenhuma chamada da Rô e, sim, duas perdidas do Fernando.
 
Droga.
 
Minha cabeça foi a mil. O que ele quer? Não sabia o que pensar. Meu pessimismo incorrigível concluiu que ele provavelmente tinha se embebedado e já estava disposto a me xingar pelo telefone. Nisso, o meu celular começou a chamar de novo. Era ele. Merda. Atendo ou não atendo? Comecei a andar de um lado pro outro, nervosa, enquanto o celular gritava na minha mão. Sem saber o que fazer. Merda, merda, merda. Mil vezes merda. Não posso atender. Não posso. Seja lá o que ele for falar, eu não quero ouvir. Só para de tocar, por favor. Para de tocar, para de tocar... Para de... Argh. Mas que droga!
 
_A-alô?
_PORRA, MANO! Cê tava dormindo?!
_Não! Quer dizer... M-mais ou menos – me enrolei, um pouco nervosa – Quase. Eu tava aqui na... Na, na sala. Digo, na Roberta! Eu tô na casa da Roberta, na sala dela. Tava quase dormindo aqui no, n-no sofá. Sabe como é... E-eu vim... ficar com ela e...
_Cê tá bem, meu? – estranhou.
_Claro! – forcei um tom indignado – Por quê?
 
Ele riu, me chamando de doida. E perguntou se eu não queria encontrá-lo na balada, umas quadras para baixo da nossa casa, na Augusta. Como é? E precisa ligar três vezes pra isso, seu estúpido? O meu coração quase infartado começou finalmente a se acalmar. Estava quase recusando, o que talvez fosse a decisão mais sensata do dia inteiro, quando o Fer mencionou que estava lá com alguns dos nossos amigos e... claro, a Mia. Aceitei na hora. Ignorando qualquer instinto de autopreservação.
 
_Massa. Cola aí, tamo no Inferno! – ele respondeu.
 
Que apropriado.

Maldito silêncio

Tentei virar a chave um milhão de vezes, mas algo me impedia.
 
Tinha medo do que encontraria do outro lado. Imaginando que daria de cara com o meu melhor amigo e estimado colega de apartamento, me esperando no meio da nossa sala, puto, depois de descobrir que eu havia chegado perto o suficiente para beijar a namorada dele caso eu quisesse. E eu queria. Agora me via parada ali, no corredor, antecipando mentalmente cada insulto que ele cuspiria na minha direção. Sem conseguir abrir a maldita porta. A Roberta já tinha deixado dois recados na minha caixa postal e o meu celular registrava inúmeras ligações perdidas. Todas suas. Caralho. Só faço merda. Quando finalmente criei coragem, abri a porta e...
 
Nada.
 
Estranho. Entrei silenciosamente no escuro e, como ninguém se manifestou, acendi as luzes – o apartamento estava vazio. Sem ninguém. Nada. Sem reações explosivas, sem ciúmes, sem conclusão nenhuma para todo aquele rolo que eu havia começado de manhã. Sem porra nenhuma. Sem desfecho ou indícios do quanto havia sido falado entre aquelas quatro paredes na minha ausência. Nada. Um grande nada.
 
Ah, isso era bem pior.
 
Parte de mim, quase preferia a treta. Onde diabos eles se enfiaram? Andei pelo corredor até o quarto do Fer e a porta estava aberta. Entrei por um instante para constatar se realmente não havia ninguém ali. Os lençóis estavam desarrumados – argh. Como eu odiava aquilo. Odiava as coisas que passavam pela minha cabeça quando via a cama dele bagunçada depois da Mia ter estado lá. Sentia o meu coração rasgar; ficava inquieta, desconfortável. Sem direito nenhum, é, mas acontecia. Assim como aconteciam as minhas grosserias, as babaquices que eu fazia para lidar com o meu próprio caos.
 
A minha ansiedade tomou conta de mim. Eu queria saber. Queria ter certeza do quanto o Fer sabia. Queria olhar nos olhos da Mia e ver se tinha feito alguma besteira irreparável. Ou se todo aquele surto era resultado da minha própria paranoia. Queria alguém ali. Queria alguma certeza. Qualquer uma – mas não tinha nada.
 
Só a droga do silêncio.

dezembro 19, 2009

Indesculpável

_Nossa, isso foi... intenso... – suspirou a Roberta, enquanto eu retomava o fôlego – Cê não costuma ser tão... Ahm...
 
Egoísta?
 
_...sei lá. Tão “intensa” – ela riu, se repetindo, sem achar outra palavra.
_Hum... – hesitei, olhando para ela do meu lado.
 
Sorri rapidamente de volta, sem conseguir disfarçar bem. A verdade é que aquilo não tinha adiantado de nada. Porra nenhuma. Eu tentei, tentei mesmo, tentei ao máximo tirar a Mia da minha cabeça. Tentei por horas seguidas arrancá-la, à força, de dentro de mim. À exaustão – mas ela simplesmente não foi embora. Alheia ao meu tormento, a Roberta se sentou no colchão e alcançou o dichavador que estava no chão do quarto, perto da cama.
 
_Ei... – me olhou de canto de olho e brincou, enquanto bolava um baseado – Até que a gente não é nada mal juntas, hein?
_É – forcei outro meio sorriso, com a cabeça cheia.
_Hum, e quando você vai me fazer sua namorada?
_E por que eu que tenho que fazer alguma coisa?
 
Me arrependi assim que falei.
 
Merda. A Roberta desviou o olhar, aborrecida – por aquela minha atitude estúpida de quem não tem nada a ver com o assunto. E eu me senti péssima. Deitada ali na sua cama, sem sequer conseguir a dignar com uma resposta melhor. O que diabos eu tô fazendo?, esfreguei a mão no rosto, arrependida. Talvez eu devesse ter percebido mesmo, talvez eu devesse ter me importado mais. E talvez não fôssemos só duas pessoas que se ligam para transar. Mas que merda. É.  No fim das contas, fingir amor com boas intenções é mais íntegro do que ser sinceramente filha-da-puta?
 
Não importa. A verdade é que eu tinha que aprender a deixar as pessoas em paz. Longe da minha confusão. Da minha grosseria. Beijei-a carinhosamente no rosto. E suspirei, sentindo o meu amor por outra entalado na garganta. Então deitei de novo no travesseiro, encarando o teto. Mas, de repente, não conseguia mais ficar ao seu lado. Eu tinha feito tudo errado. Tudo aquilo – cada movimento, cada palavra. E a culpa era minha. Inteira minha. Droga.
 
_Desculpa. E-eu... – me inquietei, subitamente – Isso tá errado, e-eu... – levantei da cama, me vestindo – ...eu não devia ter vindo aqui hoje, m-me... desculpa, Rô.

Medidas drásticas

40 minutos, 2 sanduíches e muitos cigarros depois e nós estávamos de novo no apartamento. A fome da Roberta foi embora, levando junto alguns dos meus poucos reais restantes, que gastei num novo maço no caminho de volta. Mas, enfim, de volta. O apartamento dela quase não tinha móveis. Numa pegada meio industrial, minimalista. Eu a observava dançar distraída pela sala, lentamente. PJ Harvey, "Beautiful Feeling". A música pesada, de alguma forma, se misturava com a sua personalidade. As cortinas escureciam todo o cômodo, mas eu conseguia vê-la, de costas para mim, movendo-se de um lado para o outro. Com os pés descalços soltos no chão. Ela tinha uma linha reta tatuada no meio do indicador, que subia por todo o braço e até a nuca. Outra vinha do seu calcanhar até o meio da coxa. Ela se virou e sorriu para mim, de longe. Eu podia me apaixonar por você, garota, pensei. E por um instante, me esqueci do que me levara até a casa dela mais cedo naquele dia. Me esqueci dos motivos, do meu único motivo. Me esqueci dela.
 
A Mia.
 
Do nada, ela voltou. Por que eu fui pensar nisso?! Mia. Mia. Mia – argh. De repente, a desgraçada tomou conta de todos os meus pensamentos. De novo e de novo. Contra a minha vontade. Você tá estragando isso, inferno, me irritei. E ela estava. A Mia estragava a Roberta, estragava tudo. E sabe, se a namorada hétero do seu amigo é capaz de arruinar uma garota dessas dançando sem roupa numa sala vazia, meu bem, você tá perdida. E eu já era.
 
Droga. Larguei o cigarro, incomodada, e me levantei do sofá. Vamos lá. Eu consigo fazer isso. Fui até o meio da sala e segurei a Roberta com todas as minhas melhores piores intenções. As suas mãos subiram a camiseta pelas minhas costas. Mordi seu queixo e subi a minha boca até a sua. No entanto, quanto mais eu a beijava, mais a Mia invadia a minha cabeça. Os meus dedos a seguravam com vontade e apertavam a sua pele, numa tentativa de fazer com que a porra da Mia desaparecesse. Eu queria que ela desaparecesse. Que sumisse de todas as extensões do meu corpo, de cada veia sob a minha pele. E do meu coração – sobretudo do coração. Mas não. Nada. Ela continuava lá. Em mim. Insistentemente. Mia. Mia. Mia. Mia. Mia. Argh.
 
Mas resisti.
 
Eu vou fazer você sumir, porra.

dezembro 18, 2009

Roberta

Desembarcamos, eu e as minhas más intenções, numa ruazinha inclinada de Perdizes. Apto 42. Roberta. Esse era o nome da garota que eu estava prestes a sacanear por motivos totalmente egoístas. A mesma que provavelmente me chutaria de volta para Baixo Augusta caso descobrisse que alguma vez a imaginei como uma vítima indefesa da minha própria falta de integridade – que era exatamente o que eu estava pensando, parada em frente ao interfone do seu prédio.
 
Quarto andar e nem um fucking elevador. Como eu odeio esses prédinhos namastê de Perdizes. Muitos degraus depois e a Roberta abriu a porta. Encostou no batente como se já me esperasse há algum tempo e eu sorri. Um sorriso sincero, feliz por revê-la. A Rô tinha aquele jeito dyke de ser, cabelo curtinho descolorido e uns braços fortes. Irresistível. Com o tempo, desenvolvemos certa cumplicidade, mas algo me impedia de estar realmente com ela. A minha falta de maturidade, provavelmente.
 
Era uma dessas minas pós-punk que ouvem EBM. Sabe? Dessas que cresceram no interior escutando uns Front 242 baixado ilegalmente no Napster, depois veio morar na capital e entrou na cena hardcore eletrônica. Uns anos depois, ela acabou caindo nuns sons experimentais depressivos, e densos, tinha um projeto de discotecagem com um amigo que fui ouvir uma vez numa quebrada no centro de São Paulo, não sei bem explicar. Mas eu gostava. Gostava de tudo nela. E o sexo era, meu deus. Gostava também de pensar que era para isso que nos ligávamos, de tempos em tempos, ainda que provavelmente essa fosse só a minha perspectiva. Não a dela.
 
_Então quer dizer que cê ainda tá viva?
 
Cruzou os braços, rindo, encostada no batente.
 
_É... E-eu, eu andei meio ocupada – menti – Correria no trampo.
 
A Rô levantou a sobrancelha, como se não acreditasse, e em resposta a beijei contra o batente. Puta merda, como eu precisava disso. Tem umas bocas que simplesmente se encaixam. E a da Roberta me fazia esquecer de todos os desencontros da minha vida. Me afundei no seu gosto e ela me puxou na sua direção. Eu sorri entre os seus lábios.E aí, posso entrar?”, fiz graça, já me dirigindo para dentro do apartamento, certa da resposta.
 
_Na verdade... – ela me segurou, tirando as chaves do bolso – Eu tava saindo pra almoçar, quer vir?
 
Espera. Quê?
 
Fiquei parada ali. Não. Não, não, a encarei sem reação, pega de surpresa. Não, não, não, você não tá entendendo, gata. Eu preciso de horas intermináveis de sexo da mais baixa categoria e você quer ir comer? Mas nem a pau.
 
_Pode ser. Mas... – a encostei de volta contra o batente da porta, sem me dar por vencida – ...p-primeiro, vamos lá dentro comigo um pouquinho, vai? Pra gente decidir direito o que vai comer...
 
Cafona, é, eu sei. Mas a Roberta riu e colocou os braços ao meu redor de novo, me beijando demoradamente. E pareceu funcionar. Danem-se os vizinhos e os bons modos, a porra toda. Estava pronta para tirar a roupa ali mesmo. Desesperada por qualquer coisa que me ocupasse a boca mãos mente corpo o coração naquele momento. Fui descendo pelo seu pescoço, deslizando os lábios na sua pele. E a Roberta mordeu a pontinha da minha orelha. Aí aproximou a boca do meu ouvido:
 
_Eu tô com muita fome... – arrastou as palavras lentamente, me provocando, e aí segurou o riso, se afastando – É sério. Eu tô morrendo de fome, vamos?!
 
Filha da puta.
 
Aquilo era vingança. Eu podia ver ela se divertindo com a situação e com a minha nítida cara de frustração. Isso que dez minutos antes eu estava plantada em frente ao seu prédio imaginando-a como uma vítima indefesa da minha arrogância. Pois é. Agora eu é que era arrastada para um almoço inoportuno, a três quadras dali, com um fogo desgraçado e a cara mais emburrada do mundo. Isso não tá acontecendo, me indignei.

dezembro 15, 2009

Merda, merda

Não sabia por que estava tão irritada. Sentia que tinha feito besteira, uma besteira grande. Maldição. Acendi um cigarro e tentei não me preocupar. Em vão. A minha cabeça estava cheia d-da, da Mia, da porra da Mia, e como tínhamos ficado próximas nos últimos meses e como, caralho, c-como pude interpretar as coisas de forma tão equivocada. Mas... m-mas estou mesmo tão errada assim? Nunca tinha me enganado antes, não desse jeito. Que diabos a Mia tem que me confunde tanto?
 
Não.
 
Não, não. Não. Não interessa, me forcei a esquecer aquilo. Não importa se tô certa ou errada, é uma péssima ideia. Eu sabia que não podia dar em cima da mina do Fernando – o que me perturbava era o quanto eu não conseguia evitar. Meti os fones do meu MP3 no ouvido e desci a rua nervosa, fumando compulsivamente e judiando dos meus lábios, que eu mordia entre uma tragada e outra. Eu tô exagerando, pensei, tentando me acalmar, é só uma garota.
 
“Só uma garota” – argh.
 
Era a pior garota. Inferno. Por que diabos fui gostar logo dela?, era tudo o que vinha na minha cabeça enquanto eu descia a Frei Caneca. Ela namora, insisti mentalmente, com meu melhor amigo, cacete. Mas quanto mais eu tentava não pensar em mulher nenhuma, mais a minha cabeça se enchia com cada pedacinho da única que eu realmente queria – a sua boca, o seu cheiro, o jeito como se movia quando falava ou como deitava ao meu lado na cama, descascando o esmalte preto das unhas enquanto a gente ouvia música, as suas pernas esbarrando nas minhas, numa vontade inexplicável de estarmos juntas, caralho. “And I want you now, I want you nooow”, o Muse gritava no meu ouvido, agravando o aperto no meu coração, “I feel my heart implooode”. Estava prestes a enlouquecer.
 
Parei de repente de andar e respirei fundo, tirando os fones. Estava em uma esquina e a senhora ao meu lado me olhava esquisito, como se eu fosse descontrolada. Ótimo, revirei os olhos, tô assustando velhinhas agora. Olhei em volta e vi que havia descido mais do que imaginava, já quase no buraco sujo da Rua Augusta que segue o final da Frei Caneca. O sol indicava impiedosamente que já passava de meio dia. Merda. Vou ter que subir tudo de novo nesse calor insuportável.
 
O pessimismo e um desânimo preguiçoso, resultante da minha vida como uma paulistana sedentária cujo esforço físico se limitava a levantar copo de cerveja e foder em banheiro de balada, afastaram meus pensamentos inapropriados por um instante. Mas eles logo voltaram, empurrando mais um cigarro para dentro da minha boca. Preciso esquecer ela, concluí. E precisava esquecer naquele segundo. Analisei rapidamente as minhas opções, peguei o celular e, após minha segunda ligação, subi no primeiro táxi que parou.
 
_Perdizes, por favor.
 
Não, eu não tinha dinheiro para aquilo. Digo, não para o que eu estava prestes a cometer – uma fuga desnecessária para o apartamento de um casinho que não tinha culpa naquela história e a quem eu provavelmente ia acabar machucando. É. Eu poderia pensar em um milhão de maneiras de gastar melhor o meu restrito dinheirinho do que naquele táxi – mas me enrolar nas pernas de uma garota era a melhor forma de tirar a boca e todo o resto de outra da cabeça. Foda-se, contestou o meu ego ferido, é uma emergência.
 
Perdizes, baby, aqui vou eu.

dezembro 14, 2009

80's kids

_Mas espera, quantos anos cê tem mesmo?
_23 – respondi.
_Ai, como você é ridícula... aí falando que “na sua época”, mano, se toca!
_Quê?!
_São três a mais que eu. Três! E daqui uns meses, só dois...
 
Tá bom, gata, quando chegar em dois a gente dá uns beijos pra comemorar.
 
_Que foi? – indagou, como se eu risse dela.
_Nada, não, deixa pra lá...
 
A Mia continuou me olhando, insatisfeita com a resposta. Uns minutos antes, a nossa conversa tinha ido parar nas tranqueiras que comíamos na infância e eu a provocava deliberadamente, falando dos comerciais que passavam na TV nos anos 90 como se ela não tivesse idade para ter visto nenhum deles. Agora ela me encarava, contrariada.
 
_Mano, cê acha que eu nasci quando? Eu sou de 89!
_Desculpa aê, gente grande, mas semana passada você me perguntou que música era a...
_EU JÁ DISSE QUE CONHECIA, SÓ NÃO SABIA O NOME!
_Era Blondie. BLONDIE! Quem não conhece Blondie?
_Eu conheço Blondie. Eu só não sab...
_É a coisa mais pop dos anos 80! – interrompi, rindo.
_Não é a coisa mais pop dos anos 80...
_É a coisa mais pop que eu ouço dos anos 80.
 
A Mia revirou os olhos, achando graça na minha atitude.
 
_Cê gosta de tirar uma com a minha cara, né?
_Gosto – levantei da mesa, rindo.
_Babaca.
 
Caminhei até a pia e abri a torneira, jogando água sobre o prato.
 
_Relaxa... – virei pra trás, piscando na sua direção – ...só sou babaca com mina que acho gata.
 
“Cala a boca”, ela protestou, rindo. Era fácil demais provocá-la. Terminei de lavar o prato e sequei a mão na lateral das coxas – molhando a barra da camiseta. Agachei para pegar o filtro de café sob a pia e levantei em seguida, observada pela Mia enquanto procurava qualquer coisa limpa no escorredor onde pudesse ferver a água.
 
_Ô. É bonita essa sua cuequinha aí, hein...
 
Olhei para baixo para lembrar o que estava vestindo – um samba-canção verde desbotado, com uma estampa tosca de alienígena – e balancei a cabeça, rindo.
 
_É assim? Um xaveco meu e você já é sapatão?
_Ah, nossa, aquilo foi um xaveco?!
_Poderia ser...
 
Ela revirou os olhos, balançando a cabeça.
 
_Triste, hein?! – ficou em pé, alcançando o meu maço sobre a mesa – Essa é a sua melhor cantada?
 
Não, a respondi em pensamento. E observei conforme ela acendia o cigarro do outro lado da cozinha. A Mia fechou os olhos por um instante, dando o primeiro trago. E os reabriu, me olhando de volta por trás da fumaça. Assim – encostada na parede de ladrilho, quase como se me desafiasse. O clima mudou. Ao fundo, podia ouvir a TV ligada na sala. Observei as suas pernas naquele vestido, apoiada contra a pia. A Mia me encarava de volta. E o silêncio parecia transformar toda estática do ar em tensão entre nós. Por um segundo, senti uma abertura. Uma porra de segundo. Desencostei da bancada, então, e andei na sua direção. Chegando perto dela. Perto demais. Apoiei a mão por cima do seu ombro, quase a prendendo contra a parede. Os seus olhos se fixaram nos meus, atentos. E eu a encarei de volta – podia sentir a sua respiração ficando tensa. De repente, já não era mais brincadeira. O meu corpo encostou no seu e senti o ar sair do seu peito, inquieto, até a sua boca entreaberta.
 
_O dia que eu der em cima de você, Mia – confessei – Você vai saber.
 
Ela não se moveu um milímetro, sequer piscou.
 
Após intermináveis segundos, passei a mão na sua cabeça bagunçando propositalmente o seu cabelo – como se indicasse que estava só brincando. Não estava, mas, , que opção eu tinha? Céus, tô dando em cima da namorada do meu melhor amigo, achei certa graça. Qual é o meu problema? A Mia sorriu de volta para mim, meio sem jeito.
 
_E aí, quer ver TV?
 
Mudei casualmente de assunto, indo para a porta.
 
_Não, e-eu... – ela murmurou, confusa – ...acho q-que, que vou para o quarto esperar o... o Fê voltar.
 
Não me virei para ouvir a resposta, apenas continuei caminhando até a sala. E pouco depois, ouvi a Mia passar atrás de mim no corredor, se fechando no banheiro. Merda. Deitei no sofá e passei a mão no rosto, me forçando a cair na real. Merda. Merda. Merda. Tentei ignorar aquela vontade de desaparecer e afundei o corpo numa almofada. O meu coração apertou. Olhei para a televisão e ela continuava na droga da TV Jockey. Me arrependi de ter feito falado insinuado qualquer coisa para a Mia. E agora ela estava lá, trancada no banheiro, pensando sabe-se-lá o quê de mim. Argh. Preciso me controlar, repeti para mim mesma, isso não pode acontecer, porra. Olhei novamente para a TV e as malditas corridas de cavalo continuavam lá. Aquilo me irritou profundamente e eu desliguei a televisão, impaciente. Preciso sair daqui, decidi. Vesti uma calça que estava largada no chão, peguei dinheiro, um maço e saí para rua, num impulso, puta da vida.

dezembro 13, 2009

Muffins e cavalos

Era sábado, quase onze da manhã. O Fernando saiu para tirar a segunda via de um dos seus documentos que perdeu enchendo a cara na madrugada anterior. Enquanto isso, eu morria deitada só de camiseta do Sleater-Kinney na sala, deliberadamente me torturando com os meus próprios pensamentos. O calor parecia impregnar todo o nosso pequeno apartamento, vencendo a luta contra um ventilador velho de chão que girava lentamente e ia empurrando o ar quente.
 
Passou algum tempo, não sei bem quanto, até que a Mia saiu do quarto no fim do corredor e apareceu detrás do sofá. Nitidamente de ressaca, arrastou os pés usando o mesmo vestido da noite anterior – tão amassado quanto seu cabelo. Estava sem os alargadores e com olheiras enormes sob os olhos. Os esfregou com as costas das mãos, como quem acaba de acordar, e então olhou para frente. Aí riu, levemente indignada.
 
_Mano. O que diabos cê tá assistindo? 
 
Olhei para a televisão e vi um monte de cavalos correndo com uns homenzinhos montados em cima. Mas que porra é...?
 
_Nossa – estranhei – Não sei. Quer dizer, à TV Jockey aparentemente...
_Cê não tava vendo? 
_Não... t-tava brisando.
_Ah, é? Sobre o quê?
 
Ela pulou o sofá e sentou ao lado dos meus pés, esperando a resposta. Lá estava aquele olhar de novo. Sobre você, pensei. Ali, a poucos centímetros daquela encrenca toda que eu definitivamente não devia comprar, puta que pariu. E é, era patético. Acho que não ficava tão idiota por alguém assim desde quando ainda levava lancheira para a escola e tinha uma queda mal resolvida pela minha amiguinha de sala, lá na 3ª série B. Agora, em pleno 2010, ali estava eu, me segurando para não me declarar para ela com um bilhetinho tosco escrito a lápis.
 
O que cê quer de mim, garota? A mera proximidade era suficiente para me deixar desconfortável. A Mia tinha uns ares de porralouca – uma dessas garotas que, com treze ou catorze, se trancavam no quarto ouvindo riot grrrls e se tatuavam com agulha, isqueiro e tinta de caneta. Bem o tipo de garota que eu costumava pegar escondido no banheiro da escola. O problema é que, naquela época, a Mia não se ocupava de garotas como eu – tinha passado a adolescência toda em estacionamentos de supermercado, enchendo a cara de vinho barato e se agarrando com caras como o Fer. Argh. Nada de tão bom assim pode ser hétero, refleti. A heterossexualidade é sempre meio brega e a Mia... A Mia ainda me olhava. O silêncio entre nós começou a crescer.
 
_Nada... – desconversei – ...sei lá, pensando na vida.
 
Mentira.
 
Ela sorriu e eu levantei um pouco o corpo, apoiada nos cotovelos. A observando. Suas tatuagens caseiras da adolescência agora tinham sido substituídas pelas de estúdio. As minhas favoritas eram umas flores de cerejeira que desciam do seu ombro pelas suas costas e acompanhavam as suas curvas até o alto da sua coxa. Eram bonitas. Meio distraída, observei os traços na sua pele, conforme se escondiam sob o seu vestido, e ela pareceu se constranger. Dei um sorriso amarelo. E mudei bruscamente de assunto, perguntando se ela não queria alguma coisa da cozinha.
 
_Não, mas te acompanho – respondeu – Acho que o Fê ainda vai demorar...
_Ah, certeza. Esse Poupa Tempo aí é na puta que pariu e não poupa de tempo nenhum.
 
Ela concordou, revirando os olhos como se já tivesse passado por aquilo, e nos dirigimos até a geladeira. Peguei um pedaço de lasanha que tinha sobrado do jantar e acendi uma das bocas do fogão com o meu isqueiro, jogando aquele resto de comida lamentável numa frigideira. A Mia observava todo o processo, recriminando a minha estratégia.
 
_Cê vai mesmo esquentar isso assim?!
_Que tem, meu? – respondi, rindo da sua cara de horror, e usei o isqueiro para acender um cigarro – Nem. Puta preguiça de pôr no forno, demora muito!
 
A Mia deu com as mãos para cima. E eu podia sentir o julgamento pairando no ar. Coloquei uma tampa consideravelmente maior do que a frigideira por cima, para aprisionar o calor, e encostei na pia para fumar. A Mia se sentou na mesa – e digo, literalmente em cima da mesa. Apoiou os pés numa das cadeiras e a barra do vestido desceu pelas suas pernas. Aos pouquinhos, é, como se tudo no mundo existisse só para me torturar. Cacete. Imediatamente cansei de esperar, desconfortável. Que se foda, tirei a lasanha daquele jeito mesmo da frigideira. E a Mia riu, assim que me sentei na mesa.
 
_Na boa, isso aí parece horrível!
 
Coloquei uma garfada na boca, como se a afrontasse, fazendo graça, e mastiguei aquela inhaca mal requentada. Credo, tá horrível mesmo, rapidamente me dei conta.
 
_Pô, qual é – me recusei a dar o braço a torcer, argumentando entre uma mastigada trágica e outra – Não é como se todo mundo comesse bem todo dia...  
_Tá. Mas essa sua refeição aí é realmente triste...
_Ah, vá! – resmunguei, de boca cheia – Falou a que desce às 4 da manhã pra ir comer salgado de procedência duvidosa no boteco aí da esquina toda vez que damos festa no apartamento. É ou num é?! Agora vem achar ruim o meu ranguinho honesto...
 
Eu e ela nos olhamos e rimos. Não sei nem por que tô defendendo essa gororoba. Contei a ela a minha teoria sobre como o dono do boteco provavelmente colocava droga nas coxinhas. E logo iniciamos um papo empolgado sobre as melhores laricas para se comer chapada de madrugada. Fiquei olhando, encantada, enquanto ouvia a Mia falar sobre sucrilhos com requeijão, muffins com batata palha e qualquer outra besteira sem pé nem cabeça. O meu coração silenciosamente acelerou, é, isso não vai acabar bem.

dezembro 12, 2009

Me chama de louca, mas...

Quanto mais tento me convencer de que é só coisa da minha cabeça, mais pareço notar sinais de uma verdade não revelada. Não, não pode ser. Ela, ela tem aquela vontade retida no olhar, aquela... ahm, fome. Sabe? Que outras minas não têm, porra. Garotas como ela não me olham assim, elas me veem com indiferença – eu simplesmente não tenho nada a lhes oferecer. Mas a Mia, não. Os olhos dela são interessados, interessados demais. Só que não me provocam, não me dizem nada. E é isso que não faz sentido.

A dúvida vai me enlouquecer.