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dezembro 13, 2009

Muffins e cavalos

Era sábado, quase onze da manhã. O Fernando saiu para tirar a segunda via de um dos seus documentos – que tinha perdido na madrugada anterior, enchendo a cara comigo. Enquanto isso, eu morria deitada só de camiseta na sala, deliberadamente me torturando com os meus próprios pensamentos. O calor parecia impregnar todo o nosso pequeno apartamento, vencendo a luta contra um ventilador velho de chão que girava lentamente e ia empurrando o ar quente.
 
Passou algum tempo, não sei bem quanto, até que a Mia saiu do quarto no fim do corredor e apareceu detrás do sofá. Arrastou os pés até ali, nitidamente de ressaca, usando o mesmo vestido da noite anterior – o tecido tão amassado quanto seu cabelo. Estava sem os alargadores nas orelhas e com olheiras enormes sob os olhos. Os esfregou com as costas das mãos, como quem acaba de acordar, e então olhou para frente.
 
_Mano – ela riu, levemente indignada – O que diabos cê tá assistindo? 
 
Olhei para a televisão e vi um monte de cavalos correndo com uns homenzinhos montados em cima. Mas que porra é...?
 
_Nossa – estranhei – Não sei. Quer dizer, à TV Jockey aparentemente...
_Cê não tava vendo, meu? 
_Não... t-tava brisando aqui.
_Ah, é? – ela passou as pernas tatuadas por cima do sofá e sentou ao lado dos meus pés, curiosa – Sobre o quê?
 
Sobre você, pensei.
 
E lá estava aquele olhar de novo. Desgraça. É – era realmente patético. Acho que não ficava tão idiota por alguém desde quando, sei lá, eu ainda levava lancheira para a escola e tinha uma queda mal resolvida pela minha amiguinha de sala. Lá na 3ª série B. Agora, em pleno 2010, ali estava eu, me segurando para não me declarar para ela com um bilhetinho tosco escrito a lápis.
 
O que você quer de mim, garota?
 
A Mia me observava, à espera da resposta. Com aqueles olhos castanhos gigantes. Cacete, como ela era linda. Só o jeito como ela sentava ao meu lado no sofá, com as pernas cruzadas em cima da almofada e aquele sorriso maldito no rosto, já era suficiente para me deixar desconfortável. Ali, a poucos centímetros daquela encrenca toda que eu definitivamente não devia comprar, puta que pariu. Nada de tão bom pode ser hétero. Não dá. A heterossexualidade é sempre meio brega e a Mia... A Mia ainda me olhava. E o silêncio entre nós começou a crescer, incômodo.
 
_Ah, nada demais... – desconversei, antes que o clima ficasse estranho – ...tava, sei lá, pensando na vida.
 
Mentira.
 
_Hum... sei.
 
Ela riu e eu levantei um pouco o corpo, me apoiando nos cotovelos. Olhei na sua direção, a admirando por um instante, apaixonada. A Mia tinha uns ares de porralouca – era uma dessas garotas que, com treze ou catorze, já se trancavam no quarto ouvindo riot grrrls e se tatuavam com isqueiro, agulha e tinta de caneta. Bem o tipo de garota que eu costumava pegar escondido no banheiro da escola. O problema é que, naquela época, a Mia não se ocupava pegando garotas como eu – ela tinha passado a adolescência toda em estacionamentos de supermercado, enchendo a cara de vinho barato e se agarrando com caras como o Fer. Argh.
 
Agora suas tatuagens caseiras tinham sido substituídas pelas de estúdio. Minhas favoritas eram umas flores de cerejeira que desciam do seu ombro pelas suas costas e acompanhavam as suas curvas até o alto da sua coxa. Eram bonitas. Observei os traços na sua pele, conforme se escondiam sob o seu vestido, meio distraída, e ela pareceu se constranger. Então dei um sorriso amarelo e mudei bruscamente de assunto, perguntando se ela não queria alguma coisa da cozinha. Ia pegar algo para comer.
 
_Não, mas te acompanho – ela respondeu – Acho que o Fê ainda vai demorar...
_Ah, certeza. Esse Poupa Tempo aí é na puta que pariu e não poupa porra de tempo nenhum...
 
Ela concordou, revirando os olhos como se já tivesse passado por isso. Fomos até a geladeira e eu peguei um pedaço de lasanha que tinha sobrado do jantar. Acendi uma das bocas do fogão com o meu isqueiro e joguei aquele resto de comida numa frigideira. A Mia observava todo o processo, recriminando a minha estratégia:
 
_Cê vai mesmo esquentar isso assim?
_Quê?! Que tem? – respondi, rindo da cara de horror dela, e acendi um cigarro com o mesmo isqueiro – Ah, meu... Puta preguiça de pôr no forno. Demora muito!
 
A Mia deu com as mãos para cima, como quem não ia mais dar pitaco, e eu me virei para o fogão. Fresca. A família dela era dessas bem burguesas – ao contrário da filha desvirtuada. E o seu irmão, além de tudo, trabalhava como chef em um restaurante da Lapa. Podia sentir, portanto, certo julgamento pairando no ar. Ainda que a Mia fosse, notoriamente, bem pior do que eu na cozinha. Coloquei uma tampa consideravelmente maior do que a frigideira por cima, para aprisionar o calor, e encostei na pia para fumar.
 
A Mia se sentou na mesa. E digo, literalmente em cima da mesa – apoiou os pés numa das cadeiras e a barra do vestido desceu pelas suas pernas. Aos pouquinhos, é, como se tudo no mundo existisse só para me torturar. Cacete. Imediatamente cansei de esperar ali, desconfortável. Que se foda, apaguei o cigarro na bancada e tirei a lasanha daquele jeito mesmo da frigideira. Ainda fria por dentro.
 
_Parece horrível isso aí, mano! – a Mia riu, assim que me sentei na mesa.
 
Coloquei uma garfada na boca, fazendo graça, como se a desafiasse, e mastiguei aquela inhaca mal requentada. Credo, tá horrível mesmo, pensei, ainda que jamais fosse admitir a verdade.
 
_Meu, ninguém come comida boa todo dia... – argumentei então, entre uma mastigada trágica e outra – Refeições industrializadas foram cientificamente projetadas para serem mais gostosas.
_Tá. Mas essa sua aí é realmente triste... – a Mia riu.
 
“Ah, vá!”, resmunguei de boca cheia, “falou a que desce às 4 da manhã pra ir comer salgado de procedência duvidosa no boteco aí da esquina toda vez que damos festa no apartamento. É ou num é, mano? E agora vem achar ruim o meu ranguinho honesto!”. Meti mais uma garfada para dentro, aí eu e ela nos olhamos e rimos. Iniciamos então um papo sobre as melhores laricas para se comer chapada de madrugada. Me peguei olhando para a Mia, de tempos em tempos, fascinada, enquanto a ouvia falar sobre sucrilhos com requeijão e muffins recheados com batata palha.
 
É. Isso não vai acabar bem.

4 comentários:

Thiago Galhardo disse...

toh adorando ... muito atenta a tudo ela neeem precisa de muito pra ver que a miaa tah com mil e um modos diferentes.....

toh ficando apaixonado a leitura e de otimo gosto ... parabens a escritora :D

Lu disse...

Se vc tá aqui... continua... fiz um flashback saudoso só pra lembrar do começo! É muito bom, vai por mim! :)

Ianca' disse...

Tô relendo pela 3ª vez, dá uma saudade e eu vejo alguns pontos que nem tinha dado devida importância, muito lindo!
Estou a quase um ano acompanhando o Blog, vale realmente a pena!
Parabéns mais uma vez Mel

Flora disse...

engraçado voltar pro começo...