O conceito

_Quem tá cantando?
 
A Mia veio e sentou em cima de mim, sorrindo, com uma perna de cada lado do meu corpo.
 
_Uma banda aí... Black Kids.
_Hum, e o CD é deles então?
_Não, só essa música – eu ri, deitada no tapete, olhando-a ali no meu colo – O CD é seu.
_Sei. E o que mais tem nele, então?
_Por que cê não lê o bilhete? – eu sugeri e levantei metade do corpo, me apoiando nos cotovelos e com as mãos acidentalmente largadas nas coxas da Mia – Eu expliquei tudo lá, meu, e tem a tracklist também...
_Prefiro ouvir você explicando.
_Ah, mano... Não... – eu ri – Não quero.
_Deixa de ser boba, meu, eu vou ler de qualquer jeito...
_Então lê, uai! Por que eu que tenho que explicar?
_E qual o problema?
_Ah, sei lá... Dá vergonha – deixei o corpo cair de novo, escorregando os cotovelos no tapete – Só lê lá, vai... Não quero ter que falar.
 
A Mia balançou a cabeça, insistente. E eu coloquei uma das mãos sobre o rosto, incomodada, sem querer me expor tanto assim para ela. Ela cruzou os braços e me encarou – como quem diz “para de birra e fala logo”. Argh. Mas que inferno.
 
_Tá – suspirei e tirei a mão da cara, me dando por vencida – Mas não é nada demais, meu, é idiota. Cê provavelmente nem vai curtir muito...
_Por que não??
_Ah, sei lá! É que... né, cê ouve mais punk, banda de mina, e eu... e-eu ouço todo tipo de merda...
_Mas o que é, afinal?! – a Mia riu.
_É só uma compilação...
_Ahm...
_Das músicas que eu perdi para você.
_“Perdeu”?!
_É.
_Como assim “perdeu”?!
_Ah, sei lá... Um bando de músicas que eu gostava e que agora não consigo ouvir sem... – hesitei – ...s-sem pensar em você ou que literalmente, sabe, tive que deixar de ouvir por sua causa.
_Mas por que cê deixaria de ouvir uma música?
_Não pra sempre, só... s-só na hora. Tipo, de vezes que eu tive que... – me enrolava, sem realmente querer falar – ...sair de onde a, a gente tava, bem quando começou a tocar alguma música que eu gosto. E aí eu perdi, sabe?
_Mas isso parece horrível – a Mia abaixou o olhar – Por que cê sairia?
 
Parecia genuinamente chateada com o fato de eu ter deixado de escutar alguma música, alguma vez na vida, por sua causa e eu me encantei com o quanto esse tipo de coisa também era relevante para ela – isto é, aquela valorização acima do normal de determinados sons.
 
_É só que... sei lá – expliquei, sem intenção de fazê-la sentir-se mal com aquilo – É que... às vezes... às v-vezes, é difícil ficar perto de você... quando cê tá com... c-com o Fer no apartamento... – suspirei – ...tipo, não é como se fosse realmente um problema, mas... é só que... não sei, quando é assim, às vezes eu prefiro ir, sabe?
_Hum. Foi ontem, não foi? – a Mia me olhou – O Bowie.
_É, foi.
 
Ela me observava, apreensiva, e eu sorri propositalmente para quebrar aquele clima idiota que eu havia começado. Eu e a minha boca grande demais.
 
_Ah, meu, também não é como se fosse grande coisa... – dei de ombros, fazendo graça – Só um Bowiezinho sacrificado, aqui e ali, de vez em quando.
_Mas é o Bowie, porra! Cê ama Bowie!
_Ok... – eu ri – É grande coisa.
_Mano, eu... e-eu ia te odiar se cê me fizesse perder uma música que fosse de... sei lá... Distillers ou, tipo... Sleater-Kinney!
_Eu jamais faria você perder Sleater-Kinney... – eu ri, de novo, e me aproximei um pouco dela, apoiada novamente nos cotovelos – ...aí já é pecado.
_É muito pecado, nossa! – ela riu junto, chegando inconscientemente mais perto de mim também – Imperdoável!
_Pois é.
 
Subi as mãos pelas suas coxas, sentindo o seu corpo se inclinar na minha direção. E entre uma palavra e outra, sussurrada, nuns “deixa eu te compensar pela sua perda então”, a Mia me beijou e perdemos a linha tão rápido que logo nem a víamos mais.