Cê só pode
tá brincando, me irritei ao olhar para frente e ver a Marina atravessando a
rua, acompanhada. Merda. Traguei mais
uma vez o meu cigarro já quase acabado, sentada num boteco do outro lado da
calçada. E encarei a garota de mãos dadas com ela, uma idiota de cabelo
curtinho preto, com cara de sapadrão sapatão e mais ou menos do meu
tamanho. Estava de jeans e uma regatinha branca, tinha uma tatuagem tosca ao
redor de um dos braços, a um palmo dos ombros. A Marina só pode ter merda na cabeça para trazer essa garota aqui,
soltei a fumaça para o lado, sem tirar os olhos das duas, que só agora chegavam
ao meu lado da calçada.
_Meu, tá impossível estacionar... – a Marina comentou e sorriu ao
me ver – ...oi.
_Cê parou muito longe? – perguntei meio por perguntar, ainda
engolida pelo meu próprio drama.
_Não, mas foi difícil conseguir lugar, né? – ela se virou para a
menina, em busca de validação, numa intimidade repugnante – Ah! Essa é a Bia...
Jura.
_Hum. Então você é a tal... – ela me olhou, forçadamente simpática,
colocando a mão na parte de baixo das costas da Marina como quem protege o seu
território.
_E aí... beleza?!
Disse meio indiferente, só para não a deixar no vácuo, e eu soltei
a fumaça que acabara de tragar. O clima ficou estranho. Seguiu-se um breve
silêncio que elas pareceram ignorar. Isso
é culpa minha, traguei mais uma vez, detestando o rumo daquele sábado,
enquanto elas se sentavam, se juntando a mim numa mesa a quatro quadras de
casa, não devia ter insistido para a
Marina no telefone, não devia. Meu humor estava péssimo. A Mia ainda não tinha
me respondido e a última coisa que eu queria agora era sentar ali, vulnerável,
e contar todo o desenrolar daquela tarde de merda pra Marina, com a droga da
sua namoradinha do lado. Como se eu já
não me sentisse mal o suficiente, observei a garota e o seu olhar cruzou com
o meu. Nenhuma de nós foi com a cara uma da outra.
Mal haviam se sentado, todavia, e a Bia perguntou para a Marina se
ia querer algo para beber. Aí saiu para chamar o garçom na porta do bar, a
alguns metros dali. A olhei se levantar da cadeira e imediatamente lancei um
olhar de onde-diabos-você-tá-com-a-cabeça para a Marina, do outro lado da mesa.
Aquela situação era ridícula, completamente desnecessária, e ela sabia. “Seja
simpática”, os seus lábios gesticularem em silêncio, me encarando de volta da
mesma forma que a minha mãe me encararia se eu estivesse me comportando mal aos
sete anos de idade. Inferno.
A tal da Bia se sentou novamente na mesa e sorriu para a Marina,
sem perceber nada. Desviei o meu olhar, com certo desgosto, pegando o copo semicheio
de cerveja e apagando o restinho do cigarro na mesa de madeira. Dei um gole e as
duas ainda se olhavam, vi através do fundo de vidro, aí dei mais um e depois
outro gole. Por fim, elas pararam. O meu copo já estava vazio, então me pus a
enchê-lo com uma garrafa de Itaipava sobre a mesa e agora a Marina me encarava
como se esperasse a grande história da vez. O sol abafava o ar ao redor,
refletido na calçada, num calor desgraçado.
Mesmo incomodada com a presença da embuste, comecei a lhe contar
tudo o que tinha acontecido desde terça-feira – a ida na casa da Mia, o sexo,
as tatuagens, o encontro com o Fer no dia seguinte, o Vegas, a loira, os
garotos em casa, a Mia chegando de madrugada com o Fer, eu no sofá, a briga no
dia seguinte, nossa conversa no quarto, o elevador e o meu eu-te-amo fora de
hora. A Marina ouvia tudo atentamente, curiosa. E a sua namoradinha também, argh.
Aquilo me desconcertou o tempo inteiro, a cada segundo, tirando o
peso das minhas palavras. Não me sentia tão triste como achei que me sentiria
ao reviver cada minuto daquela tarde lastimável. De certa forma, o meu incômodo
com a presença da Bia parecia ofuscar a minha angústia com tudo o que tinha acontecido
– me recusava a chorar na sua frente.
_E até agora nenhuma mensagem dela?
A Marina me olhou, chateada.
_Não... Ela não vai responder, Má, eu sei que não. E você também
sabe... Ela, e-ela não quer lidar com essa porra toda. Ela nunca quis!
_Meu, larga mão dessa garota... – a namorada até-então-muda da
Marina resolveu se intrometer.
_“Essa garota”? – eu repeti, rindo, achando ridículo.
_Linda, me escuta, ela... – a Marina olhou na direção da Bia
enquanto falava, reprovando o comentário idiota – ...a Mia, ela... acho que ela
tá se sentindo culpada demais. Não sei. Eu tenho medo dela ir atrás do Fer, tentar
se redimir, sei lá. E aí o que cê vai fazer? Você não pode ficar aí esperando, sofrendo
tudo de novo.
_Eu não vou ficar esperando.
_Tá. Mas...
_Não... – interrompi o que ela ia dizer e passei as mãos no rosto,
sentindo aquilo me apertar a garganta, de repente – ...eu vou. Eu sei que eu vou.
Eu vou esperar, meu... Mas que inferno! – voltei atrás.
Que situação de merda, xinguei para mim mesma, me odiando
por estar tão à mercê da Mia. Enchi o meu copo com a segunda garrafa de cerveja
da mesa. E a Marina segurou a minha mão, com um olhar de pena insuportável. Só permiti
porque a tal da Bia olhou torto para nossas mãos ali, sobre a mesa, enciumada.
_Linda, você vai se afundar nessa confusão toda... Eu nunca te vi
assim, me preocupa. Não sei se dá pra você, sabe, esperar tanto assim da Mia. A,
a Mia é... complicada. Ela ainda precisa se resolver direito, nã...
_Eu sei, mas, Má, ela sente alguma coisa por mim! Eu sei que sente!!
E o que eu vou fazer, porra?!? Dar as costas pra isso logo agora que... que a
gente tava finalmente chegando em algum lugar?!? É a Mia... a minha Mia, caralho! – me exaltei,
inquieta – Eu não posso deixar pra lá. Não foi você que disse que ela precisava
de... d-de alguém para ir lá e pegar ela pela mão?! Que eu tinha que ter
paciência e que...
_Foi, foi – ela me cortou – Mas eu... não sei, eu não sei o que
pensar!
_Essas últimas semanas foram maravilhosas, Má. Me escuta, eu sei
que a Mia gosta de mim. Eu consigo sentir isso!
_Mas, gata, que segurança maior cê poderia dar pra ela? Você já
disse que ama ela e se a resposta não foi imediata, se na hora ela nã... – a
Marina hesitou, parecendo medir suas palavras – ...escuta, se isso não fez
diferença, você amar ela ou não, se não aliviou a confusão em que ela tá,
meu... – se interrompeu de novo, suspirando – ...sabe, eu só acho que... q-que
devia ter sido diferente, a essa altura. Depois de tudo o que vocês já viveram.
Ela, não sei, e-ela ainda tá muito presa ao Fer, ela ama ele demais pra...
_Não... – balancei a cabeça – ...não.
_Quer ouvir?! – ela brigou comigo e eu cruzei os braços,
intragável, ouvindo a contragosto – Não tô dizendo que ela não sente nada por
você... Você pode até esperar a poeira abaixar, tentar falar com ela. Ir
conversar com calma. Mas, não sei, eu acho que ela tá se sentindo culpada
demais para assumir o que vocês têm agora. Não acho que ela vai voltar pra você
tão cedo, linda.
_Eu espero. Eu espero, porra! – argumentei, incomodada – Já não
esperei antes, caralho?!
_É diferente, cê já tá envolvida demais agora, meu, você vai...
_O quê?! Vou o quê? Me machucar?!? – meus olhos marejaram – Bela
bosta!
_Não faz isso, flor. Não fala assim, por favor.
E faço o
quê, então?!