Cheguei em casa às 5:37 naquela manhã de quarta e não dormi porra
nenhuma. Ao invés disso, tomei um banho para acordar, bebi meio litro de café e
saí para trabalhar virada. Que se dane. O dia se arrastou, então, dum
jeito insuportável. Passei cada minuto com dor de cabeça e irritada. Inferno.
Estava num humor de merda. Fui incapaz de trocar mais do que duas mensagens
com a Clara – não tava no clima. E depois das horas extras usuais, exausta, voltei
para casa e fiz um jantar com o que achei na geladeira.
Assim que sentei para comer, no entanto, o Fer entrou na cozinha. Argh.
_Ah, aí tá você... – ele disse, indo vagarosamente até o fogão
para espiar o que havia dentro da panela.
Com a tampa na mão, pegou um ou dois pedaços de batata cozida e colocou
na boca, sem se dar ao trabalho de se servir. Então veio na minha direção, como
quem não tem nada melhor para fazer numa noite infeliz de quarta-feira, e se sentou
na cadeira em frente à minha.
_Cê sumiu ontem, mano... – comentou, do outro lado da mesa, se
ajeitando na cadeira – ...achei que cê ia embora com a gente.
_Ficou tarde – resmunguei, meio de boca cheia – Precisava trampar.
_Cê tava lá quando baixou a polícia?
_Não...
_Acho que era umas sete. Nossa, fiquei mó cara te procurando, meu...
– pôs os braços sobre a mesa e aí sorriu – ...pô, mas foi do caralho a festa.
_Hum... – murmurei, sem paciência.
_Mano, rolou uma parada da hora... – começou a contar, animado – ...sério,
cê num faz ideia.
Infelizmente faço.
_A Mia pegou uma mina lá, velho, do nada... – continuou – ...aí me
puxou e me meteu no banheiro junto com elas, mano, foi uma baixaria...
Senti o meu estômago embrulhar, tudo de novo. Droga.
_...porra, sério, foi do caralho.
_Hum.
_Foda só que a Mia quis parar, meu.
_Como assim? – perguntei, desconfortável – Do, do nada?!
_Não. Não sei, a gente tava lá q-quase... – hesitou – ...quase
fodendo, no banheiro, e e-ela... – pareceu escolher as palavras, tentando não expor
demais a Mia – ...ela, tipo, desceu lá n-na mina, enquanto eu tava beijando ela
e...
Espera. Como é?!, larguei o garfo no prato e encarei o
Fernando ali, pega de surpresa. Repete. A
Mia fez o quê?!? A minha
respiração começou a acelerar e o meu coração disparou. Não, não, mano. Não repete essa merda nunca
mais, me arrependi na mesma hora. Nunca mais. Puta que pariu.
_...então não vi bem, só vi quando a Mia já tava de pé de novo.
Parou no meio do bagulho e me puxou, quis ir embora. Mas porra... tava animal.
Animal!
Cacete. Forcei a comida que restara na minha boca garganta abaixo, sem ouvir
direito o restante da história – a muito contragosto. O meu estômago se
embrulhava numa ansiedade repentina. Sem saber o que pensar ou, pior, o que
sentir. Inferno.
_Nunca achei que fosse rolar qualquer coisa assim, mano... – ele continuou,
empolgado, praticamente num monólogo – ...cê já imaginou, meu?
_Quê?
_A Mia dando a louca aí, beijando mina – riu – Cê imaginaria?
Engoli seco, doído. E respirei fundo.
_Não.
_Hum. Cê... cê acha que... – já não queria mais ouvir aquela merda
toda, perdera todo o apetite e ele agora enrolava, puta que pariu, irritantemente – ...q-que ela toparia dormir comigo
e outra mina?
Não, porra.
Tá louco?!?
_Fer... não... – o desencorajei, na maior cara de pau, me
desesperando sem poder demonstrar, cacete – ...nada, n-nada a ver, meu.
Cê tá viajando, a... – me sentia traída por ela – ...a Mia não é dessas,
e-ela...
_Como não?! Ela que começou! – não me deixou terminar e seguiu, um
tanto exaltado – Quando vi já tava metendo a mão na...
_Sei – o cortei, grosseira, impaciente com os detalhes
desnecessários.
_Olha... – ele sorriu – Acho que, se pá, rola, sim.
Mano, eu
juro, eu juro por tudo que tem de mais sagrado na porra do universo, juro,
Fernando, que se cê enfiar a Mia numa cama com outra garota, seu babaca, eu juro, pensei,
já perdendo a cabeça, que eu te mato,
uma, duas, vinte vezes, puta merda.
Apenas a ideia já me fazia contorcer involuntariamente, cada vez mais amarga.
Não conseguia controlar aquele ciúme, indesejado, meio fora de lugar dentro de
mim. Argh.
_Sei lá. Cê acha que não mesmo?
_Meu, por que cê tá me perguntando isso?! – disse por impulso, já
rancorosa, e revirei os olhos sem perceber – Sei lá, mano! Tal... t-talvez... –
comecei a vasculhar a porra da minha cabeça atrás de algo para disfarçar,
qualquer resposta que não fosse o “qual o
nome da filha-da-puta dessa garota?” que era a única maldita coisa que me
ocorria, latejando insuportavelmente na minha cabeça – ...eu, e-eu não sei, Fer.
Ela tava bêbada, quis parar no meio, meu, não acho que, q-que ela sabia o que
tava fazendo...
_Tá, mas...
_E outra, meu... – o interrompi, insistindo – ...a Mia é sua
namorada, porra. É furada... – falei, fazendo um esforço desgraçado para apagar
a merda daquela imagem da minha cabeça, a da, d-da Mia com, c-com outra garota,
caralho – ...Fer, na boa, vai por mim. Isso vai dar maior rolo depois...
se... se ela... – me enrolei para contra-argumentar, enquanto olhava o meu
amigo ali, ô carma dos infernos, e rezava
para que desistisse da ideia – ...se ela
já ficou mal só de ter pegado a mina com você, imagina se... se cê for lá comer
outra na frente dela, meu, a, a Mia vai surtar, cara... – suspirei, angustiada –
...sério, não faz isso. Vai ser puta bad pra vocês...
Pelo amor
de Deus, pensei, sentindo o nervosismo tomar conta da minha respiração.
Esquece isso.
_Hum... – ele pareceu refletir, não muito convencido – ...cê num
falaria com ela, né?
_Eu?? Falar o quê?!
_Ah, mano... não sei... – riu – ...tenta sacar qual é que é, o que
ela achou da parada. Dá uma sondada...
_Não... – me indignei – ...não, meu! Fora que nem sei quando vou
trombar com a Mia de novo... Não rola!
Nem fodendo.
_Como assim?! – ele estranhou – Cês não vão amanhã?
_Amanhã?!
_É, pô! No lance lá do Gui!
Merda. Tinha me esquecido.
Duas semanas antes, enchi o saco do Fernando para que comprasse ingressos para
a nova peça do Gui – era um dos primeiros papeis principais que ele pegava e
estava com medo de que ninguém fosse ver. Não era nada demais, uma peça pequena
no circuito alternativo paulistano, mas eu azucrinei o Fer para que fosse
comigo. E obviamente, porque eu era a rainha de me meter em situações como
aquela, já sabendo que meu amigo levaria a Mia, eu convidei a Clara. É.
Para não ir sozinha com os dois.
Ótimo. Vai
ser a porra da festa do caqui, mas que inferno.