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março 27, 2010

Old routine

Antes que eu pudesse me dar conta, já era sexta de novo.

A iminência do fim de semana me revirava o estômago. O trabalho ocupou a minha mente durante os dias da semana, da forma mais medíocre possível, e eu passei o restante do meu tempo entediada até a morte – largada no sofá, deitada no meu quarto, debaixo do chuveiro, parada em frente à geladeira ou fumando na calçada do prédio. O meu consumo de cerveja quase triplicou. E agora já era sexta-feira de novo, droga.

O Fer havia iniciado um processo lento de reaproximação com a Mia, tentando limpar sua consciência pesada com gestos românticos e atenciosos ao longo da semana. Eu ignorei cada segundo daquilo, rancorosa com a Mia por ter ferido o meu orgulho e me rejeitado tão determinadamente no último sábado. Mais do que ela, eu estava me odiando. Por cada minuto que fiquei plantada do lado de fora do seu prédio, esperando no frio.

O lado positivo disso tudo é que eu não ia precisar vê-la tão cedo. Segundo o que ela disse para o Fer – durante uma briga por telefone na terça –, o nosso apartamento "prejudicava o relacionamento deles". E eu estava certa de que a culpa não era dos móveis e eletrodomésticos contidos dentre nossas quatro paredes. Era inteiramente minha. Óbvio. Mas quando o Fer me contou, sem entender a indisposição repentina dela, eu não disse nada. Apenas olhei para o outro lado e balancei a cabeça, como se também não conseguisse compreender.

Enfrentava agora a minha indecisão com sexta à noite, fumando sentada na calçada às seis da tarde. Preciso de um porre, concluí. Infelizmente eu andava mais falida do que vendedor de guarda-chuva em dia de sol – sem um tostão para gastar em escolhas ruins. Pegar um táxi de Higienópolis até a Frei Caneca, às cinco da manhã, só porque fui cabeça-dura e mandei a Marina embora, também não tinha contribuído com a minha situação financeira.

Puxei o celular do bolso para olhar as horas e fiquei tentada a fuçar na minha lista de contatos. Não. Nada de probleminha hoje, me controlei e rapidamente enfiei o telefone de volta na jaqueta, como se quisesse evitar uma catástrofe em potencial. Assim que voltei para a companhia pouco saudável do meu cigarro, no entanto, o meu celular tocou. Tirei ele de novo do bolso e espiei a tela para ver quem estava me ligando. DDD 19, número desconhecido. Estranho.

Cogitei deixar tocar, sem dar muita importância, mas curiosidade é uma praga mesmo.

_Alô?!
_E aê, doida... – ouvi uma garota dizer, entusiasmada.
_Quem tá falando?!
_Sou eu – ela riu – a Dani.

Merda.

março 25, 2010

Domingo Legal

_Que porcaria é essa que cê tá assistindo? – o Fer perguntou de trás do sofá.
_Não sei e nem quero saber – argumentei, fumando um baseado – A meta aqui é alienação completa.
_Justo – ele riu – Acho que vou me juntar a você.
_Noite difícil?
_Nossa, mano. Cê não faz ideia! – reclamou, de saco cheio – Não sei o que rola com a Mia, porra. Tá foda. Me largou aqui sozinho ontem, meu, foi embora sem falar nada! Ela tá bizarra esses dias. Cê... – me olhou, desconfiado – Cê não contou mesmo, né?
_Hein?
_Da Júlia, porra.
_Não, Fernando, não contei – resmunguei.
_É que, sei lá... Ela tá estranha.
_Vai entender...
_É, sei lá... – ele bufou – Mas e você, tava onde ontem? Não vi cê chegar...
_Lá na Marina.
_Caralho, na Marina? Mas cês não... – ele começou a rir – ...deixa quieto, vai.
_Nem faz essa cara aí pra mim! Fui lá só pra conversar.
_Sei... – ele riu – Ah! Aliás... A Roberta passou aí ontem.
_Jesus! Cê tá de brincadeira?
_Não, passou mesmo. Até tomamos umas brejas, eu disse que cê não tava e ela ficou aí um tempinho pra ver se você aparecia. Falou pra eu não te avisar, acho que queria que fosse surpresa. Sei lá eu. Deve ter ido embora lá pra meia noite ou uma da manhã... – contou e eu sacudi a cabeça, desacreditando – Eu fui dormir logo em seguida.
_Meu deus – revirei os olhos, dando mais um trago – Qual é o problema das pessoas?
 
Disse a fracassada que ficou até 5 da manhã na calçada, esperando a Mia.
 
_Porra, você devia dar mais bola pra ela... Puta mina gente boa, meu.
_Não, obrigada. Tô dando um tempo de mulher.
_Ah, claro. Essa é boa – ele riu – Você?! Até parece.
_É sério, Fer. Pra mim chega, só me meto em furada. E além do que, meu, a Rô pode ser ótima e tudo mais, mas é meio intensa. Não dá... Já não era nem para ela ter vindo aqui na quinta, puta merda do caralho que eu fui inventar. Mano, toda vez a gente treta e toda vez ela fica vindo atrás. A gente já passou por isso antes. Preciso parar com essas ideias idiotas...
_Como cê é sensível, não... Parece até que não tem culpa nisso.
_Ah! Falou o morador mais íntegro desse apartamento – eu ri – Hein, ô adúltero de meia-tigela?
_Vai se foder.
 
Nós rimos e terminamos o baseado juntos. No fim das contas, não era tão ruim estar no apartamento com o Fer: ele ainda era o Fer. Era o meu melhor amigo de sempre. O ruim mesmo era passar por uma noite horrível daquelas e não poder contar nada – eu sempre dividi com ele todas as merdas que eu aprontava. Agora não tinha nada que eu pudesse fazer a não ser sentar quieta do seu lado, sem me entregar. E lá ficamos os dois, enfurnados na sala em pleno domingo à tarde.
 
De bode pela mesma mulher.

março 24, 2010

No táxi de volta

Ok. Eu me sinto muito, muito idiota.

março 23, 2010

Insistência

Pior do que tomar um “não” na cara é ficar assim, à deriva, sem saber. E lá estava eu, plantada na frente do prédio da Mia, sem saber de porra nenhuma. Que inferno. Internamente, eu estava me odiando por ter me enfiado naquela situação ridícula – isto é, me arrastando de joelhos por uma garota às 4 da manhã em pleno sábado à noite, enquanto eu poderia muito bem estar com alguém menos...
 
...
 
Tentei achar a palavra, mas tudo o que me vinha à mente eram as que eu não queria. Menos perfeita, suspirei. Argh. Como eu sou patética, pensei em seguida, indignada comigo mesma. Uma porra duma trouxa, me humilhando nessa calçada. Ainda assim, estava decidida a invadir aquela estrutura residencial superfaturada, caso o porteiro não desse as caras nos próximos dez segundos... nove... oito... sete... seis... cinco... quatro...
 
_Olha, moça, não tem ninguém atendendo lá, não – ele disse, saindo da guarita.
 
Havia um certo sorriso de satisfação desgraçado no rosto do filha-da-puta. Senti vontade de mandá-lo à merda. E por pouco não o fiz, me esforçando para não demonstrar a minha própria frustração, enquanto ele me encarava daquele jeito eu-não-te-disse. Inferno. Ignorei e voltei para o carro, me apoiando na janela do passageiro. Olhei para a Marina, emburrada:
 
_Ela não tá atendendo.
_Bom... São 4 da manhã, não é? – ela me respondeu com desaforo, como se já esperasse por aquilo, o que me irritou mais ainda.
 
Levantei novamente e dei um passo para trás, respirando fundo. Olhei para cima e apertei as mãos contra o rosto, irritada. Merda, mil vezes merda. Traguei mais uma vez e fiquei sem saber o que fazer por algum tempo, enquanto soltava a fumaça. Então, puxei o celular do bolso e procurei o nome da Mia nos meus contatos. Liguei, duas ou três vezes, e nada. Filha-da-mãe.
 
Sentei na calçada, meio metro à frente do carro, com os pés na rua, e apoiei os cotovelos nos joelhos. Com uma mão, eu segurava o cigarro e com a outra, eu digitava no celular: “Atende, Mia. Ja to aqui embaixo, porra, me deixa subir ou desce aqui pfvr. Vou ficar esperando”. Isso era o cúmulo da humilhação. Lamentei mentalmente a situação, enquanto enviava a mensagem e tragava de novo o cigarro, já quase no fim.
 
De repente, ouvi a porta do carro bater. E logo a Marina apareceu em pé na minha frente. Olhei para cima e ela fez um gesto com as mãos, como se perguntasse o que eu estava fazendo ali. Respondi a verdade e ela imediatamente começou a discursar, por minutos a fio, sobre como aquilo era o fim do poço e como eu estava indo longe demais e como ela não ia, em hipótese alguma, ficar plantada lá esperando comigo até a Mia descer.
 
_Você sequer sabe se era verdade, flor – argumentou – E se ela não estivesse na casa dela? E se ficou irritada porque você não foi e disse aquilo só para te fazer sentir mal?
_Eu não tô nem aí, que se dane. Eu vou esperar.
_Linda...
_Vai pra casa, Má. Eu pego um táxi, sei lá...
_Não faz isso – implorou – É tarde, tá frio. Cê não sabe se ela vai descer.
_Pode ir, eu vou ficar.

março 22, 2010

O surto

_Pega suas coisas, Má. Me leva lá na Mia.
_Agora?!
_Agora.
 
A Marina levantou do sofá, só de calcinha e sutiã, com uma das últimas cervejas restantes na mão e me olhou, rindo, inconformada. Colocou seu vestidinho branco de volta, lenta e atrapalhadamente, depois cambaleou para pegar as chaves do carro na mesinha de centro. Eu a observava impaciente, com vontade de puxá-la pela mão logo, mas não movi um músculo na sua direção.
 
“To indo ai. Pfvr me espera acordada”, escrevi para a Mia, já no carro e com o celular quase sendo esmagado pela minha mão, de tão ansiosa que estava. A cidade estava deserta por conta do horário. Isso facilitava o nosso desrespeito completo pelas leis de trânsito, especialmente as referentes a faróis e à velocidade em vias urbanas. Chega logo, porra.
 
Ignorei, quase involuntariamente, todas as tentativas bem-intencionadas da Marina de puxar algum assunto comigo. De certa forma, eu me sentia obrigada a me concentrar mentalmente na rapidez do percurso, torcendo inutilmente para que eu chegasse a tempo de encontrar a Mia acordada. A Marina não entendeu o recado, é claro, e foi tagarelando sozinha. Da Lapa até Higienópolis.
 
Assim que encostamos na frente do prédio, desci do carro correndo e larguei a porta aberta, o que resultou em uma reclamação mal-educada da minha doce ex-namorada. Toquei a campainha do prédio insistentemente, interrompendo um possível cochilo do porteiro, sem conseguir controlar direito os meus pés ansiosos no chão. Um velhinho bigodudo e quase careca saiu da guarita interna, me olhando feio, como se quisesse saber o que diabos eu fazia ali.
 
_Oi. Eu preciso falar com a Mia.
_Ihh... A essa hora não vai ter ninguém acordado, não...
_Ela tá, sim.
_Não, não. Eu conheço a família dela... O pessoal lá já vai tá tudo dormindo.
_Você não pode só interfonar e ver se ela tá acordada?
_Mas aí eu é que vou acordar todo mundo e perturbar. Você não pode voltar de manhã?
_Não! Não posso! – eu me irritei – Meu, eu acabei de falar com ela no telefone! Eu preciso falar com ela agora. O senhor pode, por favor, só interfonar logo?!
_Ah, mas aí, depois... se ela estiver dormindo... a bronca cai em cima de mim.
_Olha, a bronca vai cair em cima do senhor se ela ficar sabendo que eu vim da puta que pariu até aqui a essa hora e você não quis fazer esse esforcinho pequeno, mínimo, que é o seu trabalho, de dar dois passos, digitar três númerozinhos e interfonar pra porra do apartamento! Cê não acha?!
 
Ele me olhou com mais desgosto ainda e, sem que tivesse outra alternativa, retornou para a cabine e começou a discar. Olhei-o segurar o interfone contra o ouvido, calado, e os segundos se prolongaram cruelmente sem que ninguém atendesse. Eu estava em pé na calçada, sozinha, e o vento começou a ficar cada vez mais forte.
 
Acendi um cigarro e continuei encarando a porta da cabine, impaciente. Atende, por favor.

I'm so...

...fuckin' stupid.

março 19, 2010

Mau-sinal

_Mia... – murmurei, envergonhada.
_O que cê quer?
_E-eu... Olha, me desculpa.
_Não posso falar agora.
_Não faz isso, meu. Me desculpa, por favor. E-eu queria ter ido hoje! Queria muito.
_Sei. Então por que não veio?
_...
_Hein?
_É complicado.
_Complicado?
_Cê sabe que é.
_Mais complicado pra você do que é pra mim? Cê acha mesmo?!
_Não, não disse isso. Eu...
_Fala – me desafiou – Fala logo!
_Não fica brava, por favor. Eu gosto muito de você, e-eu... Eu não só sei o que fazer. Eu quero ficar com você, quero mesmo! Mas aí eu vou pra casa e dou de cara com o Fer e com você... e é horrível. Eu não queria ter me enfiado nisso, mas eu não consigo evitar. Eu e você, quer dizer, n-nós temos uma... coisa, não sei o que é. É tão...
_Olha, deixa pra lá – ela me interrompeu.
_Não, me escuta, eu quero falar com você!
_V-você... Espera, você tá bêbada?
_Ligeiramente – confessei.
_Mano, vai dormir! Outro dia a gente conversa.
_N-não, por favor. Mia... Onde cê tá?
_Que diferença faz?
_Cê tá no apê? Eu vou até aí.
_Não, não tô.
_Não? – me surpreendi.
_Eu vim pra casa.
 
Quis perguntar por que, mas sabia que a resposta me envolvia. De alguma forma, a culpa era minha. E sinceramente isso me fazia feliz – saber que ela não tinha passado a noite com o Fer, que ela se importava com o que eu dizia ou fazia. Quem diria? Ao mesmo tempo, me bateu um arrependimento violento. É. Por ter, tão deliberadamente, decidido não ir.
 
_Tá tarde, vou dormir – ela disse, então.
 
E antes que eu pudesse responder, desligou o telefone. Pressionei a cabeça contra a parede do quarto da Marina, frustrada. Que droga.

março 18, 2010

Sem maldade

_...com o dedo do meio, aí cê junta os dois lados com o dedão e o indicador.
_O indicador no meio?
_Não, Marina, o dedo do meio! O indicador abre o da direita e o dedão empurra o da esquerda. O dedo do meio fica por baixo, no meio dos dois fechos.
_Isso é muito complicado...
_Não é, não. Você que não tá juntando direito, assim não vai rolar nunca! Tenta de novo.
_Ai, não vai! Como cê consegue?
_Me dá sua mão, eu te ajudo – eu ri – É tipo estalar os dedos... Pronto! Viu?
_Meu deus. Isso é fantástico!
_Agora só precisa treinar... – pisquei para ela.
_Ahh, deixa eu fazer de novo em você?
 
E lá se iam, horas e horas pela madrugada, na sala da Marina. Algum tempo antes, por insistência minha, saímos para comprar cerveja num supermercado próximo e agora estávamos incrivelmente bêbadas. E seminuas – sentadas uma na frente da outra no sofá. E antes que me acusem de qualquer coisa: não aconteceu nada. Eu estava ensinando a técnica milenar – ou bom, sei lá – de se tirar rapidamente o sutiã com uma mão só. Por motivos meramente didáticos, a minha camiseta teve que ir pro chão. Junto com o vestido dela.
 
Após alguns minutos de prática, a Marina finalmente pegou o jeito. Fechei o meu sutiã pela trigésima vez e acendi um cigarro, me encostando no sofá com a cabeça pra cima. Mia. Imediatamente ela voltou aos meus pensamentos. Fechei os olhos, na tentativa de esquecê-la. Mia. Mia. Mia. Mia. Mia. Mia. Respirei fundo. Droga. Por mais que eu tentasse tirá-la da cabeça, ela continuava ali. Toda maldita vez. Olhei para o lado e me deparei com a Marina, que me observava com carinho. Ela bem sabia o motivo daquela minha cara de cansaço.
 
_Não se preocupa. Vai ficar tudo bem... – sorriu, passando a mão no meu braço.
 
Olhei para ela, sem acreditar muito.
 
_Eu não devia ter respondido – fui para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e tragando mais uma vez – Eu não devia ter dito nada, só aparecido lá amanhã.
_Acho que ia ser pior. Sabe, pelo menos você avisou que não ia poder ir...
_Mas eu podia ir.
_Ok, podia. Mas você queria mesmo? Ir lá e prolongar todo aquele rolo?
_Queria! Lógico que eu queria!
_Linda, cê tava se sentindo um lixo por ela ficar com o Fer hoje, por trair a amizade de vocês. Você ia se arrepender se fosse ver ela.
_Pode ser, mas pelo menos eu ia estar com ela mais uma vez... Eu sinto que vou enlouquecer assim.
_Ah, meu deus... – a Marina suspirou – Olha, você quer que eu te leve?
_Agora? Do que adianta? São 3 e meia da manhã, porra! – balancei a cabeça, conformada – Não, deixa... Vamos ficar por aqui.
_Eu te levo, não tem problema. Ela deve estar acordada ainda.
_Dando pro Fer, né.
_Você não sabe disso...
_Sei, sim.
 
Eu estava me comportando como uma criança emburrada – ou pior. Minha birra toda se devia ao excesso de álcool e àquele sentimento desesperador de que eu poderia ter tomado a pior decisão da minha vida, apesar da Marina e do meu bom senso continuarem me reafirmando que eu tinha feito a coisa certa. Eu odiava saber que aquele nosso beijo à tarde poderia ter sido o último. Não. Não posso permitir isso. 
 
_Eu vou ligar pra ela – decidi, me levantando do sofá.

março 16, 2010

O step

_Nunca vi uma garota te deixar sem palavras – a Marina zombou, colocando os pratos sujos debaixo d’água.
 
Eu estava sentada na pia, com os pés apoiados na mesa da cozinha e o telefone em mãos, sofrendo de uma indecisão desgraçada. O apartamento dela era minúsculo. A Marina enxaguava os pratos, aí olhava para o meu celular, me observava em seguida e ria. Achando graça da minha indecisão. Pelo menos uma de nós está se divertindo, pensei. Sábado à noite e lá estava eu, refugiada na casa de uma ex, tentando escapar da confusão inacreditável na qual eu havia me enfiado.
 
_Só diz que não vai – a Marina sugeriu e eu arregalei os olhos, indignada – Ela vai entender, meu amor.
_Não posso dizer isso!
_Por que não? Fala que vocês precisam conversar, que é melhor cês se encontrarem outro dia.
_Não, meu... Vai parecer sério demais... – argumentei, acendendo mais um cigarro.
_Mas cês precisam conversar! Ou cê acha que cês podem ir se metendo uma com a outra, assim? Sem falar a respeito, nem pensar um pouquinho no que tão fazendo?! Ela namora o Fer, meu. Não é qualquer cara, é... É o seu melhor amigo.
 
Eu sei. Estou bem ciente – olhei para a Marina, incomodada. Traguei demoradamente, soltando a fumaça em seguida. Não respondi. Eu odiava ter que “pensar um pouquinho” antes de fazer o que quer que fosse – principalmente quando se tratava de outras garotas. Era maduro demais. Responsável, careta, tedioso. Totalmente Marina. Não que ela fosse tediosa em si, mas era o típico conselho que eu esperava ouvir dela. Não, obrigada. Vou fazer isso do meu jeito. Mas segurava o telefone na mão sem conseguir digitar uma só palavra. E sentia o meu coração apertar – com medo do que pudesse acontecer caso eu e a Mia realmente pensássemos no que estávamos fazendo juntas. Merda.
 
_E-ela... – murmurei, de repente – ...não me escolheria.
_O quê?! – a Marina desligou a água na pia para conseguir me escutar – O que cê disse?
_Que se, s-se a gente conversar... – falei, com o cigarro na mão e a cabeça baixa, olhando para o chão – Se a gente parar para pensar a respeito, se eu for discutir isso com a Mia... Ela não vai mais querer ficar comigo, e-ela... – lamentei – ...vai perceber que, se ficar... e-ela pode perder o Fer e... – tentei apagar a possibilidade da minha cabeça, sentindo meus olhos marejar, mas não conseguia – ...e ela nunca me escolheria ao invés dele. Nunca. Eu sou só uma porra de u-uma mina.
_Ei. Você não sabe disso, flor...
_Má, eu não teria a mínima chance.
 
Passei a mão nos olhos, chateada, e traguei mais uma vez. Tentando sufocar a dor no meu peito. Maldita Mia. A Marina soltou um “ô meu deus” piedoso, quase como se achasse fofo o meu abalo emocional por outra garota, e me abraçou carinhosamente. Continuei fumando, com os olhos marejados e fingindo não dar bola, tentando ao máximo ignorar o abraço da Marina e as probabilidades nulas que eu tinha de realmente acabar ficando com a Mia. Caralho, viu. Sentia que a única chance que eu tinha era se arrastasse aquela confusão por tempo suficiente para que ela começasse a gostar de mim. Quem sabe em meio a beijos impulsivos, roubados de madrugada no corredor, ela acabasse realmente me amando. Inferno. Não tinha nada que eu odiasse mais do que estar apaixonada.
 
Era uma porcaria.

março 15, 2010

Oh no, not you

“Onde vc foi? Ñ vamos sair? =(”, a Mia me escreveu às 22:46. Eu continuava na casa da Marina, a quilômetros de distância dela. Li a mensagem no meu celular e fiquei parada por algum tempo, me sentindo confusa. Não sabia o que responder e não queria ter que decidir sozinha o rumo das coisas. Suspirei.

Droga, o que eu faço agora?

março 14, 2010

Direto ao assunto

O interfone tocou e fui deixada sozinha no apartamento por alguns instantes. Tinha insistido mil vezes que não queria pizza – estava sem grana –, mas a Marina me ignorou e pediu mesmo assim. Disse que pagava. O que eu faria sem você na minha vida? Antes do entregador chegar, eu já tinha detalhado toda a minha situação com a Mia e o Fer, sendo interrompida pelo interfone ao final. A Marina voltou com uma pizza quentinha nas mãos e eu levei dois pratos para a sala, nos sentando no sofá para comer.
 
_Cê precisa terminar com ela – a Marina disse, do nada.
 
Quase engasguei.
 
_O quê? Como assim? Não! – relutei – Por que diabos eu faria isso?
_Não sei, linda, sinto que cê vai acabar se enfiando cada vez mais e mais numa rede de mentiras e traições e constrangimentos. E não é fácil, flor. Eu sei o que eu falei da outra vez, mas cê não pode continuar nisso assim.
_Cê tá louca, Marina?
_Só não quero que você se machuque...
_Mas ficar longe dela também me machuca! – eu ri de nervoso, sem achar graça – E e-eu não consigo, Má! Eu já tentei. Eu juro. Já tentei de tudo pra ficar longe da Mia, mas não dá! Ela tá lá o tempo todo, porra, eu moro com o Fer! Vejo ela quase todos os dias, a mina não sai daquela droga de apartamento. É insuportável!
_Tá, mas...
_Não, escuta – argumentei – A Mia... Ela não é só uma garota que eu quero comer, sei lá. Eu nunca me senti assim antes, meu. Cê não tá entendendo! Ela... e-ela me fode a cabeça, não sei! Eu passo o dia sonhando acordada com ela, cada minuto, cada segundo, o tempo inteiro. E eu nunca fiquei assim, meu! Mas não consigo evitar... Tudo nessa mina é incrível e e-eu, eu sei que a gente ia dar certo juntas. Eu sei. E eu acho que ela também sente isso, ela só tem medo. E-eu, eu tô apaixonada, Má.
_Bom, então você precisa falar com o Fer, flor.
_Não. Isso não é uma opção.
_Ou um ou outro.
_Não... – passei as mãos no rosto, angustiada – ...tem que ter outro jeito.
_Gata, escuta o que eu tô te falando – a Marina me olhou com carinho – Você vai se dar muito mal nessa história. O Fer não vai te perdoar. A bomba vai explodir inteira em cima de você. Você não faz ideia de onde tá se enfiando por causa dessa garota!
_MANO, MAS ELE TAVA TRAINDO ELA!
_ELA TAMBÉM TAVA!
_É, s-só que...
_Só que o quê?! – me cortou – Flor, você não sabe como são as coisas entre eles. E uma coisa é o Fer trair com uma mina nada a ver, outra é ele descobrir que você tá com a namorada dele. Não tô dizendo que ele tá certo, mas cê entende que pode dar muito mais errado pro seu lado? Vocês tão se envolvendo muito rápido, meu amor. E eu sei que cê ama ela e que pode parecer impossível, mas você tem que se afastar enquanto ainda consegue.
_E-eu, eu sei, mas... Uma coisa é falar e, meu, no dia-a-dia, não tem como. Não dá. Ela quer, Má, cê não tá entendendo, ela me quer. Ela quer ficar comigo! Eu vi na cara dela hoje, mano, quando ela segurou minha mão, quando a gente se beijou! Porra. Não é como se eu tivesse alimentando uma paixão platônica por uma pessoa que não tá nem aí para mim! Ela quer! Ela me quer! E se, s-se você visse ela ontem, mano, o jeito como a gente se encaixou, como ela me beijava, foi, f-foi tão bom, cê não tem noção. Eu não consigo tirar ela da cabeça, velho. Eu, e-eu sei que foi de verdade, Má, não é só um casinho, uma brincadeira, sabe?
_Não pra você, meu amor, porque você não vê as coisas assim...
_O que diabos isso quer dizer?
_Quer dizer que cê já se apaixonou antes, meu, cê já namorou com outras meninas, já dormiu com mulher, levou pra casa dos seus pais. Cê sabe o que é ser sapatão... – argumentou – Mas a Mia nunca ficou com outra garota, linda. Ela não sabe o que é gostar de mulher. É muito cedo ainda! E eu n-não sei se ela tem noção do que realmente significa amar outra garota, de tudo que vem junto. Você acha que ela sabe, porque quer que ela fique com você, mas as coisas te afetam de outro jeito... – suspirou – Não é a mesma coisa, flor. Como cê pode ter certeza de que ela sente o mesmo que você? Como cê sabe que não é só porque, sei lá, p-porque é uma parada nova? Porque é proibido? – comecei a balançar a cabeça, a ouvindo, como se negasse o que dizia, tragando meu cigarro irritada – Olha... Me escuta. Pra mim, pra você e pra todas as lésbicas do planeta, meu, o que uma mulher faz do nosso lado tem um significado muito mais forte. Nós damos sentido a cada gesto das garotas que gostamos.
_Marina, eu não tô tendo um delírio – rebati – Ela gosta de mim!
_Linda, não tô dizendo que ela não tem vontade de ficar com você, só... só q-que talvez... – hesitou – ...talvez não seja tudo isso na cabeça dela, não como é pra você. Ela não sabe o que realmente significa, entende? Não sei se a Mia tem plena consciência do que tá fazendo, do que faz com você, flor. E nem se ela tá pronta para encarar isso agora. Ela namora, meu. E pior, ela namora o Fer! É muito complexo...
 
Respirei fundo e apaguei o cigarro no cinzeiro, a escutando falar, a contragosto, e encarando o chão. Mesmo com todos os argumentos, todos os sinais evidentes e todo o maldito bom senso me indicando que a Marina provavelmente estava certa... Alguma coisa dentro de mim ainda discordava.

março 13, 2010

Enrolando

Uma vez que o sofá ficou livre de todas as intermináveis peças de roupa, que ela provavelmente tinha jogado ali enquanto se arrumava para o seu encontro, horas antes, eu me sentei e coloquei um dos pés em cima da mesinha. A Marina me reprovou com o olhar. “Estava com saudade?”, eu ri e ela balançou a cabeça. Perguntou então se eu não queria alguma coisa para beber. Pedi cerveja e ela disse que só tinha chá verde. Eca. Resolvi me contentar com um cigarro e a boa companhia.
 
A Marina foi na cozinha buscar um copo daquele líquido-gelado-zen-intomável e sentou ao meu lado na volta, dobrando os joelhos perto do corpo, com os pés descalços em cima do sofá. Olhei o vestido dela descendo delicadamente pelas suas coxas e, por um instante, me senti realmente nada confiável.
 
_Não me lembro de você assim quando a gente saía...
_Assim como?
_Assim de vestido, cabelo preso, toda bonitinha aí... – olhei para ela.
_Cê tá querendo dizer que eu era um horror antes, é isso? – ela riu.
_Cala a boca. Cê sempre foi gata, meu! Não quis dizer isso!
_Olha, eu não tenho tanta certeza do que cê quis dizer... – ela brincou, tomando um gole do chá.
_Não é isso, Má, só tô falando q-que... sei lá, meu, cê tá diferente – expliquei – E cê parece feliz, acho que essa tal de Bia aí tá te fazendo bem.
_É, acho que sim...
_Hum, então a Bia é mesmo a sua nova namorada – concluí – E não só “uma menina” aí?
_Para – ela riu – A gente não tá namorando ainda.
_Ainda?
_Ai, como você é chata... Meu deeeus...
_Desculpa. Parei.
_Besta.
_Hum... – hesitei – Mas e-eu... Eu te fiz feliz, não? Por um tempo pelo menos?
_Fez – ela respondeu – Mas é diferente, cê foi minha primeira namorada.
_Que tem?
_Tem q-que é difícil pra mim separar o nosso relacionamento desse, sei lá, d-desse momento na minha vida, de como foi importante. Sabe? Acaba tudo meio junto: aquela época, você, o processo todo de me entender lésbica, não sei. E-eu acabei completamente apaixonada por você e você...
_...e-eu sempre fui uma idiota, né?
_É, algumas vezes – ela riu.
 
Abaixei a cabeça, meio envergonhada, e ela segurou a minha mão.
 
_Eu fui muito trouxa, cê sabe, né? – a olhei carinhosamente, com o cigarro aceso na outra mão – Eu me arrependo pra caralho, Má.
_É. Eu sei – ela sorriu – Talvez a gente devesse ter sido amigas desde o começo.
_Acho que ia dar mais certo mesmo... – concordei e aí arqueei as sobrancelhas, brincando – ...quer dizer, amigas com alguns “benefícios”.
_Não, sem benefícios para você – fez graça.

março 12, 2010

Nostalgia

_É a tal da Mia, não é? – a Marina me perguntou, assim que entrei no seu carro.
_É.
 
Ela revirou os olhos, respirando fundo, como se já soubesse. Saiu com o carro e deu seta para entrar na avenida. Logo caímos em um leve congestionamento na saída para a Rebouças. A Marina colocou um CD da Tulipa Ruiz para tocar baixinho e eu a agradeci pelo resgate. Sua casa era na Lapa, relativamente perto de onde eu trabalhava na Vila Madalena, num apartamento arrumadinho que dividia com a sua irmã e duas tartarugas d’água – a Bette e a Tina.
 
Eu não ia lá há séculos, literalmente desde que terminamos e isso já fazia anos. Desde então, nós sempre nos víamos em lugares públicos. Longe de possíveis camas nas quais pudéssemos esbarrar e acabar caindo acidentalmente. Segundo ela, eu não era confiável. Chegamos em pouco menos de meia hora. E o apê continuava igual, exceto por uma mesinha nova no centro da sala. A Marina acendeu as luzes e deixou as chaves em cima da tal mesa. Só então pude vê-la direito – e ela estava deslumbrante.
 
A Marina era uma dessas nerds que gostam de ioga, dessas paradas namastê. Estava sempre de legging ou com suas roupas de jornalista esquerdista – era a única repórter negra em toda a redação onde trabalhava. Naquele dia, no entanto, estava usando um vestido soltinho branco e lentes, ao invés dos seus óculos pretinhos “clássicos”. Certeza que tava num encontro, pensei.
 
Observei-a enquanto ela liberava o sofá, tirando algumas roupas jogadas ali em cima:
 
_Cê tá linda, hein, Má.
_Olha, nem começa... – ela riu, tirando a última blusa de cima de uma almofada.
_Ihh, que foi? Não fiz nada!
_Sei...
_Nossa! Não posso fazer um comentariozinho inofensivo que cê já acha que eu tô com más intenções?
_Nenhum comentário seu é inofensivo.
 
Ela riu e me olhou, sendo engraçadinha.

março 11, 2010

911

_Onde cê tá?
_“Oi” pra você também, sua mal-educada...
_Desculpa, oi! – consertei rapidamente – Onde cê tá?
_O que tá acontecendo?
_Eu fiz merda, Má. Fiz merda mesmo, das grandes.
_Xiiii...
_Onde cê tá, meu?
_Na casa da Bia.
_Quem é Bia?
_Uma menina.
_Que menina?! – me incomodei.
_Não muda de assunto, ô intrometida. Me conta, o que cê fez dessa vez?
_Não posso falar pelo telefone, vem me encontrar. Que horas cê sai daí?
_Não, hoje não dá...
_Marina, por favor.
_Nem vem – ela riu – Eu quase nunca tenho tempo livre e eu já tinha combinado...
_Meu, é sério. Eu preciso muito falar com você!
_Ei... – me deu bronca – Você não é a única pessoa na minha vida, sabia?
_Mas você é a única que presta na minha. Por favor, por favor... Por favor...
_Meu deus, isso é um absurdo. Não.
_Por favoooooooooooor!
_Isso só pode ter mulher no meio. Só pode – eu podia quase vê-la revirar os olhos do outro lado da linha – Tenho certeza, não sei nem se eu quero saber o que aconteceu. Cê se mete em cada uma também, viu... E depois ainda sobra pra mim!
_Eu não sei o que fazer, Má. De verdade. Vem me encontrar? Por favor. Eu tô precisando muito de você, meu...
_De mim? Cê tá uns anos atrasada, gracinha.
_Para! – eu ri – Poxa, Má. Sem brincadeira, preciso mesmo de você...
_Sei.
_E da sua infinita sabedoria, vai... – implorei – Por favor, linda!
_Você é inacreditável...
_Onde cê está? Fala que eu vou aí te encontrar.
_Não – ela suspirou – Deixa que eu vou aí.

março 10, 2010

Fervendo

_Comeu?
 
Me perguntou e então apoiou as duas mãos no batente da minha porta, agindo estranho. Não entendi a hostilidade dele. E me certifiquei rapidamente com os olhos de que a Mia não estava ali.
 
_Não.
_E por que não? – retrucou, soando bem mais irritado do que a situação justificava – Cê não tava fazendo um puta drama de que tava com fome, hein? De que não tinha porra nenhuma pra comer? Que a gente precisava ir lá comprar as merdas pra casa?
_Perdi a fome, Fernando – menti, sendo grossa.
 
E ele me olhou, desconfiado, como se não acreditasse no que eu estava falando. Entrou no quarto, fechando a porta atrás de si com certa agressividade. E eu dei alguns passos para trás, o encarando de volta. Qual é o seu problema? Ele se aproximou para falar, como quem quer evitar ser ouvido. Possesso. Parecia irritado especificamente comigo, o que eu não entendia. Continuei olhando na sua direção, sem me intimidar.
 
_O que cê falou pra ela? – ele sussurrou, visivelmente irritado.
_Nada! – cochichei de volta.
_Então por que cê está assim?
_Assim como?!
_Não se faz de idiota! Tem alguma coisa rolando! – ele disse, puto, tentando não subir o tom de voz – A Mia tá toda constrangida lá na cozinha, cês duas tão agindo estranho, porra. Qual é?!
_Eu não falei nada!
_Do que cês tavam falando quando eu cheguei?
_Não é da sua conta.
_O CARALHO QUE NÃO É!
_Fernando, eu não contei porra nenhuma. Não tem nada a ver com você!
_Então é só uma coincidência do cacete, né?
_Ah, velho. Não enche! – retruquei, brava – O que cê acha que eu ganho contando? Antes de qualquer coisa cê é meu amigo, caralho. Cê acha que eu vou te dedurar? Cê tá paranoico, porra! Vai sair me acusando??
 
Ele me olhou, sem resposta, e eu o encarei de volta – pelo menos nisso eu estava sendo sincera, o que me dava bastante confiança. Aquilo estava indo longe demais. Passado algum tempo em silêncio, ele pediu desculpa pela acusação e se acalmou. Que rolo dos infernos. O Fer saiu do quarto e eu continuei parada ali, pior do que estava antes. Chega. Preciso sair daqui. Terminei a minha cerveja em dois goles enormes e vesti uma jaqueta, determinada a dar o fora.
 
Passei na cozinha para pegar um pacote de bolachas, porque, ao contrário do que aleguei, eu estava morrendo de fome. O Fer estava começando a cozinhar algo no fogão. E a Mia esperava sentada, em cima da pia. Ela me olhou durante o tempo todo em que estive no cômodo. Sem cuidado algum para que o Fer não percebesse – você perdeu a cabeça? O Fer estava virado para o fogão e felizmente não viu. Os olhos dela pareciam preocupados, tensos. Cada segundo dentro daquele apartamento aumentava o meu constrangimento.
 
Maldito peso na consciência.
 
Bati a porta, sem me despedir de nenhum dos dois, e desci até a rua. Já estava escuro, mas ainda não era tarde o suficiente. O agito habitual das viados e baladeiros da Augusta ainda não tinha ganhado peso para uma noite de sábado. Subi a Frei Caneca sem saber direito para onde ir. A cada passo tentava me livrar do peso na consciência pelo que eu fiz com a Mia e pelo que vi o Fer fazer. Queria fugir da minha própria vida. Precisava respirar um pouco, descansar de tudo aquilo. Desgraça.
 
Estava quase chegando na Avenida Paulista quando o meu celular tocou. Era a Roberta. Não, isso não. Ignorei e continuei subindo a rua, guardando o telefone de novo no bolso da calça. Eu precisava de alguém neutro. Alguém que não fosse piorar o caos que eu sentia por dentro. A minha cabeça estava a mil e eu queria escapar daquela confusão. Mas não tinha ideia de como, estava completamente perdida. 
 
A Marina, concluí na última quadra. Eu preciso da Marina.

março 09, 2010

"Pode vir quente, que eu estou..."

O Fer passou pelo corredor, assim que entrou em casa, e nos viu dando bandeira. Paradas em frente à porta do meu quarto. Ele me encarou. E a Mia foi cumprimentá-lo – com um beijo, argh. Fiquei observando os dois ali, me limitando à minha insignificância. O Fer ainda me observava, por trás da Mia. Que triângulozinho de merda, eu revirei os olhos e encostei na parede, olhando para o chão, na tentativa de ignorar a cena toda.
 
O casalzinho começou a conversar, num tom introspectivo. E me excluíram totalmente. Então resolvi dar início ao consumo das cervejas, antes que elas acabassem ou que aquela situação me sufocasse ainda mais. Passei pelos dois, me virando contra a parede do corredor. E a Mia me olhou com um nítido pesar na consciência. Essa vai ser uma noite longa, pensei, já me conformando com o decorrer das próximas horas. Entrei na cozinha e peguei a primeira de muitas cervejas que eu pretendia enfiar goela abaixo, voltando em seguida para o meu quarto.
 
O “Casal Ternura” ficou lá, no sofá da sala, se amando. Inferno.
 
De alguma forma, o meu quarto agora parecia pequeno demais para todos os meus pensamentos. Era como se as paredes não fossem suportar todo aquele tráfego mental e emocional – nuns surtos autodepreciativos. Dá para enrolar uns 100 baseados com esse papel todo de trouxa que tô fazendo, puta merda. A sensação me causava claustrofobia. Indisposta a cruzar com a Mia pelo apartamento e sem outra opção, acendi um cigarro e me sentei na frente do computador. Liguei o MSN entre um gole e outro. E fui surpreendida com várias mensagens antigas da Roberta.
 
Àquela altura do campeonato, eu já havia esquecido da noite de quinta. E por um momento, me ocupar com alguma garota me pareceu uma boa ideia. Não. Chega. Preciso aprender a não fazer mais isso, raciocinei. E me contive. Eu não queria realmente submeter a Roberta ou qualquer outra garota à minha confusão – não de novo. Não era justo. Já basta eu aqui, me fodendo.
 
Foi quando alguém bateu forte na porta. Fiquei sem reagir por um instante. Não sabia o que era pior: o Fer ou a Mia. Respirei fundo, indisposta. E fui abrir, sem curiosidade alguma de descobrir quem estava do outro lado e por quê. Que inferno, pensei e virei a maçaneta.
 
Era o Fer, com cara de poucos amigos.

março 08, 2010

Portas destrancadas

_O que cê quer? – perguntei, ao abrir a porta.
_Por que você tá assim? – a Mia me olhou de volta, chateada.
_Meu, por que diabos cê tá aqui?
_Porque eu quero falar com você.
_Não no quarto. No apartamento, Mia!
 
Ela me encarou por algum tempo, hesitante.
 
_O Fê... – suspirou – ...é m-meu namorado.
 
Ouvi ela justificar, quase cochichando, sem confiança alguma no que estava dizendo. Seus olhos me observavam, vulneráveis, e ela respirou fundo. Tá. Mas você não é mais namorada dele, pensei. E de repente, fui tomada por um sentimento violento. Uma vontade imensa de estar com ela me subiu pela espinha e eu simplesmente a puxei na minha direção. Entrelacei os meus dedos no seu cabelo, atrás da sua cabeça, e a beijei. Me fala. É? Ela me encostou contra a parede e me beijou de volta, num impulso.
 
Merda. Não – não posso. Eu a afastei, confusa, e ela ficou me olhando sem entender. Eu abaixei a cabeça:
 
_Olha, e-eu, eu não tô pedindo nada de você – murmurei – Mas é, é foda, então também não espere nada de mim.
_O que cê quer que eu faça?
_Eu não tenho a resposta, Mia.
_Eu não posso simplesmente t-terminar com ele... – ela sussurrou – Eu não posso, e-eu... Não dá pra pôr um fim em tudo, do nada, só porque...
_“Só porque” o quê? – retruquei, tentando esconder a minha tristeza.
_Você não entende, e-eu... eu precisava vir. Não dava pra eu dizer não! Não dava. Ele ia... i-ia perceber que alguma coisa não tava certa.
_Porque não tá mesmo, Mia! – argumentei, com raiva.
 
E me arrependi logo em seguida. Cruzei os braços e encostei na porta, olhando para o chão. Ficamos caladas. Ela me olhava, inquieta, ansiando por qualquer movimento meu. Mas eu não fiz nada. Eu tô entrando na boca do lobo, me frustrei, sem conseguir voltar atrás. E então a Mia me segurou pela mão, num gesto inesperado. Subi o olhar até o dela e ela sorriu. Havia um certo conforto em vê-la sorrir para mim. Ah, garota. Encarei-a de volta e, por algum motivo, tudo pareceu estar bem de novo.
 
_Acho que isso quer dizer que não vamos sair hoje, né? – ela riu.
_Vamos fazer o que você quiser – respondi, como se não pudesse evitar.
_Eu quero ficar com você – ela disse.
_Então é isso que vamos fazer.

Sobrecarga

Voltamos do supermercado uns 70 reais mais pobres, cada um. Com comida suficiente para quase um mês inteiro – considerando que nos alimentávamos terrivelmente mal. Bastava uns pacotes de macarrão e pizza congelada. Aqueles dois engradados de cerveja davam para o fim de semana – ou talvez só para aquela noite, dependendo da nossa disposição. O Fer deixou todas as compras comigo e enquanto eu chutava, digo, “carregava cuidadosamente” todas as sacolas elevador adentro, ele deu um pulo na boca da Paim para arranjar o estoque da semana.
 
Cheguei no corredor atolada de sacolas, empurrando um dos engradados com o pé. Completamente sobrecarregada. Todo aquele peso incomodava o meu sedentarismo usual. Por outro lado, né, fui eu que insisti para irmos no mercado, raciocinei, como se admitisse culpa a mim mesma. Virei o corredor com certo esforço, destruindo as latinhas pelo chão, e acabei dando de cara com a Mia. Parada ali, em frente à porta do nosso apartamento. Claro, respirei fundo, com quem mais essas merdas poderiam acontecer? Só comigo.
 
_Oi – ela disse, enquanto eu equilibrava as compras e tentava virar a chave na porta.
_Oi, Mia... – respondi, indiferente a ela.
_O porteiro me deixou subir, mas cheguei aqui e cês não tavam. O Fê... – ela me olhou desconfortável, como se o nome dele de repente fosse proibido – ...n-não foi com você?
_Como cê pode ver... – falei, ainda tentando virar a chave sem que nenhuma sacola caísse – ...a gente foi no mercado. Mas o Fer tá dando uma passada lá na Paim. Já, já ele deve chegar...
_Cê quer ajuda aí? – ela perguntou, como se eu estivesse prestes a derrubar tudo.
_Não. De boa.
 
Respondi e consegui, enfim, virar a porra chave.
 
_Só traz o engradado, por favor – pedi, entrando no apartamento.
 
Fui direto para a cozinha e deixei todas as sacolas sobre a mesa. A presença da Mia no apartamento já estava me irritando. Alojamos todas as compras em seu devido lugar, a começar pelas de geladeira. A Mia tentou iniciar uma conversa várias vezes, mas eu cortava todas as suas iniciativas. Não tô afim. A verdade é que eu não queria falar com ela depois de passarmos uma noite daquelas juntas e ela aparecer na casa do namorado, no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido. Vai se foder. Terminei tudo numa velocidade impressionante, disposta a sair logo dali. E aí me fechei no quarto.
 
A Mia ficou sozinha na cozinha, por um tempo – mas não demorou muito, claro, até vir bater na minha porta. Por favor, vai embora. Não quero discutir isso agora. Eu não queria atender, não queria abrir. Segurei a maçaneta com uma das mãos, esperando, mas no fundo eu sabia que não tinha escolha. Eu já tinha deixado ela entrar, antes mesmo dela pensar em bater. E agora, lá estava ela, disposta a tentar – enquanto eu me arrependia de todas as minhas escolhas.

março 05, 2010

Les Misérables

Passei cantarolando pela cozinha. Com Lou Reed nos fones de ouvido e meias listradas no pé, indo atrás de alguma coisa para comer. O meu humor estava fantástico – mas o meu estômago, não. Reclamava a cada maldita prateleira vazia. Não tem comida nessa casa, cacete? Sem desistir, fui até a geladeira e fiquei alguns minutos encarando a escassez total de alimentos daquele apartamento. “You’re a slick little girl... Oh, you’re such a slick little girl”, eu dançava sutilmente, já com as minhas pernas parcialmente congeladas, em frente a uma geladeira aparentemente inútil.
 
_FER! – berrei, ainda com os fones, o que deve ter me feito soar ainda mais escandalosa – Não tem porra nenhuma para comer, vamos no mercado?
 
Nenhuma resposta. Continuei com a música nos ouvidos e pus-me a beber um copo de água – proveniente da torneira da pia, dane-se, já que não tínhamos um líquido sequer naquela casa. Não estava ouvindo nada além daquela música exageradamente alta. “Now, we’re coming out!”, eu cantava distraída, “out of our closets, out on the streets, yeah, we’re coming out!”. Alguns instantes depois, eu pude escutar o som distante do Fer gritando o meu nome. Repetidamente. Olhei para a porta e ele estava apoiado no batente, esperando eu me virar na sua direção e possibilitar uma conversa.
 
_D-desculpa. Não te ouvi... – disse, com um sorriso amarelo, tirando os fones do ouvido.
_Ah, jura? – ele riu – Mas, e aí, fala... O que cê quer?
_Não tem comida.
_Claro que tem! Comi hoje cedo aí com a Júlia. Tinha sucrilhos e... err, bom, o leite acabou.
_Não quero sucrilhos e não tem mais nada, meu. Precisamos ir comprar.
_Agora não dá, meu... – respondeu – ...a Mia tá vindo aí.
 
Oi?
 
_Espera... A Mia tá vindo pra cá? No apê?! – perguntei, tentando não soar totalmente surpresa e decepcionada – Agora??
_Tá, eu liguei para ela... – estranhou – Por quê?
_Não, por nada... É só q-que... Ela tinha comentado... Digo, o-ontem... – me enrolei, confusa – Q-que talvez ela fosse... f-fosse sair hoje, m-mais tarde... À noite, não sei, não me lembro. Ah, deixa pra lá!
_É, ela disse que ia sair mesmo. Mas eu falei para ela passar aqui pra comer...
_E comer o quê, meu? – argumentei, como se pudesse impedir que ela viesse – Não tem comida!
_Ah, sei lá, a gente pode pedir alguma coisa...
_A gente vai ficar sem grana, Fer. A gente só come delivery a porra da semana inteira! – resmunguei – Vamos comigo no supermercado, vai? Antes que feche o shopping da Frei...
_Ah, velho... Puta preguiça de sair agora!
_Por favor! Vai, pelo menos para comprar umas cervejas e um pouco de macarrão, meu. Senão fica difícil...
_Tá... – se deu por vencido – Mas vamos logo, que daqui a pouco a Mia chega aí.

março 03, 2010

Não é por mal...

Até que, finalmente, a Mia deu sinal de vida: mandou uma mensagem.
 
Mas não para o Fernando, cujo celular – assim como o seu dono, esquecido pela namorada – ficou ao meu lado o tempo todo na sala. O seu telefone não vibrou uma só vez. Nenhuma. O recado era para mim. E só para mim. Nele, a Mia me perguntava simples e direta quais eram os meus planos para aquela noite. Sem beijo e nem sorrisinho – só a pergunta e uma possível segunda intenção.
 
Vou sair com vc”, respondi.
 
Com certa arrogância. E esperei a sua resposta. Olhei para o Fer naquele meio tempo, sentado ali ao meu lado, me fazendo arrepender brevemente. O que eu estou fazendo? Passei o dia me sentindo mal, pensei. Segundos depois, porém, a tela do meu celular piscou com uma confirmação e um sorriso dela – e eu simplesmente esqueci de me sentir culpada.
 
Passo ai as 23h ;)”, digitei e mandei.

março 02, 2010

Os pilantras

_Não sei o que me deu – o Fer reclamou, arrependido – Burrice, foi isso que me deu. Só pode!
_Relaxa, meu... O que você vai fazer agora? Já foi, né?
_Eu sabia, sabia que tava fazendo bosta. Eu devia ter ignorado. Ela me mandou mensagem ontem e e-eu... Caguei tudo! Tudo. Burro do caralho. E o pior é que agora a Jú vai ficar cheia de nhé-nhé-nhé para cima de mim, me enchendo o saco... Puta merda, vai ser um inferno – passou a mão no rosto, nervoso – Eu sou um idiota, mano.
_Calma, Fer, também não é o fim do mundo. Foi uma vez só. Logo, logo passa... Só não vai dar uma de honesto agora e ir lá contar, a Mia ia ficar arrasada – eu me estiquei até a ponta do sofá e alcancei o meu maço, tirando um cigarro e o isqueiro lá de dentro – Juro. Eu te arrebento.
_Cê tá doida?! É óbvio que eu não vou contar – ele riu – Mas, porra... Se esse negócio vazar...
_Não vai vazar.
_É, mas se...
_Não vai vazar! – o interrompi, garantindo.
_Argh, sei lá. Vou ter que prestar muita atenção no que eu falo daqui para frente – ele roubou o cigarro da minha mão e deu um trago – Acho que a Jú não vai fazer nada, né?
_Olha... Daquela ali eu não duvido bosta nenhuma.
 
O Fer riu. Nós dois sabíamos como tinha sido o relacionamento deles na adolescência – e não foi coisa boa. Ficamos em silêncio por um tempo. Eu ainda estava sonolenta, largada no sofá fumando.
 
_As suas minas não ficam sabendo, não? – o Fer me observou, do nada, curioso.
_Quem? – respondi, sem entender – Sabendo do quê?
_Como “do quê”? – ele riu – Nunca vi ninguém ir e vir de uma para outra que nem você, mano... Elas não ficam sabendo, não? Não te encontram por aí com outra? Porque, porra, não é possível!
_Ah, sei lá... Às vezes dá umas tretas – dei de ombros e pisquei para ele, exagerando – Mas todas elas acabam voltando para mim.
_Ah! Tá bom! Vai nessa...
 
Ele começou a rir. Aquela era obviamente a maior besteira que eu já tinha falado e ele sabia.
 
_Ah, me poupa, Fernando... Você tá todo bravinho aí porque quer fazer merda e não aguenta! – provoquei – Agora tá aí, preocupadinho se a namorada vai descobrir...
_Desculpa aê, Rainha do Vacilo... – me zombou.
_Cala a boca, babaca – dei um soco de leve no seu braço, rindo – Mas, tá, agora falando sério: por que diabos você foi fazer isso? Essa mina já tava até com poeira de tanto tempo que vocês terminaram. Que raios deu na sua cabeça pra ir mexer nesse rolo, meu?
_Ah, sei lá... É que... N-não sei, faz o quê? Um ano que eu tô com a Mia e... e é só a Mia, manja? O tempo inteiro – respirei fundo, eu te odeio – Daí eu vi a Júlia lá no Marcos e ela tava toda, sei lá, interessada, mano, ficou dando mole. Porra. Não sei, eu não pensei muito na hora... E ontem a Mia me ignorou a noite toda, mano... – ops – Eu só queria fazer uma graça. Dar corda para ver onde chegava – ele esfregou o rosto, arrependido – E sei lá, quando eu fui ver já tinha feito a merda.
_Sei. E valeu a pena, pelo menos?
_Não – ele riu, tragando logo em seguida – Foi um lixo.
_Mano, como você é idiota.
_É. Bastante – ele passou a mão na cabeça e me devolveu o cigarro – Mas, e aí? Foi legal lá ontem? O que vocês fizeram?
_Ah, nada. A gente viu as lutas, bebeu, ficou conversando...
_Nossa, a Mia sumiu, porra... Morreu. Não manda notícia desde ontem à tarde. Deve ter sido bom o negócio, não?
 
Ah, você não faz ideia.

Enfim

Sábado à tarde e nada passando: assistir televisão de fim de semana é suicídio intelectual. O tédio estava me irritando profundamente, mais do que a presença daquela imbecil no meu apartamento. O Fer e a tal da Júlia estavam na cozinha, terminando de tomar café. Coloquei na MTV e abandonei o controle ao meu lado, enquanto tentava dormir ao som daquele lixo musical. 
 
Minutos ou horas depois, ouvi a porta abrir e acordei. O Fer estava em pé, com uma expressão nitidamente desconfortável, meio sem jeito, despedindo-se da idiota em frente ao batente. Ela me encarou por um instante, a metros de distância, provavelmente com raiva por eu ter sido grossa com ela mais cedo. Já vai tarde, pensei e deitei de novo no sofá. Eles se beijaram, pelo que pude ouvir, mas não consegui distinguir de olhos fechados se foi significativo ou não. A porta se fechou, com a babaca devidamente expulsa para o lado de lá.
 
E éramos só nós dois novamente. Constrangedor.
 
O Fer sentou do meu lado, a alguns centímetros dos meus pés, e suspirou. Abri os olhos e encarei ele por um tempo. Senti dó, por algum motivo totalmente incompreensível e desconhecido a mim, mas senti. Acho que eu o entendia, de certa forma. Inconsequência era algo que eu podia entender. E afinal, nós éramos amigos – há mais tempo do que eu podia me lembrar. Praticamente irmãos. E parte de mim queria protegê-lo do problema que ele causou a si mesmo.
 
_Eu fiz merda, não fiz? – ele me olhou, ciente da besteira que tinha cometido.
_É, fez.

março 01, 2010

O pau oco

_Eu quero falar com você – resmunguei para o Fernando.
 
Passei entre ele e a idiota da sua ex, trombando nos dois da forma mais grosseira possível. Entrei no meu quarto e esperei que ele viesse atrás. Alguns segundos depois, ele apareceu, já estressado com a minha ceninha. Pronto para a discussão infernal que eu estava prestes a começar. Mas aí eu olhei para ele, assim que fechou a porta atrás de si, e... e não consegui falar. Travei completamente. Estava possessa e não conseguia emitir um ruído sequer pela minha boca. Inferno.
 
_O que foi, PORRA? – me encarou, impaciente – NÃO VAI FALAR NADA?!
 
Cruzei os braços e olhei para o chão, mordendo a boca de raiva. Não. Eu era incapaz de articular uma porra de uma palavra. Aquilo me destruiu por dentro, numa culpa desgraçada. Eu sou uma puta de uma hipócrita, me doeu. O silêncio foi crescendo e a cada segundo que se passava eu sentia o descontentamento do Fernando piorar. O ar ficou pesado, beirava o insuportável. E eu não conseguia dizer porcaria nenhuma.
 
_AH! VAI SE FODER, MANO! Na boa, se você tem algum problema, não fica fazendo teatrinho na frente dos outros pra depois não me dizer nada – se irritou e eu o encarei, muda – O QUÊ, PORRA? Hein?! Perdeu a coragem? FALA LOGO! Fala o que você quer falar: fala que não gostou, que não quer ela aqui. VAI, FALA! – o Fer berrava na minha direção e eu seguia covardemente quieta – Sabe qual é o problema? Não é falta de coragem, não, é FALTA DE MORAL pra falar qualquer merda de mim – podia sentir a vontade de gritar subindo a minha garganta – Porque de todas as pessoas do mundo, TODAS, cê é a que menos tem direito de vir me dar esporro. Pode fazer cara feia aí, pode não gostar, pode reclamar à vontade, que no fundo cê não tem argumento NENHUM e você sabe! – me atacou, como se isso o livrasse da culpa – Cê faz merda com todas as meninas que cê pega, mano. Quem cê acha que é para entrar aqui e dar esse chilique agora? Não vem com essa de bancar a cheia de moral do nada e vir querer "falar comigo" que somos dois nessa porra de vida hedonista do caralho!
 
É. Você está certo, Fernando. E aliás, eu peguei a sua namorada.
 
Não havia momento melhor para admitir tudo e tirar aquela traição de merda da minha consciência. Mas não, não consigo. Não posso fazer isso. Ele ia me odiar como nunca odiou ninguém antes – ele não ia entender. E eu não podia perder o Fernando. A maioria das pessoas que eu conhecia lidava com as suas dores até não aguentar mais e explodir, mas o Fer, não. Ele partia pra cima na primeira pedra atirada contra ele. Eu sabia disso. Sabia, porque eu era igual. Nunca fui de processar muito as coisas, tinha tendência a reagir sem pensar e a piorar tudo. Num esforço fenomenal de foder com a porra toda. E era isso que ia acontecer – e era isso que eu queria evitar.
 
_CÊ NÃO VAI FALAR NADA, PORRA? – o Fer gritou comigo, após mais algum tempo de silêncio.
 
E eu olhei nos seus olhos, mantendo a calma:
 
_Eu não preciso falar nada – argumentei – Você sabe que está errado. E talvez eu não seja a melhor pessoa pra te dar lição de moral mesmo. Aliás, eu sou a pior pessoa e eu sei disso, sei melhor do que você. Mas isso não muda o fato de que você tá errado. Você cagou tudo. A Mia é uma mina maravilhosa e você é um babaca se perder ela para aquela idiota na sala.
 
Ele me encarava de volta, incomodado. Podia ver nos seus olhos a ficha caindo vergonhosamente.
 
_A, a gente não... – ele hesitou, baixando a voz – ...nós s-só... sei lá, ficamos conversando ontem e ela acabou dormindo aí, não f-foi como se... – os seus gestos pareciam nervosos – Escuta, eu não comi a menina, tá legal?
_Ah! Fernando... Porra, mano! – reclamei, sabendo que era uma mentira descarada – Joga a real. Qual é?
_Tá bom! Tá bom! Comi, sim! – admitiu – MAS QUE PORRA! Eu n-não... Eu não queria que... Não foi planejado, e-eu... MERDA! – ele sentou na minha cama e passou a mão na cabeça, arrependido – Eu tô fodido. Fodido. A Mia vai me matar se ficar sabendo dessa bosta.
_Velho, por que cê foi fazer isso?!
_Ah, caralho. Sei lá! Você... v-você não pode falar nada pra ela. Nada! Tá me ouvindo?
 
Como se eu precisasse de mais um segredo para guardar. Mais uma vez, as palavras fugiram da minha boca. Argh. Aquela impotência acabava comigo, incapaz de sair do caos que eu tinha começado. Virei de costas para o Fer e me apoiei na janela, respirando fundo. Então peguei o maço no bolso e acendi um cigarro. Soprando a fumaça para fora da janela. Mas que droga. Não conseguia acreditar no rolo em que eu tinha me metido.