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janeiro 31, 2010

Sozinha na sala

Ouvir a Mia e o Fer trancando a porta do quarto naquela noite foi… insuportável.

janeiro 30, 2010

Meu ex-armário

A Mia se virou para frente, com a cabeça apoiada contra a parede, observando a rua entre as grades da varanda. E eu a admirei, com o cigarro já quase terminado na boca. Ficamos em silêncio por um tempo, ela parecia estar mergulhada em seus pensamentos. Se toda essa gente não estivesse aqui, garota, suspirei, juro que te beijava. Traguei uma última vez, soltando a fumaça para cima, e encarei uma das janelas no prédio da frente – as plantas tinham tomado conta de todo vão e uma trepadeira agora escalava a parede do edifício.
 
De repente, senti a sua mão encostar na minha. Entre as nossas pernas. Como um segredo bem guardado pelas nossas coxas, apoiadas lado-a-lado sobre os ladrilhos da varanda. O meu coração acelerou. E eu, e-eu respirei fundo.
 
_O que exatamente você disse? – ela perguntou então, sem me olhar.
_O que eu disse quando?
_Pros seus pais, quando você contou...
_“Pai, mãe, sou sapatão!” – eu ri e aí ela me encarou, como se não acreditasse.
_Tenho certeza que não foi isso...
_Não foi mesmo – balancei a cabeça – Ah, eu namorava uma menina na época e... sei lá, ela vivia indo lá em casa e a gente tinha que ficar se escondendo, dormia sempre de porta trancada, saca? E isso começou a incomodar os meus pais. Começaram a me encher e toda vez era “o que que vocês ficam fazendo no quarto”, “essa sua amiga nunca fala com a gente”, perguntando se a gente tava usando droga, juro, todo tipo de merda – achei graça – E a real é que eu também já tava de saco cheio. Então, um belo dia, eu cheguei e falei: “olha, a verdade é que ela não é minha amiga, a gente namora. E eu não queria ter que fechar a minha porta toda vez que ela vem aqui, mas eu não sabia o que fazer e tava com medo de contar pra vocês”.
_Hum – a Mia pareceu refletir – E o seu pai realmente ficou sem falar com você todo aquele tempo?
_Ficou. Acho que a minha mãe chorou por uma semana. Eu chorei por um mês, ou mais.
_Sério?!
_Ah, mano, eu me sentia uma puta decepção para eles. Foi foda. Eu não tinha a confiança que tenho hoje, ficava envergonhada. Comecei a evitar ir para a casa, fazia qualquer coisa pra não ver eles, ia dormir na minha ex ou no Fer, ficava até tarde na rua, mas toda vez que voltava os dois me olhavam como se eu tivesse partido o coração deles... Foi uma merda por um tempo.
 
A Mia olhou para baixo, desconfortável.
 
_Deve ser difícil... Ter que encarar sua família assim.
_Ah... Podia ser pior, sabe? Conheço gente que sofreu muito depois de sair do armário. Cê lembra do Gui, meu amigo?
_O que tava na festa?
_Esse. Meu, o pai batia nele desde pequeno por ser afeminado e, um dia, quando ele era adolescente, pegou ele na rua junto com um cara. Até hoje eles não se falam.
_Sério?
_Sim. E o pior é que todos os irmãos são evangélicos, meu. Então, volta e meia um liga para dizer que o Gui vai matar a mãe de desgosto. Ele não tem ninguém na família. Ninguém. É totalmente sozinho.
_Mano, me dá tanta raiva essas coisas – a Mia esfregou o rosto com as mãos, angustiada – É muito escroto.
_Muito. E ainda tem gente que acha que ser viado é ser fraco. Meu, só o que a gente aguenta de insulto e porrada da vida...
 
Isso, sua idiota, vai. Enfia a Mia com tudo no armário!
 
Fechei os olhos brevemente, arrependida. E o silêncio cresceu entre nós. Exceto por alguns gritos mais altos, o som da zona que os caras estavam fazendo na sala era barrado pela porta de vidro, nos isolando naquela pequena varanda. A respiração da Mia parecia pesar no seu peito. Deslizei os dois últimos dedos da minha mão sobre os dela, com carinho – e ela olhou para as nossas mãos ali, entrelaçadas sobre o chão. Depois para mim.
 
_V-você... – falou baixinho – ...a-alguma vez já quis não gostar de minas?
_Não.
_Nem quando você ainda tava, sei lá, se descobrindo ou...
_Não, meu.
_Nunca?
_Mia, escuta, eu não trocaria meu coração por um hétero nem por um milhão de reais – garanti, segura – Eu amo ser sapatão.
 
Então, ela tirou a mão debaixo da minha, encarando-a agora sobre seus joelhos dobrados. O som dos carros passando na rua se misturava com o silêncio entre nós. Me diz o que você tá pensando, garota, eu a observava atentamente, sem entender bem o que a estava angustiando. Os seus olhos ergueram-se brevemente na minha direção e depois tornaram a encarar suas próprias mãos.
 
_M-meus pais morreriam – comentou então, num suspiro.
_Não é verdade...
_É sério. Acho que me expulsariam de casa na mesma hora.
_Bom... – fiz graça, quebrando o clima pesado – Também já tá meio na hora de você sair, né? Vinte anos nas costas, meu... 
_Cala boca... – ela riu.
_O único problema é que não sabe nem fritar um ovo direito – insisti, a zoando, e a Mia começou a me encher de tapa no braço, se divertindo.
_Trouxa!

A varanda

No caminho de volta para casa, a Mia já estava presente em cada pensamento que passava pela minha cabeça. Por mais que nós nos metêssemos em situações confusas e, às vezes, até acabássemos nos desentendendo, eu não conseguia tirar ela dos meus pensamentos. Ela continuava lá. E eu ali, constantemente presa àquele sentimento, àquele impulso na sua direção. Inferno. Nos últimos dias tinha ficado claro que ela gostava de mim, de uma forma ou de outra. O problema era que eu não sabia qual – e isso me perturbava.
 
Chegando na estação Consolação, parei numa banca para comprar um chiclete e, enquanto esperava o troco, recebi uma mensagem do Fer. Ele estava na casa duns amigos ali perto, na Matias Aires. Mais amigos dele do que meus. Era um apartamento velho e grande dividido por um número sempre flutuante de moradores – eram cinco? oito? difícil dizer. Para piorar, a cada semana o sofá da sala era ocupado por algum estranho alcoolizado ou estudante de Filosofia da USP qualquer, que não tinha onde pregar os olhos ou comer a namorada. Parecia uma república coletiva de toda a Augusta.
 
Entrei no apartamento dos moleques e joguei minhas tralhas no sofá. A sala estava sob uma marofa descomunal. Logo vi o Fer sentado no chão jogando videogame com outro cara, que eu não conhecia, em meio à uma roda de pessoas que conversavam aos gritos, que eu também não conhecia. Ele me cumprimentou de longe – sem tirar os olhos da TV. E eu imediatamente me arrependi de ter ido naquele rolê errado.
 
Já quero ir embora, resmunguei pra mim mesma. Mas foi quando reparei na Mia, ali, num jeans preto e com as mangas da camiseta enroladas, as tatuagens à mostra, magnífica, fumando sozinha na varanda. Bom, quer dizer, talvez eu possa ficar uns minutinhos...
 
_Oi... – eu disse, fechando a porta de vidro atrás de mim.
 
Ela sorriu de volta, com uma das mãos apoiada na beirada da varanda. Meu coração pulou uma batida, inferno.
 
_Não sabia que você ia colar aí...
_É. O Fer me mandou mensagem agora, tava saindo do metrô... – roubei o cigarro das mãos dela, apoiando os antebraços na grade, e olhei na sua direção – E você, tá escondida aqui por quê?
_Ah, mano – a Mia revirou os olhos – Muito chato lá dentro, num dá...
 
“Tá foda mesmo”, eu ri. E traguei uma vez, antes de devolver o cigarro para ela. Estava escuro ali fora. A Mia observava o movimento da rua – os restaurantes tiravam as cadeiras da calçada e preparavam-se para fechar. Ela colocou o cigarro na boca, se curvando para ver mais embaixo. E eu me juntei a ela. Ficamos ali, por um tempo, observando as poucas pessoas que passavam na calçada.
 
_Será que se todo mundo vivesse à noite... – ela comentou, do nada, como se pensasse em voz alta – ...a gente ia querer ficar acordado de dia?
 
Achei graça. E sorri para ela – “eu sei que eu ia”. Ela me passou o cigarro e sentou no chão, com as costas apoiadas contra o vidro da porta. Sentei ao seu lado e a observei, rindo.
 
_Quê?!
_Cê parece entediada até a morte, meu.
_Tô mesmo. Esse rolê tá um porre, mano.
_Como assim?! – dei um trago e forcei uma voz indignada, irônica – Você não quer assistir dois caras jogarem FIFA pela vigésima vez seguida?!
_Céus, não – ela riu.
_Osso, né?
_Pelo menos tem pizza – a Mia pegou o cigarro e me olhou – Cê já jantou?
_Já... Meu pai passou perto do meu trampo hoje e fomos num restaurante por lá – respondi – Meu, é sempre a mesma conversa, toda vez que saímos juntos... Ele acha que eu e o Fer somos casados ou algo do tipo.
_Você e o Fê? – ela riu.
_Juro. É ridículo.
_Mas, espera, ele não sabe que você...?
_Sabe – balancei a cabeça, enquanto ela soltava a fumaça entre os lábios – Ele só ignora.
_Que bizarro... Faz quanto tempo que ele sabe?
_Uns seis, sete anos. Deixa eu pensar... – calculei rapidamente – É, quase sete, eu tinha de 16 pra 17 quando contei.
_E o que ele disse?
_Nada.
_Nada?
_É, por uns dois meses inteiros – eu ri.
_Isso é horrível!
 
Ela começou a rir e eu concordei, é. Foi mesmo.
 
_Mas depois vocês ficaram bem, não?
_Ah, sim – peguei o cigarro e dei mais um trago – Sei lá, meu, acho que por mais difícil que seja, as pessoas que realmente te amam acabam entendendo. E nunca deixam de te amar, sabe? Em algum momento, elas percebem que você não pode ser feliz de outra maneira...
_Mas seu pai não aceitou totalmente... Digo, por causa desse lance do Fê e tudo mais.
_Ele fala mais por brincadeira... No fundo, ele sabe que não é assim. Já conversamos muito, ele conheceu as minas que eu namorei, acho que s-só não perde totalmente as esperanças de um dia me ver casando, tendo filho, sabe? Ao lado dum bom rapaz e o caralho a quatro.
_Olha, o Fê não é exatamente o que eu chamaria de um “bom rapaz”.
_É, cê tem razão... – eu ri.

Os mal-entendidos de sempre

Não vi a Mia por uns três dias e, na quarta-feira, meu pai me ligou. É, o meu pai. Aquele bonachão adorável e ocupado que raramente entrava em contato comigo. Não que nós tivéssemos motivos para não ligarmos um para o outro – nós dois simplesmente não gostávamos de telefone. Sempre restringi o meu uso a situações de real necessidade, um hábito que certamente puxei dele já que a minha mãe era a própria reencarnação duma telefonista.
 
Sendo assim, me surpreendi ao ver o telefone do meu pai piscando na tela do celular. Larguei o trabalho imediatamente e o atendi. Estava com saudades de ouvir sua voz. Logo na primeira frase fui intimada a encontrá-lo para jantar. A ligação chegou em boa hora – eu estava faminta e a quantidade absurda de álcool comprada para a festa havia acabado com todos os meus últimos centavos.
 
O meu pai era um “paulistano” convicto – isto é, mesmo tendo nascido e crescido numa cidadezinha no interior do Pará. Veio para São Paulo uns anos antes de conhecer a minha mãe e, desde então, raramente pisava para fora do seu mundinho em Santo Amaro. Era um tanto bairrista. Mas aquela quarta-feira era uma exceção: um fornecedor qualquer o arrastou para as redondezas do estúdio onde eu trabalhava. Eis o porquê do telefonema, concluí. E sem pensar duas vezes fui encontrá-lo num restaurante a poucas quadras dali, assim que terminou meu expediente.
 
_E então... – me perguntou, interessado, pouco tempo depois de começarmos a comer – Como vai no emprego?
_Vai bem. Sei lá, normal. Muita coisa para fazer...
_E em casa, tudo bem?
_Tá, sim.
_Como vão as coisas entre você e o Fernando? – ele me olhou, forçando um olhar de “sogro” na minha direção – Hum?!
_Pai... O Fernando não é meu namorado, você sabe disso. Nós somos só amigos.
_Isso é o que você continua me dizendo, mas aquele garoto gosta de você – ele continuou, como se estivesse coberto de razão – Confia no que eu estou te dizendo. Eu sei como é...
_Não – eu ri – Escuta você o que eu estou dizendo: o Fernando gosta de garotas que gostam de garotos, como ele. E não de outras minas, que nem eu.
_Ah. Por favor! – me zombou – Vocês não desgrudam desde que eram pivetes!
 
Cê também não desgruda do pai dele, não é?, o encarei, achando graça, tão sempre aí fazendo churrasco, vendo futebol junto e nem por isso eu tô aqui fazendo planos pro casamento de vocês. A piada já era antiga entre as nossas famílias. Todo mundo sempre achou que íamos acabar nos casando. E apesar de ser o maior sonho do meu pai, na esperança de que alguém me salvasse da sapatonice, provavelmente era o pior pesadelo do pai do Fer.
 
Os dois se conheciam através dum primo do meu velho – que eu mesma nunca conheci. Meus pais ajudaram a família o Fer a se instalar na cidade quando eles se mudaram para São Paulo, quando o Fer tinha 9 anos, e desde então ficou todo mundo muito amigo. Dois anos depois, ele passou a estudar na mesma escola que eu, aí nos tornamos inseparáveis. E terríveis. A gente andava pra todo lado junto quando era adolescente e, dada a proximidade das nossas famílias, toda vez que aprontávamos a gente tomava bronca duas vezes. Era um saco. 
 
_Eu nunca vejo ele com outra garota – meu pai retomou – Tá sempre aí, com a minha filha linda, é ou não é?
_Nossa, pai... – balancei a cabeça, com uma careta de quem acabou de ouvir a maior besteira do mundo – Que absurdo. O Fer tá sempre com alguém, meu, inclusive tá namorando agora.
_E quando vocês casam? – sorriu, com uma certa ironia.
_Não comigo... O nome dela é Mia.
_Mia? – ele colocou mais uma garfada na boca, falando de boca cheia – Sou mais a minha filha.
_Céus...
_Mas essa tal de Mia aí, é boa gente? Você gosta dela?
 
Eita, quem te contou?, me diverti em pensamento. Era estranho ter que explicar quem era a Mia para o meu pai. Deixa eu ver, pensei, como posso resumir? Gosto, pai, gosto mais do que deveria, muito mais, passo o dia inteiro pensando nela obsessivamente, é uma pena que o Fer chegou primeiro e, sim, estou apaixonada, perdidamente apaixonada, a gente até já se pegou uma vez e agora não estamos nos falando direito, mas sabe como é, né pai, coisa de amiga.
 
_Ah... – disse, por fim, evitando qualquer resposta sincera – Ela é boa gente, sim. Sei lá, normal.
_Sei.
_Nada demais.
_Eu sabia! – ele riu – Sabia! Me diz se isso não é ciúmes do Fernando? Tá na sua cara!
_Pois é, pai, pois é...
 
Concordei, rindo, a fim de não prolongar o assunto. E aí voltei a encarar a comida no meu prato, ciente até demais de quem eu realmente tinha ciúmes, involuntariamente pensando de novo na Mia. Droga.

janeiro 25, 2010

Banheiro

_Você não devia ter bebido tanto... – a Mia sussurrou, agachada na minha frente.
 
Eu ri brevemente, da minha própria desgraça, exausta demais para conversar. Ela passou a mão no meu rosto e tirou meu cabelo da frente dos meus olhos. Eu fiquei em silêncio, destruída pela minha falta de energia. A minha cabeça doía ainda mais depois de tanto vomitar e eu sentia como se todo o sangue do meu corpo tivesse se esvaziado. Ressaca da porra. A Mia me observava, com um quê de pena.
 
_Me desculpa... – ela disse, pegando na minha mão – ...eu sinto como se parte disso fosse culpa minha. Não sei, e-eu só... Não queria que você pensasse q-que eu faço essas coisas de propósito. Eu n-não queria te machucar, é que...
_Não é culpa sua – a cortei, sem paciência.
 
Aquilo me provocou um desconforto horrível. Eu odiava me sentir frágil, vitimizada. Quis me levantar, a fim de mostrar que já estava melhor e que não precisava mais da sua ajuda, mas ainda me sentia mal. Continuei ali no chão. Exausta. Olhei para a Mia e ela ainda me observava, preocupada.
 
_Talvez fosse melhor você tomar um banho...
 
Ela sugeriu – e imediatamente me veio à cabeça uma resposta indecente. Nem nos meus sonhos, comecei a rir de mim mesma. A Mia notou, facilmente se dando conta das minhas segundas intenções, e forçou uma cara de indignação.
 
_Eu não vou te ajudar... – ela disse, levantando a sobrancelha – ...nem adianta tentar.
_Eu não disse nada... – retruquei, sorrindo.
_Mas pensou.
_Ah, acredite, eu já pensei coisa pior...
 
Ela começou a rir e eu cobri o rosto com uma das mãos, envergonhada. Então a Mia projetou o corpo para frente, com as mãos apoiadas no chão, e me deu um beijo demorado na bochecha. Olhei para ela e pisquei, fazendo graça. Ela balançou a cabeça, sorrindo:
 
_Você não presta...
 
E eu concordei, rindo.

Café-da-manhã

Observava as rosquinhas cor-de-mel afundadas no leite. O conjunto me parecia algo semelhante a vômito. Colocava algumas rodelas ensopadas na colher e logo despejava-as de volta ao prato. Que asco, eu pensava, enojada. O Fer tagarelava empolgado, comentando os acontecimentos da festa na noite anterior, enquanto eu o ignorava e expressava fisicamente a minha repulsa pelo cereal disposto na minha frente.
 
_Mano... – ele reclamou, interrompendo o assunto e rindo, indignado – Só come logo!
_Não quero comer isso.
_Você tem que comer alguma coisa, meu, senão vai ficar zoada o resto do dia inteiro...
 
Que se dane. Eu aguento, me convenci mentalmente, é melhor do que engolir isso. Argh. O domingo já estava quase no fim, mas a minha ressaca estava realmente trash. Tá. Talvez eu não aguente. Minha cabeça parecia prestes a explodir. Sentia meu corpo inteiro contorcendo-se internamente, meus olhos estavam inchados, meus braços doloridos e qualquer ruído mínimo na cozinha despertava a pior dor de cabeça do século. A culpa era toda minha, do Jameson e da vodca de 4,99.
 
E da Mia, claro, que estava sentada na sala. Me ignorando.
 
Respirei fundo e enfiei aquela gosma nojenta para dentro da boca. Mastiguei a papa mole cor-de-vômito-com-mel e engoli, o que me causou uma careta involuntária. Credo. O Fer resmungava qualquer coisa sobre como eu era “exagerada” e ria da minha desgraça. Contra a minha vontade, forcei mais uma colherada goela abaixo e senti cada pedacinho de rosquinha mastigada e diluída em leite sendo digerido pelo meu estômago, em meio aos litros e mais litros de porcarias alcoólicas que eu havia ingerido na noite anterior.
 
Merda, vou vomitar.
 
Saí correndo na mesma hora, em direção ao banheiro, e coloquei a cara na privada. O Fer entrou, assustado, logo em seguida:
 
_Cê tá bem?
_Tô! Cai fora! – reclamei, engasgada, e logo tornei a vomitar.
_Puta que pariu... Não devia ter feito você comer, mas que merda. Desculpa! – o Fer se desesperou – E-eu... eu vou chamar a Mia, meu, aguenta aí!
 
Não. Isso não. O Fer saiu correndo e senti que ia vomitar mais uma vez, sem conseguir evitar que ele a chamasse, porcaria. Ele não conseguia ficar perto de outras pessoas vomitando sem sentir ânsia também – o que frequentemente era o caso nas nossas festas. Pouco tempo depois, ouvi a porta se fechando. A Mia ajoelhou ao meu lado e segurou o meu cabelo para cima. Senti a mão dela molhando a minha nuca. E aquilo ajudou. Logo quando eu achava que ia ficar bem, a ânsia voltou e começou tudo de novo. Os meus olhos lacrimejavam. E eu me contorcia violentamente, a cada episódio, durante uns 10 minutos seguidos. Sexy, né.
 
Tudo aquilo me deixou exausta. Encostei na parede do banheiro, sentada no chão, e a Mia me deu um pano molhado. Limpei o rosto e deixei as mãos caírem sobre as minhas pernas. Me sentia fraca.

janeiro 24, 2010

8:14

Quase peguei no sono.
 
Não. Não posso dormir, pensei, tentando me manter acordada com certa dificuldade. Preciso tirar ela daqui antes. Olhei para o meu lado e a Aninha dormia, debruçada no meu travesseiro, com o rosto virado para a parede. Suas costas eram repletas de pintinhas – e eu até que gostava. Hum. Estiquei-me na beirada da cama, alcancei o meu maço no bolso de uma calça e acendi um cigarro. Minha embriaguez havia sido substituída por uma enxaqueca arrasadora. Caralho. Ainda não havia atingido o estado completo de ressaca, contudo; sentia meu corpo tremer e suar frio. Sabia que permaneceria ligeiramente bêbada até finalmente dormir.
 
Levantei, coloquei a primeira blusa que vi e vesti a boxer de novo. Estava me sentindo realmente mal fisicamente. Curvei-me sobre a cama, acordando a Aninha gentilmente e pedindo que fosse embora. Ela abriu os olhos e acenou, sonolenta. Caminhei descalça pelo quarto, fumando; a minha cabeça doía. Não tinha memória do que acontecera nas últimas horas – só um sentimento confuso. Talvez tenha dormido e transado algumas vezes, não sei. O meu corpo doía. Olhei o relógio na mesa e não consegui registrar direito as horas. Inferno.
 
Minutos depois, a Aninha se aproximou já vestida e me beijou no rosto. Depois saiu pela porta. Fiquei sozinha no quarto. Dei uma última tragada e joguei o cigarro pela janela. Aí voltei para a cama.
 
Que lixo.

A Festa 5

Atravessei o corredor empurrando e desviando dum grande número de pessoas, que se amontoavam pelos cantos do meu apartamento. Bando de inconvenientes. Estava puta. Não sei se a culpa era da quantidade absurda de álcool nas minhas veias ou se era só a frustração por ter estragado a minha chance com a Mia sem nem saber como, mas, de um jeito ou de outro, eu estava realmente irritada e a festa, de repente, se tornou insuportável.
 
Almejei com todas as minhas forças que todo mundo fosse magicamente embora e me deixasse sozinha. No entanto, a cada passo que eu dava, eu trombava com algum exemplo completamente bêbado de que o meu desejo não havia sido atendido. Ainda eram 3 da manhã e eu sabia que ninguém ia deixar a droga daquela festa até a dali, pelo menos, uma ou duas horas. Maldição. Me dirigi até a sala, mas logo percebi que aquele era o cômodo mais lotado da casa toda e eu não queria ficar ali. Então, voltei e me espremi até a cozinha. Com bastante dificuldade
 
Sentei em cima da pia, rodeada de amigos e desconhecidos, torcendo mentalmente para que ninguém viesse me encher o saco. O primeiro babaca que falar comigo, morre, jurei a mim mesma. Mas, pelo bem da minha ficha criminal, quem apareceu foi o Gui – e eu não estava disposta a matá-lo. Afinal, , era um dos meus melhores amigos. Completamente desavisado, ele se aproximou do ser rabugento e antissocial que eu era naquele momento, me zombando:
 
_E aí, já recuperou o bom senso?
_Não quero falar sobre isso – o cortei.
 
E sem paciência, peguei o copo de uma bebida não-identificada qualquer que estava na sua mão e empurrei tudo garganta abaixo, de uma só vez.
 
_Nossa! O que foi? – ele riu – Tomou um fora, é?
_Não.
_Hum, e tá bravinha por que então? – ele riu ainda mais – Um pouco de humildade faz bem, viu, ô...
_Já disse que não foi isso, porra.
_Ah, então você quer me convencer de que deu certo seu plano e você conseguiu tudo o que queria?
 
Não tudo.
 
_Hein?! – o Gui levantou a sobrancelha, me provocando, e aquilo agravou ainda mais a minha impaciência.
_Consegui, Guilherme. Consegui até mais do que eu queria.
_Ui... Cuidado para não morrer de tanta felicidade, hein? – achou graça.
_Vai se foder!
 
Levantei e saí esbarrando no ombro do Gui, irritada, indo em direção ao inferninho que havia se tornado a minha sala. No caminho, descolei uma garrafa quase cheia de vodka barata e resolvi me embebedar ainda mais – o que nunca é uma boa ideia quando o seu estado emocional se encontra rasgado em mil pedaços no meio de uma pilha enorme de lixo. Pelo menos, fui sensata o suficiente para recusar pó no meio do caminho. Isso, sim, teria sido uma péssima ideia naquele momento.
 
Algumas horas ou minutos depois, eu me encontrava jogada no chão da sala, sentada de costas para a parede, quase apagando de tão chapada. Não me recordo bem o que me levou até aquele canto infeliz, mas tenho uma vaga lembrança de ter encontrado a Mia no meio do trajeto. Ela não estava falando comigo, aparentemente. Não que eu quisesse. A única pessoa que estava, naquele momento, era a Aninha.
 
Sabe-se lá como, mas aquela garota me achou no meio de todas aquelas pessoas e agora estava sentada ao meu lado, tagarelando incessantemente e me dando indiretas – bem diretas – de que queria ir pro quarto. Aquilo estava me causando uma séria dor de cabeça.
 
Ou talvez fosse a vodca de R$ 4,99.
 
Não sei ao certo.
 
Vencida pela exaustão e pela minha incapacidade completa de raciocinar, concordei em ir "conversar" num lugar mais reservado com a Aninha. Eu vou me arrepender disso, lamentei enquanto me levantava, me apoiando na parede. Minha ex-semi-fixa-sei-lá-o-que-ela-era me olhava empolgada, alheia à minha cara de poucos amigos e satisfeita com a sua pequena vitória. Achando que ia se dar bem. Mal consigo ficar em pé e a garota realmente espera que eu coma ela nesse estado, pensei. E comecei a rir sozinha. Ela deve estar pior do que eu.

janeiro 23, 2010

A Festa 4

_N-não – a Mia disse, de repente, me empurrando para trás – Para. Para!
 
E eu parei, na mesma hora. Olhei para ela, enquanto a gente recuperava o fôlego. E por um momento, me ocorreu que a culpa talvez fosse minha. Ultrapassei algum limite, me angustiei, arrependida de não ter me contido um pouco mais. A Mia ajeitou o cabelo e eu o meu, no escuro, ambas em silêncio. O que aconteceu?, eu a observava a menos de um passo dos seus pés, uma distância pequena, enquanto a Mia olhava para baixo. As nossas roupas ainda estavam bagunçadas e nossos corpos confusos, ofegantes.
 
Uns segundos depois, ela ergueu os olhos para mim, cochichando:
 
_Por que você tá fazendo isso comigo?
_Eu?! – respondi, meio rindo.
 
E ela ficou quieta. Tinha os olhos marejados. Parecia hesitar, de repente, como se tivesse recuperado a consciência, caído em si. Abaixou o olhar mais uma vez para o chão. Não faz isso, garota, me aproximei e toquei o seu braço levemente com a mão. Meu deus, não se perde de mim. Não agora. Ela ergueu a cabeça e me encarou, receosa. Por favor, a olhei, com medo de que ela fosse se afastar de vez e aquilo não passasse de um sonho que mal começou. Mas, no instante seguinte, ela me beijou. Colocou as mãos em volta de mim, me abraçando, e me beijou.
 
Demoradamente.
 
Porra. Aquilo ia acabar comigo. Com a pouca sanidade que o whisky deixou para trás. A Mia apertou o corpo dela contra o meu e nós voltamos a nos pegar, desta vez ainda mais forte. Encostei-a de novo contra a parede e ela me agarrou pela camiseta, mordeu a minha boca, nuns beijos tão intensos que, puta que pariu. Colocou a mão por baixo do tecido, subindo pela minha cintura, e eu senti todo o álcool correr nas minhas veias, meio inconsequente. Então, sem tirar a boca da sua, abaixei os braços e fui deslizando as mãos pelas suas pernas, levantando o seu vestido, pouco a pouco, sentindo as suas coxas entre os meus dedos e imaginando cada centímetro que tocavam.
 
Nisso, de repente, a Mia me segurou. E tornou a me afastar.
 
_Porra... – encostei na parede oposta do banheiro, meio sem fôlego, rindo – Isso é tortura, meu.
 
As suas pernas ainda estavam descobertas e o vestido erguido até a calcinha, acima dumas tatuagens old school que a Mia tinha nas coxas. A meia-luz do banheiro a deixava ainda mais bonita, puta merda. Ela me olhava de volta, atentamente, como se não soubesse bem o que dizer, fazer.
 
_Sabe... V-você, você vai... – eu sorri, ofegante – ... me matar do coração assim. Não é justo, garota.
_O que você quer de mim? – retrucou.
 
Como se eu a tivesse ofendido. E o sorriso logo sumiu do meu rosto – espera, achei que a gente estava fazendo juntas, a olhei de volta, confusa. Não?
 
_Como assim?
_Cê quer que eu seja justa? Isso que a gente tá fazendo não é "justo" – pareceu se afligir com a ideia, do nada, bêbada – Nada disso é certo. Comigo, com você, com o Fê! – se angustiou – Eu sou uma idiota, e-eu... eu nunca devia ter te falado nada!
_Mia...
_Não sei por que eu fui entrar nesse banheiro, e-eu...
_Espera. Cê tá falando sério?
_Na boa, eu não sei o que você quer de mim.
_Eu não quero nada de você, e-eu só...
_Ótimo – fechou a cara – Então vamos acabar de vez com isso antes que se torne um absurdo ainda maior.
_Do que você tá falando, meu?!
 
Aí ela virou o rosto e não me respondeu mais, encarando o chão.
 
_Mia?
_...
_Mia.
_...
_Tá – resmunguei – Que seja... 
 
E saí do banheiro, já de saco cheio. 

A Festa 3

Tranquei a porta do banheiro atrás de nós e o barulho da festa se tornou abafado. Estava escuro. As luzes do lado de fora passavam por uma frestinha no batente e eu era capaz de ver a Mia encostada em uma das paredes, me olhando atentamente. Caralho, podia sentir o meu coração subindo pela garganta, é agora. As minhas mãos tremiam e ela não tirava os olhos de mim, cacete, suspirei. Estava nervosa, ela também. Ambas conscientes demais do que estava prestes a acontecer.
 
Dei dois passos em sua direção e ela hesitou:
 
_S-só porque eu te falei aquilo, n-não quer dizer que...
 
E então me aproximei do seu corpo, a interrompendo, até a minha testa encostar suavemente na sua.
 
_É só você me pedir, Mia... – sussurrei, fechando os olhos – ...que eu paro.
 
Podia sentir a sua respiração, a milímetros de distância de mim. Toquei o seu braço sutilmente, deslizando os dedos sobre a sua pele. E senti a minha ansiedade ir sumindo, aos poucos. Todas as dúvidas e as nossas conversas e as brigas e a Clara e a festa, de repente, sumiram. Abri os meus olhos e os dela me olhavam de volta, atentos, aqueles olhos castanhos grandes. Maravilhosos. Estava tão perto, que bastou um movimento na sua direção.
 
E a beijei contra a parede.
 
Puta que pariu. Aquele, sim, era um beijo bem diferente do nosso primeiro. Era finalmente o beijo com o qual eu havia sonhado um milhão de vezes. Caralho. Perdi a cabeça. A sua língua encostou na minha e senti o meu corpo inteiro estremecer por dentro, numa vontade de beijá-la ainda mais – mais e mais – até a festa acabar lá fora. Meu deus. Essa boca, essa garota. As mãos da Mia, todavia, não se moviam, coladas contra os ladrilhos o tempo todo em que a sua boca estava na minha. Nossos lábios se encaixavam, como se fosse natural, não sei, como se aquela fosse a única boca que eu já tivesse beijado. E a minha vontade era de me perder ali, nela, mas eu sabia que tinha que ir com calma.  
 
Então, dei um passo para trás. Recuperando o fôlego a cabeça os batimentos cardíacos a porra da sanidade. Puta merda. A Mia também se desgrudou da parede e tirou a franja do rosto, a segurando em cima da cabeça por um instante. “Caralho”, sussurrou. E nos contemplamos por um breve momento. Ela mordeu a boca, de leve, como se processasse o que tinha acabado de acontecer, sem desviar o olhar de mim. Em que merda estamos nos metendo, garota?, senti meu estômago congelar, como se estivesse prestes a pular do precipício. E foi quando a Mia deixou escapar um sorriso breve, no canto da boca.
 
Me movi imediatamente em sua direção e coloquei meu braço ao redor da sua cintura, a puxando para mim. A pressionei contra a parede e a Mia segurou o meu rosto com ambas as mãos, me beijando de volta com vontade. E aí, sim, os beijos de verdade começaram.
 
Que se foda o autocontrole.
 
Desci as mãos pelo seu corpo, afundando os dedos na sua pele, cada vez mais contra a minha. Ela me segurava pela nuca, entrelaçando os dedos no meu cabelo e me trazendo para perto dela. Nuns amassos, assim, de foder a cabeça. Meu deus. Acho que nunca segurei uma mulher com tanta vontade.

janeiro 22, 2010

A Festa 2

Horas depois e a festa estava sendo um sucesso – no sentido mais depreciativo e imoral da palavra. Toda alma paulistana que não estivesse bebendo, conversando, fodendo ou dançando no nosso apartamento naquele sábado à noite estava, com certeza, arrependida. E todos os meus adoráveis vizinhos encontravam-se declaradamente furiosos. Foda-se. Eu estava me divertindo, por fim, e a multa certamente não ultrapassaria o limite do impagável. Eu e o Fernando já tínhamos praticamente um fundo mensal reservado só para as advertências do prédio.
 
As duas doses iniciais de tequilas passaram por mim quase despercebidas e o rum não fez nem cócegas. Foi só quando eu cheguei no whisky que a minha cabeça começou a me enviar sinais reais – e latejantes – de que eu ia ficar muito louca. Não era minha culpa: algum santo trouxe Jameson para a festa e eu simplesmente não podia resistir àquela garrafinha verde. God bless the irish.
 
Sentamos, eu e o meu irlandês, num canto espremido do sofá. Ao meu lado, estava o fabuloso Gui e mais umas dez pessoas amontoadas. Lá fiquei por um tempo, entre um gole e outro, ouvindo meu amigo incalável discursar sobre a noite em que o deixei sozinho no Vegas e as suas peripécias sexuais com o DJ misterioso. Tudo me soava extremamente exagerado e fora de proporção, mas assim era o Guilherme.
 
_...ai, enfim, tô apaixonado.
_Ah, jura? – eu levantei a sobrancelha e comecei a rir.
 
O Gui era um romântico incurável com um problema de foco. E de fidelidade – diga-se de passagem. Então raramente tinha seu coração partido, era sempre o primeiro do casal a cair de amores por um outro cara qualquer e seguir a sua nova “paixão verdadeira” até a cama. Os seus sentimentos o mantinham entretido e os seus pobres exs acabavam sozinhos, sempre um passo atrás dele.
 
No auge dos meus 20 e poucos, eu poderia facilmente me identificar com o Gui. Exceto pela parte de me apaixonar tão efusivamente – desde que me conheço por gente, eu insisto em reservar o meu coração para raras e muito mal escolhidas ocasiões. Sendo assim, lances como o que rolou entre mim e a Clara eram muito mais comuns na situação inversa. E isso evidentemente divertia o Gui:
 
_Agora você saaaaabe como toda a sua hortinha se seeeente quando você resolve ir regar outra florziiiiinha mais interessante... – ele debochava, quase cantarolando.
_Ela não era mais interessante!
_Ui. Alguém está bravinha...
_Não tô nada! – contestei, já consideravelmente bêbada, levantando o indicador na direção do Gui – E a Clara é uma idiota. Todas elas são – eu esbravejava, amarga, falando besteira – Não tem nada que preste em porra de horta nenhuma nessa cidade e eu já tô de saco cheio de comer sempre a, a mesma...
_Planta?
_É.
 
O Gui se divertia com o meu azedume alcoolizado. Eu estava completamente fora do ar.
 
_E o que você vai fazer então? Passar fome? – me zombou.
_Ah, não mesmo...
 
Respondi, olhando fixamente para a Mia. Ela conversava em pé a alguns metros do sofá, absolutamente maravilhosa. O Gui olhou na direção dela e depois para mim, indignado, rapidamente dando-se conta das minhas intenções.
 
_Cê não pode realmente tá pensando nisso!
_Ah, se tô...
_Cê tá muito louca, bicha – o Gui questionou, ao perceber o que se passava pela minha cabeça – CÊ PERDEU O JUÍZO?!
_Não, não perdi... Aí que cê se engana! – argumentei, completamente embriagada e afundada no sofá – As coisas finalmente começaram a se encaixar, gato... Tudo o que eu sentia por ela, toda aquela confusão, de repente faz sentido.
_Mas isso é... v-você não... você... v-você olha lá o que vai fazer, meu, presta bem atenção, porque...
_Não quero nem saber – prossegui, bebendo mais um pouco do whisky já quase esquecido na minha mão, e olhei para o Gui, confiante no que estava dizendo – Hoje, ela é minha.
_Amada! – ele se revoltou e riu, como se eu estivesse prestes a cometer algum tipo de loucura – Essa é justamente a questão: ela NÃO é sua. E VOCÊ SABE, PORRA! Me escuta, cê não pode fazer isso...
_Ah, mas eu vou... – garanti, sem tirar os olhos da Mia, e me levantei do sofá.
_Pelo amor de deus, senta!
 
Ignorei-o. Aquela conversa havia deixado muito claro para mim o que precisava ser feito – o exato oposto do que o Gui aconselhou. Não ouvi nada do que o meu amigo sensato disse e concluí deliberadamente que devia fazer o que me desse na telha. Estava decidida a botar o meu plano em prática. Então, sem pensar duas vezes, andei em direção à Mia, como se não tivesse tomado nem uma gota de álcool – segura do que estava prestes a fazer. Me aproximei por trás dela e coloquei a mão na sua cintura.
 
_Vem comigo – pedi em segredo, a pegando pela mão.
 
E ela me seguiu.

janeiro 21, 2010

A Festa 1

“Laaast niiiiiight, she saaaaid… 
Ohh, baby, don’t feel so dooown!”
 
Os gritos do Casablancas no rádio atravessavam a porta e o meu quarto inteiro, enquanto eu corria enlouquecida de um lado ao outro. Todos os meus amigos indiscretos e barulhentos anunciavam aos berros a sua chegada ao meu apartamento – um por um – e eu ainda não havia colocado uma maldita roupa.
 
Todo o meu plano de “tô nem aí pro que vou vestir” havia ido por água abaixo graças à recente confissão da Mia. Ainda não havia processado toda aquela informação a mim sussurrada, mas estava explodindo de felicidade e medo e ansiedade e nervosismo e alegria e impaciência e... enfim. Estava surtando. O Fer batia na porta de cinco em cinco minutos, avisando que a festa estava começando sem mim – como se não fosse possível ouvi-los a cinco quadras dali – e eu garantia repetidamente que já estava saindo.
 
Inferno, inferno, inferno. Provavelmente ele estava pensando que a minha demora era alguma forma de sabotagem – mas não era. Não desta vez. O fato é que eu continuava seminua e mergulhada no meu armário, sem saber o que vestir. Naquele estado catatônico que se fica quando se está ansiosa demais para pensar. Diabos. Após incontáveis surtos e quase duas horas depois, eu estava finalmente pronta. E a minha saída do quarto aumentou ainda mais o volume no qual as pessoas falavam naquela festa.
 
Aquilo era o caos absoluto – no melhor sentido possível.
 
Percorri o nosso modesto apartamento por pelo menos uns 20 minutos, tropeçando pelas latinhas vazias que já se acumulavam no chão, até conseguir cumprimentar quase todo mundo. Debaixo duma marofa desgraçada e com os ouvidos estourando de tão alta que estava a porra da música. Meu deus. Encontrei a Mia somente algum tempo depois, em meio à confusão na cozinha, conversando com um amigo do Fer. Tentei chegar perto assim que a avistei, mas fui interrompida por 1.57m de águas passadas bloqueando o meu caminho. Era a Aninha. E toda a sua empolgação em me ver novamente – quem foi o imbecil que convidou ela?
 
Eu vou matar o Fernando.
 
_Nossa, parece que não nos vemos há anos... Você sumiu! – ela se jogava na minha direção, mentindo descaradamente, já que foi ela quem desapareceu para voltar com a ex um ano antes.
_Pois é... – respondi, sem tirar os olhos da Mia e tentando escapar dali.
_E você não vai me cumprimentar, não?
 
Voltei meus olhos para ela e a vi ali, flertando, parada na minha frente à espera de alguma atitude minha. Mas que saco. Suspirei, sem paciência, e dei-lhe um beijo amigável no rosto. Queria sair o quanto antes da sua vista e do alcance das suas mãos. Assim que desgrudei do seu rosto, ela me olhou desapontada e eu a ignorei, desviando dela para seguir o meu caminho.
 
_Olha... – ela me puxou pela mão, sugestiva, e eu me virei novamente em sua direção – Se você quiser, mais tarde talvez a gente podia...
_Claro – respondi, indiferente, interrompendo-a.
 
Tornei a olhar para onde a Mia estava, mas ela já havia deixado o amigo do Fer sozinho. Comecei a xingar a droga da Ana Luiza na minha cabeça e, bem, todo o resto do mundo. Caralho. Então me dirigi à geladeira. Uma dose de tequila era a minha segunda melhor opção ali, calculei, uma vez que a primeira havia passado pela porta atrás de mim sem que eu sequer percebesse.

janeiro 19, 2010

Como é?

De repente, todas as palavras sumiram da minha boca.
 
Fiquei olhando para a Mia, sem reação, enquanto minha cabeça ia a mil. Cacete. E antes que eu conseguisse formular qualquer resposta, o Fer a chamou novamente, já irritado. Foi tudo muito rápido – ela olhou para o corredor e depois para mim, mas eu ainda não conseguia me mover, incapaz de reagir, atordoada pela minha própria confusão emocional. “D-desculpa”, ela murmurou então e depois saiu, às pressas. Pude ouvi-la deixando o apartamento com ele e em seguida veio o silêncio. Deitei o corpo novamente no colchão e passei as mãos no rosto.
 
Meu deus, suspirei.

janeiro 18, 2010

Segredos cochichados

Contra a minha vontade, o sábado chegou. Podia ouvir meu estimado colega de apartamento arrastando móveis de uma ponta a outra da nossa humilde residência. Aquilo me irritava, claro, já que eu andava bancando a intratável.
 
Permaneci a manhã toda enfurnada no meu quarto, deitada de barriga para cima na cama por tempo suficiente para ser capaz de listar cada rachadura mínima existente na minha parede. Estava me comportando como um vegetal na fossa amorosa. Era patético. A ideia da festa até que estava começando a me agradar, mas meu orgulho me impedia de mover um músculo sequer para ajudar nos preparativos.
 
Insistentemente, o Fer ia e vinha no meu quarto, na tentativa de me fazer levantar.
 
_Não, tô bem aqui – respondia – Tô pensando no que vou usar à noite.
 
Mentira. A verdade é que eu não estava nem aí para o que ia vestir na festa. Eu até queria me divertir – coisa que não fazia há dias –, só não queria ter que admitir isso para o Fer. Então continuava ali, toda ridícula, deitada. E foi quando a Mia abriu a porta.
 
Do nada, após uma breve batida, receosa, como se esperasse me encontrar dormindo. Olhei para ela e aí ela disse que “o Fê falou pra avisar” que eles estavam indo no supermercado comprar algumas coisas para a festa – o que soou como um telefone sem fio desnecessário. Acenei sem prestar muita atenção, murmurando qualquer coisa, e voltei a encostar a cabeça no colchão.
 
Só que... espera.
 
Não ouvi a porta batendo. Então subi novamente o olhar e a Mia continuava lá, apoiada no batente, me observando. Estranhei.
 
_E-eu preciso... – ela falou, baixinho – ...te d-dizer uma coisa.
 
Logo em seguida, ouvi o Fer chamando da entrada do apartamento, a acelerando para saírem logo. A Mia gritou de volta, pedindo que esperasse, disse que já estava indo. Ele respondeu qualquer coisa – que não consegui identificar – e ela se virou de novo na minha direção. Hesitando por um momento. E me olhando fixamente, como se quisesse me contar um segredo.
 
_E-eu... – respirou fundo – ...t-também menti para você.
_Como assim?
_Sobre o, o beijo... – ela murmurou e eu levantei um pouco o corpo, me apoiando nos cotovelos, procurando entender o que ela estava querendo me dizer – ...e-eu... – suspirou – ...eu quis que você me beijasse.

Ah não, festa

E como se não pudesse ficar pior, a minha sexta-feira foi estranha. Não ruim em si, como foram todos os outros dias, mas... estranha. Não sei. A noite caiu quente e tediosa depois que voltei do trabalho. E o Fer veio interromper uma tentativa quase suicida de me afogar em rum na cozinha, plantada em pé ao lado da geladeira, para fazer um anúncio.
 
Vejam bem: não foi uma proposta, foi um anúncio.
 
_Vamos dar uma festa aqui amanhã.
 
Quase engasguei. Ah, mas não mesmo, me amargurei. Olhei-o com desprezo, indignada, confiante de que minha expressão facial transmitiria minha absoluta desaprovação pela ideia. Mas ele começou a rir. E no mesmo instante, a Mia entrou na cozinha e parou ao seu lado, pondo-se a ouvir a nossa conversa.
 
_Não adianta fazer essa cara, ô Pequeno Raio de Sol, já chamei todo mundo... – ele fez graça – Vamos dar a festa, sim. Afinal de contas, é por uma boa causa...
_Ah, é? Qual?! Acabar com o nosso dinheiro?
_Não – riu – Acabar com a sua agonia.
 
Em outras palavras, me forçar ao entretenimento. Inferno. Eu não queria me divertir. Nem a pau, estava conformada na minha infelicidade momentânea. Por que ele não pode só aceitar isso? Fora que eu não estava com vontade alguma de ver... argh... outras pessoas. Que merda. Me voltei para a Mia em busca de qualquer ajuda, mas ela olhava para o Fer com um leve sorriso no rosto.
 
Você também tá metida nessa, aposto.
 
_Vocês dois estão tramando contra mim – reclamei – Eu não quero festa nenhuma, só quero que me deixem em paz.
_Olha, você pode até não querer, mas não tem muita escolha. Você vai ter que se animar e vai ter que ser até amanhã à noite ou sérias providências serão tomadas... – o inconveniente do meu amigo riu novamente – Porque morar com você desse jeito é impossível.
_Deus do céu... Mas essa é a sua solução?? – indaguei – Você n-não podia simplesmente... sei lá... t-ter me arranjado... tipo... Valium?
_Não, senhora. Contente-se com a sua festa.
 
Não, obrigada.
 
Revirei os olhos. E uma vez dado o recado, o Fer deixou a cozinha, provavelmente sorrindo de satisfação e indo para o quarto. Mas a Mia ficou. Esperei por alguns segundos, certa de que ela sairia atrás dele, só que ela não se moveu – e foi aí que ficou estranho. Voltei meus olhos na direção dos seus, sem entender o que ela ainda estava fazendo ali. E nada. Ficou parada, me olhando, enquanto mexia numa pequena mecha do seu cabelo. Parecia nervosa, como se quisesse me dizer algo.
 
_Cê tá bem? – perguntei, baixinho.
 
A Mia não respondeu, apenas olhou para o chão por um instante e depois voltou a me encarar. Ficamos assim, em silêncio. Havia uma tensão no ar que parecia prolongar o tempo. Às vezes, ela chegava até a abrir a boca, como se estivesse prestes a falar, mas logo desistia e não dizia nada. Eu não estava entendendo o que ela queria comigo, não estava entendendo nada. E comecei a ficar impaciente.
 
_Cê quer me dizer alguma coisa? – perguntei, dando mais um gole do rum – Que foi, meu?
_Nada... – respondeu, irritada.
 
E saiu. Simplesmente se virou e saiu da cozinha, frustrada, como se nada tivesse acontecido. Aquilo me deixou louca. Era só o que me faltava.

Desagradável, sempre

“Pq vc ñ me responde, gata?”.
 
Fiquei olhando para a sua mensagem, minutos a fio. Não queria mais a Clara na minha vida. E então não respondia – não queria ter que lidar com aquilo, com ela, cacete, nada. Só desaparece, por favor. Mas quando reabri os olhos, as suas palavras continuavam na minha frente, me incomodando. Argh.
 
A Clara vinha tentando falar comigo a semana toda, inadvertidamente, e eu fui ignorando. Por pura falta de respeito – tinha perdido o meu por ela. Não quero. Não quero mais saber. E parte de mim talvez esperasse que ela fosse se cansar e simplesmente parar de me ligar. Eu não queria começar uma briga, me desgastar, me irritar de novo. Não por ela. Só que ela desistisse. Mas não te dei motivo, né?, raciocinei, me dando conta de que aquela situação não ia sumir sozinha. E após quase uma hora de hesitação, decidi enfrentar o que há várias madrugadas eu procurava evitar:

“Fui no vegas quarta passada e te vi la, fazendo sua 'faxina'", digitei, "perdi o interesse”.
 
É. Não via motivo para me estender. Só a ideia de conversar com a Clara já me angustiava – no fundo, acho, porque não queria enfrentar o quanto eu realmente gostava dela. E eu sabia que a minha grosseria talvez a fizesse lotar minha caixa de entrada com justificativas, mas eu não ligava mais. Deleto tudo amanhã de manhã, decidi, com pressa de a cortar da minha vida. Não tinha paciência de processar porra nenhuma, não ia fazer qualquer esforço, a Clara tinha perdido esse direito. Então desliguei o som do celular e afundei a cabeça no travesseiro, me virando para dormir. Chega.
 
Na manhã seguinte, todavia, o incômodo ainda continuava lá. Dentro de mim. Argh. Levantei atrasada e amarga. Era quinta-feira – o que me soava como uma grande merda. Coloquei qualquer regata no corpo, subi meu jeans surrado pelas pernas e saí do quarto. O mau-humor em pessoa. Por mais que eu me forçasse a não me importar com aquele rolo todo e com a Clara, ela continuava na minha cabeça. Me machucando. Inferno, eu gostava mesmo de você, garota. Mas engolia em silêncio, me sentindo mais sozinha do que era capaz de admitir.
 
A minha angústia já se arrastava por dias. Desde quando a vi na balada, eu vinha tornando minha infelicidade grosseiramente perceptível a todos que ousavam falar comigo ou sequer cruzar o meu caminho. Pois é. Eu estava insuportável.
 
Assim que coloquei meus pés no piso frio da cozinha, naquela manhã, dei de cara com a Mia e o Fer sentados à mesa, aproveitando todo o resto do cereal que eu pretendia comer. Desgraçados. Amaldiçoei-os mentalmente, emburrada, e agarrei a caixa de um cereal-não-tão-gostoso que havia sobrado na prateleira. Me sentei para comer dum jeito meio rude, deixando bem claro que a miséria a qual meu café da manhã havia sido reduzido era culpa deles e não me agradava nem um pouco. Os dois me olharam resmungar, sem entender muito.
 
Havia certa pena na forma como o Fer andava me observando nos últimos dias, mas ele nem tentava mais me animar. Eu estava intragável. E azeda. A presença da Mia, por outro lado, me distraía indesejavelmente e aí a minha raiva era substituída por um desconforto imenso. Vê-la era pior do que o meu aborrecimento constante naquela semana. Era horrível. Ela sabia que eu gostava dela há dias e, desde então, não disse mais nada na minha direção – num silêncio bizarro que nunca existiu entre nós. Eu me sentia duplamente idiota.
 
Autopreservação de cu é rola, né? Pra quê fui falar?!
 
O café da manhã foi interminável. Eu olhava para a Mia e ela fingia não me ver, então voltava a encarar o meu prato, aí o Fer me observava, piedoso, eu percebia e ele desviava o olhar rapidamente, eu olhava para ele e depois para a Mia, ah... Mia. Mia, Mia, Mia, eu a admirava por um tempo até que ela, enfim, me olhava de volta, aí eu forçava um sorriso discreto e desajeitado e ela imediatamente procurava outra coisa para olhar, droga. Aquilo era ridículo. Parecia uma dança silenciosa, fadada ao desastre.

janeiro 16, 2010

Fora de controle

_SAI DA MINHA FRENTE, CARALHO!
 
Subi a Rua Augusta transpirando ciúmes por todos os meus poros, trombando em todos os tarados e idiotas que ocupavam a calçada. Não conseguia acender um cigarro sequer, estava tão irritada que era capaz de começar uma briga por motivo nenhum. Eu devia ter falado alguma coisa, e-eu... eu devia ter ido até lá e tirado aquela idiota de cima dela, e-eu devia... argh. Inferno. Não conseguia pensar direito, minha cabeça estava cheia e a imagem da Clara se agarrando com outra insistia em voltar à minha mente.
 
Desgraçada.
 
Eu realmente gostava dela. E não conseguia evitar toda aquela angústia, a minha frustração. Vai se foder, mano, eu resmungava mentalmente, me sentindo traída. Como eu sou idiota, uma porra de uma idiota, aqui, que nem uma trouxa acreditando nela, achando que ela realmente estava em casa, que esse tempo todo gostava mesmo de mim. E tá, talvez eu também não tivesse sido exatamente sincera sobre meus sentimentos com a Clara. Ou melhor, até disse a verdade – gostava mesmo dela –, só omiti tudo o que dizia respeito à Mia. E eu sabia o quão hipócrita eu era por detestá-la agora. Mas vê-la com outra garota ali, depois que ela passou meia hora reclamando que tinha que arrumar a casa naquela noite, me tirou do sério.
 
Cheguei de volta ao meu prédio nem meia hora depois de sair, me sentindo uma puta duma burra, num acesso de raiva, batendo a porta do apartamento e chutando uma mochila largada em frente à entrada. O “Casal 20” estava sentado no sofá e testemunhou o meu comportamento infantil e destrutivo. O Fer se levantou na mesma hora, nervoso, perguntando por que diabos eu estava chutando tudo e tentando quebrar a nossa porta. Pelo bem do nosso inevitável convívio, resolvi não responder e atravessei a sala bufando, ignorando a pergunta. Mas aí ele insistiu – e aquilo me irritou ainda mais.
 
_Mano – se indignou – QUE PORRA É ESSA??
_NÃO É DA SUA CONTA, CARALHO!!
_É da minha conta se você vai destruir o nosso apartamento!!
_Quer saber mesmo?? – eu me virei, prestes a me descontrolar – ACABEI DE PEGAR A CLARA PRATICAMENTE DANDO PRA OUTRA MINA NA BALADA! FOI ISSO QUE ACONTECEU!
_E você precisa agir que nem uma criança, meu?! A mina nem era sua namorada!
_FODA-SE! FODA-SE, FERNANDO! NÃO SOU OBRIGADA A GOSTAR!!
_TÁ! MAS TAMBÉM NÃO PRECISA SAIR CHUTANDO TUDO, PORRA!! VAI DESCONTAR NAS MINHAS COISAS AGORA?!?
_AH, VAI SE FODER, MANO!
 
Entrei no meu quarto, enfurecida, batendo a porta ainda mais forte. Andei de um lado pro outro, impaciente. Filha da puta. Não sabia o que fazer comigo mesma – então sentei na cadeira, que ficava embaixo da janela, e procurei me acalmar, acendendo um cigarro. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela – repeti para mim mesma, numa tentativa de evitar um barraco. A Clara não é nada. Nada. Eu não preciso dela. De ninguém. Eu não tenho nada para falar, nada.
 
Dei um trago, nervosa. E soltei a fumaça no ar. Que se foda. É, é isso! Que se foda a Clara! E-eu, eu posso arranjar alguém melhor que ela. Eu não preciso disso. Foda-se. Que se dane! Ela e aquela balada inteira! Que se foda todo mundo! Todavia, por mais que eu tentasse me convencer de que era melhor ter passado por isso agora do que dali alguns meses, mais eu pensava na Clara. E na possibilidade de “meses”.
 
Porra. Por que você foi fazer isso logo agora?
 
A verdade é que eu conseguia perdoar quase qualquer coisa, mesmo que me ferisse o ego, mas não uma mentira tão deslavada assim. Na minha cara. Ah, isso não. Ela podia ter dito que não dava, que não queria, sei lá, que já tinha outros planos. E talvez eu entendesse. Quer dizer, não que eu fosse gostar – porque a porra da lembrança da sua boca em outra ainda me doía, misturada com todas as coisas que dizíamos uma para outra quando estávamos juntas, nos divertindo e nos gostando, cacete –, mas entenderia. Entenderia que eu não era a única nos seus planos.
 
Mas aquilo, não. Daquele jeito, assim, pega de surpresa e feita de trouxa. Isso não, argh. Minha cabeça começava então a repassar todas as vezes em que não estivemos juntas, todas as vezes em que possivelmente ela tivesse mentido para mim, como agora. E eu me sentia um nada. Inferno. Foi quando, de repente, toda a minha confusão mental foi interrompida pela Mia – que bateu sutilmente na porta, pedindo para entrar.
 
_Vim só ver se você tá bem... – ela disse, baixinho.
_Sai! – a cortei, irritada – Não quero falar.
 
E a Mia ficou quieta ali, me olhando. O silêncio dominou todo o quarto. A última coisa que quero fazer é conversar sobre a Clara com você, caralho. E tá – a Mia parecia genuinamente querer ajudar, mas só a ideia de ter uma conversa dessas com ela como se fôssemos “amigas” piorava mil vezes a situação. Então continuei fumando sem olhá-la de volta, encarando o chão. Nem um ruído, nada. Absorvida nos meus pensamentos. Mas que bosta, como fui me meter nessa? Senti o meu coração disparar no meu peito.
 
E então, sem saber bem o porquê, abri a boca:
 
_Eu menti para você.
_Pra mim? – a Mia estranhou – Sobre o quê??
_Sobre o nosso beijo. Eu sei por que eu fiz aquilo.
_A gente n-não devia falar disso a-agora...
 
Se inquietou. E com razão – a porta continuava aberta e o Fer estava logo ali na sala, no fim do corredor.
 
_A verdade é que eu quis te beijar, Mia – as palavras simplesmente escaparam da minha boca – E... e a Clara não significava porra nenhuma pra mim.
_V-você só tá falando isso p-porque tá brava com ela – argumentou, me encarando, confusa.
_Não – a interrompi – Eu gosto de você, porra, e-eu... – continuei, olhando nos seus olhos e a forçando a acreditar em mim – ...gosto mais do que devia gostar, Mia.
 
Ela deu um passo para trás, hesitante – mas não havia mais volta.
 
Ela finalmente sabia.

O que acontece no Vegas...

Combinamos de nos encontrar na porta às 23h e, sem atrasar quase nada, eu apareci. De bermuda, jaqueta jeans e com uma blusa larga do L7 por baixo, aproveitando que ia tocar grunge lá no Vegas. Quando eu me juntava com o Gui era quase uma Parada do Orgulho fora de época – ele andava dando pinta, fabuloso, era alto, com olhos cor-de-mel e o cabelo enroladinho, bem curto, além dum sotaque pernambucano que causava calor entre os boys do teatro com quem ele costumava sair. Ah, é, o Gui era aspirante a ator e também um dos meus maiores confidentes – o mesmo para quem liguei e confessei meu amor pela Mia uns meses antes. E ele apareceu mais gato do que nunca naquela noite.
 
Estava ali para encontrar um novo pretendente, um cara agendado para discotecar no Vegas e que ele me jurou incansavelmente ao telefone que era “lindo de morrer”. Nenhum homem é lindo de morrer, pensei ao entrar na balada, após enfrentar uma pequena fila. Mas ok. A pista estava consideravelmente cheia, isto é, para uma quarta-feira. Em meio do escuro, sob as batidas ensurdecedoras do som, o meu olhar vagou de um lado para o outro à procura do tal DJ misterioso, enquanto o Gui vomitava descrições empolgadas e possivelmente exageradas sobre o cara e como eles se conheceram e como gostavam das mesmas coisas e tudo mais.
 
Mal havíamos passado da porta, no entanto, quando meus olhos se depararam com um rosto familiar em meio à multidão. Um que eu não esperava encontrar ali. E sem conseguir dar um passo a mais, fiquei parada a encarando – num canto junto ao palco, se amassando com uma babaca alternativa de merda, estava a porra da Clara.
 
Filha-da-puta.

Quarta-feira

Por que o meio da semana é sempre o pior?
 
Argh. Meu tédio mortal se prolongava pelo mais lento de todos os dias de trabalho. Lá estava eu, fingindo me concentrar numa seleção de fotos de casamento, apoiando o rosto nas mãos e quase caindo da cadeira. Qual é a dos héteros e essas cerimônias de merda?, me indaguei, amarga, olhando para as fotos no computador e ignorando o meu dever em editá-las. Na boa, isso é uma grande piada, refleti, e o pior é que eles sabem. Todo mundo sabe. Sabe que é tosco, continuei, passando foto por foto, indignada com a cultura do matrimônio. Não tem como, mano, eles têm que saber. Não é possível que alguém leve isso a sério.
 
Meus pensamentos heterofóbicos me distraíam improdutivamente da minha função. A verdade é que eu achava até certa graça naquele tipo de trabalho. As fotos eram sempre iguais e pareciam me dizer muito sobre as pessoas – ficava horas observando os sorrisos posados e os olhares bêbados de fim de festa, procurando qualquer descuido do noivo ou da noiva. Aquilo me entretinha. Era como procurar indícios de uma conspiração, sinais escondidos de que ninguém ali realmente se gostava, de que era tudo só para manter as aparências. Ou para ostentar.
 
Pois lá estava eu, absolutamente compenetrada na minha viagem sociocrítica, quando meu celular tocou – me despertando de volta para a realidade. Do outro lado da linha, a voz afeminada de um dos meus melhores amigos começou imediatamente a tagarelar qualquer coisa sobre acompanhá-lo ao Vegas... e blá blá blá e que ele precisava de companhia porque ia encontrar um bofe e que a gente tinha que encher a cara e escandalizar na pista a noite toda e que ele não ia aceitar não, entre muitos comentários vomitados de uma só vez. 
 
Ah, é tudo o que eu preciso. O Gui é a minha salvação.
 
_Cê não tem desculpa, são dois minutos da tua casa, você vai!
_Lógico que vou, Gui – eu ri – Quando foi que eu deixei de sair com você, meu?
_Melhor eu não responder essa, né, sua vagabunda...
_Ok, tá... – eu ri, de novo, consciente do meu desempenho vergonhoso como amiga nos últimos meses – ...mas juro, desta vez eu vou.
_Vai mesmo! CÊ NÃO OUSE FURAR COMIGO! – me advertiu, gritando escandalosamente ao telefone, enquanto eu cruzava as pernas e me afundava na cadeira, me divertindo com a bronca – Sério. Quero muito te ver!
_Não vou furar, mano.
 
Desliguei o celular instantes depois, feliz e com uma perspectiva melhor para o restante do meu dia. Inesperadamente salva por um telefonema. É – o Gui era a companhia ideal para distrair a minha cabeça. Era exatamente o que eu precisava depois daquele fim de semana conturbado. Ao fim do expediente, no caminho de volta para casa, já fumei menos cigarros do que vinha consumindo naqueles dias todos. Não tive vontade. Digitei para a Clara, animada, quando desci do metrô – “oq vc vai fazer hj?”. E assim que entrei em casa, chegou a sua resposta:
 
Faxina, 01 porre! :/”.
 
Achei certa graça na desgraça alheia. Ninguém merece. E atravessei a sala, sem falar com a Mia, que não saía mais da porra da minha casa e estava ali, bolando um baseado sobre a mesinha de centro recém-consertada. Fui direto para o meu quarto e comecei a vasculhar o meu armário atrás dos meus trapos de flanela, de alguma regata que prestasse, pronta para uma noite digna de Las Vegas. Ou a versão paulistana disso.