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janeiro 31, 2010

Sozinha na sala

Ouvir a Mia se trancar no quarto com o Fer naquela noite foi… insuportável. 

janeiro 30, 2010

Meu ex-armário

A Mia se virou para frente, a cabeça apoiada contra a parede, observando a rua entre as grades da varanda. E eu a admirei, com o cigarro já quase terminado na boca. Se toda essa gente não estivesse aqui, garota, suspirei, juro que te beijava. Ficamos em silêncio por um tempo, mergulhadas em nossos pensamentos. Traguei uma última vez, soltando a fumaça para cima, e encarei uma das janelas no prédio da frente – as plantas tinham tomado conta de todo vão.
 
Foi quando, de repente, senti a mão da Mia encostar na minha.
 
Entre as nossas pernas. Como um segredo bem guardado pelas nossas coxas, apoiadas lado-a-lado sobre os ladrilhos da varanda. O meu coração acelerou.
 
_O que exatamente você disse?
 
Ela perguntou então, sem me olhar.
 
_O que eu disse quando?
_Pros seus pais, quando você contou...
_“Pai, mãe, sou sapatão!” – eu ri e aí ela me encarou, como se não acreditasse.
_Tenho certeza que não foi isso...
_Não foi – balancei a cabeça, achando graça – Eu namorava uma menina na época e... sei lá, ela vivia indo lá em casa e a gente tinha que ficar se escondendo, dormia sempre de porta trancada, saca? E isso começou a incomodar os meus pais. Começaram a me encher e toda vez era “o que que vocês ficam fazendo no quarto”, “essa sua amiga nunca fala com a gente”, perguntando se a gente tava usando droga, juro, todo tipo de merda – revirei os olhos – E a real é que eu também já tava de saco cheio. Então, um belo dia, falei: “olha, a verdade é que ela não é minha amiga, a gente namora. E eu não queria ter que fechar a minha porta toda vez que ela vem aqui, mas eu não sabia o que fazer e tava com medo de contar pra vocês”.
_Hum – a Mia pareceu refletir – E o seu pai realmente ficou sem falar com você todo aquele tempo?
_Ficou. Acho que a minha mãe chorou por uma semana. Eu chorei por um mês, ou mais.
_Sério?!
_Ah, mano, eu me sentia uma puta decepção para eles. Foi foda. Não sabia o que sei hoje, não tinha a confiança que tenho. Tinha uma puta vergonha. Comecei a evitar ir para a casa, fazia qualquer coisa pra não ver eles, ia dormir na minha ex ou no Fer, ficava até tarde na rua, mas toda vez que voltava me olhavam como se eu tivesse partido o coração deles... E foi uma merda, por um tempo.
 
A Mia olhou para baixo, desconfortável.
 
_Deve ser difícil... Ter que encarar sua família assim.
_Ah... Podia ser pior, sabe? Conheço gente que sofreu muito depois de sair do armário. Cê lembra do Gui, meu amigo?
_O que tava na festa?
_É. O pai batia nele desde pequeno por ser afeminado, meu. E um dia, quando ele era adolescente, pegou ele na rua junto com um cara. Até hoje eles não se falam.
_Sério?
_Sim, meu, e o pior é que todos os irmãos são evangélicos, volta e meia um liga para dizer que o Gui vai matar a mãe de desgosto. Ele não tem ninguém na família. Nenhum apoio. É totalmente sozinho.
_Mano, me dá tanta raiva essas coisas – a Mia esfregou o rosto com as mãos – É muito escroto.
_Muito. E tem gente que acha que ser viado é ser fraco! Só o que a gente aguenta de insulto e porrada da vida, mano...
 
Isso, sua idiota, vai. Enfia a Mia com tudo no armário mesmo.
 
Fechei os olhos brevemente, arrependida. E o silêncio cresceu entre nós. O som da zona que os caras faziam na sala era barrado parcialmente pela porta de vidro, exceto por alguns gritos mais altos, nos isolando naquela pequena varanda. A respiração da Mia parecia pesar. Deslizei dois dedos da minha mão sobre os dela – e ela olhou para as nossas mãos ali, entrelaçadas sobre o chão. Depois olhou para mim.
 
_V-você... – perguntou, baixinho – ...a-alguma vez já quis não gostar de minas?
_Não.
_Nem quando você ainda tava, sei lá, se descobrindo ou...
_Não.
_Nunca?
_Mia, escuta, eu não trocaria meu coração por um hétero nem por um milhão de reais – garanti – Eu amo ser sapatão, é a melhor parte de mim.
 
Ela suspirou, tirando a mão da minha e a colocando sobre seus joelhos dobrados, encarando-a ali. O som dos carros passando na rua se misturava com o silêncio entre nós. Me diz o que você tá pensando, garota, a observava atentamente, sem entender o que a angustiava. Os seus olhos ergueram-se brevemente na minha direção e depois tornaram a encarar suas próprias mãos.
 
_M-meus pais morreriam – disse então, noutro suspiro.
_Não é verdade...
_É sério. Acho que me expulsariam de casa na mesma hora.
_Bom... – fiz graça, quebrando o clima pesado – Também já tá meio na hora de você sair, né? Vinte anos nas costas, meu...
_Cala boca... – riu.
_O problema é só que não sabe nem fritar um ovo direito!
 
Insisti, a zoando, e a Mia começou a me encher de tapa no braço.
 
_Trouxa!

A varanda

No caminho de volta para casa, a Mia já estava presente em cada pensamento que passava pela minha cabeça. Por mais que nós nos metêssemos em situações confusas e às vezes acabássemos nos desentendendo, eu não conseguia tirar ela dos meus pensamentos. Ela continuava lá. E eu ali, constantemente presa àquele sentimento, àquele impulso na sua direção. Inferno. Nos últimos dias tinha ficado claro que ela gostava de mim, de uma forma ou de outra. O problema é que eu não sabia qual – e isso me perturbava.
 
Chegando na estação Consolação, parei numa banca para comprar um chiclete e, enquanto esperava o troco, recebi uma mensagem do Fer. Ele estava na casa duns amigos ali perto, na Matias Aires. Mais amigos dele do que meus. Era um apartamento velho e grande dividido por um número sempre flutuante de moradores – eram cinco? Oito? Difícil dizer. A cada semana o sofá da sala era ocupado por algum estranho alcoolizado ou estudante de Filosofia da USP qualquer, que não tinha onde pregar os olhos ou comer a namorada. Parecia uma república coletiva de toda a Augusta.
 
Entrei no apartamento dos moleques e joguei minhas tralhas no sofá. A sala estava sob uma marofa descomunal. Vi o Fer sentado no chão jogando videogame com outro cara, que eu não conhecia, em meio à uma roda de pessoas que conversavam aos gritos, que eu também não conhecia. Ele me cumprimentou de longe – sem tirar os olhos da TV. E eu imediatamente me arrependi de ter ido naquele rolê errado.
 
Pensa numa desculpa pra ir embora, resmunguei pra mim mesma, qualquer uma. Mas foi quando reparei na Mia, num jeans preto e com as mangas da camiseta enroladas, com as tatuagens à mostra, fumando sozinha na varanda. Quer dizer, talvez eu possa ficar uns minutinhos...
 
_Oi... – eu disse, fechando a porta de vidro atrás de mim.
 
Ela sorriu de volta, com uma das mãos apoiada na beirada da varanda. E o meu coração pulou uma batida, inferno.
 
_Não sabia que cê ia colar aí...
_É. O Fer me mandou mensagem agora, tava saindo do metrô... – roubei o cigarro das mãos dela, apoiando os antebraços na grade – E você, tá escondida aqui por quê?
_Ah, mano – a Mia revirou os olhos – Muito chato lá dentro, num dá...
 
“Tá foda”, ri. E traguei uma vez, antes de devolver o cigarro para ela. A Mia observava o movimento da rua – os restaurantes tiravam as cadeiras da calçada e preparavam-se para fechar. Ela colocou o cigarro na boca, se curvando para ver mais embaixo. Me juntei a ela. E ficamos ali por um tempo, observando as pessoas que passavam na calçada.
 
_Será que se todo mundo vivesse à noite... – ela comentou, do nada, como se pensasse em voz alta – ...a gente ia querer ficar acordado de dia?
 
Achei graça. E sorri – “eu ia”. Ela me passou o cigarro e sentou no chão, com as costas apoiadas contra o vidro da porta. Sentei ao seu lado e a observei, rindo de novo.
 
_Quê?!
_Cê parece entediada até a morte, meu.
_E tô mesmo. Esse rolê tá um porre, mano.
_Como assim?! – dei um trago e forcei uma voz indignada, irônica – Você não quer assistir dois caras jogarem FIFA pela vigésima vez seguida?!
_Céus, não – ela riu.
_Osso.
_Pelo menos tem pizza – a Mia pegou o cigarro e me olhou – Cê já jantou?
_Já... Meu pai passou perto do meu trampo hoje e fomos num restaurante por lá – respondi – Meu, toda vez que saímos juntos é a mesma conversa... Ele acha que eu e o Fer somos casados ou algo do tipo.
_Você e o Fê? – ela gargalhou.
_Juro. É ridículo.
_Mas, espera, ele não sabe que você...?
_Sabe – balancei a cabeça, enquanto ela soltava a fumaça entre os lábios – Só ignora.
_Que bizarro... Faz quanto tempo que ele sabe?
_Uns seis, sete anos. Deixa eu pensar... – calculei rapidamente – É, quase sete. Eu tinha de 16 pra 17 quando contei.
_E o que ele disse?
_Nada.
_Nada?
_É, por uns dois meses – ri.
_Isso é horrível!
 
Ela começou a rir e eu concordei, é. Foi.
 
_Mas depois vocês ficaram bem, não?
_Ah, sim – peguei o cigarro e dei mais um trago – Sei lá, meu, acho que por mais difícil que seja, as pessoas que realmente te amam acabam entendendo. E nunca deixam de te amar, sabe? Em algum momento, elas percebem que você não pode ser feliz de outra maneira.
_Mas seu pai não aceitou totalmente... Digo, por causa desse lance do Fê e tudo mais.
_Ele fala mais por brincadeira... No fundo, ele sabe que não é assim. Já conversamos muito, ele conheceu as minas que eu namorei, acho que s-só não perde totalmente as esperanças de um dia me ver casando, tendo filho, sabe? Ao lado dum bom rapaz e o caralho a quatro.
_Olha, o Fê não é exatamente o que eu chamaria de um “bom rapaz”.
_É, cê tem razão... – eu ri.

Os mal-entendidos de sempre

Não vi a Mia por uns três dias e, na quarta-feira, meu pai me ligou. É, o meu pai. Aquele bonachão adorável e ocupado que raramente entrava em contato comigo. Não que nós tivéssemos motivos para não ligarmos um para o outro – nós dois simplesmente não gostávamos de telefone. Sempre restringi o meu uso a situações de real necessidade, um hábito que certamente puxei dele já que a minha mãe era a própria reencarnação duma telefonista.
 
Sendo assim, me surpreendi ao ver o número do meu pai piscando na tela do celular. Larguei o trabalho e o atendi. Estava com saudades de ouvir sua voz. Já logo na primeira frase fui intimada a encontrá-lo para jantar. A ligação chegou em boa hora – eu estava faminta e a quantidade absurda de álcool comprada para a festa havia acabado com todos os meus últimos centavos.
 
O meu pai era um paulistano convicto – ainda que tenha nascido numa cidadezinha de interior. Veio para São Paulo uns anos antes de conhecer a minha mãe e, desde então, raramente pisava para fora do seu mundinho em Santo Amaro. Era um tanto bairrista. Mas aquela quarta-feira era uma exceção: um fornecedor qualquer o arrastou para as redondezas do estúdio onde eu trabalhava. Eis o porquê do telefonema, concluí. E sem pensar duas vezes fui encontrá-lo num restaurante a poucas quadras dali, assim que terminou meu expediente.
 
_E então... – perguntou, pouco tempo depois de começarmos a comer – Como vai no emprego?
_Vai bem. Sei lá, normal. Muita coisa para fazer...
_E em casa, tudo bem?
_Tá, sim.
_Como vão as coisas entre você e o Fernando? – ele me olhou, forçando um olhar de “sogro” na minha direção – Hum?!
_Pai... O Fernando não é meu namorado, você sabe disso. Nós somos só amigos.
_Isso é o que você continua me dizendo, mas aquele garoto gosta de você – ele continuou, como se estivesse coberto de razão – Confia no que eu estou te dizendo. Eu sei como é...
_Não – eu ri – Escuta você o que eu estou dizendo: o Fernando gosta de garotas que gostam de garotos, como ele. E não de outras minas, que nem eu.
_Ah. Por favor! – me zombou – Vocês não desgrudam desde que eram pivetes!
 
Cê também não desgruda do pai dele, o encarei, achando graça, e nem por isso eu tô aqui fazendo planos pro casamento de vocês. A piada era antiga entre as nossas famílias. Todo mundo sempre achou que íamos acabar nos casando. E apesar de ser o maior sonho do meu pai, na esperança de que alguém me salvasse da sapatonice, provavelmente era o pior pesadelo do pai do Fer. Os dois se conheciam através dum primo do meu velho, que eu mesma nunca conheci. Meus pais ajudaram a família o Fer a se instalar na cidade quando eles se mudaram para São Paulo, quando o Fer tinha 9 anos, e desde então ficou todo mundo muito amigo. Dois anos depois, ele passou a estudar na mesma escola que eu e nos tornamos inseparáveis. E terríveis.
 
_Eu nunca vejo ele com outra garota – meu pai retomou – Tá sempre aí, com a minha filha linda, é ou não é?
_Nossa, pai... – balancei a cabeça, com uma careta de quem acabou de ouvir a maior besteira – Que absurdo. O Fer tá sempre com alguém, meu. Inclusive tá namorando!
_E quando vocês casam? – sorriu, com uma certa ironia.
_Não comigo... O nome dela é Mia.
_Mia? – ele colocou mais uma garfada na boca, falando de boca cheia – Sou mais a minha filha.
_Céus...
_Mas essa tal de Mia aí, você gosta dela?
 
Eita, quem te contou?
 
Me diverti em pensamento, o olhando à espera da resposta – era estranho ter que explicar quem era a Mia para o meu pai. Deixa eu ver, refleti, como posso resumir? Gosto, pai, gosto mais do que deveria, muito mais, passo o dia inteiro pensando nela, obsessivamente, é uma pena que o Fer chegou primeiro e, sim, estou apaixonada, perdidamente apaixonada, a gente até já se pegou uma vez e agora não estamos nos falando direito, mas sabe como é, né pai, coisa de amiga.
 
_Ah... – disse, por fim, evitando qualquer resposta sincera – É boa gente, sei lá. Normal.
_Sei.
_Nada demais.
_Eu sabia! – ele riu – Sabia! Me diz se isso não é ciúmes do Fernando? Tá na cara!
_Pois é, pai, pois é...
 
Concordei, rindo, a fim de não prolongar o assunto. E voltei a encarar a comida no meu prato, involuntariamente pensando na Mia. De novo. Droga.

janeiro 25, 2010

Banheiro

_Você não devia ter bebido tanto... – a Mia falou, agachada na minha frente.
 
Eu ri brevemente da minha própria desgraça, exausta demais para conversar. Ela passou a mão no meu rosto e tirou meu cabelo da frente dos meus olhos. Fiquei em silêncio, destruída e sem energia. A minha cabeça doía ainda mais depois de vomitar tanto, sentia como se todo o sangue do meu corpo tivesse se esvaziado. Ressaca da porra. E a Mia me observava com um quê de pena.
 
_D-desculpa... – ela disse, pegando na minha mão – ...sinto como se parte disso fosse culpa minha. Não sei, e-eu só... Não queria que você pensasse q-que eu faço de propósito. Eu n-não queria te machucar, é que...
_Não é culpa sua – a cortei, sem paciência.
 
Aquilo me provocou um desconforto horrível. Eu odiava me sentir frágil, como se ela tivesse esse poder sobre mim. Quis me levantar, a fim de mostrar que já estava melhor e que não precisava mais da sua ajuda, mas ainda me sentia mal. Então continuei ali no chão. Exausta. Olhei para a Mia e ela ainda me observava, preocupada.
 
_Talvez fosse melhor você tomar um banho...
 
Ela sugeriu – e imediatamente me veio à cabeça uma resposta indecente. Nem nos meus sonhos, comecei a rir de mim mesma. A Mia notou, facilmente se dando conta das minhas segundas intenções, e forçou uma cara de indignação.
 
_Eu não vou te ajudar... – ela disse, levantando a sobrancelha – ...nem adianta tentar.
_Eu não disse nada... – sorri.
_Mas pensou.
_Ah, acredite, eu já pensei coisa pior...
 
Ela começou a rir e eu cobri o rosto com uma das mãos, envergonhada. Então ela projetou o corpo para frente, com as mãos apoiadas no chão, e me deu um beijo demorado na bochecha. Olhei para ela e pisquei, fazendo graça.
 
_Você não presta... – ela sorriu e balançou a cabeça.
 
E eu concordei, rindo.

Café-da-manhã

Observava as rosquinhas cor-de-mel afundadas no leite. O conjunto me parecia algo semelhante a vômito. Colocava algumas rodelas ensopadas na colher e logo despejava-as de volta ao prato. Que asco, eu pensava, enojada. O Fer tagarelava empolgado, comentando os acontecimentos da festa, enquanto eu o ignorava – expressando fisicamente a minha repulsa pelo cereal disposto na minha frente.
 
_Mano... – ele reclamou, interrompendo o assunto aos risos, indignado – Só come logo!
_Não quero comer isso.
_Você tem que comer alguma coisa, meu, senão vai ficar zoada o resto do dia todo...
 
Que se dane. Eu aguento, me convenci mentalmente, é melhor do que engolir isso. Argh. O domingo já estava quase no fim, mas a minha ressaca estava realmente zoada. Tá. Talvez eu não aguente. Minha cabeça parecia prestes a explodir. Sentia meu corpo inteiro contorcer-se internamente, meus olhos inchados, meus braços doloridos e qualquer ruído mínimo na cozinha despertava a pior dor de cabeça do século. A culpa era toda minha, do Jameson e da vodca de 4,99.
 
E da Mia, claro, que estava sentada na sala. Me ignorando.
 
Respirei fundo e enfiei aquela gosma nojenta para dentro da boca. Mastiguei a papa mole cor-de-vômito-com-mel e engoli, fazendo uma careta involuntária. Credo. O Fer resmungava qualquer coisa sobre como eu era “fresca” e ria da minha desgraça. Contra a minha vontade, forcei mais uma colherada goela abaixo e senti cada pedacinho de rosquinha mastigada e diluída em leite sendo digerido pelo meu estômago, em meio aos litros e mais litros de porcarias alcoólicas que eu havia ingerido na noite anterior.
 
Não. Merda, vou vomitar.
 
Saí correndo em direção ao banheiro, às pressas, e coloquei a cara na privada. O Fer entrou, assustado, logo em seguida:
 
_Cê tá bem?
_Tô! Cai fora! – reclamei, engasgada, e comecei a vomitar.
_Puta que pariu... Não devia ter feito você comer, desculpa. Merda! – o Fer se desesperou – E-eu... eu vou chamar a Mia, meu, aguenta aí!
 
Não. Isso não. O Fer saiu correndo e senti que ia vomitar mais uma vez, sem conseguir evitar que ele a chamasse, porcaria. Ele não conseguia ficar perto de outras pessoas vomitando sem sentir ânsia também – o que frequentemente era o caso nas nossas festas. Pouco tempo depois, ouvi a porta se fechando. A Mia ajoelhou ao meu lado e segurou o meu cabelo para cima. Senti a mão dela molhando a minha nuca. E aquilo ajudou. Logo quando eu achava que ia ficar bem, a ânsia voltou e começou tudo de novo. Os meus olhos lacrimejavam. E eu me contorcia violentamente, a cada episódio, durante uns 10 minutos seguidos. Sexy.
 
Tudo aquilo me deixou exausta. Encostei na parede do banheiro, sentada no chão, e a Mia me deu um pano molhado. Limpei o rosto e deixei as mãos caírem sobre as minhas pernas, me sentindo fraca.

janeiro 24, 2010

8:14

Quase peguei no sono.
 
Não. Não posso dormir, pensei, tentando me manter acordada com certa dificuldade. Preciso tirar ela daqui antes. Olhei para o meu lado e a Aninha dormia, debruçada no meu travesseiro, com o rosto virado para a parede. Suas costas eram repletas de pintinhas – e eu até que gostava. Hum. Estiquei-me na beirada da cama, alcancei o meu maço no bolso de uma calça e acendi um cigarro. Minha embriaguez havia sido substituída por uma enxaqueca arrasadora. Caralho. Ainda não havia atingido o estado completo de ressaca, contudo – sentia meu corpo tremer e suar frio. Sabia que permaneceria ligeiramente bêbada até finalmente dormir.
 
Levantei e coloquei a primeira blusa que vi, vestindo a boxer de novo. Estava me sentindo realmente mal fisicamente. Curvei-me sobre a cama, acordando a Aninha e pedindo para que fosse embora. Ela abriu os olhos e acenou, sonolenta. Indiferente. Ela estava me usando, como eu usei a Roberta. Como todos usamos uns aos outros para preencher o tempo. Ou a cabeça. Caminhei descalça pelo quarto, fumando; a minha cabeça doía. Não tinha memória do que acontecera nas últimas horas – só um sentimento confuso. Talvez tenha dormido e transado algumas vezes, não sei. O meu corpo doía. Olhei o relógio na mesa e não consegui registrar direito as horas. Inferno.
 
Minutos depois, a Aninha se aproximou, já vestida, e me beijou no rosto. Depois saiu pela porta. Fiquei sozinha no quarto. Dei uma última tragada e joguei o cigarro pela janela. Aí voltei para a cama.
 
Que lixo.

A Festa 5

Atravessei o corredor, empurrando e desviando dum grande número de pessoas, que se amontoavam pelos cantos do meu apartamento. Inconvenientes. Estava puta. E não sei se a culpa era da quantidade absurda de álcool nas minhas veias ou o fato de que tinha estragado a minha chance com a Mia, sem nem saber como – mas, de um jeito ou de outro, eu estava realmente irritada. E a festa, de repente, se tornou insuportável.
 
Com todas as minhas forças, almejei que todo mundo fosse embora e magicamente me deixasse sozinha. No entanto, a cada passo que eu dava, eu trombava com algum exemplo completamente bêbado de que meu desejo não havia sido atendido. Ainda eram 3 da manhã. E eu sabia que ninguém ia deixar a droga daquela festa até a dali, pelo menos, uma ou duas horas. Maldição. Me dirigi até a sala – mas logo percebi que aquele era o cômodo mais lotado da casa toda e eu não queria ficar ali. Então, voltei. E me espremi cozinha adentro, com bastante dificuldade
 
Sentei na pia, rodeada de gente, torcendo mentalmente para que ninguém viesse me encher o saco. O primeiro babaca que falar comigo, morre, jurei. Pelo bem da minha ficha criminal, quem apareceu foi o Gui – e eu não estava disposta a matá-lo. Afinal, , era um dos meus melhores amigos. Completamente desavisado, ele se aproximou do ser rabugento que eu era naquele momento, me zombando.
 
_E aí, já recuperou o bom senso?
_Não quero falar sobre isso – o cortei.
 
Peguei o copo de uma bebida não-identificada qualquer que estava na sua mão, sem paciência, e empurrei tudo garganta abaixo. De uma só vez.
 
_Nossa! O que foi? – ele riu – Tomou um fora, é?
_Não.
_Hum, e tá bravinha por que então? – ele riu ainda mais – Um pouco de humildade faz bem, viu, ô...
_Já disse que não foi isso, porra.
_Ah, então você quer me convencer de que deu certo seu plano e você conseguiu tudo o que queria?
 
Não tudo.
 
_Hein?! – o Gui levantou a sobrancelha, me provocando, e aquilo agravou ainda mais o meu mau humor.
_Consegui, Guilherme. Consegui até mais do que eu queria.
_Ui... Cuidado para não morrer de tanta felicidade, hein? – achou graça.
_Vai se foder!
 
Levantei e esbarrei no seu ombro, irritada, saindo em direção ao inferninho que havia se tornado a minha sala. No caminho, descolei uma garrafa quase cheia de vodka barata e resolvi me embebedar ainda mais – o que nunca é uma boa ideia quando o seu estado emocional se encontra rasgado em mil pedaços no meio de uma pilha enorme de lixo. Pelo menos, fui sensata o suficiente para recusar pó no meio do caminho. Isso, sim, teria sido uma péssima ideia naquele momento.
 
Algumas horas ou minutos depois e eu me encontrava jogada no chão da sala, sentada de costas para a parede, quase apagando de tão chapada. Não me recordo bem o que me levou até aquele canto, mas tenho uma vaga lembrança de ter encontrado a Mia no meio do trajeto.
 
Ela não estava falando comigo, aparentemente. A única pessoa que estava, naquele momento, era a Aninha. Sabe-se lá como, mas aquela garota me achou no meio de todas aquelas pessoas e agora tagarelava sentada ao meu lado, me dando umas indiretas – bem diretas – de que queria ir pro quarto. Aquilo estava me causando uma séria dor de cabeça. Ou talvez fosse a vodca de R$ 4,99.
 
Não sei ao certo.
 
Vencida pela exaustão e pela minha incapacidade completa de raciocinar, concordei em ir "conversar" num lugar mais reservado. Eu vou me arrepender disso, lamentei enquanto me levantava com certo custo, me apoiando na parede. Minha ex-semi-fixa-sei-lá-o-que-ela-era me olhava satisfeita, alheia à minha cara de poucos amigos. Achando que ia se dar bem. Mal consigo ficar em pé e a garota realmente espera que eu coma ela nesse estado, pensei. E comecei a rir sozinha. Ela deve estar pior do que eu.

janeiro 23, 2010

A Festa 4

_N-não – me empurrou para trás, de repente – Para. Para!
 
E eu parei, olhando para a Mia enquanto recuperava o ar. O que aconteceu?, buscava qualquer explicação em seu rosto no escuro, a menos de um passo dos seus pés. Nossas roupas estavam bagunçadas e a sua respiração ofegante, confusa.
 
_P-por que você tá fazendo isso comigo?
_Eu?!
 
Parecia hesitar, como se de repente tivesse caído em si, recuperado a consciência. E por um breve momento, tive medo de que a culpa fosse minha. Não faz isso, garota, toquei o seu braço levemente com a mão e ela abaixou os olhos para o chão. Não se perde de mim, não agora. Ela ficou quieta. Ergui o seu rosto e ela se forçou a me encarar de volta, consternada. Tinha os olhos marejados, como na madrugada que bateu no meu quarto. Por favor, a olhei, com medo de que fosse se afastar mais uma vez e aquilo tudo não passasse de um sonho que mal começou.
 
Mas, no instante seguinte, sem qualquer explicação, a Mia me beijou.
 
Porra. Aquilo ia acabar comigo. Com a pouca sanidade que o whisky deixara para trás. Apertou o corpo contra o meu e voltamos a nos pegar, desta vez mais forte. Encostei-a contra a parede mais uma vez e ela me agarrou pela camiseta, mordendo a minha boca, nuns beijos tão intensos que, puta que pariu. Colocou a mão sob o tecido, subindo pela minha cintura, pela minha pele – e eu senti tudo arrepiar, todo o álcool que corria nas minhas veias. Sem tirar a boca da sua, deslizei as mãos pelas suas pernas e levantei o seu vestido, sentindo as suas coxas entre os meus dedos, cada centímetro que tocavam, a subindo no meu colo.
 
Nisso, as mãos dela me seguraram. E a Mia me afastou.
 
_Porra... – encostei na parede oposta do banheiro, rindo – Isso é tortura, meu.
 
As suas pernas ainda estavam descobertas e o vestido erguido até a calcinha, logo acima dumas tatuagens old school que ela tinha nas coxas. Ela cruzou os braços. À meia-luz do banheiro, era ainda mais bonita. Cacete.
 
_Sabe... v-você... – eu sorri, ofegante – ...vai me matar do coração assim. Não é justo, garota.
_O que você quer de mim?
 
Retrucou, ríspida, como se eu a tivesse ofendido. E o sorriso logo sumiu do meu rosto – espera, a olhei de volta, achei que a gente estava fazendo isso juntas. Não?
 
_Como assim?!
_Cê quer que eu seja justa? Nada disso não é "justo" – ergueu a voz, bêbada, se afligindo do nada – Não é certo. Comigo, com você, com o Fê! – se angustiou – Eu sou uma idiota, e-eu... eu nunca devia ter te falado nada!
_Mia...
_Não sei por que eu fui entrar nesse banheiro, e-eu...
_Espera. Cê tá falando sério?
_Na boa, eu não sei o que você quer de mim.
_Eu não quero nada de você, e-eu só...
_Ótimo – fechou a cara – Então vamos acabar de vez com isso antes que se torne um absurdo ainda maior.
_Do que você tá falando, meu?!
 
Perguntei, mas a Mia virou o rosto. E não respondeu, encarando o chão.
 
_Mia?
_...
_Mia.
_...
_Tá. Que seja – resmunguei.
 
E saí do banheiro, de saco cheio.

A Festa 3

Tranquei a porta do banheiro atrás de nós e o barulho da festa se tornou abafado. Estava escuro ali dentro. As luzes do lado de fora passavam por uma frestinha no batente e a Mia encostou numa das paredes, me olhando atentamente. Caralho, senti o meu coração subindo pela garganta, é agora. As minhas mãos tremiam e ela não tirava os olhos de mim, meu deus. Estava nervosa, ela também. Conscientes demais do que estava prestes a acontecer. Suspirei e dei um passo em sua direção, ela hesitou:
 
_S-só porque eu te falei aquilo, n-não quer dizer que...
 
Me aproximei do seu corpo, a interrompendo.
 
_É só você me pedir, Mia... – encostei a testa suavemente na sua, fechando os olhos – ...que eu paro.
 
Podia sentir a sua respiração, a milímetros de distância de mim. O meu braço tocou o seu sutilmente, deslizando os dedos sobre a sua pele. E senti a minha ansiedade sumir, aos poucos. Todas as dúvidas e as nossas conversas e as brigas e a Clara e a festa, de repente, sumiram. Abri os meus olhos e os dela me olhavam de volta, aqueles olhos castanhos grandes. Tão perto que bastou um movimento na sua direção.
 
A beijei.
 
Contra a parede – puta que pariu.
 
Aquele, sim, era um beijo bem diferente do nosso primeiro. Era o beijo com o qual eu tinha sonhado um milhão de vezes. Nos encaixamos. A sua língua encostou na minha e eu perdi a força no corpo inteiro, numa vontade desnorteante de não desgrudar minha boca da sua até a festa acabar do lado de fora. Meu deus, essa garota. Agora fazia sentido. Todas as babaquices românticas que passei a vida ridicularizando, de repente, faziam sentido. Nunca nada foi assim, tão gostoso. Tão nosso. Mas eu sabia que tinha que ir com calma – as mãos dela não se moviam, coladas contra os ladrilhos. Soltei a sua boca, como quem volta à superfície para respirar. Dei um passo para trás, tentando recuperar o fôlego a cabeça os batimentos cardíacos. E a Mia tirou a franja do rosto, a segurando em cima da cabeça por um instante.
 
“Caralho”, sussurrou.
 
E nos contemplamos por um breve momento. Ela mordia a boca, processando o que acabara de acontecer, mas sem desviar o olhar do meu. Senti meu estômago congelar, em que merda estamos nos metendo, garota? E foi quando um sorriso escapou, escondido, no canto da sua boca. Movi na sua direção, na mesma hora – colocando o braço ao redor da sua cintura, a puxando para mim. A pressionei na parede e a Mia segurou o meu rosto com ambas as mãos, me beijando de volta. E aí, sim, os beijos de verdade começaram.
 
Que se foda o autocontrole. Desci as mãos para as suas coxas, afundando os dedos na sua pele. A Mia me segurava pela nuca, me trazendo para perto dela, entrelaçando os dedos no meu cabelo nuns amassos, assim, de foder a cabeça. Meu deus. Acho que nunca segurei uma mulher com tanta vontade. 

janeiro 22, 2010

A Festa 2

Horas depois e a festa estava sendo um sucesso – no sentido mais depreciativo e imoral da palavra. Toda alma paulistana que não estivesse bebendo, conversando, fodendo ou dançando no nosso apartamento naquele sábado à noite estava, com certeza, arrependida. E todos os meus vizinhos encontravam-se declaradamente furiosos. Que se foda. Eu estava me divertindo, por fim, e a multa certamente não ultrapassaria o limite do impagável – eu e o Fernando tínhamos um fundo mensal reservado só para as advertências do prédio.
 
As duas doses iniciais de tequilas passaram por mim quase despercebidas e o rum não fez nem cócegas. Foi só quando eu cheguei no whisky que a minha cabeça começou a me enviar sinais reais, latejantes, de que eu ia ficar muito louca. Não era minha culpa: algum santo trouxe Jameson para a festa e eu simplesmente não podia resistir àquela garrafinha verde. God bless the irish. Sentamos, eu e o irlandês, num canto espremido do sofá. Ao meu lado, estava o Gui e mais umas dez pessoas amontoadas.
 
Lá fiquei por um tempo, entre um gole e outro, escutando o meu amigo incalável discursar sobre a noite em que o deixei sozinho no Vegas e todas as suas peripécias sexuais com o DJ misterioso. Eu não queria saber metade. Tudo me soava extremamente exagerado e fora de proporção, mas assim era o Guilherme.
 
_...ai, enfim, tô apaixonado.
_Ah, jura? – eu levantei a sobrancelha e comecei a rir.
 
O Gui era um romântico incurável com um problema de foco. E de fidelidade – diga-se de passagem. Raramente tinha o seu coração partido, era sempre o primeiro do casal a cair de amores por um outro cara qualquer e seguir a sua nova “paixão verdadeira” até a cama. Os seus novos sentimentos o mantinham entretido e os seus exs, coitados, acabavam sozinhos. Sempre um passo atrás dele.
 
No auge dos meus 20 e poucos, eu poderia facilmente me identificar com o Gui. Exceto pela parte de me apaixonar tão efusivamente – desde que me conheço por gente, insisto em reservar o meu coração para raras e muito mal escolhidas ocasiões. Sendo assim, lances como o que rolou entre a Clara e eu eram muito mais comuns na situação inversa. E isso divertia o Gui:
 
_Agora você saaaaabe como toda a sua hortinha se seeeente quando você resolve ir regar outra florziiiiinha mais interessante... – debochou, quase cantarolando.
_Cala a boca. Ela não era mais interessante!
_Ui. Alguém está bravinha...
_Não tô nada! – contestei, já consideravelmente bêbada, levantando o indicador na direção do Gui – E a Clara é uma idiota. Todas são – esbravejei, amarga – Não tem nada que preste em porra de horta nenhuma nessa cidade e eu já tô de saco cheio de comer sempre a, a mesma...
_Planta?
_É.
 
O Gui se divertia com o meu azedume alcoolizado. Eu estava completamente fora de mim.
 
_E o que você vai fazer então? Passar fome? – me zombou.
_Ah, não mesmo...
 
Respondi, olhando fixamente para a Mia. Ela conversava em pé a alguns metros do sofá, absolutamente maravilhosa. O Gui olhou na direção dela e depois para mim, rapidamente dando-se conta das minhas intenções.
 
_Cê não pode realmente tá pensando nisso!
_Ah, tô...
_Cê tá muito louca, bicha – o Gui questionou, ao perceber o que se passava pela minha cabeça – PERDEU O JUÍZO?!
_Não, não perdi... Aí que cê se engana! – argumentei, afundada no sofá – As coisas finalmente começaram a se encaixar, gato... Tudo o que eu sentia por ela, toda aquela confusão, de repente faz sentido.
_Mas isso é... v-você não... você... v-você olha lá, meu, presta atenção, porque...
_Não quero nem saber – prossegui, bebendo mais um pouco do whisky já quase esquecido na minha mão, e olhei para o Gui, confiante – Hoje, ela é minha.
_Amada! – ele se indignou e riu, como se eu estivesse prestes a cometer uma loucura – Essa é justamente a questão: ela NÃO é sua. E VOCÊ SABE DISSO!
_Ah, mas vai ser... – garanti, sem tirar os olhos da Mia, e me levantei do sofá.
_Pelo amor de deus, senta!
 
Ignorei-o. Aquela conversa havia deixado muito claro para mim o que precisava ser feito – o exato oposto do que o Gui disse. Estava decidida a botar o meu plano em prática. Então, sem pensar duas vezes, andei em direção à Mia – me aproximando por trás dela.
 
_Vem comigo – pedi, a pegando pela mão.
 
E ela me seguiu.

janeiro 21, 2010

A Festa 1

“Laaast niiiiiight, she saaaaid… 
Ohh, baby, don’t feel so dooown!”
 
Os gritos do Casablancas no rádio atravessavam a porta e o meu quarto inteiro, enquanto eu corria enlouquecida de um lado ao outro. Todos os meus amigos indiscretos e barulhentos anunciavam aos berros a sua chegada ao meu apartamento – um por um – e eu ainda não havia colocado uma maldita roupa.
 
Todo o meu plano de “tô nem aí pro que vou vestir” havia ido por água abaixo graças à recente confissão da Mia. Ainda não havia processado direito a informação a mim sussurrada, explodindo de felicidade e medo e ansiedade e nervosismo e alegria e impaciência e... enfim. Estava surtando. O Fer batia na porta de cinco em cinco minutos, avisando que a festa estava começando sem mim – como se não fosse possível ouvi-los a cinco quadras dali – e eu garantia repetidamente que já estava saindo.
 
Inferno, inferno, inferno. A esta altura, ele provavelmente estava pensando que a minha demora era alguma forma de sabotagem – mas não era. Não desta vez. O fato é que eu continuava seminua e mergulhada no meu armário, sem saber o que vestir. Num estado catatônico demais para pensar. Diabos. Após incontáveis surtos e quarenta minutos depois, finalmente eu estava pronta. E a minha saída do quarto agravou mais ainda o volume da festa.
 
Aquilo era o caos absoluto – percorri o nosso modesto apartamento, tropeçando pelas latinhas vazias que se acumulavam no chão, cumprimentando quase todo mundo que via. Imersa numa marofa desgraçada. Os meus ouvidos estavam estourando de tão alta que estava a música. Só depois de algum tempo encontrei a Mia, em meio à confusão na cozinha, conversando com um amigo do Fer. Tentei chegar perto assim que a avistei, mas fui interrompida por 1.57m de águas passadas bloqueando o meu caminho – era a Aninha. Quem foi o imbecil que convidou ela?
 
Eu vou matar o Fernando.
 
_Nossa, parece que a gente não se vê há anos... Você sumiu! – ela se jogou na minha direção, mentindo descaradamente; foi ela quem desapareceu um ano antes para voltar com a ex, mas tá.
_Pois é... – respondi, sem tirar os olhos da Mia e tentando escapar dali.
_E você não vai me cumprimentar, não?
 
Voltei meus olhos para ela e a vi ali, parada na minha frente à espera de alguma atitude minha. Que saco. Suspirei, sem paciência, e lhe dei um beijo amigável no rosto. Querendo sair o quanto antes da sua vista e do alcance das suas mãos. Assim que desgrudei do seu rosto, ela me olhou desapontada. E eu a ignorei, desviando dela para seguir o meu caminho.
 
_Olha... – ela me puxou pela mão, sugestiva, e eu me virei novamente em sua direção – Se você quiser, mais tarde talvez a gente podia...
_Claro – respondi com indiferença, a interrompendo.
 
Tornei a olhar para onde a Mia estava, mas ela havia deixado o amigo do Fer sozinho. Comecei xingar a droga da Ana Luiza na minha cabeça e o resto do mundo todo. Caralho, viu. Então me dirigi à geladeira – uma dose era a minha segunda melhor opção ali, calculei. Uma vez que a primeira passou pela porta atrás de mim sem que eu sequer percebesse.

janeiro 19, 2010

Como é?

Foi tudo muito rápido – antes que eu conseguisse formular qualquer resposta, o Fer a chamou novamente, já irritado. Ela olhou para o corredor e depois para mim, mas eu ainda não conseguia me mover, pega de surpresa. Todas as palavras sumiram da minha boca. “D-desculpa”, ela murmurou então e saiu, às pressas. Fiquei olhando para a porta, sem reação. Pude ouvi-los deixando o apartamento e em seguida veio o silêncio. Deitei o corpo novamente no colchão e passei as mãos no rosto.
 
Meu deus, suspirei.

janeiro 18, 2010

Segredos cochichados

Contra a minha vontade, o sábado chegou. Podia ouvir meu estimado colega de apartamento arrastando móveis de uma ponta a outra da nossa humilde residência. Aquilo me irritava, claro, já que eu andava bancando a intratável.
 
Permaneci a manhã toda enfurnada no meu quarto, deitada de barriga para cima na cama por tempo suficiente para ser capaz de listar cada rachadura mínima existente na minha parede. Estava me comportando como um vegetal na fossa amorosa. Era patético. A ideia da festa até começava a me agradar, mas meu orgulho me impedia de mover um músculo sequer para ajudar nos preparativos. Insistentemente, o Fer ia e vinha no meu quarto, na tentativa de me fazer levantar.
 
_Não, tô bem aqui – respondia – Tô pensando no que vou usar à noite.
 
Mentira. Não tava nem aí para o que ia vestir na festa. Só queria me divertir – coisa que não fazia há dias –, só não queria ter que admitir isso para o Fer. Então continuava ali, toda ridícula, deitada sozinha. E foi quando a Mia abriu a porta. Do nada, após uma breve batida, receosa, como se esperasse me encontrar dormindo. Olhei para ela e ela disse que “o Fê falou pra avisar” que estavam indo no supermercado comprar bebida pra festa – o que me soou como um telefone sem fio desnecessário. Acenei sem prestar muita atenção, murmurando qualquer coisa, e voltei a encostar a cabeça no colchão.
 
Só que...
 
Não ouvi a porta batendo.
 
Subi novamente o olhar e a Mia continuava lá, apoiada no batente.
 
_E-eu preciso... – ela falou, baixinho – ...te d-dizer uma coisa.
 
Nisso, o Fer a chamou da sala. A acelerava para saírem logo. A Mia gritou de volta, pedindo que esperasse, que já estava indo. Ele respondeu qualquer coisa – que não consegui identificar – e ela se virou de novo na minha direção. Hesitou.
 
_E-eu... – fez uma pausa – ...t-também menti para você.
_Como assim?
_Sobre o, o beijo, e-eu... – murmurou e eu levantei um pouco o corpo, procurando entender o que tava querendo dizer – ...eu quis que você me beijasse.

Ah não, festa

A sexta-feira foi estranha. Não ruim em si, como foram todos os outros dias, mas... estranha. Não sei. Na volta do trabalho, a noite caiu quente e tediosa. Decidi ficar em casa. E lá pelas tantas, o Fer interrompeu uma tentativa quase suicida de me afogar em rum na cozinha, plantada pateticamente em pé ao lado da geladeira, para fazer um anúncio. Vejam bem, não foi uma proposta – foi um anúncio.
 
_Vamos dar uma festa aqui amanhã.
 
Quase engasguei. Ah, mas não mesmo, o olhei com desprezo, indignada. Confiante de que minha expressão facial transmitiria a minha absoluta desaprovação da ideia. Mas ele começou a rir. E no instante seguinte, a Mia entrou, se pondo a ouvir a nossa conversa.
 
_Não adianta fazer essa cara, ô Pequeno Raio de Sol, já chamei todo mundo... – o Fer fez graça – Vamos dar a festa, sim. É por uma boa causa...
_Ah, é? Qual?! Acabar com todo o nosso dinheiro?
_Não – riu – Acabar com a sua agonia.
 
Em outras palavras, me forçar ao entretenimento. Que inferno. Eu não queria me divertir. Mas nem a pau, estava conformada na minha infelicidade momentânea. Por que ele não pode só aceitar isso? Fora que eu não tinha vontade alguma de ver... argh... outras pessoas. Merda. Me voltei para a Mia em busca de qualquer ajuda, mas ela olhava para o Fer com um leve sorriso no rosto.
 
Você também tá metida nessa, aposto.
 
_Vocês dois tão tramando contra mim – reclamei – Eu não quero festa nenhuma, só quero que me deixem em paz.
_Olha, você pode até não querer, mas não tem muita escolha. Você vai ter que se animar e vai ter que ser até amanhã à noite ou sérias providências serão tomadas... – o inconveniente do meu amigo se divertiu – Porque morar com você desse jeito é impossível.
_Deus do céu... Mas essa é a sua solução?? – indaguei – Você não podia simplesmente... sei lá... t-ter me arranjado... tipo... Valium?
_Não, senhora. Contente-se com a sua festa.
 
Não, obrigada, revirei os olhos. E uma vez dado o recado, o Fer deixou a cozinha, provavelmente sorrindo de satisfação a caminho do seu quarto. Mas a Mia ficou. Esperei por alguns segundos, certa de que ela sairia atrás dele, só que ela não se moveu – e aí que ficou estranho. Voltei meus olhos na direção dos seus, sem entender o que ela ainda estava fazendo ali. E nada. Ficou parada ali, me olhando, mexendo numa mecha do seu cabelo.
 
_Cê tá bem? – perguntei, baixinho.
 
Não respondeu. Apenas olhou para o chão por um instante e, depois, voltou a me encarar. A tensão no ar parecia prolongar o tempo. Ficamos um tempo nos olhando em silêncio. Às vezes, ela chegava a abrir a boca, como se estivesse prestes a falar, mas logo desistia. E não dizia nada. Comecei a ficar impaciente.
 
_Cê quer me dizer alguma coisa? – dei mais um gole do rum – Que foi, meu?!
_Nada.
 
Retrucou irritada e saiu. Simplesmente se virou e saiu da cozinha, aquilo me deixou louca.
 
Era só o que me faltava.

Desagradável, sempre

“Pq vc ñ me responde, gata?”.
 
Fiquei olhando para a mensagem por minutos a fio. Não queria mais a Clara na minha vida. E então não respondia – não queria ter que lidar com aquilo, com ela, com nada. Desaparece, por favor, só desaparece. Mas quando reabri os olhos, as suas palavras continuavam na minha frente, me incomodando. Argh.
 
A Clara vinha tentando falar comigo a semana toda, inadvertidamente. E eu ignorando. Por pura falta de respeito – tinha perdido o meu por ela. É. Parte de mim talvez esperasse que fosse se cansar e simplesmente parar de me ligar. Não queria começar uma briga, me desgastar, enfrentar o quanto gostava dela, me irritar de novo. Só queria que sumisse. Mas não te dei motivo, não é, garota?, raciocinei. E após quase uma hora de hesitação, decidi enfrentar o que há várias madrugadas eu procurava evitar – “fui no vegas quarta passada e te vi la, perdi o interesse”, digitei.
 
Não via motivo para me estender. E talvez a Clara lotasse minha caixa de entrada com justificativas, mas eu não ligava mais. Deleto tudo amanhã de manhã, decidi, com pressa de a cortar da minha vida. Não queria ouvir. A Clara tinha perdido esse direito. Desliguei o som do celular e afundei a cabeça no travesseiro, me virando para dormir. Chega.
 
Na manhã seguinte, levantei atrasada. Depois de uma noite inquieta, mal dormida. Era quinta-feira – o que me soava como uma grande merda. Coloquei qualquer regata no corpo, subi meu jeans surrado pelas pernas e saí do quarto. O mau-humor em pessoa. A real é que, por mais que eu me forçasse a não me importar com aquele rolo todo e com a Clara, ela continuava na minha cabeça. No meu subconsciente, me machucando. Inferno, eu gostava mesmo de você, garota, eu engolia em silêncio, mais solitária do que era capaz de admitir.
 
A minha angústia já se arrastava por dias. E eu vinha tornando minha infelicidade grosseiramente perceptível a todos que ousavam falar comigo ou sequer cruzar o meu caminho. Estava insuportável. Assim que coloquei meus pés na cozinha, dei de cara com a Mia e o Fer sentados à mesa, aproveitando todo o resto do cereal que eu pretendia comer. Fala sério. Amaldiçoei-os mentalmente e agarrei a caixa de um cereal-não-tão-gostoso que havia sobrado na prateleira. Aí me sentei grosseiramente para comer, deixando bem claro a miséria à qual meu café da manhã havia sido reduzido graças a eles. Os dois me olharam, sem entender.
 
Havia certa pena na forma como o Fer andava me observando nos últimos dias, mas ele nem tentava mais me animar. Eu estava intragável. Indesejavelmente, a presença da Mia naquela casa me distraía e a minha raiva era substituída por um desconforto tremendo. Ela sabia que eu gostava dela há dias e, desde então, não disse mais nada na minha direção – num silêncio bizarro entre nós. De novo. Me sentia duplamente idiota. Pra quê fui falar?
 
O café da manhã foi um martírio. Eu olhava para a Mia e ela fingia não me ver, então voltava a encarar o meu prato, o Fer me observava, piedoso, eu percebia e ele desviava o olhar rapidamente, eu olhava para ele e depois para a Mia, ah... Mia, a admirava por um tempo até que ela, enfim, me olhava de volta, aí eu forçava um sorriso discreto e desajeitado e ela imediatamente disfarçava, procurando outra coisa para olhar, droga. Numa dança silenciosa, fadada ao desastre.

janeiro 16, 2010

Fora de controle

_SAI DA MINHA FRENTE, CARALHO!
 
Subi a Rua Augusta transpirando ciúmes por todos os meus poros, trombando em todos os idiotas que ocupavam a calçada. Não conseguia acender um cigarro sequer, estava tão irritada que era capaz de começar uma briga por motivo nenhum. Devia ter falado alguma coisa, e-eu... eu devia ter ido até lá e, e... argh. Inferno. Não conseguia pensar direito, minha cabeça estava cheia. E a imagem da Clara se agarrando com outra insistia em voltar à minha mente.
 
Desgraçada.
 
Eu gostava dela. Realmente gostava. E não conseguia evitar toda aquela, a-aquela angústia entalada na garganta. Vai se foder, mano, resmungava mentalmente a cada passo que dava, me sentindo traída. Como eu sou idiota, uma porra de uma idiota. Aqui, que nem uma trouxa acreditando na historinha dela, achando que tava tudo bem entre a gente, que ela gostava mesmo de mim. E tá, talvez eu também não tivesse sido exatamente sincera sobre meus sentimentos com a Clara. Ou melhor, até disse a verdade – só omiti o que dizia respeito à Mia. E sabia o quão hipócrita era a minha raiva, mas vê-la com outra garota ali, depois dela passar meia hora reclamando que tinha que arrumar a casa naquela noite, me tirou do sério.
 
Cheguei de volta ao meu prédio nem meia hora depois de sair, num acesso de raiva, me sentindo burra, batendo a porta do apartamento e chutando uma mochila que estava largada em frente à entrada. O Casal 20 estava sentado no sofá, testemunhando o meu comportamento infantil e destrutivo de camarote. O Fer se levantou na mesma hora, nervoso, perguntando por que diabos eu estava chutando tudo e, pelo bem do nosso inevitável convívio, resolvi não responder. Atravessei a sala bufando, ignorando a pergunta. Mas aí ele insistiu – e aquilo me irritou ainda mais.
 
_Mano – se indignou – QUE PORRA É ESSA??
_NÃO É DA SUA CONTA, CARALHO!!
_É da minha conta se você vai destruir o nosso apartamento!!
_Quer saber?! Quer saber mesmo??? – eu me virei, prestes a me descontrolar – EU ACABEI DE PEGAR A CLARA PRATICAMENTE DANDO PRA OUTRA MINA NA BALADA! FOI ISSO QUE ACONTECEU, INFERNO!
_E precisa agir que nem criança, velho?! A mina nem era sua namorada!
_FODA-SE! FODA-SE, FERNANDO! NÃO SOU OBRIGADA A GOSTAR!!
_TÁ! MAS TAMBÉM NÃO PRECISA SAIR DESCONTANDO NAS MINHAS COISAS, PORRA!!
_AH, VAI SE FODER, MANO!
 
Entrei no meu quarto, batendo a porta ainda mais forte. E andei de um lado pro outro, impaciente. Filha da puta. Não sabia o que fazer comigo mesma – então sentei na cadeira perto da janela e procurei me acalmar, acendendo um cigarro. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela. Não vou ligar para ela – repeti para mim mesma, como um mantra. Tentando evitar um barraco. A Clara não é nada. NADA! Ela não é nada!! Eu não preciso dela, não preciso de ninguém. Eu não tenho nada para falar, nada. Dei um trago, nervosa. E soltei a fumaça no ar. Que se foda. Que se foda a Clara. E-eu, eu posso arranjar alguém melhor que ela. Eu não preciso disso. Não preciso que mintam pra mim, não preciso dessa merda. Que se foda! Ela e aquela balada inteira! Que se foda todo mundo!
 
Por mais que eu tentasse me convencer, todavia, de que era melhor estar passando por isso agora do que dali uns meses, mais eu pensava na Clara. E na possibilidade de “meses”. Porra. Por que você foi fazer isso logo agora, garota?
 
A verdade é que eu conseguia perdoar muita coisa, mas não uma mentira tão deslavada assim. Ah, isso não. Na minha cara, porra. Ela podia ter dito que não dava, que não queria, sei lá, que já tinha outros planos. E talvez eu entendesse. Quer dizer, não que fosse gostar – porque a porra da lembrança da sua boca em outra ainda me doía, misturada com todas as coisas que dizíamos uma para outra quando estávamos juntas, enfurnadas no seu quarto, no meu, cacete –, mas entenderia. Entenderia que eu não era a única nos seus planos. Mas aquilo...
 
Não.
 
Não daquele jeito, não assim. Pega de surpresa, feita de trouxa. Isso, não. Minha cabeça repassava todas as vezes em que não estávamos juntas, todas as vezes em que disse que estava ocupada, todas as vezes em poderia ter mentido para mim como agora. E me sentia um nada. Inferno. Foi quando, de repente, a minha confusão foi interrompida pela Mia – que bateu sutilmente na porta.
 
_Vim só ver se você tá bem... – ela disse, baixinho.
_Vaza! – a cortei – Não quero falar.
 
E a Mia ficou quieta ali, me olhando. O silêncio dominou todo o quarto. Me deixa. A última coisa que quero fazer é conversar sobre a Clara com você, caralho. E ok – a Mia parecia genuinamente querer ajudar, mas só a ideia de ter uma conversa dessas com ela como se fôssemos “amigas” agravava mil vezes a situação. Então só continuei fumando sem olhá-la de volta, encarando o chão. Nem um ruído, nada. Absorvida pelos meus pensamentos. Como fui me meter nessa? Mas que merda, senti o meu coração disparar no meu peito.
 
E sem saber bem o porquê, abri a boca:
 
_Eu menti para você.
_Pra mim? – a Mia estranhou – Sobre o quê??
_Sobre o nosso beijo. Eu sei por que eu fiz aquilo.
_A gente n-não devia falar disso a-agora...
 
Se inquietou – a porta continuava aberta e o Fer estava logo ali na sala, no fim do corredor.
 
_A verdade é que eu quis te beijar, Mia – as palavras simplesmente escaparam da minha boca – E... e a Clara não significava porra nenhuma.
_Você só tá falando isso p-porque tá brava com ela – argumentou, confusa.
_Não – a interrompi – Eu gosto de você, porra, e-eu... – continuei, a olhando nos olhos e a forçando a acreditar em mim – ...eu gosto mais do que devia gostar, Mia.
 
Ela deu um passo para trás, hesitante – mas não havia volta. Ela sabia.

O que acontece no Vegas...

Combinamos de nos encontrar na porta às 23h e, sem atrasar quase nada, eu apareci. De bermuda, jaqueta jeans e com uma blusa larga do L7 por baixo, já que ia tocar anos 90 no Vegas. Eu e o Gui juntos éramos quase uma Parada do Orgulho fora de época – ele dava tanta pinta quanto eu. Era alto, com olhos cor-de-mel e o cabelo bem curto, enroladinho. O sotaque pernambucano causava entre os boys do teatro com quem ele costumava sair. Era aspirante a ator e um dos meus maiores confidentes – o mesmo para quem confessei meu amor pela Mia uns meses antes.
 
Naquela noite, o Gui apareceu mais gato do que nunca. Ia encontrar um cara agendado para discotecar no Vegas e que ele me jurou incansavelmente ao telefone que era “tão bonito que podia morrer feliz” depois. Duvido muito, pensei ao entrar na balada, após enfrentar uma pequena fila. Mas ok. A pista estava consideravelmente cheia para uma quarta-feira. No escuro, sob as batidas ensurdecedoras do som, o meu olhar vagou de um lado para o outro à procura do tal DJ misterioso, enquanto o Gui vomitava descrições empolgadas e possivelmente exageradas sobre o cara e como eles se conheceram e tudo mais.
 
Mal havíamos passado da porta, no entanto, quando meus olhos se depararam com um rosto familiar em meio à multidão. Um que eu não esperava encontrar. E sem conseguir dar um passo a mais, fiquei parada encarando – num canto junto ao palco, se amassando com uma babaca alternativa de merda, a Clara.
 
Filha-da-puta.

Quarta-feira

Por que o meio da semana é sempre o pior?
 
Argh. Um tédio mortal se prolongava pelo mais lento de todos os dias de trabalho. Lá estava eu, fingindo me concentrar numa seleção de fotos de casamento, apoiando o rosto nas mãos e quase caindo da cadeira. Qual é a dos héteros e essas cerimônias de merda?, me indaguei, amarga, olhando para as fotos no computador e ignorando o meu dever em editá-las. Isso é uma grande piada, refleti, e eles sabem. Todo mundo sabe. Fui passando foto por foto, sem paciência para a cultura do matrimônio. Não é possível que alguém leve isso a sério.
 
De certa forma, meus pensamentos heterofóbicos – e rancorosos – me distraíam. A verdade é que eu achava até certa graça naquele tipo de trabalho. As fotos eram sempre iguais e pareciam me dizer muito sobre as pessoas. Ficava horas observando os sorrisos posados e os olhares bêbados de fim de festa, procurando qualquer descuido do noivo ou da noiva – aquilo me entretinha. Era como procurar indícios de uma conspiração, sinais escondidos de que ninguém ali realmente se gostava, de que era tudo só para manter as aparências.
 
Estava absolutamente compenetrada na minha viagem sociocrítica quando o meu celular tocou, me despertando de volta para a realidade. Atendi. E do outro lado da linha, a voz afeminada de um dos meus melhores amigos começou a tagarelar quase imediatamente qualquer coisa sobre o Vegas e... blá blá blá... que ele precisava de companhia e que ia encontrar um bofe e que a gente tinha que encher a cara e dançar e que ele não ia aceitar não e que da última vez sei-lá-o-quê, entre muitos comentários vomitados de uma só vez. 
 
Ah, o Gui é a minha salvação.
 
_Cê não tem desculpa, são dois minutos da tua casa: você VAI!
_Lógico que vou, Gui – eu ri – Quando foi que eu deixei de sair com você, meu?
_Melhor eu não responder essa, né, sua vagabunda...
_Ok, tá... – eu ri, de novo, consciente do meu desempenho vergonhoso como amiga naqueles últimos meses – ...mas juro, desta vez eu vou.
_Vai mesmo! CÊ NÃO OUSE FURAR! – me advertiu, aos gritos no telefone, enquanto eu me afundava na cadeira, me divertindo com a bronca – Sério. Quero muito te ver, tô com saudade!
_Não vou furar, mano.
 
Desliguei o celular, feliz e com uma perspectiva melhor para o restante daquele dia. Salva por um telefonema. É – o Gui era a companhia ideal para distrair a cabeça. Era exatamente o que eu precisava depois daquele fim de semana. No caminho de volta para casa, ao fim do expediente, fumei menos do que vinha fumando naqueles dias todos. Não tive vontade. Em vez disso, quando saí da estação de metrô, digitei para a Clara – “oq vai fazer hj?”. E assim que entrei em casa, chegou a sua resposta.
 
Faxina, 01 porre! :/”.
 
Ninguém merece. Mas não desanimei. Atravessei a sala sem falar com a Mia, que não saía mais da minha casa e estava ali, bolando um baseado sobre a mesinha de centro consertada. Fui direto para o meu quarto e comecei a vasculhar o meu armário atrás de alguma roupa que prestasse – pronta para uma noite digna de Las Vegas. Ou a versão paulistana disso.