Há dez meses – foi
quando nos conhecemos. Eu estava saindo do trampo na Vila Madalena, onde atualmente
sou explorada por um fotógrafo sem talento algum, quando liguei para ver onde o
Fer estava e ele sugeriu que eu passasse no Starbucks da Alameda Santos para
conhecer a garota com quem ele andava saindo. Estavam fazendo hora antes de irem
para um rolê de ska no Centro, onde o meu amigo ia discotecar com os seus vinis.
_Claro – eu respondi, acendendo um cigarro a caminho do metrô.
Que erro.
Peguei a linha Verde desavisada, completamente despreparada para o
caos que estava por vir na minha vida. Assim que cheguei, avistei ele de longe
– estava sentado numa das poltronas do Starbucks, ao lado de uma garota de
cabelo castanho. Quase preto. Uau. Lembro de vê-la sentada com as pernas
sobre a poltrona, meio afundada no encosto e largada, com um jeito todo punk,
cheia das tatuagens. Não era nada como as minas magrinhas com quem ele
costumava sair, era totalmente fora dos padrões. E gata, como era gata, puta
merda – fui com a cara dela na mesma hora. O Fer nos apresentou, empolgado,
tagarelando qualquer coisa na tentativa de impressioná-la enquanto eu fingia
ouvir, ignorando cada palavra que saía da sua boca. Sem tirar os olhos da Mia.
E tá. Não me entendam mal: eu nunca pretendi me apaixonar.
Nem por ela – aliás, muito menos
por ela – e nem por ninguém. Só a ideia de trair os meus anos de amizade
com o Fer já me embrulhava o estômago. Argh.
Também nunca fui de me interessar muito por garotas héteros. Eu gosto mesmo é
de sapatão. De mina que tem tesão em mulher e que sabe o que quer. Mas a Mia
tinha alguma coisa diferente, não
sei. Me senti atraída por ela desde o instante em que a conheci e o
sentimento só piorou com o tempo.
Em que diabos estou me metendo?
A partir daquele dia, passei a encontrá-la o tempo todo. Sempre
com o Fer. Eles eram um casal bonito – e um tanto porralouca. Meu amigo foi um
daqueles adolescentes magrelos, desajeitados e meio excluídos, que não fazia
muito sucesso com as patricinhas racistas da escola. Filho de pai indígena e
mãe negra; a família era do Pará, como a minha. Passava a maior parte do tempo
comigo, andando de skate e indo em show punk no ABC. Só que aí cresceu, se
encheu de tatuagem e ficou com cara de malandro – e de repente, todas as minas
queriam ficar com ele. Já a Mia, nossa, ela deve ter sido sempre linda.
Nós tínhamos o mesmo tipo de humor, os mesmos interesses. E a
nossa lista de favoritos era assustadoramente idêntica – de Bikini Kill a Patti
Smith. A mina era foda. Tudo o que ela fazia me dava vontade de estar do seu
lado. E eu gostava de cada segundo. Gostava de como ela me xingava depois de
cada piada ruim que saía da minha boca, de como nos tratávamos com a intimidade
de quem se conhece há anos, de como ela virava na minha direção e cochichava “o
homem da casa está falando” num deboche misândrico, sempre que discordava de
algo que o Fer estava dizendo.
Eu era obcecada por ela. Pelo seu sorriso, por como nós ríamos até
a barriga doer. E acima de tudo, por quando sentávamos os três juntos na sala
para ver filmes de terror e o Fer arregava já logo no começo e ia pro quarto.
Aí eu deitava no seu colo e as mãos dela me faziam uns cafunés meio à toa. Cacete.
Numa tortura que eu não queria que acabasse. A Mia frequentava o nosso
apartamento quase diariamente, a ponto de começarmos a brincar que ela devia
dividir o aluguel com a gente. As nossas conversas duravam horas e horas. E eu
tinha vontade de beijá-la cada vez que ficávamos sozinhas ou incrivelmente
bêbadas – mas nunca fiz nada. Nunca nem insinuei.
Isto é,
até o último sábado.
Meses depois de nos conhecermos, quando se tornou realmente
insuportável, liguei para um dos meus melhores amigos e admiti. Eram 3 da
manhã. Tive que descer para a rua com o celular – assim o Fer não ouviria nada
– e estava um frio desgraçado. A Mia tinha passado o dia inteiro lá, andando só
de camiseta pela casa e sendo maravilhosa em cada maldito passo que dava. Desgraçada.
Como eu odiava aquilo, meu deus. Lá pelas 7 da noite, o Fer foi
até a Roosevelt, onde um amigo estava comemorando o aniversário, e a Mia não
quis ir. Era pra ser só uma passada, mas ele demorou e acabamos ficando a noite
inteira juntas.
Nunca ri tanto. Fumando um, engolidas pelo sofá. Estávamos tendo a
conversa mais idiota sobre os patos no Ibirapuera – inventando toda uma novela
mexicana de como as aves foram parar lá – quando o Fer finalmente voltou. Já
era quase meia noite. Lembro de estar totalmente chapada e ficar olhando a Mia
se levantar e ir até a porta para o beijar. Ele. A boca dele. Me
senti desconfortável, foi estranho. Como se o meu estômago se contorcesse – ou
era o meu coração que apertava?
Não, para. Só para. Não queria me sentir assim.
Já tinha visto eles juntos um milhão de vezes, mas por algum motivo naquele
momento não consegui desviar o olhar. Senti a minha respiração pesar, incomodada.
E era tão besta – a Mia colocou os braços nos ombros dele e eles se abraçaram,
num beijo rápido. Ela sorriu. Não foi nada demais. Não foi nada.
Foi insuportável.
Fiquei absolutamente transtornada. O sentimento parecia me consumir
por dentro. Me tranquei no meu quarto pelas horas seguintes, inquieta, incapaz
de admitir para mim mesma o quanto gostava da porra da Mia. O quanto sentia que
aquilo era errado, que era eu quem ela devia estar beijando. Fumei um cigarro
atrás do outro, apreensiva, sentindo uma vontade tonta de chorar. E foi quando
percebi que não conseguia mais evitar o buraco em que eu havia me enfiado.
_E-eu acho que tô apaixonada... – confessei para o Gui, assim que
ele atendeu ao telefone – ...eu não sei o que fazer, e-eu...
Estava tremendo de frio, sentada na porra da sarjeta da Frei
Caneca, e chorando todo o meu coração para fora, tentando não falar alto, com
medo de encarar a verdade.
_O que aconteceu? Cê tá bem!?!
O Gui soava preocupado, assustado pelo horário e pela minha voz do
outro lado da linha. Acho que nunca me senti tão insegura, tão sem saída. Me
arrependia a cada palavra que saía da minha boca.
_E-eu tô apaixonada p... – suspirei – ...p-pela Mia.
É. O mal estava feito.
5 comentários:
meu,que lindo ta isso (L)
cada vez melhor..
não da para cansar de ler.. (o que é mtu importante)
;***
E assim se inicia a derrocada do Império Romano...
Analisando friamente, aqui ela deveria ter dito tchau e procurado outro ap! Mas, não tô nem louca de sugerir isso! :)
nossa, como tinha pouquinho comentário no começo!
Quem diria q ia crescer tanto...eh, eu tô nostálgica hj.
;*
FM Me faz recordar sentimentos..muito GENTE cara.
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