_E aí, tá viva?
O Fer perguntou, achando graça, ao me ver entrando na sala. Estava
sentado no sofá com o cabelo recém-raspado, como se tivesse passado a máquina
naquela manhã mesmo, ocupado arrumando uns discos de vinil. Fazia um calor do
cão em São Paulo. Uma latinha de cerveja já formava um círculo de água na nossa
mesa de centro, parada ali provavelmente há uns bons minutos. Ao que tudo
indicava, eu era a última a acordar naquela casa.
_Nossa, mano, ontem foi... – suspirei, sem completar a frase, estragada
de ressaca e com um sorriso irremediável no rosto.
_É. Eu sei... – ele riu – Deu pra ouvir.
_Foi mal.
_“Foi mal”, sei. Tá muito arrependida você...
Senti meu rosto esquentar com o constrangimento e ele riu da minha
cara. Alcançou a latinha na mesa e eu larguei o corpo ao seu lado, apoiando a
cabeça contra o encosto do sofá. Estava exausta. A Clara tinha ido embora
algumas horas antes – mal lembrava de tê-la acompanhado até a porta, capotando de
novo logo em seguida. O meu corpo inteiro doía. Por que faço isso comigo mesma?
O Fer olhava para os discos, compenetrado, separando-os em pilhas
diferentes. Ele tinha mais vinil do que qualquer pessoa que eu conhecia – uns punks
antigos e uma cacetada de rocksteady e ska. Tinha até um compacto duma banda de
queercore que colocou pra eu escutar uma vez. Hardcore de viado, não
sei onde o Fer acha essas paradas. Tinha coisa ali que nem o Google sabia o
que era. Entre um álbum e outro, olhou rapidamente para mim ao seu lado, e riu.
_Cês pegaram pesado ontem, mano...
_Ah, meu... – fechei de novo os olhos, com a cabeça ainda apoiada
no encosto – ...mó da hora, aquela mina.
_É, né – sorriu – Sei. E cês conversaram mais alguma coisa? Ou cê nem
pegou o nome dela?
_Olha, pra sua informação, é Clara. E a gente conversou pra
caralho.
_Aham.
_É sério, pô! Trocamos mó ideia, ela já viajou pra tudo quanto é
canto, fez mochilão na América Latina – comentei, sentindo cada gota de álcool
sugar lentamente a minha vontade de viver – Acho que cês iam se dar bem. Ela
falou que queria tatuar um trecho daquele livro lá que cê gosta, o... o “Folhas
de sei-lá-o-quê”, sabe?
_Sei. De relva.
_“Relva”?!
_Isso – o Fer achou graça, tomando mais um gole da cerveja.
_Que diabos é “relva”, Fernando?! Não é isso.
_É, mano. Eu tenho o livro, caralho, tô te falando!
_Tá. Que seja.
_Mas, pô, firmeza a mina então...
_Nossa, demais. Ficamos conversando a madrugada toda, velho...
_É. Deu pra ver que cê gostou mesmo da “conversa”... – me zombou.
_Ah! Vai cagar, Fernando.
Chutei ele de leve sob o sofá e rimos.
_Bom, vocês pareciam estar se divertindo... – deu mais um gole e balançou
a cabeça, como se eu fosse uma adolescente – A Mia ficou puta da cara, velho...
A gente não conseguia dormir.
_Ah, vá. Até parece! – revirei os olhos pro exagero – E ela,
afinal, cadê? Tá aí?
Perguntei, sentindo a minha cabeça martelar de dor.
_Não, foi embora hoje de manhã. E-ela... – o Fer hesitou – ...me perguntou
de você.
_De mim? Hoje?
_Não... ontem.
_Ontem?
_É... Enquanto você se agarrava com a, a mina lá no Inferno... – ele riu, coçando a parte de trás da cabeça – ...acho que não
tava acostumada.
_Mas perguntou o quê?
_Ah, meu, n-não sei... essas coisas que as pessoas perguntam... –
deu de ombros, sem elaborar muito, mas insisti com o olhar, à espera de uma
resposta melhor – ...cê sabe, sobre você ficar com mina.
Colocou mais um disco na pilha mais alta. O Fer não dava a mínima pros
meus exageros, os meus apaixonamentos efusivos de balada – cresceu me vendo sofrer
e fazer merda, tropeçando em drama sapatão pelas madrugadas de Santo Amaro,
onde passamos a adolescência juntos. Como resultado, disso e dos anos dividindo
apartamento no meio da meca gay de São Paulo, o Fer era um caso raro de cara hétero
totalmente indiferente a demonstrações públicas de afeto entre minas. Ou caras.
Ele não tava nem aí.
_Depois eu fiquei pensando e... tipo, n-não é como se, sei lá... –
argumentou – ...a Mia tem um monte de amiga que se pega, meu, num entendo por
que tanto choque.
_Ah, até parece, né? Essas minas que ela anda do Mackenzie ficam
dando selinho na balada para fazer graça pra namorado, nenhuma delas se pega
ali, não...
_É. Talvez – ele riu.
_Hum... – me espreguicei ao seu lado no sofá, esticando as pernas
adiante – ...mas eu achava que a Mia já sabia de mim faz tempo. Não?
_Ah, ela sabe... – ele riu e me ofereceu a sua cerveja, que eu
aceitei contra todo bom senso latejando na minha cabeça – Ou cê realmente acha
que eu não ia avisar a minha própria namorada?
_Credo, mano, cê fala como se eu fosse o Lobo Mau...
_Quê? – zombou – Cê num sossega, mano!
_Vai se foder! – resmunguei, indignada – Sabe, cê que tá aí, nem
25 nas costas e nessa vida de casado!
_Fala mal, mas bem que queria...
Me provocou e eu o empurrei para o lado.
Argh, cê nem imagina.
4 comentários:
ADOOOOORO !!
Estou adorando , você escreve muito bem ...
Não consigo parar de ler *-*
Na 18ª linha de baixo pra cima tem "tantos" no lugar de "tanto"... Tô relendo o blog e achei que devia comentar. Beijos Mel ;D
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